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Machado de Assis e “A derradeira injúria” de Pombal - memória póstuma, comemoração, história

Machado de Assis and “The ultimate injury” of Pombal - posthumous memoirs, commemoration, history

Machado de Assis y “La última injuria” de Pombal - memoria póstuma, conmemoración, historia

RESUMO

Consideram-se aspectos de “A derradeira injúria”, poema de Machado de Assis publicado em uma coletânea luso-brasileira comemorativa dos cem anos da morte de Pombal (1885). Relaciona-se o texto (narrativa imaginativa de um episódio póstumo) aos festejos do 1º centenário fúnebre do marquês no Rio de Janeiro (1882), atentando-se a como se mobiliza o passado pombalino no poema e em outros impressos que abordam tanto as celebrações quanto o discurso histórico difundido sobre Pombal. Destaca-se como o autor se distingue do comemorativismo que caracteriza a publicação que seu texto integra.

Palavras-chave:
memória; comemoração; usos do passado; Machado de Assis; Pombal

ABSTRACT

The article considers aspects of “A derradeira injúria”, poem by Machado de Assis published in a Portuguese-Brazilian (1885) collection commemorating the hundred years of the death of Pombal. Relating the text (an imaginative narrative of a posthumous episode) to the celebrations of the marquis’ first funeral centenary in Rio de Janeiro (1882), it pays attention to its peculiarities and to how the poem and other publications that address both the celebrations and the widespread historical discourse about Pombal mobilize the Pombaline past. The article underlines the way Machado sets himself apart from the commemorative effort that characterizes the publication his text integrates.

Keywords:
memory; commemoration; uses of the past; Machado de Assis; Pombal

RESUMEN

Se consideran aspectos de “A derradeira injúria”, poema de Machado de Assis publicado en una colección luso-brasileña conmemorativa del centenario de la muerte de Pombal (1885). El texto (narrativa imaginativa de un episodio póstumo) se relaciona con las festividades del I centenario fúnebre del marqués en Río de Janeiro (1882), acentuándose en cómo se moviliza el pasado pombalino en el poema y en otros impresos que abordan tanto las celebraciones como el discurso histórico difundido sobre Pombal. Se destaca cómo el autor se distingue de la conmemoración que caracteriza la publicación que su texto integra.

Palabras clave:
memoria; conmemoración; usos pasados; Machado de Assis; Palomar

Há um século, sumia-se na eterna noite do túmulo, em Pombal, desterrado e trânsito de dores, mas inconturbado e sereno como um herói, o homem que pelo espaço de mais de vinte anos fora o assombro de Portugal […]. É chegada a hora pacífica e soberana em que a justiça, assentada em seu sólio impoluto e presidindo ao tribunal da história, deve proclamar a sua sentença suprema para lição dos vindouros.

(CORREIA BARATA, 1882).

Pombal morre, mas não morrerá jamais a sua memória

No início do reinado de D. José (1750-1777), Sebastião José de Carvalho e Melo foi nomeado secretário de Estado. Mais tarde, foi feito conde de Oeiras e marquês de Pombal, em recompensa por seus serviços, e a despeito de o título mais elevado lhe ter sido concedido após os 70 anos, ficou assim conhecido na posteridade (AZEVEDO, [1909AZEVEDO, José Lúcio de [1909]. O marquês de Pombal e a sua época. Porto: Clássica, 1990.] 1990; TAVARES, 2018TAVARES, Rui. O censor iluminado: ensaio sobre o pombalismo e a revolução cultural do século XVIII. Lisboa: Tinta da China, 2018.). Devido a sua grande influência, o período em que governou recebeu o epíteto de pombalino, sendo associado a leituras divergentes sobre suas medidas de reforma política e sobre sua violência com opositores e a conflitos de memória (POLLAK, 1989POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, 1989.) que fazem dele um dos tópicos históricos mais discutidos em Portugal (MATOS, 2010MATOS, Sérgio Campos. Pombal, da Revolução Liberal ao Estado Novo. In: SILVA, J. P. P. (coord.) Pombal e o seu tempo. Sintra: Caleidoscópio, 2010.; TORGAL, 1984).

Afastado do poder com a iminente morte de D. José, o marquês faleceu na vila de Pombal em 8 de maio de 1782 - doente, banido da capital e imputado a uma série de crimes. Como não se autorizou o traslado de seu corpo para Lisboa, foi sepultado na igreja de Nossa Senhora do Cardal, onde uma lápide registra: “aqui estiveram depositados os restos mortais do grande marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, desde 1782 até 1856”. Nesse ínterim, além das mudanças por que passou o país, mudaram as apreciações da figura do marquês - recuperada com a afirmação do liberalismo após a guerra civil (1832-1834), atualizando-se políticas reformistas de teor anticlerical (ABREU, 2004ABREU, Luis Machado de. Ensaios anticlericais. Lisboa: Roma, 2004.). Foi na relativa estabilidade política da Regeneração (1851-1890) que seus descendentes se dirigiram à vila de Pombal para acompanhar o deslocamento de sua ossada à capital - homenagem oficial em tom conciliador.

Mais de 70 anos antes, Frei Joaquim de Santa Clara, que elaborou a oração fúnebre para suas exéquias, afirmou: “o marquês de Pombal morre. Mas não morrerá jamais a sua memória [...]; sua sepultura não poderá ter epitáfio nem mais permanente nem mais enérgico que o seu nome”.1 1 Cita-se conforme o publicado em O Investigador Portuguez em Inglaterra, jun. 1817. Cem anos mais tarde, em meio a cortejos cívicos, conferências, debates e artigos em jornais, Pombal se tornou assunto candente em Portugal e no Brasil, com as disputas que a celebração do seu centenário despertou. Em 8 de maio, Rui Barbosa (1882BARBOSA, Rui. Centenario do Marquez de Pombal. Rio de Janeiro: G. Leuzinger & Filhos, 1882., p. 75, 84) declarou: “faz hoje um século que a morte o tomou no regaço, para o entregar à história”, apontando suas comemorações como o “primeiro elo na cadeia de aclamações crescentes” para sua imortalização.

1º centenário fúnebre pombalino

A coletânea O marquês de Pombal: obra comemorativa do centenário da sua morte veio a lume na Imprensa Nacional, em Lisboa, em 1885. Ainda em fins de 1881, entretanto, o projeto já era divulgado na imprensa carioca. Na Gazeta de Notícias2 2 Gazeta de Notícias, 15 dez. 1881; 16 fev. 1882; 17 jul. 1881. Rio de Janeiro (1874-1942). Jornal barato, popular e liberal, dos mais importantes no Brasil oitocentista. , é de dezembro a primeira referência ao “livro com que a comissão executiva do primeiro centenário do marquês de Pombal vai perpetuar a sua celebração”. Tratava-se de “uma comissão de sócios do Clube de Regatas Guanabarense,3 3 Fundado em 1874, foi dos primeiros clubes ligados ao remo na capital. Reunia setores importantes das emergentes elites urbanas da capital. criada pela diretoria do mesmo clube”, que preparava “desde há muito tempo a celebração da festa do centenário do marquês”. Entre “outras e muitas ideias que se propõe realizar”, constava a coletânea. A comissão foi referida pela Gazeta ainda em julho, quando se afirmou: “é de esperar que com tão competente e distintíssima congregação de cavalheiros o Clube de Regatas deva realizar mais um festival tão digno desta cidade como do vulto que vai ser comemorado”.

