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Agrarismo e industrialismo na Assembleia Constituinte de 1823: um debate sobre o futuro do Brasil

Agrarism and industrialism in the Constituent Assembly of 1823: a debate about the future of Brazil

Agrarismo e industrialismo en la Asamblea Constituyente de 1823: un debate sobre el futuro de Brasil

RESUMO

Este artigo examina as raízes históricas do que considera ser um importante debate sobre a identidade do Brasil nos marcos do pensamento econômico: o país teria uma natural vocação agrícola, dotada de vantagens comparativas, ou deveria investir na diversificação estrutural e industrializar-se? Argumenta-se que essa é uma questão presente já no momento da Independência e que debates já existiam em Portugal desde o século XVIII. Analisam-se os debates travados na Assembleia Constituinte de 1823 quanto à concessão ou não de benefícios tributários às fábricas de ferro. Por um lado, os “agraristas” defenderam a primazia agrícola, enquanto os “industrialistas” argumentam a favor da ação estatal no estímulo à atividade industrial. Procura-se demonstrar, assim, a existência de concepções diferentes para o futuro econômico do país que ecoam pelos 200 anos de vida independente.

Palavras-chave:
Independência do Brasil; Assembleia Constituinte de 1823; agrarismo; industrialismo; pensamento econômico brasileiro

ABSTRACT

This article examines the historical roots of what it considers one of the main debate on Brazil’s identity within the framework of economic thought: would the country have a natural agricultural vocation, endowed with comparative advantages, or should it invest in structural diversification and industrialize? It is argued that this is an issue already present in the independence process, and debates already existed in Portugal since the 18th century. The debates held in the Constituent Assembly of 1823 regarding the granting or not of tax benefits to iron factories are analyzed. On the one hand, the “agrarists” defended agricultural primacy, while the “industrialists” argued in favor of state action in stimulating manufacturing or industrial activity. It seeks to demonstrate, therefore, the existence of different conceptions for the economic future of the country that echo through the 200 years of independent life.

Keywords:
Independence of Brazil; Constituent Assembly of 1823; agrarism; industrialism; Brazilian economic thought

RESUMEN

Este artículo examina las raíces históricas de los que se considera ser un importante debate sobre la identidad de Brasil en los marcos del pensamiento económico: ¿el país tendría una vocación natural agrícola, dotada de ventajas comparativas, o debería invertir en la diversificación estructural e industrializarse? Se argumenta que esa es una cuestión ya presente en el momento de la independencia y debates que ya existían en Portugal desde el siglo XVIII. Se analizan los debates asegurados en la Asamblea Constituyente de 1823 en cuanto a la concesión o no de beneficios tributarios a las fábricas de hierro. Por un lado, los “agraristas” defendieron la primacía agrícola, mientras que los “industrialistas” argumentaban a favor de la acción estatal en el estímulo de la actividad industrial. Se pretende demostrar, así, la existencia de concepciones diferentes para el futuro económico del país que trascienden por los 200 años de vida independiente.

Palabras clave:
Independencia de Brasil; Asamblea Constituyente de 1823; agrarismo; industrialismo; pensamiento económico brasileño

Introdução

Se há uma questão econômica no Brasil que se entrelaça à construção da identidade do país é o debate travado entre os defensores do apoio à industrialização e os que, no lado oposto, acreditam na vocação agrícola da economia nacional. Questão evidente quando se pensa a história do século XX, ela já estava presente no momento fundador do Estado brasileiro. Não obstante, muitas vezes o debate econômico daquele contexto foi reduzido ao problema da abertura dos portos e à assinatura dos tratados de comércio com a Grã-Bretanha. Há uma tradição historiográfica crítica às decisões tomadas pela elite econômica e dirigente do Império no século XIX, responsabilizando-a pelo atraso econômico do Brasil, principalmente na comparação com os Estados Unidos e seu protecionismo1 1 Críticas ao Visconde de Cairu, como personagem que simboliza a opção dos liberais brasileiros pela abertura e pela agricultura de exportação, em detrimento de uma política protecionista e industrializante, estão expressas em clássicos como Celso Furtado e Sérgio Buarque de Holanda. Uma revisão dessa historiografia pode ser lida em: Novais e Arruda (2003, p. 240-241) e Rocha (2001, p. 25-30). . Sem adentrar na questão específica dessa tradição, um efeito indireto de seu predomínio é o eclipse das posições alternativas que existiram no contexto da Independência.

Partindo do debate na Assembleia Constituinte de 1823, este artigo pretende demonstrar a existência daquelas alternativas, especialmente no que toca à questão da adoção ou não de medidas de auxílio à indústria. Pretende-se, assim, demonstrar que o futuro econômico do Brasil não era um assunto consensual mesmo nos limites da elite proprietária e escravagista que promoveu a Independência. A identidade “naturalmente” agrária, definida pelo livre-mercado, ou a perspectiva de um futuro econômico com uma estrutura diversificada, a partir da ação estatal, foram opções discutidas na Constituinte de 1823.

Analisar como fonte primária os Diários da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil2 2 Aqui se utiliza a edição fac-similar dos Diários da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil publicada pelo Senado Federal em 2003. Cita-se esse documento com a sigla DAGC. As referências extraídas foram transcritas, aqui, na ortografia contemporânea. é procurar fazer novas perguntas a um antigo documento-monumento. Nas questões econômicas, esse documento diz muito em seu silêncio: em que pese a célebre Representação de José Bonifácio, a escravidão ou quaisquer mudanças nas relações de trabalho não foi tema de discussão. Além disso, a concentração da propriedade fundiária, outro aspecto fundamental da economia do país, surgiu apenas brevemente em um projeto de Vergueiro que pretendia tornar terras públicas as sesmarias sem cultivo, contudo sem qualquer consequência legislativa3 3 O então deputado Nicolau Pereira de Campos Vergueiro apresentou esse projeto de lei na sessão de 14 de julho de 1823. Ele foi debatido nos dias 20 de julho e em 3 de outubro. Sua tramitação não foi concluída, já que a Assembleia foi fechada em 12 de novembro. .

No contexto latino-americano, no qual o republicanismo e o abolicionismo foram objeto de debate e ações mais intensas, o caso brasileiro pode ser entendido como uma via conservadora para a Independência. Contudo, mesmo na pungente questão da escravidão, o processo não foi tão linear (SCHULTZ, 2005SALOMÃO, Ivan Colangelo. Liberalismo, industrialização e desenvolvimento: as ideias econômicas de José Bonifácio de Andrada e Silva. Almanack, Guarulhos, n. 26, 2020., p. 426) e, como pesquisas demonstram, houve algum nível de participação e envolvimento popular (CARVALHO; BASTOS; BASILE, 2012CARVALHO, José Murilo de; BETHELL, Leslie. O Brasil da Independência a meados do século XIX. In: BETHELL, L. (org.). História da América Latina - da Independência a 1870, v. III. São Paulo: Edusp. 2001.). O fato de a Independência ser conduzida por uma elite de proprietários rurais, senhores de terra e escravos, não levou à afirmação consensual nem da abertura comercial irrestrita e nem de um “destino” agroexportador. Na composição da Assembleia, houve defensores de políticas estatais favoráveis ao desenvolvimento de fábricas. O debate foi travado nos termos da época, opondo o industrialismo a um agrarismo de raiz portuguesa, conforme será discutido adiante.

A pretensão desse trabalho é apresentar essa questão e evidenciá-la a partir das concepções de “Brasil” que estão em jogo nos debates fundadores do país, analisando os argumentos de ambos os lados - agraristas e industrialistas - na Assembleia Constituinte de 1823. Nesses debates, aparentemente se caminhava em uma direção não tão condizente com os anseios mais liberais e agroexportadores que vieram a prevalecer depois da interrupção dos debates e que outro projeto de Constituição fosse outorgado.