Essa foi, também, a primeira menção ao centenário no jornal. À altura, o marquês já era foco de atenções na corte: entre junho e agosto, foi assunto de três das Conferências Populares da Glória4 4 As conferências, públicas e gratuitas, decorreram entre 1873 e 1889 - idealizadas e organizadas pelo cons. Manoel Francisco Correia. Atraíam muitos assistentes (entre eles, o imperador) e abarcavam temas relacionados à cultura e à ciência. À altura, eram realizadas uma vez por semana. Ver: Carula (2013). As conferências sobre Pombal ocorreram nos dias 19 de junho (n. 378), 17 de julho (n. 382) e 21 de agosto de 1881 (n. 387), por João Manoel Pereira da Silva. - que, como de costume, foram previamente divulgadas e tiveram seu conteúdo apreciado na imprensa. Uma semana mais tarde, anunciou-se outra conferência acerca de Pombal. Dessa vez, pelo escritor José dos Santos Palmela, cidadão de Portugal residente no Império. Indo de São Paulo à capital, ele discursou na Real Sociedade Clube Ginástico Português5 5 Fundado em 1868 por imigrantes portugueses, ainda em funcionamento. sobre “a vida e a influência civilizadora do marquês de Pombal”. Na Gazeta de Notícias de 12 de setembro de 1881, divulgou-se a seguir que Palmela “acaba de publicar um volume de mais de 100 páginas sobre o marquês de Pombal. Nele, defende a ideia do centenário do grande ministro, aliás já anunciado pelos positivistas”.

Intitulada O centenário e a vida do marquês de Pombal, a obra veio a lume em 1881. Mais tarde, em abril de 1883, Palmela ([1881] 1883, ao leitor) escreve: “achando-se esgotadas as três edições […], cedemos ao desejo que nos manifestaram alguns amigos, publicando esta 4ª edição”. Ele afirma ser “o primeiro, aqui no Brasil, a escrever e a falar em público sobre os festejos” e recorda que ainda em 1881 iniciou sua propaganda,

fazendo tudo que estava ao nosso alcance a fim de que a ideia triunfasse e fosse coroada pelo entusiasmo popular. Depois dos trabalhos de gabinete e publicada a obra, subimos à tribuna popular, a fim de tornar bem patente e conhecido o espírito político das grandes reformas operadas pelo glorioso Pombal.

Entre as associações que mais se empenharam nos festejos pombalinos na corte, ele aponta os clubes Guanabarense e Ginástico Português. Concede, além disso, relevo aos acadêmicos cariocas, que, atendendo ao convite dos congêneres lisboetas, reúnem-se em assembleia, por convocação de alunos da Escola Militar, e deliberam sobre sua participação. Após a reunião, comunica-se à imprensa:

os estudantes das academias estabelecidas nesta corte, unidos pela ideia da solenização do primeiro centenário do grande estadista marquês de Pombal, […] resolveram promover os meios de corresponder ao apelo que lhes foi dirigido pela patriótica mocidade portuguesa […]. Eternizada nas reminiscências de dois povos que se congraçam pelos interesses e pelas simpatias, que se unificam na mesma língua e se fundem na mesma origem, a memória do marquês de Pombal se impõe à gratidão pública em Portugal como no Brasil, que ainda hoje aproveitam o impulso benéfico que ele soube imprimir.6 6 Jornal do Comércio, 2 abr. 1882.

As iniciativas mais vistosas na cidade, contudo, partiram do Clube Guanabarense, que promoveu cerimônias formais, festejos populares e impressos. Além disso, jornais divulgaram diferentes leituras sobre a influência do governo pombalino no passado da antiga colônia. Os promotores do centenário se esforçam por apresentar o marquês como arauto da liberdade, da instrução, de reformas, de leis antijesuíticas e de medidas abolicionistas - como se nota no discurso de Rui Barbosa (1882), proferido em sarau no teatro de Pedro II, ponto alto das festas. Para o orador,

Pombal não é um homem; é uma idade, uma antecipação do futuro, bem que não incólume da eiva inevitável do seu tempo […].Teve a bondade e a vontade precisas para abrir em seu país um rasgão luminoso nessa rede da escravidão […]. Quanto ao tráfico, foram precisos ainda 33 anos para que a Grã-Bretanha o proibisse e 57 para que essa ideia penetrasse na legislação brasileira. A ingenuidade da prole dos escravos esperou ainda um século antes que as nossas leis a acolhessem […]. Na história do homem, [...] [há] individualidades proféticas que, à distância, prenunciam as ideias e esboçam as instituições vindouras. Uma dessas grandes profecias vivas do futuro humano é o marquês de Pombal. [...] [Seu vulto] se projeta sobre o século XIX, sobre a humanidade, sobre essa segunda pátria da língua e da alma portuguesa.7 7 O movimento abolicionista ganhou bastante força nos principais núcleos urbanos na década de 1880, período marcado pelo relevo da imprensa abolicionista. Ver: Alonso (2015), Costa ([2008] 2010) e Machado (2014).

A comemoração pombalina foi um acontecimento marcante, envolvendo diferentes iniciativas e ecoando em notas sobre os preparativos para os festejos, apreciações acerca de Pombal e informações e narrativas sobre as celebrações que se planejavam e desenrolavam. Segundo o relato curioso d’O Mequetrefe8 8 O Mequetrefe, 20 maio 1882. Rio de Janeiro (1875-1893). Jornal ilustrado, com teor humorístico, simpático a bandeiras republicanas e abolicionistas. ,

muita gente boa levou o precioso tempo a falar mal e bem do marquês de Pombal. Uns diziam que ele foi um tirano, um bárbaro, um assassino, um sanguinário, um carniceiro, um herói de mortandades. Outros, que […] foi mais do que um herói, mais do que um gênio: foi um Deus. Alguns dos que lhe faziam a apoteose foram exagerados nos seus elogios, convimos. Os que lhe metiam as botas não foram só exagerados; passam por tolos, beócios, fósseis. Os tais inimigos de Pombal chegaram até a afinação de afixar pasquins pelas esquinas contra aqueles que franca e espontaneamente, baseados no juízo da história, manifestavam a sua opinião.

De acordo com a nota elogiosa da Revista Ilustrada 9 9 Revista Ilustrada, 14 maio 1882. Rio de Janeiro (1876-1898). Periódico semanal ilustrado satírico, com teor republicano e abolicionista. ,

continuam as festas pelo marquês de Pombal, divertindo esses, entusiasmando aqueles, interessando a todos, e não fazendo mal a ninguém. Poetas e literatos, bem ou mal, todos têm falado do estadista português. E na imprensa e no teatro, na terra e no mar, [...] ou entre alegres aplausos, ou entre apodos malévolos, não se ouviu esta semana senão o nome do primeiro ministro de D. José. Desde segunda-feira, tudo é Pombal no Rio de Janeiro e até domingo tudo ainda será Pombal na capital do Império. Pombal for ever! [...] Tudo é Pombal, enfim. [Menos] o sr. D. Pedro II - coitado! O que não tem sofrido, por não ser pombalino.

Entende-se: tendo prestigiado com sua presença os festejos camonianos de 1880, bem como as sessões das Conferências da Glória sobre o governo pombalino e também, na perspectiva crítica da Revista, qualquer outro evento, o imperador não compareceu, contudo, aos festejos pombalinos; não assistiu sequer à sessão de gala do dia 8, no teatro que levava seu nome - em que se organizou um

grande sarau literário-musical, sendo a parte literária o elogio histórico do grande estadista, feito pelo exmo. sr. dr. Rui Barbosa, que se dignou a aceitar o encargo de orador oficial da comissão executiva dos festejos, e a parte musical desempenhada pela orquestra composta de 120 amadores e professores de diversas bandas de música, em número superior a 500 executantes, com o concurso de 100 exmas. sras. da nossa mais escolhida sociedade e 100 cavalheiros.10 10 Jornal do Comércio, 16 abr. 1882.

O programa, por parte do Clube Guanabarense, abrangeu os dias 8, com o sarau, 11, com festas no jardim da Aclamação, “completamente iluminado”, e 14 de maio, com “grande festa marítima na baía de Botafogo, que para esse fim será ornamentada com ilhas artificiais, cascatas, gôndolas venezianas e diversas embarcações embandeiradas e enfeitadas”11 11 Idem. . Da parte dos estudantes, consta que

os alunos da Escola Militar da corte, desejando tomar parte nos festejos do centenário do marquês de Pombal, obtiveram permissão do sr. ministro da Guerra para, no dia 9 […], esmolarem pelas ruas em uma passeata aux flambeaux, sendo o produto aplicado à liberdade dos escravos.12 12 Gazeta de Notícias, 21 abr. 1882.

Quanto à mencionada coletânea, anunciada desde as primeiras referências sobre os festejos, ainda em 1881 se informaram seus principais colaboradores e os formatos previstos: 4 mil exemplares, em três edições distintas - vendidas e distribuídas no Brasil, em Portugal e em outras partes da Europa. Indício de uma forte relação entre autores e impressos luso-brasileiros. No Rio de Janeiro, o interesse pelo que se passava do outro lado do Atlântico era potencializado pela existência de uma expressiva colônia portuguesa,13 13 Os portugueses eram, na década de 1870, 2/3 dos imigrantes na corte, onde se organizavam em núcleos associativos, mantendo vínculos com Portugal. Ver: Cervo (2000), Ferreira (2007) e Lessa (2002). que acompanhava notícias de sua pátria pelos jornais - em alguns dos quais colaboravam conhecidos escritores lusos.14 14 Isabel C. V. L. Trabucho (2006) e João C. Zan (2009) se debruçam sobre correspondências portuguesas na Gazeta de Notícias, em que colaboram, dentre outros, Ramalho Ortigão, Eça de Queirós e Guilherme de Azevedo. Se os periódicos são exemplo de uma circulação de textos entre os dois países, a coletânea pode ser entendida como luso-brasileira por excelência;15 15 Para Marçal Paredes (2007, p. 16-17), pode-se falar de redes discursivas de dimensão luso-brasileira; “uma particular disponibilidade e uma especial atenção a assuntos implicando qualquer uma das margens do Atlântico […]; pelo menos no âmbito intelectual, a cultura portuguesa e a cultura brasileira parecem cultivar um canal informativo eficaz e a possibilidade do estabelecimento e pontes e linhas de contato”. planejada de um lado do Atlântico, e executada de outro, reunindo importantes escritores de lá e cá.16 16 Os portugueses Emídio Garcia, Júlio de Matos, Latino Coelho, Oliveira Martins e Teófilo Braga; os brasileiros Henrique C. Moreira, Machado de Assis, Sílvio Romero e Tomás Alves Jr. Além de George Weber e Angelo de Gubernatis - alemão e italiano.

Luso-brasileira, ademais, é sua temática: passado compartilhado por Portugal e Brasil. Se, no Império, como nas terras lusas, seus mais enfáticos opositores eram grupos católicos,17 17 Sobre os embates em torno do centenário em Portugal, ver: Bebiano (1982). houve apreciações negativas por parte de outros setores, que destacaram sobretudo as violências capitaneadas pelo marquês e puseram em causa os motivos para os estudantes cariocas se envolverem em sua comemoração. Na Gazetinha18 18 Gazetinha, 21 abr. 1882. Rio de Janeiro (1881-1883). Jornal de baixo custo, publicava textos sobre o dia a dia, com teor humorístico e literário, sinalizando simpatias ao republicanismo. , por exemplo, lê-se:

a despeito das mais frisantes divergências de opinião e da mais completa ausência do sentimento coesivo, manifestadas oportunamente em torno da ideia de um centenário ao marquês de Pombal, essa afrontosa apoteose, sem originalidade nem lógica, vai finalmente receber nesta capital a sua ruidosa comemoração. Orientada pela retidão e pelo critério da moderna filosofia, a Gazetinha aplaude convictamente os centenários, porque eles significam a mais lúcida interpretação da justiça para com os beneméritos da humanidade. […] Pombal não está nesses casos.

Considerando com descrédito o juízo da mocidade, ainda se afirma: “a estudantada da corte vai deitar procissão cívica para festejar o assassino dos Távoras. Os meninos querem brincar… deixá-los. Se entre os 5 mil futuros bacharéis houver 10 que tenham uma ideia vaga de quem foi o marquês de Pombal, nós daremos as mãos a bolos” de palmatória.19 19 Gazetinha, 5 maio 1882. Além disso, em uma série de oitavas dispersas, vieram à tona, de forma divertida, diferentes aspectos de sua crítica ao marquês e a seus apologistas:

Foi Grande, mas deu seus tombos;
Fez bem, mas também fez mal;
Seu nome também tem rombos,
Foi grande, mas deu seus tombos;
Fosse antes, pombal de pombos
Do que marquês de Pombal;
Foi grande, mas deu seus tombos;
Fez bem, mas também fez mal.20 20 Gazetinha, 10-11 abr. 1882.
O Pombal que honrar queremos
Não foi um pombo sem fel -
É justo, oh Centro, que honremos
O Pombal que honrar queremos?
Dizemos tal, Miguel Lemos,
Porque tal lemos, Miguel:
O Pombal que honrar queremos
Não foi um pombo sem fel!21 21 Gazetinha, 12 abr. 1882. O Centro é o Centro Positivista, liderado por Miguel Lemos. A despeito do peso da ortodoxia (vinculada ao Centro), ressalta-se o “largo espectro tanto ideológico quanto territorial” dos positivismos no Império. Para Ângela Alonso (1995), o que distingue o cientificismo positivista é “um exacerbado senso de missão social”, expresso em “vocabulário específico, composto por conceitos e preconceitos de Comte”. Tais ideias servem de “molde discursivo para a crítica à elite política”. Ver: Alonso (2002, p. 120-146).
Festeiros, oh grande gente,
Sois uns festeiros anões!
Fazeis festa ingenuamente,
Festeiros, oh grande gente!
Essa festa é simplesmente
Plágio às festas de Camões!
Festeiros, oh grande gente,
Sois uns festeiros anões!22 22 Gazetinha, 17-18 abr. 1882. Os festejos camonianos foram mais ampla e positivamente recebidos. Sua iniciativa, na capital, partiu da colônia portuguesa, com destaque ao Gabinete Português de Leitura. Contudo, houve resistências dos portugueses ao aspecto luso-brasileiro dado ao poeta. Ver: Azevedo (2015) e Venâncio (2012).
Meninos, ide pra aula!
Que tendes com Portugal?
Por São Francisco de Paula!
Meninos, ide pra aula.
O tal marquês foi da “jaula”;
Não foi marquês do “pombal”.
Meninos, ide pra aula!
Que tendes com Portugal?23 23 Gazetinha, 1-2 maio 1882. A referência a São Francisco de Paula remete ao largo onde se encontrava a Escola Politécnica.