I. 1823: uma Assembleia Constituinte para legitimar a Independência

Em abril de 1823, o recém-estabelecido Império do Brasil abria sua primeira Assembleia Constituinte. Os deputados dotariam o país de uma Constituição que, para além de estabelecer o pacto entre as forças políticas que fizeram a Independência, seria o documento formal da autonomia. Experiência curta em um momento político intenso: a Assembleia terá seu funcionamento encerrado por um golpe de Estado conduzido pelo imperador em 12 de novembro do mesmo ano. D. Pedro apresentará uma versão própria de Constituição no ano seguinte.

A Constituição de Cádiz, de 1812, e, depois, as Cortes reunidas em Lisboa trouxeram o constitucionalismo para o interior dos antigos impérios ibéricos, como solução para a crise aberta em 1807-1808. Na América Latina, ele tornou-se a expressão da busca pela legitimidade dos novos Estados surgidos da desintegração daqueles impérios. Entre 1808 e 1825, surge uma plêiade de experiências constitucionais com diferentes respostas para as questões da articulação entre os diversos espaços (locais, provinciais, estatais, nacionais), o exercício do poder, a cidadania, dentre outras. Tais experiências são palco para a disputa entre os grupos que conduziram as independências e suas diferentes expectativas (­GARGARELLA, 2013FAORO, Raymundo. Os donos do poder - formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo, 2000.).

A Economia Política esteve no centro desse debate posto que, a partir dela, já na época dos reformadores ibéricos de meados do século XVIII, se pensavam maneiras de solucionar o problema da inadequação de antigos impérios fundados na conquista e no ideal cruzadístico ao mundo moderno. Assim, a palavra “constituição” não perdeu seu significado tradicional de “organização de uma corporação”, mas com o influxo da Economia Política passou a incorporar conceitos que expressavam o interesse individual e o direito de propriedade. A passagem para essa concepção moderna de organização política seria, inclusive, o que atribuiria um caráter eminentemente revolucionário ao processo de Independência (GUERRA, 2010GARGARELLA, Roberto. Latin American Constitutionalism - 1810-2010 - The Engine Room of the Constitution. Oxford University Press, 2013., p. 85-114). A incorporação deste temário também pode ser percebida nos debates parlamentares portugueses ocorridos a partir da Revolução do Porto. Cardoso (2007CÂMARA, Benedita Cardoso Do Agrarismo ao Liberalismo. Francisco Soares Franco: um pensamento crítico. Lisboa: INIC-Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989.) destaca a importância dessa matéria e de autores como Adam Smith e Jean-Baptiste-Say, nesses debates parlamentares.

No Brasil de 1822, a convocação de uma constituinte não fora uma decisão consensual do núcleo que cercava D. Pedro. José Bonifácio, principal liderança daquele processo, era contrário à ideia temendo a imprevisibilidade de uma reunião de elites locais, vindas de “províncias distantes, isoladas, com costumes e pretensões diversas, uma povoação heterogênea e dispersa” (COSTA, 2015CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILE, Marcello. Às armas, cidadãos! - panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823). São Paulo e Belo Horizonte: Cia. das Letras e Editora UFMG, 2012., p. 85). Partidário de um ideado “governo de sábios” que cercariam o monarca (CALDEIRA, 2002BETHELL, Leslie. A Independência do Brasil. In: BETHELL, Leslie. (org.). História da América Latina - da Independência a 1870, v. III. São Paulo: Edusp, 2001., p. 21-22), preocupado com a luta em curso pela afirmação efetiva do poder estabelecido no Rio de Janeiro em torno de D. Pedro e temeroso de uma fragmentação do território, ele se opôs a uma constituinte nos moldes defendidos por Cipriano Barata, Frei Caneca, pelo grupo do Grande Oriente de Gonçalves Ledo e José Clemente Pereira, e mesmo pelos seus irmãos mais novos, Antonio Carlos e Martim Francisco (BETHELL, 2001ALMODOVAR, Antonio; CARDOSO, José Luís. History of Portuguese Economic Thought. Routledge, 1998., p. 218). Não obstante, a pressão dos liberais foi grande e a própria atividade das Cortes em Lisboa inviabilizava uma saída de meio caminho. Em junho de 1822, com parte dos defensores mais radicais da constituinte afastados, D. Pedro decidiu-se pela convocação, trilhando o caminho da Independência.

A Assembleia se reuniria oito meses depois, em 3 de maio de 1823. Previa-se a reunião de 100 deputados, representando 18 províncias. Contudo, as sessões tinham a presença de, em média, 70 deles, já que nem todas as cadeiras foram ocupadas (SMELIAN, 2006SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora 34, 2000., p. 72). Cisplatina, Maranhão, Pará e Piauí não tiveram a representação prevista. A rigor, os trabalhos da Assembleia se desenvolveram paralelamente à guerra contra as forças portuguesas e a resistência leal a Lisboa.

A despeito da não participação dos liberais mais radicais, havia divisões. A disputa política entre o imperador e os deputados é tradicionalmente abordada pela historiografia brasileira desde o século XIX, que vê na ruptura dos Andradas com a Coroa a causa do fechamento da Assembleia. Era essa a interpretação de Varnhagen, para quem a radicalização dos Andradas teria levado ao golpe de novembro (VARNHAGEN, 1981VANDELLI, Domingos. Memória sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as fábricas. In: Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa (1789-1815), tomo I. Lisboa, Banco de Portugal, 1990., p. 77). De fato, a posição de Bonifácio, defendendo a centralidade do Poder Executivo, mas buscando isolar o “partido português”, colapsara em julho de 1823 com seu afastamento do Ministério. Depois, D. Pedro I e seu novo gabinete seriam mais hostis a quaisquer controles de caráter liberal que a Assembleia pretendia impor-lhe no projeto de Constituição (CARVALHO; BETHELL, 2001CARDOSO, José Luís (coord.). A Economia Política e os dilemas do Império luso-brasileiro (1790-1822). Lisboa: CNCDP, 2001., p. 700). A conveniência de se atribuir a “culpa” a uma posição extremada dos Andradas pode ser uma leitura próxima aos interesses da Corte, na qual circulava Varnhagen.

Algumas interpretações apresentam outra forma de compreender a questão. Caio Prado Jr, por exemplo, afirma que o poder do imperador era frágil em 1822. Ele chegara ao trono graças à ação de Bonifácio e da breve conciliação de interesses no chamado “partido brasileiro”. Contudo, no governo, D. Pedro se amparou na burocracia já instalada durante o período joanino e no “partido português”: o choque derivado dessa posição contraditória foi inevitável (PRADO JR., 1983PEREIRA, José Esteves. As ideias fisiocráticas em Portugal. Revista Lusíada - Economia & Empresa, Lisboa, n. 27, p. 67-84, 2019., p. 56). Por sua vez, Cruz Costa entende que uma estrutura de governo herdada do período anterior, avessa a controles, não aceitaria se submeter a um regime constitucional e à fiscalização de seus atos (COSTA, 2004COSTA, João Severiano Maciel da. Memória sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no Brasil. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1821., p. 185). Na mesma linha, Faoro defende que, após a Independência, veio à tona o conflito latente entre as “forças nacionais” e D. Pedro: “a dispersa, desarticulada e fluida nação encontra, instalado no Rio de Janeiro, um arcabouço fechado, disposto a exercer uma vigilante ditadura sobre o país” (FAORO, 2000FALCON, Francisco Calazans. A época pombalina - política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1993., p. 319). Assim, uma interpretação alternativa atribuirá aos anseios autoritários de D. Pedro, e não às “provocações” dos Andradas, a responsabilidade pelo encerramento da Assembleia.

Rodrigues (1974), por sua vez, desloca a explicação para a economia. Segundo ele, foi o fato de a Assembleia avançar sobre os interesses econômicos dos portugueses que levou ao golpe da Noite da Agonia. Em particular, ele se refere a um projeto apresentado por José Resende da Costa (que participara da conjuração de Minas, em 1789) para a extinção do juízo dos defuntos e ausentes cuja consequência era reter no Brasil os recursos deixados no país por ausentes ou pessoas já falecidas, o que impedia esse capital de ser remetido à antiga metrópole, atingindo o patrimônio de portugueses. Isto alarmou o grupo que cercava o imperador. “Aos perigos do crescente nacionalismo político se somavam os receios do nacionalismo econômico que os Andradas e seus aliados defendiam no seio da Assembleia” (RODRIGUES, 1974ROCHA, Antonio Penalves(org.). José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu. São Paulo: Editora 34, 2001., p. 200).

De todo modo, mesmo interrompida, a obra da Constituinte foi intensa. Ao lado do próprio projeto de Constituição (relatado por Antonio Carlos de Andrada Machado) e do regimento interno, foram debatidos 38 projetos de lei, além de muitas indicações e pareceres das comissões. Dentre eles, o objeto desta pesquisa: um projeto de viés industrialista, atacado pelos defensores de uma “vocação” agrícola do Brasil e defendido pelos Andradas. Observa-se que, com o fechamento da Assembleia Constituinte, possíveis soluções econômicas diferenciadas em relação a esta vocação agrária brasileira acabaram não indo adiante.

Na sequência, será apresentado o ambiente intelectual em Portugal na segunda metade do século XVIII, onde a elite brasileira conheceu e participou da discussão que opunha o industrialismo de viés mercantilista ao agrarismo manifesto em vertentes fisiocráticas e até liberais, em um momento no qual a Economia Política adentrava naquele país. Essa questão se coaduna ao debate sobre o futuro do Brasil dentro do Império Português e acaba por ter forte repercussão nos embates travados no próprio Brasil na primeira metade do século XIX. Na terceira parte, retornaremos a 1823 para tratar do debate entre os herdeiros daquele agrarismo e os defensores de medidas de proteção à indústria na Assembleia Constituinte brasileira.

II. Agrarismo e industrialismo: o pensamento econômico em Portugal e suas colônias na segunda metade do século XVIII

Dos 90 deputados eleitos para a Constituinte, 49 haviam estudado na Universidade de Coimbra. Suas lideranças mais destacadas nos debates, Antonio Carlos de Andrada Machado e Francisco Carneiro de Campos, tiveram sua formação naquela escola. A cena intelectual naquele Portugal da passagem do século XVIII para o XIX foi, assim, o ambiente de formação da maioria da Assembleia. Especialmente no que tange ao debate econômico, é importante retomar seus termos antes de analisar a discussão do projeto de isenção de tributos às fábricas de ferro proposto em 1823, objeto principal desta pesquisa. Neles estão presentes argumentos apresentados nos discursos dos deputados brasileiros, analisados no próximo tópico. Além disso, a afirmação e posterior refluxo de uma política industrial na metrópole também se relacionam diretamente com o tema no Brasil. Não se pretende uma exaustiva revisão dos debates em torno das questões econômicas em Portugal, mas adiantar alguns termos de uma visão agrarista em oposição a movimentos em prol das manufaturas.4 4 Para uma visão mais completa e ampla do pensamento econômico no Império português no período, ver Cardoso (2001) e Cardoso e Almodovar (1998).

A defesa de uma política de incentivo a manufaturas e fábricas no país foi impulsionada no governo de Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, enquanto reinava D. José I. Tratava-se de um momento em que o racionalismo da Ilustração ganhava centralidade na promoção de reformas administrativas e econômicas, além da laicização do Estado português (FALCON, 1993COSTA, João Cruz. As novas ideias. In: HOLLANDA, Sérgio Buarque de(dir.). História Geral da Civilização Brasileira - o Brasil monárquico, tomo II. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.). Pombal governou sob o impacto da crise advinda da retração da produção aurífera brasileira, o que abria as portas para as reformas. De orientação mercantilista, sua política passava pelo protecionismo, integração econômica entre metrópole e colônia e, no que nos interessa mais detidamente aqui, o industrialismo. A carência de divisas, dado o menor fluxo de ouro brasileiro, será contornada com uma política de substituição de importações associada também à preocupação mercantilista com o balanço de pagamentos (PEDREIRA, 1987PEDREIRA, Jorge Miguel. Indústria e atraso económico em Portugal (1800-25) - Uma perspectiva estrutural. Análise Social, v. XXIII, n. 97, p. 563-596, 1987., p. 566).

Esse industrialismo mercantilista de Pombal naturalmente encontrou reações, embora houvesse já um pensamento econômico precedente naquele mesmo sentido, como a voz de D. Luís de Meneses, ainda no século XVII. Quando D. Maria I sucedeu D. José I, em 1777, o marquês foi deposto, sua política industrial interrompida e atacada. Contudo, ainda ao final do século XVIII e início do XIX, o pensamento industrialista se manifestaria no Reino, embora minoritário, com destaque para a obra de José Acúrsio das Neves, defensor da industrialização e a mecanização da economia portuguesa em um momento no qual os efeitos da Revolução Industrial britânica já eram visíveis (MENDES, 1996MARICHAL, Carlos. Las finanzas y la construcción de las nuevas naciones latinoamericanas (1810-1880). In: VÁZQUEZ, Jozefina Zoraida (org.). Historia general de América Latina, v. VI. Madrid: UNESCO, 2004., p. 203). Sobre esse autor e a influência do protecionismo em Portugal, Almodóvar e Cardoso dizem que:

Não apenas nas obras de um economista do Antigo Regime como José Acúrsio das Neves, mas também no pensamento de muitos protagonistas da primeira Revolução Liberal portuguesa, de 1820, não se esconde a clara propensão para uma política econômica protecionista. Nesse sentido, apresentaram-se sérias dúvidas quanto a uma aceitação desenfreada da economia política clássica, sobretudo pelo vínculo implícito que aqueles autores faziam entre a economia política e a prática do livre comércio internacional que, para eles, era um dos impedimentos mais estratégicos ao pleno desenvolvimento econômico nacional […]. Foi enfatizada uma importante tradição, nomeadamente a de recusar as leis supostamente universais da economia política, semelhantes aos argumentos do sistema nacional de economia política de Friedrich List (ALMODOVAR; CARDOSO, 1998Diário da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil - edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2003., p. 20) 5 5 Tradução nossa. No original: “Not only in the works of an ancien régime economist such as José Acúrsio das Neves, but also in the thoughts of many of the protagonists of the first Portuguese liberal revolution of 1820, there is no attempt to hide a clear propensity for a protectionist economic policy. In this sense, they proved to have serious misgivings about an unrestrained acceptance of classical political economy, particularly on account of the implicit link they made between political economy and the practice of international free trade that, for them, was one of the most strategic impediments to full national economic development. […] an important tradition became reinforced, namely that of refusing the supposedly universal laws of political economy, similar to the arguments of F. List's national system of political economy”. .

A orientação que preponderou após 1777 foi a agrarista, expressa nos debates acadêmicos das “Memórias Econômicas” da Academia Real de Ciências de Lisboa, publicadas entre 1789 e 1815. Embora haja nesses textos uma inegável influência do pensamento fisiocrata, trata-se de uma presença difusa. À exceção de Joaquim José Rodrigues de Brito, não se pode falar propriamente em um pensamento fisiocrata português coeso (PEREIRA, 2019PEREIRA, José Esteves. As ideias fisiocráticas em Portugal. Revista Lusíada - Economia & Empresa, Lisboa, n. 27, p. 67-84, 2019., p. 73). Sendo assim, na oposição acadêmica ao mercantilismo industrialista do período pombalino não há nem as novas ideias liberais e nem as fisiocráticas, mas um tradicional agrarismo que recebe contribuições daquelas correntes sempre que seja possível reforçar o seu argumento principal (PEDREIRA, 1987PEDREIRA, Jorge Miguel. Indústria e atraso económico em Portugal (1800-25) - Uma perspectiva estrutural. Análise Social, v. XXIII, n. 97, p. 563-596, 1987., p. 592).

Em síntese, o agrarismo defendia a superioridade econômica e, sobretudo, moral das atividades agrícolas. O comércio ou as manufaturas e fábricas eram vistas não só como inferiores em termos de produção material, mas também como fatores de decadência moral da sociedade. Essa idealização da vida rural será, inclusive, a característica marcante do Romantismo português, no século XIX, versão literária do agrarismo econômico (MENDES, 1996MENDES, José M. Amado. Portugal agrícola ou industrial? Contornos de uma polêmica e suas repercussões no desenvolvimento (sécs. XIX-XX). Revista de História das Ideias, Coimbra, v. 18, p. 187-230, 1996., p. 188-189). As fábricas - e as cidades (seu locus) - seriam nocivas também porque implicavam um modo de vida “inferior” ao dos agricultores.