Também n’O Binóculo24 24 O Binóculo, 6 maio 1882. Rio de Janeiro (1881-1882). Semanário ilustrado, dedicado a sátiras de teor político e social. se criticou o “júbilo ingênuo e primitivo” com que, “cheio de convicção e ardor”, celebrava-se o marquês:

rejubila-te, pois, oh crédulo, oh ignorante! Mas enquanto te entregas inteiramente aos delírios insensatos dessa pandega, permite […] que O Binóculo, um tanto mais esperto do que tu, tome a liberdade de pensar no triste destino que te espera, se porventura não tomares juízo. […] [O Binóculo] não é admirador do marquês de Pombal, pela mesma razão por que não é admirador de Nero, nem de Calígula, […] nem de outros insignes malvados. […] Sabes tu o que significa a apoteose ao marquês de Pombal? Significa o aplauso inconsciente de um povo santamente ignorante a um estrangeiro que só tendo feito mal ao seu país, não podia fazer bem ao dos outros.

Quanto aos estudantes, percebe-se o sentido que eles queriam dar aos festejos na introdução do livro por eles organizado, com colaborações diversas (dentre as quais, destacam-se aquelas de lideranças positivistas, cuja influência se nota):

borrada a Providência caprichosa da teologia nos fatos sociais, aceitou-se como provada a ação de uma Providência real, efetiva, positiva: a Providência humana. […] Daqui proveio o culto da Humanidade. […] Hoje celebram-se as festas da positividade sem o tributo da catolicidade. […] O marquês de Pombal foi uma força útil ao desenvolvimento social […]. Lutou peito a peito com a sociedade e venceu e esmagou a hidra reacionária que procurava estorvar a marcha da humanidade. […] Não se pode separar do nosso passado o passado glorioso da nação portuguesa. […] É forçoso aceitar o nosso passado colonial e não desconhecer a ação dos seres que o serviram. […] Encarado por esse lado, o nome do marquês de Pombal prende-se a nós como se prende a Portugal (MOCIDADE, 1882 [MOCIDADE] Centenario do Marquez de Pombal. Homenagem da Mocidade Académica Brazileira. Rio de Janeiro: Lombaerts, 1882.).

A partir dessas referências, pode-se, por fim, abordar um texto peculiar relativo às comemorações. Saído da pena de Machado de Assis, “A derradeira injúria”,25 25 Segundo João P. Papassoni (2018, p. 12), cuja importante leitura, deve-se ressaltar, acompanha-se de perto nas próximas páginas, o poema recebeu pouca atenção, “percorrendo lateralmente a já lateral obra poética” do autor. Para o texto (doravante citado sem referências), remete-se ao estudo crítico de Papassoni, que cotejou a publicação com outras versões/edições póstumas, atualizando pontuação e ortografia. poema composto por 14 sonetos,26 26 Forma métrica clássica: 14 versos com um esquema rimático que forma 2 quadras (4 versos) e 2 tercetos (3 versos). apareceu pela primeira vez no referido volume editado em 1885. Quanto ao autor, atenta-se a sua ausência no material até então vindo a lume: ele não foi elencado nas primeiras listagens de colaboradores da publicação,27 27 A primeira referência a sua colaboração é posterior à festa: A Folha Nova, Rio de Janeiro, 28 dez. 1882. não participou das obras do Guanabarense vindas a lume em 188228 28 Um jornal comemorativo (GUANABARENSE, 1882b), de número único; uma coletânea de poesias (GUANABARENSE, 1882a); o discurso proferido nos festejos por Rui Barbosa (1882). e não se referiu diretamente ao marquês nos jornais em que colaborava. N’A Estação29 29 A Estação, 31 maio 1882. Rio de Janeiro (1879-1904). Publicação destinada ao público feminino, com conteúdos relacionados a moda e atualidade, além de folhetins. , periódico em que muito influía, contudo, lê-se o seguinte:

embora esplêndidas, foram muito discutidas as festas ao ministro de D. José. Uns não queriam as festas porque Pombal fora um malvado; outros, porque Pombal fora feliz… A mim, simples cronista, pouco se me dá a vida alheia; e se Pombal foi um santo, segundo Augusto Comte, se um diabo, segundo O Apóstolo [jornal católico], as festas foram brilhantes e divertidas. […] A bela baía de Botafogo oferecia um aspecto fantástico ao longo da praia… Mas a leitora deve ter lá estado e eu não quero fazer de Rui Barbosa, que nos contou no [teatro de] Pedro II toda a história já sabida do marquês.

Machado escreveu, entretanto, o poema, posicionando-se no debate candente sobre Pombal; relacionando sua figura histórica e a narrativa mais difundida a seu respeito. Afastou-se, contudo, do tom elogioso do volume que integra, no qual seu texto é introduzido por um verso, em epígrafe: “E ainda, ninfas minhas, não bastava…” - um trecho d’Os Lusíadas30 30 Machado colaborou nos festejos camonianos, escrevendo a peça Tu, só tu, puro amor (publicada na Revista Brasileira ainda em 1880 e em formato de livro em 1881), encenada na noite principal, além de ter escrito sonetos em homenagem a Camões, publicados em edições comemorativas. que, além de vincular as apoteoses pombalina e camoniana, traz à tona, incidentalmente, a reflexão de Camões acerca da relação entre poder e glória; importante na apreciação do autor brasileiro sobre o passado pombalino e sobre sua recordação pelos pósteros.

“A derradeira injúria” do marquês de Pombal

De acordo com João Paulo Papassoni (que se debruçou sobre o referido texto, produzindo um trabalho crítico-interpretativo esclarecedor e instigante), uma caraterística marcante do poema é a ocorrência de duas vozes. A primeira delas é a voz que se apresenta nos dois primeiros e nos cinco últimos sonetos. Empregando a terceira pessoa gramatical, descreve um cenário que remonta aos momentos imediatamente anteriores a um episódio da terceira invasão francesa (o “gaulês que persegue”) ao território luso, quando tropas em retirada (após enfrentamentos com forças anglo-portuguesas - o “bretão que defende”) profanaram o túmulo do marquês (o “grande ministro” cujo “formidável nome” encontrava-se no féretro descrito).31 31 À altura, a corte se encontrava no Rio de Janeiro, para onde partira, sob escolta britânica, quando da primeira invasão francesa (1807). A terceira invasão iniciou-se em agosto de 1810. Na vila de Pombal, houve, no início de março de 1811, um enfrentamento com forças anglo-portuguesas.