Também se observa um agrarismo menos tradicionalista. O atraso da agricultura portuguesa e, sobretudo, colonial - Brasil nela inserido - foi um tema que passou a ser bastante debatido naquele contexto. Discutia-se a utilização de novas técnicas, em parte relacionadas às mudanças na agricultura europeia. Afinal, ao lado da Revolução Industrial uma “Revolução Agrícola” também era motivo de atenção no período. Essas ideias de modernização agrária eram difundidas na colônia: o frei Conceição Veloso, por exemplo, publicava a coleção “O fazendeiro do Brasil” com textos sobre novas técnicas agrícolas, além de abordar questões estruturais da economia colonial, como a estrutura fundiária e o problema da mão de obra (LOURENÇO, 2001LOURENÇO, Fernando Antonio. Agricultura ilustrada: liberalismo e escravismo nas origens da questão agrária brasileira. Campinas: Unicamp, 2001.; MONTEIRO, 1994MONTEIRO, Pedro Meira. Luzes ao campo, luzes à nação: o discurso ilustrado sobre a agricultura brasileira num período pré-Independência e a idealização da nação civilizada. Monografia premiada no V Concurso de Monografias de alunos dos Cursos de Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), UNICAMP, Campinas, ano 4, n. 5, 1994.). Destaca-se também a existência de discussões sobre outras atividades, como a exploração de mares, rios, florestas e, especialmente, a modernização da mineração.

Nesse debate, destacam-se as “memórias” escritas por Domingos Vandelli, com quem tanto José da Silva Lisboa como José Bonifácio desenvolveram pesquisas. Ele não era propriamente um opositor das fábricas, como o foram muitos dos autores das “Memórias”. Na sua visão, elas poderiam existir sempre que não implicassem em qualquer prejuízo à agricultura: “querer fazer independentes entre si a agricultura, e a indústria, é um paradoxo, porém querer entre nós antepor a indústria à agricultura, é outro ainda mais pernicioso” (VANDELLI, 1990VANDELLI, Domingos. Memória sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as fábricas. In: Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa (1789-1815), tomo I. Lisboa, Banco de Portugal, 1990., p. 186). Essa é, aliás, uma posição que veremos expressa nos discursos do deputado Carneiro de Campos, na Assembleia de 1823.

Vandelli condensa o conjunto das posições agraristas na influente Memória sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as fábricas (1990, p. 185-193). Nela, ele apresenta cálculos populacionais e de emprego da mão de obra em Portugal para demonstrar a carência de braços na lavoura e a “nociva” atração que as fábricas exerceriam sobre essa escassa força de trabalho. Além disso, alega, em outro argumento que será ecoado na Constituinte brasileira, que o protecionismo estatal concedido à produção fabril impedia o acesso a produtos melhores e mais baratos produzidos no estrangeiro, causando assim um prejuízo desnecessário à população. No que toca à superioridade econômica (ou antecedente) da produção agrícola, Vandelli apresenta os seguintes princípios, que ele considera incontestáveis:

1. Que a fortuna do Estado, e a da Humanidade, exceptuando os selvagens, que vivem da caça e pesca, está nas mãos dos cultivadores. 2. Que as produções da terra são a única, e verdadeira riqueza, e a cultura dela o único princípio de sobredita (VANDELLI, 1990VANDELLI, Domingos. Memória sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as fábricas. In: Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa (1789-1815), tomo I. Lisboa, Banco de Portugal, 1990., p. 189).

Assim, primeiro a agricultura deveria ser explorada para depois, “naturalmente”, surgir a indústria; e, segundo, as medidas de proteção são interpretadas como resquícios de um mercantilismo que, com seus “exclusivos” e monopólios, impediria o acesso da população a produtos fabris importados, mais baratos e de melhor qualidade que os nacionais.

Outros dois autores se destacam na defesa do agrarismo, com influência também no ultramar: o já mencionado Joaquim José Rodrigues de Brito e o bispo José Joaquim de Azeredo Coutinho. Brito escreveu uma obra de cunho mais abertamente definido como expressão da fisiocracia portuguesa (PEREIRA, 2019NOVAIS, Fernando. Antonio; ARRUDA, José Jobson de Andrade. Prometeus e Atlantes na forja da Nação. Economia e Sociedade, Campinas, v. 12, n. 2(21), p. 225-243, jul./dez. 2003., p. 80). Trata-se das clássicas Memórias políticas sobre as verdadeiras bases da grandeza das nações, e principalmente de Portugal, nas quais ele explora as relações entre economia e direito para concluir, no que aqui interessa, pela superioridade da atividade agrícola. Seria ela a que mais produziria valor, seguida pelo comércio, por meio do qual os produtos da terra circulariam. Por sua vez, Azeredo Coutinho, nascido no Brasil, senhor de engenho e membro do alto clero, chegando a ocupar o cargo de Inquisidor Mor, é mais um autor que divulga a posição agrarista (PEREIRA, 2019PEDREIRA, Jorge Miguel. Indústria e atraso económico em Portugal (1800-25) - Uma perspectiva estrutural. Análise Social, v. XXIII, n. 97, p. 563-596, 1987., p. 78). No Ensaio econômico sobre o comércio de Portugal e suas colônias (1794) ele expressa concordância com as avaliações dos memorialistas, com destaque para Vandelli.

Foi esse pensamento que justificou o alvará de 5 de janeiro de 1795, pelo qual se proibia a existência de manufaturas no Brasil. O texto legal, em que pesem suas contradições internas apontadas por Novais (2000MONTEIRO, Pedro Meira. Luzes ao campo, luzes à nação: o discurso ilustrado sobre a agricultura brasileira num período pré-Independência e a idealização da nação civilizada. Monografia premiada no V Concurso de Monografias de alunos dos Cursos de Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), UNICAMP, Campinas, ano 4, n. 5, 1994.), apresentava um argumento tipicamente agrarista: “É evidente”, diz o texto, “que quanto mais se multiplicar o número de Fabricantes, mais diminuirá o dos Cultivadores”. A “verdadeira e sólida riqueza”, continua o documento, viria da terra, e não de “artistas [artesãos] e fabricantes”. Utilizava-se o agrarismo consolidado em Portugal como fonte de legitimidade para uma política que, a rigor, visava impedir que as manufaturas brasileiras entrassem em um mercado exclusivo dos portugueses (NOVAIS, 2000MONTEIRO, Pedro Meira. Luzes ao campo, luzes à nação: o discurso ilustrado sobre a agricultura brasileira num período pré-Independência e a idealização da nação civilizada. Monografia premiada no V Concurso de Monografias de alunos dos Cursos de Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), UNICAMP, Campinas, ano 4, n. 5, 1994., p. 220).

O liberalismo chegaria também a esse debate, no inicio do século XIX, mas em muitos casos adaptado à defesa da agricultura. Um agrarismo de cunho liberal talvez possa ser lido em Francisco Soares Franco, célebre na história da medicina portuguesa e importante partícipe dos debates do “vintismo”. Franco refletiu sobre a decadência da agricultura portuguesa, defendeu a renovação dos métodos agrícolas e publicou em 1804 um dicionário agrícola (uma adaptação do “Cours Complet D’Agriculture” do abade Rozier, do fim do XVIII). Segundo Câmara (1989, p. 8) “foi trilhando o caminho delineado no estudo dos problemas agrícolas e pela reflexão sobre o que eles pressupunham de político, que Soares Franco transpôs o limiar do Liberalismo”.

Por sua vez, na obra de José da Silva Lisboa a defesa da liberdade de comércio e de iniciativa se coadunava a uma política oposta à proteção e aos incentivos para o desenvolvimento de uma indústria local o que, mesmo indiretamente, acabava por defender as políticas de tipo agrarista. Este debate é também muito influenciado pelas manifestações de emancipação colonial e de reformas na monarquia portuguesa, adquirindo traços particulares com a vinda da família real ao Brasil e as consequentes mudanças nas relações metrópole-colônia.

Quando D. João assumiu o governo na condição de príncipe regente, as políticas de cunho industrialista ganharam alguma sobrevida com a diminuição das restrições. O alvará de 1795 foi revogado por outro, de 1º de abril de 1808. Pouco mais de um ano depois, em 28 de abril de 1809, um alvará concedia isenção de tributos às matérias-primas utilizadas na indústria. Contudo, naquele ano a Corte estava no Brasil e o controle britânico consolidado. Os produtos ingleses inundavam o mercado nos dois lados do Atlântico, deixando uma margem ainda mais estreita para o desenvolvimento de fábricas do que aquela da época pombalina. Assim, a autorização de 1808 tornava-se inócua ante os tratados de 1810 (LUZ, 1963Diário da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil - edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2003., p. 273-274). De todo modo, reafirmam-se as necessidades de modernização da sociedade e da economia brasileiras, reforçando-se ideias como a de superação da deficiência da agricultura e de diversificação produtiva.

Ideias sobre mudanças no próprio estilo da agricultura brasileira, especialmente considerando um país que deixasse a condição colonial para assumir a de metrópole ou de nação independente, passaram a ser enfatizadas. Severiano da Costa, o futuro marquês de Queluz e ministro da Fazenda do Brasil independente, imaginava que a estrutura agrícola prevalecente na colônia - grande propriedade, monoculturas e escravidão - deveria ser transformada (COSTA, 1821COSTA, Emília Viotti da. José Bonifácio: homem e mito. In: COSTA, Emília Viotti da. Brasil: história textos e contextos. São Paulo: Unesp, 2015.). No Brasil independente, cresceria o espaço para uma agricultura “moderna”, com novas técnicas, alterações no regime de trabalho e de propriedade da terra. Ele também imaginava algum papel para um setor manufatureiro, mas não pareciam tão claras nem a dimensão e nem o tamanho das iniciativas públicas para tanto. Ficou justamente para a geração da Independência buscar responder até onde uma política de diversificação produtiva, incluindo-se o caráter industrialista, poderia se compor ao lado de um majoritário pensamento agrarista.

Neste momento de transição, há mudanças no pensamento de atores importantes como José Bonifácio. Tendo estudado e desenvolvido relevantes trabalhos científicos e administrativos em Portugal, ele havia sido fortemente influenciado pelo liberalismo, mas ainda no Reino poderia ser considerado um agrarista. Seu pensamento transformou-se e, já no Brasil, ele apoia a diversificação produtiva e a própria industrialização. Segundo Salomão:

O liberalismo que defendia ferrenhamente enquanto funcionário da Coroa em Lisboa foi realisticamente sobreposto pelo pragmatismo dos burocratas quando assumiu o governo brasileiro. Conquanto não tenha logrado a continuidade da maior parte de suas medidas intervencionistas - como a estratégia comercial protecionista, a defesa da industrialização e a reforma agraria que beneficiaria negros e índios -, o simples fato de ter advogado medidas à época tão heterodoxas é sintomático no que diz às mudanças por que passou seu pensamento econômico (SALOMÃO, 2020RODRIGUES, José Honório A Assembleia Constituinte de 1823. Petrópolis: Vozes, 1974., p. 40).

Por fim, observa-se que, nas sessões das Cortes Portuguesas que ocorrem pouco tempo antes da Constituinte brasileira, essa questão foi objeto de debates. Um documento importante nesse sentido foi o Relatório apresentado pelo magistrado Manuel Fernandes Tomás, figura central do período em Portugal. Sobre ele, Cardoso afirma:

As suas observações sobre o estado da agricultura anunciam uma temática que o irá ocupar em várias sessões parlamentares dedicadas as reformas dos ‘odiosos forais’. Para além de ter revelado suas preferencias por este setor econômico, Fernandes Tomás, apontou a opção estratégica da cultura da vinha e da produção de vinho, cujas vantagens não podem ser ignoradas [...]. Sobre as fábricas, lamentou a ausência de informações estatísticas atualizadas, o que no entanto, não o impediu de reconhecer a escassa dotação tecnológica e o deficiente apoio institucional dedicado ao setor manufatureiro (CARDOSO, 2020CARDOSO, José Luís. Economic and Financial Debates in the Portuguese Parliament (1821-1910): Outcome of a Research Project. E-journal of Portuguese History, v. 5, n. 2, 2007., p. 39).

III. O debate em 1823: proteger as fábricas ou priorizar a agricultura?

Quando analisa o debate econômico na Assembleia de 1823, José Honório Rodrigues afirma que não havia entre os deputados um grande desejo por mudanças (RODRIGUES, 1974ROCHA, Antonio Penalves(org.). José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu. São Paulo: Editora 34, 2001., 150-160). Alterações estruturais profundas, como seria a abolição do trabalho escravo, encontravam apoio intelectual em alguns deputados, mas em nenhum momento foi uma proposta efetivamente considerada. O liberalismo político, que colocou a Assembleia em choque contra o imperador, nem sempre era acompanhado pelo liberalismo econômico e, mesmo ele, amparado na Economia Política, seria adaptado ou praticado “fora do lugar” (SCHWARZ, 2000SCHULTZ, Kirsten. La Independencia de Brasil, la ciudadanía y el problema de la esclavitud: A Assembleia Constituinte de 1823. In: RODRÍGUEZ ORDÓÑEZ, Jaime E. Revolución, Independencia y las nuevas naciones de América. Madrid: Fundación Mapfre Tavera, 2005., p. 9-31).

Contudo, uma proposta aparentemente moderada de concessão de benefícios tributários a fábricas de ferro denotava um pensamento que concebia uma estrutura econômica diversificada como estratégica para o futuro do novo país6 6 Nos anos 1970, Heitor Ferreira Lima apontava a existência de muitas pequenas fundições no Brasil desde o final do século XVIII (LIMA, 1970, p. 159-165). . Mesmo Rodrigues, diante desse projeto, afirma a existência de um grupo “protecionista”, especialmente preocupado com o desenvolvimento fabril no país, em choque com um grupo “liberal”, ligado à agricultura. No primeiro, perfilariam os Andradas e seus aliados, enquanto no segundo os deputados mais identificados com os princípios da Economia Política, como José da Silva Lisboa e, sobretudo, Francisco Carneiro de Campos (RODRIGUES, 1974ROCHA, Antonio Penalves(org.). José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu. São Paulo: Editora 34, 2001., p. 164). As posições dos opositores do projeto em questão eram mais um híbrido de agrarismo e laissez-faire que uma defesa pura da Economia Política, como os debates na tribuna da Assembleia evidenciam.

O projeto de lei, apresentado na sessão de 5 de setembro, foi lido por Martim Francisco Ribeiro de Andrada, em nome da Comissão da Fazenda, composta ainda por Nogueira da Gama, José Resende da Costa, José Egídio Álvares de Almeida (o barão de Santo Amaro) e José Arouche de Toledo Rendon. A proposta trazia em cinco artigos uma disposição para isentar os produtos de fábricas de ferro brasileiras do pagamento de tributos de entrada e saída nas províncias do país.

O projeto determinava, então, que todos os produtos de fábricas de ferro receberiam aquela isenção durante 10 anos. O mesmo benefício seria estendido a todas as fábricas, de quaisquer outros metais ou minerais extraídos do solo brasileiro, e também às chamadas “fábricas “secundárias”, cuja atividade derivava das de ferro. Ficava determinado ainda que o produto seria acompanhado por um documento garantindo a autenticidade brasileira, a fim de evitar que, ilegalmente, os produtos estrangeiros recebessem o mesmo tratamento que os nacionais. Por fim, o projeto excluía do benefício as fábricas cuja matéria-prima era ouro, prata, diamantes e outras pedras preciosas. A ideia era apoiar especificamente a metalurgia por considerá-la um elemento estrutural necessário para o desenvolvimento das outras atividades, inclusive as agrícolas.7 7 Diários da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil (DAGC) - edição fac-similar, v. 1, n. 67. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 720-721.