Os versos evocam a igreja de Nossa Senhora do Cardal, onde ficaram os restos fúnebres de Pombal de 1782 até 1856. Como referido, ele havia morrido em desgraça - condenado e afastado do centro do poder. Ou seja, até a seus restos mortais foi imposto desterro, ficando seu sarcófago na “solitária igreja” a que se faz alusão no poema. Eis o cenário descrito, a partir do qual se permite falar a segunda voz, referida como voz de fato - assim introduzida:

Ora, na solitária igreja em que se há posto
O féretro, se alguém pudesse ouvir, ouvira
Uma voz cavernosa e repassada de ira,
De tristeza e desgosto.
Era uma voz sem rosto,
Um eco sem rumor, uma nota sem lira.
Como que o suspirar do cadáver disposto
A rejeitar o leito eterno em que dormira.
E ninguém, salvo tu, ó pálido, ó suave
Cristo, ninguém exceto uns três ou quatro santos,
Envolvidos e sós, nos seus sombrios mantos,
E ninguém ouvia em toda aquela escura nave
Dessa voz tão severa, e tão triste, e tão grave,
Murmurados a medo, as cóleras e os prantos

É uma voz defunta; o contraditório “suspirar do cadáver” que rejeitava o silêncio que se esperava do “leito eterno em que dormira”. Entre o 3º e o 9º sonetos, essa segunda voz desenvolve reflexões em um discurso interno (apresentado entre aspas, dirigindo-se a um destinatário referido na segunda pessoa do singular - sem distanciamento formal, portanto). Desenvolve-se um percurso reflexivo por momentos selecionados do passado português mais conhecido, traçando paralelos entre glórias e adversidades do país.

E depois de um silêncio: -“Um dia, um dia, um dia
Houve em que nesta nobre e antiga monarquia
Um homem, - paz lhe seja e a quantos lhe consomem
A sagrada memória, - houve um dia em que um homem,
“Posto ao lado do rei e ao lado do perigo
Viu abater o chão; viu as pedras candentes
Ruírem; viu o mal das cousas e das gentes,
E um povo inteiro nu de pão, de luz e abrigo.
“Esse homem, ao fitar uma cidade em ossos,
Terror, dissolução, crime, fome, penúria,
Não se deixou cair coos últimos destroços.
“Opôs a força à força, opôs a pena à injúria,
Restituiu ao povo a perdida hombridade,
E onde era uma ruína ergueu uma cidade.

O soneto citado, 6º do conjunto, marca o momento a partir do qual se passa a abordar o período pombalino,32 32 Papassoni (2018) destaca que “E depois de um silêncio” marca a passagem de um passado mais remoto - a época camoniana; a época clássica das epopeias, da glória das descobertas e dos heróis da navegação - a um passado mais recente: o período pombalino. Um salto de quase três séculos; mais uma conexão entre Camões e Pombal a ser pontuada em relação à leitura do poema e às comparações nele apontadas entre as duas figuras históricas portuguesas comemoradas em fins do século XIX. retratando, a partir do terremoto de 1755, a reedificação de Lisboa - uma de suas medidas menos polêmicas e mais elogiadas ao longo do tempo. Nota-se um tom encomiástico e se percebe que o marquês é o homem de que se fala; o homem que, “ao lado do rei e ao lado do perigo”, não se prostrou diante da capital em destroços, mas “opôs a força à força, opôs a pena à injúria”, restituindo o povo e a cidade por meio de sua ação governativa. Nos dois sonetos seguintes, contudo, ao mesmo tempo que se abordam elementos mais criticáveis de sua governação, nota-se que o discurso se dirige, na verdade, ao próprio marquês:

“Esse homem eras tu, alma que ora repousas
Da cobiça, da glória e da ambição do mando,
Eras tu que um destino, e propício, e nefando,
Ao fastígio elevou dos homens e das cousas.
“Eras tu que da sede ingrata de ministro
Fizeste um sólio ao pé do sólio; tu, sinistro
Ao passado, tu novo obreiro, áspero e duro,
Que traçavas no chão a planta do futuro.
“Tu querias fazer da história uma só massa
Nas tuas fortes mãos, tenazes como a vida,
A massa obediente e nua.
“A luminosa efígie tua
Quiseste dar-lhe, como à brônzea estátua erguida,
Que o século corteja, inda assustado, e passa.33 33 Acerca do trecho, a ponderação de Papassoni (2018, p. 91) é bastante pertinente: “o mais compreensível seria que a partícula lhe esteja recuperando o termo história, ou seja, como se o ministro tivesse a intenção de dar à história a sua marca, seu rosto, como o fez na obra de escultura”.

Pombal, nessa leitura, foi elevado ao topo do poder por um destino ao mesmo tempo propício e nefando - o que prenuncia tanto reconhecimento quanto crítica. São-lhe atribuídos cobiça, ambição, vontade de poder e desejo de glória. Afinal, enquanto ministro do monarca, fez-se sólio [poder] “ao pé do sólio” [trono]; uma ponderação que ecoa as denúncias feitas a sua época de que era ele quem governava no lugar do monarca; de que efetivamente dispunha do poder régio. Destacando os traços “áspero e duro” de Pombal, aponta-se como, com sua acusada aversão ao passado (tradição/caducidade), ele se dispôs a traçar “no chão a planta do futuro” (modernidade/progresso) - seja da cidade de Lisboa, seja do próprio império português, cujo destino ele afinal supunha conduzir com suas “fortes mãos”; como um oleiro: lidando com o povo e com a história como se de uma “massa obediente e nua” se tratassem.

Ao apresentar sua intenção de mobilizar a história, refere-se à célebre “brônzea estátua” equestre; emblema do reinado de D. José, em cujo pedestal Pombal fez colocar um medalhão com sua “luminosa efígie”, também em bronze - visando a perpetuar; a legar à história/memória do futuro, junto da principal representação perene do monarca, também a evocação de sua figura.34 34 Pouco antes, lê-se em A Cruz do Operário (Lisboa, 22 abr. 1882): “quis eternizar-se a si e quer lhe tenham lá o busto, quer o substituam, é sempre o monumento do marquês de Pombal e não o de D. José”. Se no 6º soneto se apresenta Pombal como o restaurador de Lisboa, no 8º o ministro é referido como um demolidor; como um verdadeiro “terremoto político”, nas conhecidas palavras de Oliveira Martins ([1879]1882, t. II, p. 172-183), que um pouco antes escreveu que da hecatombe

nasceu o poder do marquês de Pombal e o acaso, aterrando os ânimos contra o pavoroso acontecimento, preparou-os para aceitarem submissamente o jugo do tirano, que ia consumar o terramoto político, depois de a natureza ter consumado a ruína […]. Tudo havia a refazer, tudo se podia executar nesse momento único da destruição total do passado. O terramoto era o fim do mundo. Antes de criar, porém, o ministro precisava consagrar a destruição nas esferas onde a natureza não chega - na sociedade, nas instituições […]. O terramoto fez-se, pois, homem e encarnou em Pombal, seu filho.

Martins ([1882] 1885) também colaborou na obra em que se publicou o poema, com um artigo acusando a incompatibilidade de suas medidas com o “radicalismo liberal individualista”. Para o historiador, era chegado

o momento de fazer justiça ao grande português de há cem anos. Portugal nunca deixou de o venerar como o Sansão em cujos ombros aluíram as colunas miseráveis dessa sociedade fradesca e beata […]; nós dizemos ter chegado o momento de fazer a apoteose do nosso estadista, não como demolidor do passado, mas como apóstolo do futuro […]; um precursor, embora a sua doutrina se formulasse de um modo já hoje caduco para nós.

De volta ao poema de Machado, nota-se como, a seguir, abordam-se justamente aspectos da governação pombalina sobre os quais mais se levantam críticas: sua ação enérgica contra o que ele entendia como caduco e informe. Propondo reformar o país, Pombal se dispôs a supliciar aqueles que se colocassem contra seu empenho. Ainda que os versos não detalhem tais suplícios, neles se evocam as lágrimas vertidas em decorrência das ações do marquês - sobretudo aquelas contra a nobreza e a Igreja, representando seu governo sob a perspectiva de uma espécie de batalha contra tais forças.

Memória póstuma, comemoração, história

Após tais reflexões, o autor recupera a primeira voz, que retorna a partir do 10º soneto. Já no 11º, afirma-se claramente a identidade da segunda voz, que antes se pronunciava:

E essa voz era a tua, ó triste e solitário
Espírito! Eras tu, forte outrora e vibrante,
Que pousavas agora, - apenas cintilante, -
Sobre o féretro, como a luz de um lampadário.
Era tua essa voz do asilo mortuário,
Essa voz que esquecia o ódio triunfante
Contra o que havia feito a tua mão possante,
E a inveja que te deu o pontual salário.
E contigo falava uma nação inteira,
E gemia com ela a história, não a história
Que bajula ou destrói, que morde ou santifica.
Não; mas a história pura, austera, verdadeira,
Que de uma vida errada a parte que lhe fica
De glória, não esconde às ovações da glória.

Tal voz, “cavernosa e repassada de ira, tristeza e desgosto”, é, afinal, a voz do marquês. No poema, portanto, é Pombal quem, contrariando o destino, deseja se fazer ouvir, falando de si mesmo - ainda que ninguém, senão as imagens (também sem vida) do templo, esteja no recinto para ouvir seus lamentos (ele fala, pois, para si mesmo).

Nota-se que é essa (segunda) voz que apresenta as reflexões sobre o passado de Portugal e mais especificamente sobre o período pombalino, imprimindo-lhes um tom encomiástico, a condizer com uma obra elaborada em homenagem ao ministro. O curioso é perceber como, no poema, o elogio a Pombal e ao pombalismo se dá não de maneira direta, e sim por essa via indireta; recorrendo à voz do marquês defunto (ausente re-apresentado),35 35 Paul Ricoeur ([2000] 2018, p. 300) aborda memória como representação/re-apresentação (presença no espírito) do passado/acontecido (realidade anterior ausente; o que não é mais, porém já foi). que discursa longamente sobre si mesmo, em uma espécie de memória póstuma de seu governo e também de sua sobrevida na recordação dos pósteros - reclamando, inclusive, do relativo descaso/esquecimento a que julga ter sido legado (como, a seu ver, comprova seu esquife, recluso na igreja da pequena vila de Pombal, relativa e suficientemente distante da corte).

Ademais, por se dirigir a si mesmo, o marquês pode ser entendido, como ressalta Papassoni (2018, p. 28-29), como assunto, destinatário e emissor de tal discurso. Buscando aproximações ao poema na obra machadiana, o investigador, além de apontar as mais facilmente relacionáveis Memórias póstumas de Brás Cubas (que, como o título bem indica, tratam dos recordos de um personagem já falecido - abordando sua vida e o pós-vida, em um discurso dirigido ao verme sepulcral),36 36 Publicado na Revista Brasileira em 1880 e em 1881 em formato de livro. Na dedicatória, lê-se: “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas”. resgata um trecho de O alienista em que uma personagem anuncia ter composto uma “ode à queda do marquês de Pombal”,37 37 Publicado em A Estação em 1881 e em livro em Papéis Avulsos, de 1882. O trecho referido: “Uma vez, por exemplo, compôs uma ode à queda do marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era o ‘dragão aspérrimo do Nada’, esmagado pelas ‘garras vingadoras do Todo’” (A Estação, 15 dez. 1881). Ver: Teixeira (2010). o que se aproxima daquilo que Machado desenvolve no poema: uma ode à derradeira injúria (violação, insulto, ofensa) do marquês.

Acerca de outras evocações literárias de um Pombal defunto, e ativo, apontam-se aqui mais duas referências.38 38 Além das aqui pontuadas, destacam-se duas peças teatrais oitocentistas portuguesas (GARRETT, 1848; CASCAIS, [1862] 1899) que literalmente colocam um marquês-personagem em cena. Em um trecho do conhecido Viagens na minha terra (1845-1846), de Almeida Garrett, acompanha-se o narrador em uma jornada mental em procura do marquês “no reino das sombras” para “lhe fazer uma pergunta” - uma questão que aqui importa menos que a inclusão, nas viagens, da representação de um Pombal falecido. O marquês, com sua luneta, defende altivamente sua ação, posta em causa pelo narrador. Em outro trecho do livro, por fim, encontra-se uma referência à reconstrução de Lisboa após o terremoto. Nessa parte, as iniciativas pombalinas, abordadas como realidade histórica, são apreciadas de modo crítico.39 39 No prólogo da terceira edição de Memórias póstumas (1899), lê-se: “Macedo Soares, em carta que me escreveu por esse tempo, recordava amigamente as Viagens na minha terra. […] Assim se explicou o finado: ‘trata-se de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo’. Toda essa gente viajou: Xavier de Maistre à roda do quarto, Garrett na terra dele, Sterne na terra dos outros. De Brás Cubas se pode dizer que viajou à roda da vida”. O Pombal defunto de Garrett não era, pois, estranho a Machado.

O jornalista e professor Carlos de Laet, por sua vez, em uma crônica crítica aos centenários positivistas (“festas sociológicas de grande alcance”), diverte-se em se imaginar e narrar visitando o marquês de Pombal pela curiosa via de uma sessão espírita (“uma fresta do sobrenatural” que o conduziu ao “paraíso da humanidade, departamento da política moderna” - segundo encaminhamento dos conhecidos termos positivistas).40 40 O espiritismo recebe então grande atenção. O próprio Machado aborda criticamente a temática. Na versão de 1882 (Papéis Avulsos) de “Uma visita de Alcibíades” (publicado diferentemente no Jornal das Famílias em 1876), uma sessão espírita é mobilizada como artifício para, convocando personagens do passado, resolver problemas históricos - o que Papassoni relaciona, com ressalvas, ao artifício no poema (aponta-se, abaixo, recurso semelhante na crônica de Laet): “a ideia de ‘ouvir’ do autor do ato a verdade sobre o ato, ao invés de conjecturar sobre o mesmo” (PAPASSONI, 2018, p. 107-110). No texto irônico, o próprio marquês apresenta, diante dos outros grandes do passado e do cronista, suas credenciais para uma apoteose, enumerando seus méritos. Contudo, ao vislumbrar, valendo-se de sua luneta, a realidade de seus festejos cariocas, exclama: “isso não passa de uma grande troça para desmoralizar-me a história… Não é meu centenário […]. Fosse no meu tempo! Por muito menos, houve quem apodrecesse na cadeia, quando não se espichava numa forca”. Quanto à justificativa para sua crítica, convocando o marquês para falar sobre si mesmo, no lugar de historiadores, Laet afirma:

levara todo o dia a pensar no marquês de Pombal e nas espetaculosas festanças que se preparam para honrar-lhe a memória. Assaltavam-me o espírito muitas dúvidas e hesitações quanto ao definitivo julgamento da história sobre esse grande vulto […]; em vez de reler crônicas e compulsar historiadores, muito mais fácil me seria evocar o façanhoso marquês, registrando depois num folhetim, respeitosamente comemorativo, as curiosas e verídicas revelações que se dignasse de fazer-me o festejado defunto.41 41 Jornal do Comércio, 7 maio 1882.