A questão fiscal sempre foi um aspecto chave neste debate. As aduanas provinciais já eram percebidas como obstáculo à integração econômica do Brasil, mas eram também importantes fontes de receita para os governos em um momento em que a arrecadação dos tributos típicos do período colonial colapsava. No Brasil e na América Latina em geral, evitando tributar a renda, os Estados só contornarão o problema de seu financiamento com as taxas de importação e exportação, o que, por sua vez, tornava o próprio Estado dependente do fluxo de comércio internacional (MARICHAL, 2004LUZ, Nícia Vilela. O industrialismo e o desenvolvimento econômico do Brasil (1808-1920). Revista de História, São Paulo, v. 27, n. 56, 1963., p. 400). Porém, mesmo essa fonte de recursos ficava em mãos de poucas praças, principalmente as capitais, o que não ajudava na questão do financiamento dos governos locais. Uma isenção como a da proposta lida por Martim Francisco naturalmente causaria um impacto imediato naquelas receitas. Segundo Ramos (2020), esses projetos, naquele momento:

Se configurava[m] como empecilho para homens como Nogueira da Gama, empenhados em arquitetar o novo Estado. Fazer concessões tributarias, especialmente a setores específicos, em momentos de grave crise financeira pela qual passava o Brasil, não seria o melhor caminho, uma vez que tais valores eram fundamentais para a sustentação do Império e da própria independência (RAMOS, 2020PRADO JR., Caio. Evolução política do Brasil - Colônia e Império. São Paulo: Brasiliense, 1983., p. 233).

O projeto foi antecedido por um pedido que o inspirou. Na sessão de 16 de agosto, foi lida petição enviada pelo administrador da Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, Rufino José Felizardo e Costa, solicitando exatamente dez anos de isenção sobre os tributos que o projeto contemplaria. A Comissão da Fazenda pronunciou-se favoravelmente, atacando a própria existência de quaisquer tributos sobre a circulação de mercadorias no interior do país como um empecilho para a construção do Estado e a consolidação da Independência. Mais que uma questão fiscal menor, tratava-se de um problema vital:

A Comissão será constante no seu voto de que tais Direitos de Portos Secos (à exceção de raríssimos casos) de uma Província para outra são outros tantos absurdos originados do velho sistema do Despotismo para conservar as Províncias isoladas, e rivais umas das outras, a fim de que nunca se pudessem unir, nem considerar-se irmãs de uma mesma família.8 8 DAGC, v. 1, n. 59, p. 599.

Além disso, a Comissão rebatia o argumento do prejuízo para algumas províncias com a queda de receitas, nomeadamente Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Os preços mais baixos dos produtos de ferro auxiliariam no crescimento econômico de regiões estagnadas pelo baixo nível técnico e, consequentemente, pela baixa produtividade: “quantos braços ociosos se não veem nessas oprimidas Províncias por não terem uma enxada, um Almocrafe?”.9 9 DAGC, v. 1, n. 59, p. 600. Embora perdessem a renda imediata de tributos, as províncias do Império teriam mais a ganhar com as possibilidades abertas: “Como, sem milagre, há de prosperar uma Província que não tem mais do que a Agricultura e Mineração quando se lhe impedem os meios de comprar mais barato o ferro, sem o qual não pode plantar nem tirar ouro?”.10 10 Ibidem, p. 599-600.

Tomaram a palavra sobre a matéria Antonio Carlos, Montezuma e Moniz Tavares, mas os taquígrafos não conseguiram anotar seus discursos. Luiz José de Carvalho e Mello, deputado pela Bahia, fez a defesa do parecer da Comissão em discurso no qual expõe argumentos industrialistas. Ele atacou a proibição à existência de manufaturas no Brasil, imposta em 1785, e disse que o alvará de 1808 não lograra romper o atraso nesse setor. Como, sem o apoio deliberado do Estado, superar esse atraso diante de países que não haviam sido limitados por uma medida como a de D. Maria I? “As manufaturas nacionais devem ser animadas para poderem sofrer a concorrência das estrangeiras, mais apuradas pela facilidade e divisão do trabalho”11 11 Ibidem, p. 600. , disse. Sobressai também, na fala, uma reflexão que ecoaria no pensamento econômico: a exportação do minério bruto é menos rentável e com menor potencial de impacto sobre o conjunto da economia do que a prática da siderurgia no próprio território:

A de que se trata [a isenção proposta no projeto], é demais disto recomendada por ser de trabalhos de ferro, o mais necessário de todos os metais para qualquer ramo da indústria. Mui justo é que tendo nós tantas e tão ricas minas de ferro, tenhamos também meios não só de extraí-lo, mas de trabalhá-lo por quantas maneiras concorrerem para o aumento da sua manufatura.12 12 Idem.

Recomendou-se que o tema fosse objeto de um projeto de lei, enfim apresentado por Martim Francisco duas semanas depois desse primeiro debate. O projeto voltou a ser debatido na sessão de 13 de outubro. Nela, Carvalho e Mello tornou a se manifestar defendendo que o Estado deveria facilitar o surgimento de condições favoráveis para essa atividade. Um meio para tanto seria a remoção das dificuldades existentes à atividade fabril. O cerne do argumento diz que sem aqueles tributos a atividade ficaria mais atrativa para os investidores:

É certo que as Fábricas se não estabelecem por força: é necessário que os cabedais sigam a sua natural carreira, é necessário que haja os conhecimentos científicos, principalmente os da química em geral aplicados às Artes e é necessário que os produtos possam ter consumo para interessarem os empreendedores das manufaturas. Tudo isso porém virá com o tempo, se lhe provermos os meios.13 13 DAGC, v. 2, n. 18, p. 233.

Carvalho e Mello não vê nessa medida protetiva uma agressão ao que depois seria chamado de princípio das vantagens comparativas. Para ele, o reconhecimento da dificuldade para o desenvolvimento das fábricas de ferro no Brasil não implica aceitação da ideia de que a ação do Estado seria contrária ao caminho “natural” do mercado. Afinal, se o país não tinha mais fábricas, era preciso responsabilizar o contexto histórico no qual essa atividade fora proibida pela legislação colonial. Um benefício tributário ao setor fabril seria, na verdade, a forma de criar as condições para que os interesses individuais e os capitais fluíssem de forma de fato livre, sem os empecilhos legais à atividade industrial. Imaginar um país apenas agrícola seria fruto da incompreensão da necessidade que a própria agricultura tem da maior diversificação das atividades econômicas. Nas suas palavras,

Em Economia Política se não deve dar preferência a qualquer dos mananciais da riqueza pública abandonando os outros; mas cumpre que se promovam todos removendo-se os estorvos e os embaraços políticos e deixando ao interesse dos particulares seguir aquele que lhes parecer mais útil e segundo a direção naturais dos capitais [...]. Verdade é, senhor Presidente, que nós não seremos por muito tempo Nação agrícola enquanto o aumento das ciências próprias não nos levar a sermos também manufatureiros e comerciantes.14 14 Idem.

Ainda mais longe, ele argumenta que a racionalidade econômica e a eficiência dependiam da existência de fundições no Brasil, já que o custo para se importar os produtos necessários à agricultura e mineração era elevado e poderia ser mais bem empregado caso o aplicassem em investimentos no país:

Nós o compramos às Nações estrangeiras em grande quantidade e pagamos assim o valor da matéria em bruto, a mão de obra, custo de navegação e comissão dos comerciantes; e não há razão alguma para que, tendo-o de casa, não poupemos toda essa soma de capital que sai do país e deixa de aproveitar aos nossos trabalhadores e comerciantes.15 15 Idem.

Carvalho e Mello apresenta uma visão industrialista dentro dos marcos conceituais de sua época. Porém, é possível ver em seu discurso (que dava voz à posição de grupo maior e tinha o apoio dos Andradas) argumentos que seriam caros aos defensores da industrialização no século XX: defesa de um Estado atuante, substituição de importações e diversificação estrutural da economia como necessária para o desenvolvimento. “Com o aumento dos produtos, com o emprego dos braços desocupados, com a influência deste ramo de indústria nos misteres da agricultura, cresce a riqueza pública”16 16 Ibidem, p. 236. , disse o constituinte de 1823.