Retomando as palavras de Machado de Assis, nota-se que no poema se evoca, por um lado, a realidade física dos restos do marquês; seus vestígios/restos (sinal e emblema de sua anterior existência, de sua morte e também da corrente decomposição de seu corpo), trazidos à tona justamente nos momentos que antecederam sua profanação/injúria derradeira. Por outro, também se evoca um discurso de exaltação sobre o passado pombalino que parte, no fim das contas, do próprio Pombal. Acerca dessa reflexão de teor histórico, demarcada no corpo do poema, pode-se perceber, no elogio à ação do marquês, uma espécie de versão do discurso oficial pombalino - que, sob a batuta do ministro, foi difundido pelo governo português e, a despeito de críticas posteriores, acabou por, em alguns aspectos, consolidar-se como opinião comum sobre sua governação; fazendo-se, na posteridade, narrativa histórica difundida e memória corrente.

Sobre a referência à história pelo autor em outra obra, ainda se aponta aqui a ideia de que O alienista pode ser entendido como paródia do estilo historiográfico:

desde o princípio até o fim […], ironiza a fidelidade cega à suposta autoridade das “velhas crônicas”, típica da historiografia tradicional, sugerindo que a presumível veracidade delas não consegue passar imune ao método e às intenções do historiador. Coloca também à prova o discernimento das próprias crônicas - presumíveis fontes de sua ficção (TEIXEIRA, 2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica do poder em O alienista. Cotia/Campinas: Ateliê/Unicamp, 2010., p. 156).

Quanto à representação de Pombal no poema em tela (em que ele discursa a respeito de si mesmo no lugar de historiadores e também no lugar do próprio autor, que se manifesta, indiretamente, de modo distinto), “compreende-se o esforço do marquês real, em espírito, de elucubrar a respeito de sua própria história, falando de si mesmo. Em oposição, há o olhar crítico do poeta, que a todo momento recorda a condição atual rebaixada do mesmo” (PAPASSONI, 2018PAPASSONI, João Paulo. Uma perpétua lida: estudo sobre “A derradeira injúria”, de Machado de Assis. Dissertação de Mestrado (Literatura Brasileira). São Paulo: USP, 2018., p. 109-110).

Ou seja, seguindo as indicações da leitura de Papassoni, pode-se falar da oposição entre a realidade histórica (o passado, que os restos mortais, na igreja pombalense, representam) e esse discurso que se apresenta como se fosse história (narrativa alegadamente verídica sobre o passado); oposição que se manifesta também no confronto entre glória e desterro, apoteose e profanação. Nesse sentido, entende-se que, no poema, a voz que narra a história de Portugal, e em especial a história do governo pombalino, é a voz da opinião geral - que, dada a assimilação de elementos do próprio ideário pombalino, confunde-se com a voz de Pombal. Seu discurso, nessa perspectiva, corresponde ao discurso mais difundido/acreditado sobre seu histórico; discurso de que no fundo se distingue o autor do poema.

Tais aspectos ficam mais claros no fim do soneto em questão, que ainda traz à tona duas importantes distinções. A primeira, entre o discurso de “uma nação inteira” e a história. A segunda, entre duas formas distintas de história: a “história que bajula ou destrói, que morde ou santifica”, de um lado (narrativa comemorativa sobre o passado), e a “história pura, austera e verdadeira”, de outro (narrativa crítica sobre o passado). Na verdade, trata-se de apenas uma distinção, em dois momentos: o discurso da nação inteira é, afinal, essa forma de história que bajula e santifica. É, ademais, o discurso do próprio marquês, percebido e difundido como história. É, por fim, o discurso de sua apoteose no centenário. Por oposição, a visão crítica sobre esse discurso é a “história pura, austera e verdadeira”, que diante de uma figura complexa e contraditória como Pombal, reconhece-lhe sua “vida errada”, e, ao mesmo tempo, “a parte que lhe fica de glória” (ou seja, aquilo que merece ser elogiado), “não esconde às ovações da glória” (elogiando-o à medida; reconhecendo seus merecimentos, da mesma forma que lhe reconhece os deméritos).

Quanto a essa ideia de um senso comum acerca do período pombalino (entre memória compartilhada e narrativas históricas correntes), considerando, ou melhor, acusando sua elaboração a partir de iniciativas do pombalismo, pode-se remeter a uma das principais obras críticas publicadas à altura do centenário no Rio de Janeiro e no Porto: o Perfil do Marquês de Pombal, de Camilo Castelo Branco. O célebre romancista escreveu sobre o marquês, sobre sua comemoração e sobre seus defensores. Destacou, ademais, a recorrência de um discurso liberal português sobre o ministro de D. José.

Castelo Branco (1882, prólogo) afastou-se, assim, dos promotores do centenário, afirmando que eles partiam de “uma ideia, um simbolismo […], adulterando-o até as condições fabulosas do mito […]. Isso que aí passeou nas ruas foi um Pombal de romance [...]. A realidade dos fatos foi sacrificada a uma bandeira que lhe emprestaram”. Como outros opositores da comemoração, ele seleciona e narra, do passado do marquês, sobretudo seus aspectos violentos e despóticos, acusando, assim, seu caráter antiliberal e antidemocrático - opondo-se frontalmente a seus elogiadores. Apesar de dizer que seu livro foi escrito com “convicção, e sem partido”, Camilo afirma explicitamente seu “ódio, grande, entranhado e único na vida, ao marquês de Pombal”.

Em um artigo publicado ainda em 1852, ele critica Pombal por suas arbitrariedade e violência em oposição aos inacianos. Além da continuidade de temática, há nos dois textos a tentativa de mobilizar uma alegada verdade histórica, em face de mentiras difundidas no senso histórico comum. Para o que aqui se quer apontar, destaca-se que Camilo atribui tal consenso sobre o passado do marquês à influência persistente da leitura pombalina da história atualizada no liberalismo oitocentista (que se afirmava herdeiro de medidas políticas de Pombal). Nesse ponto (recuperado e reelaborado pelos positivistas em 1882), ele se distingue de como seus contemporâneos lidaram com o passado pombalino. No artigo, Castelo Branco ([1852] 1916, cap. XXX) escreve:

D. José I e o marquês de Pombal e a expulsão dos jesuítas são homens e acontecimentos de ontem que já hoje respondem no tribunal da crítica, em que o juiz incorruptível - a VERDADE - condena com documentos insubornáveis. […] Ao passo que motejavam as superstições, alimentadas pela ignorância dos imbecis, davam de si um triste documento de cega credulidade no ipse dixit do Seabra e de muitos outros Seabras inspirados pelo célebre senhor de Oeiras. A Dedução Cronológica, lida com ansiedade por nossos pais, foi-nos transmitida como “cordão sanitário contra a peste jesuítica”.42 42 A expressão entre aspas Camilo atribui a um coetâneo, sem nomeá-lo. Trata-se de Joaquim de Santa Clara, autor de “A guarda avançada do cordão sanitário contra a peste jesuítica” (1846).

A referida Dedução Cronológica e Analítica (1767-1768) foi publicada sob a autoria de José Seabra da Silva (e creditada ao marquês). Bastante divulgada, serviu de esquema modelar para outros textos pombalinos. Fez-se paradigmática, ademais, por apresentar uma releitura da história de Portugal tendo como princípio norteador a acusação e as “provas” de que cabia aos jesuítas a responsabilidade por todos os desvios e calamidades que se abateram sobre o país, justificando o antijesuitismo do marquês (ALVIM, 2010ALVIM, Gilmar Araújo. Linguagens do poder no Portugal setecentista: um estudo a partir da Dedução Cronológica e Analítica (1767). Dissertação (Mestrado em História). Niterói: UFF, 2010.; MACEDO, 1982MACEDO, Jorge Borges de. O marquês de Pombal: 1699-1782. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1982.).