Na sessão de 13 de outubro, Manoel José de Souza França faria uma defesa ainda mais aberta do caráter protecionista da iniciativa. Segundo ele, tocando na questão da vulnerabilidade na dependência de itens essenciais, uma vez que o país precisa de produtos de ferro, seria melhor produzi-los internamente a depender de importações. Logo, o Estado deveria atuar para tornar os produtos nacionais mais competitivos diante dos estrangeiros por meio da isenção tributária proposta:

Não é muito pois que se isentem igualmente de tributos e alcabalas os metais das nossas Fábricas nascentes; a fim de que possam a princípio sofrer a concorrência dos metais estrangeiros, cuja facilidade de extração pelo uso de máquinas e processos que ainda não nos são familiares muito abala o seu mercado.17 17 Ibidem, p. 237-238.

Ainda na sessão de 5 de setembro, o projeto e o discurso de Carvalho e Mello foram refutados por Carneiro de Campos, que justificou sua oposição apresentando, por um lado, argumentos liberais clássicos e, por outro, ecos do agrarismo. “Não posso deixar de me opor a um projeto que é contrário aos mais luminosos princípios de Economia Política e que vai dar um golpe fatal no primeiro e mais importante ramo da riqueza do Brasil”18 18 Ibidem, p. 234. , disse ele na tribuna.

O primeiro ponto de seu longo discurso é a defesa do livre-mercado e da não intervenção estatal. Seu argumento é clássico: um benefício qualquer garantido pelo Estado a certo setor da economia seria nocivo por si só. O projeto seria um equívoco por estar em desacordo com os princípios elementares da Economia Política que, na visão dele, deveriam orientar a formação do Estado brasileiro. Carneiro de Campos conceitua para a Assembleia:

O interesse individual melhor que ninguém dirige os trabalhos produtivos para o emprego mais vantajoso, Leis invariáveis regulam proveitosamente a produção e conservação da riqueza e promovem a sua marcha progressiva. Se se inverte a ordem natural dos trabalhos, dando-se

lhe um impulso forçado, rompe-se infalivelmente o equilíbrio das úteis relações, que entre eles deve subsistir, para que mutuamente se auxiliem e não se tornem danosos uns aos outros.19 19 Idem.

No Brasil, a “ordem natural” seria a agricultura. Se um dia o país tivesse fábricas, elas viriam em decorrência das livres forças do mercado, conclui-se. Ele não responde ao argumento de Carvalho e Mello segundo o qual essas mesmas forças foram por muito tempo impedidas de atuar no sentido da industrialização por conta justamente da intervenção estatal que proibia as manufaturas. Mas, afirma que o potencial agrícola do país era inegável e que dali provinha a riqueza do Brasil. O liberalismo econômico toma, assim, a forma da defesa dos interesses da aristocracia rural. Continuando, Carneiro de Campos lembra à Assembleia que, mesmo sendo a fonte principal da economia brasileira, a agricultura ainda era atrasada. Ela demandaria investimentos e mão de obra para conseguir explorar todo o seu vasto potencial e, por isso, seria ela, e não a indústria, a merecedora da atenção dos deputados. Em suas palavras,

Nesse estado de grande atrasamento em que se acha a nossa lavoura, e que reclama indispensáveis auxílios de braços e cabedais, que vamos nós fazer com essa total isenção de direitos conferida aos trabalhos de mineração e às obras fabricadas com o produto deles?20 20 Idem.

Sendo assim, qual a racionalidade em se empregar recursos numa atividade arriscada a ponto de seus administradores dirigirem-se à Assembleia pedindo apoio enquanto a agricultura era ainda inexplorada e carente de recursos? Essa é a questão de Carneiro de Campos. Segue-se, então, uma defesa da produção agrícola como uma vantagem “natural” (ou “vantagem comparativa” avant la lettre): “ela não exige de nós favores; o nosso terreno é superiormente dotado de fertilidade e as suas produções são as mais preciosas”.21 21 Idem. Portanto,

Não sejamos tão ávidos de possuir fábricas, acelerando indiscretamente por favores e isenções a época própria do seu natural estabelecimento. Quando a nossa agricultura tiver chegado a um assinalado grau de prosperidade, que farta de cabedais, provida de braços, auxiliada de luzes e máquinas, recompense com suficiência as fadigas, os trabalhos, e os capitais que nela se empregarem; quando se estiver estendido a outros muitos ramos de produções, que ainda hoje não são cultivados, e podem ser um inesgotável manancial de riqueza; então as Minas [...] se lavrarão e se fabricarão com proveito os seus produtos sem os favores do Projeto, e somente pela natural tendência dos cabedais a colocarem-se onde contam com interesses. Estes são os princípios mais sólidos e os mais luminosos de uma boa Economia Política.22 22 Idem.

Qual seria então o papel do governo em qualquer questão econômica? Retirar os obstáculos à iniciativa individual e garantir o direito de propriedade. Se um papel ativo caberia àquele Estado cujos contornos a Assembleia delineava, seria o de prover a infraestrutura necessária para amplificar o movimento de capitais: construção de estradas, viabilização da navegação dos rios, estabelecimento de uma tributação justa, promoção do povoamento do interior e do desenvolvimento científico. Em mais uma antecipação dos termos de um debate secular na história brasileira, na visão de Carneiro de Campos também seria um equívoco acreditar nos benefícios da substituição de importações. Os produtos fabricados no Brasil precisavam de apoio do Estado por um motivo: eram de pior qualidade que os produtos importados. Caso o Brasil tivesse condições de produzir mercadorias tão boas quanto as estrangeiras, elas viriam de fábricas que “naturalmente” surgiriam:

Não convenho com o ilustre Preopinante na utilidade de se concederem favores às Fábricas novamente estabelecidas, para poderem competir com as Estrangeiras e entrar na concorrência do mercado geral; pois ou a Fábrica se pode estabelecer com as vantagens de perfeição e bom preço das Estrangeiras, e então não necessita de favor, e se estabelecerá pelo incentivo natural dos lucros que afiança, aos especuladores, ou não pode oferecer aquelas vantagens, e neste caso não se deve estabelecer porque ainda com favores e isenções, não oferecerá senão perdas.23 23 Idem.

Por fim, ao atuar priorizando o produto nacional, o Estado estaria causando prejuízo a si mesmo. Afinal, um produto nacional com preço artificialmente baixo graças à isenção de tributos implicaria tanto gêneros de pior qualidade como queda nas receitas do Estado.

Sabemos que Antonio Carlos tomou a palavra para defender o projeto e atacar as ideias apresentadas por Carneiro de Campos. Contudo, e infelizmente, mais uma vez, os taquígrafos não anotaram seu discurso. Podemos deduzir seus argumentos a partir da réplica que o próprio Carneiro de Campos fez na sequência. O Andrada apresentou assim três pontos contrários às teses de Carneiro: nenhum Estado conhecido adotava os princípios advogados pelo deputado defensor do liberalismo; a indústria seria a atividade mais rentável para qualquer país; a agricultura só conseguiria gerar riqueza em virtude do comércio e nunca por si mesma. Logo, sem regras comerciais favoráveis, ela seria uma atividade estagnada.

Em resposta, Carneiro de Campos fez uma defesa dos princípios do liberalismo que Antonio Carlos considerava, pelo que se deduz, etéreos e distantes da prática dos governos. Carneiro lembra que a Economia Política surgira também para reformar o abuso dos Estados. Em suas palavras, “tempo virá em que a prática deles [os princípios liberais] se generalize mais, pois rotinas envelhecidas não acabam, senão mui lentamente”.24 24 Ibidem, p. 236. Na sequência, Carneiro procura responder ao argumento de Antônio Carlos segundo o qual seria a indústria a atividade econômica mais próspera de um país. Ele realiza uma exposição erudita sobre história europeia, mas acaba caindo em um argumento contraditório que denota o ambiente ideológico agrarista da formação da elite brasileira, presente mesmo nos que estão na vanguarda da assimilação dos conceitos da Economia Política.

Carneiro parte de um dogma fisiocrata: a agricultura seria a atividade que geraria riqueza, sendo as demais decorrentes dela. Se, na Europa, a indústria despontava, isso devia-se mais às limitações que as instituições feudais colocavam à agricultura do que à atividade industrial em si: na Europa, “tão gabada por sua indústria, riqueza e civilização [...] se conserva ainda em alguns Estados o Feudalismo e, em outros, grandes restos de tão execrado Governo”.25 25 Idem. Onde o feudalismo caiu, a atividade agrícola possibilitou a acumulação de capital que transbordou para a indústria... Carneiro de Campos apresenta esse raciocínio para afirmar a natureza derivada da atividade industrial. Ele cede ao agrarismo em sua explicação histórica e, por outro lado, se reconhece as limitações feudais à agricultura europeia, não ataca diretamente a escravidão no Brasil. Aqui, o problema não estaria na forma de exploração do trabalho, sequer considerada, mas sim na falta de mão de obra, de infraestrutura e no baixo nível técnico:

Se no Brasil não há tantos vexames [refere-se às restrições feudais], não deixam todavia de produzir efeito bem semelhante a ignorância dos melhores métodos da lavoura, a grande falta de braços, e mais que tudo nas Províncias centrais o difícil e mesmo impossível transporte dos frutos ao lugar em que poderiam ter valor.26 26 Idem.

Em 4 de novembro, uma das últimas sessões em que a Assembleia esteve aberta, o projeto entrou em votação.27 27 DAGC, v. 2, n. 27, p. 352. A Assembleia, embora composta por homens ligados à aristocracia rural, não acompanhou a posição de Carneiro de Campos e votou favoravelmente àquela primeira medida industrialista da vida independente do Brasil.

Considerações finais

Este trabalho pretendeu apresentar um debate específico, dentre os muitos travados no âmbito da Constituinte de 1823. Apesar de concentrar-se em um único projeto de lei, a pesquisa procurou demonstrar que para ele convergem posições-chave para a compreensão do debate sobre a economia brasileira e, sobretudo, do que se projetava para o futuro. Seria o Brasil um país vocacionado à produção agrícola ou era possível, por meio da ação do Estado, construir também um caminho fabril? Em que pesem as particularidades históricas de cada época, pode-se dizer que essa questão esteve presente nos 200 anos de vida independente do país, como está ainda hoje.

Chamam a atenção, em 1823, tanto os termos do debate - que ecoam a política pombalina e seus opositores de décadas antes da Independência - como seu locus. Com todas as suas limitações, na Constituinte se confrontaram diferentes visões daquela elite política. Destacou-se aqui a existência de um pensamento industrialista muito anterior à década de 1930 ou aos anos da I Guerra Mundial, quando usualmente começa a ser localizada essa posição no Brasil. Os industrialistas de 1823 diagnosticavam a fragilidade de uma economia pouco integrada internamente e dependente de importação de produtos básicos. Viam o poder crescente da Grã-Bretanha industrializada como um sinal de caminho a seguir, ainda que instintivamente, como se depreende do que teria alegado Antonio Carlos contra Carneiro de Campos.

Evidentemente, havia limites e contradições no pensamento daqueles defensores da ação estatal no fomento de fábricas e manufaturas, como também os havia entre os defensores da primazia ou até exclusividade agrícola. Nessa contradição, os opostos se tocam: como conceber uma agricultura “moderna” ou uma economia manufatureira e até industrial em um país escravista? Contudo, a condenação aberta da escravidão não surgiu na Assembleia. Claro, o tema era sensível e potencialmente perigoso - por menos que isso, veio a Noite de Agonia. De todo modo, é inegável que esse silêncio sobre a questão central evidencia os limites dos compromissos daquelas elites representadas na Constituinte.

Mesmo com um projeto industrialista aprovado na interrompida Assembleia, este não prosperou: o país veria a consolidação de um modelo agroexportador. Sob esse viés, se deu a integração nas redes de comércios globais, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, com a expansão da economia do café. Viriam a Abolição e a República, sem grandes abalos naquela estrutura, embora um setor específico da elite agrária - os empresários cafeeiros - investisse na diversificação. A I Guerra e, sobretudo, a Depressão da década de 1930 permitiram que chegasse ao poder, pela primeira vez, um projeto abertamente intervencionista e industrialista, acentuado após a II Guerra Mundial. A crise da década de 1980 e as reformas dos anos 1990 trouxeram de volta, em posição de destaque, o argumento da vocação agrária inegável do país. Hoje, quando se fala nos desafios colocados pelo cenário de reprimarização da economia nacional e dos limites da exportação de commodities, há, abaixo da espuma das ondas, a questão mais profunda e secular de nossa história econômica. Qual Brasil se almeja? O da vocação agrária ou o de uma economia diversificada e industrializada? Duzentos anos depois, os ecos daquele debate de 1823 continuam se propagando.

Referência documental

  • Diário da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil - edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2003.

Referências

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  • VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História da Independência do Brasil São Paulo: Edusp, 1981.
  • 1
    Críticas ao Visconde de Cairu, como personagem que simboliza a opção dos liberais brasileiros pela abertura e pela agricultura de exportação, em detrimento de uma política protecionista e industrializante, estão expressas em clássicos como Celso Furtado e Sérgio Buarque de Holanda. Uma revisão dessa historiografia pode ser lida em: Novais e Arruda (2003, p. 240-241) e Rocha (2001, p. 25-30).
  • 2
    Aqui se utiliza a edição fac-similar dos Diários da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil publicada pelo Senado Federal em 2003. Cita-se esse documento com a sigla DAGC. As referências extraídas foram transcritas, aqui, na ortografia contemporânea.
  • 3
    O então deputado Nicolau Pereira de Campos Vergueiro apresentou esse projeto de lei na sessão de 14 de julho de 1823. Ele foi debatido nos dias 20 de julho e em 3 de outubro. Sua tramitação não foi concluída, já que a Assembleia foi fechada em 12 de novembro.
  • 4
    Para uma visão mais completa e ampla do pensamento econômico no Império português no período, ver Cardoso (2001) e Cardoso e Almodovar (1998).
  • 5
    Tradução nossa. No original: “Not only in the works of an ancien régime economist such as José Acúrsio das Neves, but also in the thoughts of many of the protagonists of the first Portuguese liberal revolution of 1820, there is no attempt to hide a clear propensity for a protectionist economic policy. In this sense, they proved to have serious misgivings about an unrestrained acceptance of classical political economy, particularly on account of the implicit link they made between political economy and the practice of international free trade that, for them, was one of the most strategic impediments to full national economic development. […] an important tradition became reinforced, namely that of refusing the supposedly universal laws of political economy, similar to the arguments of F. List's national system of political economy”.
  • 6
    Nos anos 1970, Heitor Ferreira Lima apontava a existência de muitas pequenas fundições no Brasil desde o final do século XVIII (LIMA, 1970, p. 159-165).
  • 7
    Diários da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil (DAGC) - edição fac-similar, v. 1, n. 67. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 720-721.
  • 8
    DAGC, v. 1, n. 59, p. 599.
  • 9
    DAGC, v. 1, n. 59, p. 600.
  • 10
    Ibidem, p. 599-600.
  • 11
    Ibidem, p. 600.
  • 12
    Idem.
  • 13
    DAGC, v. 2, n. 18, p. 233.
  • 14
    Idem.
  • 15
    Idem.
  • 16
    Ibidem, p. 236.
  • 17
    Ibidem, p. 237-238.
  • 18
    Ibidem, p. 234.
  • 19
    Idem.
  • 20
    Idem.
  • 21
    Idem.
  • 22
    Idem.
  • 23
    Idem.
  • 24
    Ibidem, p. 236.
  • 25
    Idem.
  • 26
    Idem.
  • 27
    DAGC, v. 2, n. 27, p. 352.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2022
  • Aceito
    15 Jun 2022
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