Em 1882, Castelo Branco retomou a problematização do que entendia como uma espécie de senso comum histórico liberal oitocentista, bem como sua releitura no centenário - como, a seu modo, como visto, fez Machado. Nos últimos sonetos do poema, descreve-se a entrada dos soldados e a profanação do túmulo em que jazia Pombal - um “rei desfeito”. Retrata-se o marquês como “o sol de um século”, transformado, entretanto, em “sombra de um poder” - já sem “poder, glória, ambição”; que “um só dia bastou para fazer pedaço”, espalhando pelo chão do templo seus “tristes restos”: nada mais que ossos. Remetendo-se ao título, afirma-se que ele “tinha ainda na morte uma última prova”.

Ao ponderar sobre tais palavras, é interessante recuperar parte do que afirmou o professor Francisco Correia Barata em seu discurso nas celebrações pombalinas da Universidade de Coimbra, logo publicado ([1882] cf. ARANHA, 1908BRITO ARANHA, Pedro Wenceslau de. Diccionario bibliográfico portuguez… t. XXII(15º do sup.). Lisboa: Imprensa Nacional , 1908., p. 79). De acordo com Barata,

depois que o bispo de Coimbra, Francisco de Lemos, seu admirador, prestou ao cadáver do amigo os últimos obséquios e que a campa cerrou para sempre os seus ossos inertes, fez-se o silêncio do esquecimento em volta da memória desse homem, cujo nome fora conhecido e respeitado em todas as cortes da Europa e que fizera tremer diante da sua figura majestosa os mais poderosos e audazes.

Os centenários oitocentistas se propunham uma apoteose, mobilizando uma releitura da figura de grandes homens, de modo a eternizar uma versão idealizada de sua memória. Nesse exercício, selecionavam-se elementos de seu passado; elementos resgatados, em detrimento de outros, e comemorados/encenados coletiva e publicamente (COTTRET; HENNETON, 2010COTTRET, Bernard; HENNETON, Lauric. La commémoration, entre mémoire prescrite et mémoire proscrite. Du bon usage des commémorations. Rennes: PUR, 2010.). Em alguns casos, como no de Camões, o reconhecimento à figura comemorada logrou ser mais consensual: ainda que se mobilizasse uma figura reelaborada do épico para a crítica política, não havia disputa sobre seu mérito, mas ressalvas quanto a sua mobilização póstera. Não foi que se passou no centenário de Pombal. Devido às inúmeras polêmicas acerca de seu governo e das políticas de que setores do liberalismo e do republicanismo se pretendiam herdeiros - como o antijesuitismo e o anticlericalismo (BEBIANO, 1982BEBIANO, Rui. O 1º centenário pombalino (1882). Contributo para a sua compreensão histórica. Revista de História das Idéias. v. 4, t. II, 1982.) -, estava-se muito mais distante de um alegado/almejado consenso. Travavam-se, ao contrário, disputas em torno das narrativas relativas ao passado dito pombalino - debatendo-se como, se e por quê recordá-lo; como, se e por quê resgatá-lo ou preservá-lo de um suposto esquecimento.

Publicado em Lisboa em uma obra elogiosa ao marquês (orquestrada pela principal organização promotora do centenário no Rio de Janeiro), o poema de Machado de Assis se distancia do tom encomiástico que caracteriza tanto a maior parte da coletânea, quanto os festejos a que faz referência. Não se trata, no fundo, de um texto comemorativo do marquês, segundo/seguindo o discurso elaborado por Pombal e por seus colaboradores, recuperado e atualizado pelos liberais, ecoando ao longo do século XIX e que, sobretudo desde a década de 1870, associava-se a pautas mais avançadas, de teor laicista (CATROGA, 1988CATROGA, Fernando. O laicismo e a questão religiosa em Portugal (1865-1911). Análise Social, n. 100, 1988.; NETO, 1998NETO, Vítor. O Estado, a Igreja, a sociedade em Portugal (1832-1911). Lisboa: INCM, 1998.). Trata-se, sim, de um texto que evoca/re-apresenta, em última instância, a defenestração de seu túmulo e seu alegado esquecimento:43 43 Para Jaime de Séguier, o esquecimento seria uma “segunda e mais irremediável morte” (A Folha Nova, Porto, 12 nov. 1881). sua derradeira injúria. Nesse sentido, pode ser lido como contraponto à apoteose, revelando uma leitura distinta tanto daquela do centenário quanto daquela dos críticos mais intransigentes.

Em meio aos abundantes embates que marcaram o primeiro centenário fúnebre de Pombal, Machado parece comemorar, com seu discurso crítico, uma espécie de segunda morte do marquês, expressa a partir do episódio por ele selecionado e reelaborado narrativamente, como forma de dar voz ao falecido ministro. Ele narra imaginativamente, em suma, “a derradeira injúria” de um marquês já “miserável”, cuja glória não se encontrava senão em suas memórias (póstumas). Sem saber que estava prestes a ter o túmulo profanado, Pombal é representado, no poema, a discursar, amargurado, contra o esquecimento a que, a despeito de seus esforços para se fazer memorializar em vida, seus restos mortais haviam sido legados pela ingratidão dos pósteros. Tal o episódio que se descreve no último soneto, em que se apresenta, como encerramento, a “violação” do “invulnerável”:

Assim pois, nada falta à glória deste mundo,
Nem a perseguição repleta de ódio e sanha,
Nem a fértil inveja, a lívida campanha,
De tudo o que radia e tudo que é profundo.
Nada falta ao poder, quando o poder acaba,
Nada; nem a calúnia, o escárnio, a injúria, a intriga,
E, por triste coroa à merencória liga,
A ingratidão que esquece e a ingratidão que baba.
Faltava a violação do último sono eterno,
Não para saciar um ódio insaciável,
Insaciável como os círculos do inferno.
E deram-ta; eis-te aí, ó grande invulnerável,
Eis-te ossada sem nome, esparsa e miserável,
Sobre um pouco de chão do ninho teu paterno.

É interessante, ao ler o trecho, recuperar em paralelo, para encerrar estas reflexões, outras palavras proferidas por Barata ([1882] cf. ARANHA, 1908BRITO ARANHA, Pedro Wenceslau de. Diccionario bibliográfico portuguez… t. XXII(15º do sup.). Lisboa: Imprensa Nacional , 1908., p. 79) em seu discurso comemorativo; palavras que parecem ecoar no poema de Machado de Assis. Ao abordar o episódio em tela, o professor afirma:

quando os exércitos invasores de Napoleão talaram a península, pondo o selo nessa obra antiga de demolição que o grande estatista sustara no seu tempo com o vigor da sua potente inteligência, uma horada de miseráveis violava-lhe a última morada, roubando-lhe a espada e os vestidos e dispersando impiedosamente os seus ossos. Para nada faltar à grandeza de um homem tão extraordinário teve, por último, a consagração da desgraça e do sacrilégio!

Impressos periódicos

  • O Binóculo, Rio de Janeiro, 6 maio 1882.
  • A Cruz do Operário, Lisboa, 22 abr. 1882.
  • A Folha Nova, Rio de Janeiro, 28 dez. 1882.
  • A Folha Nova, Porto, 12 nov. 1881.
  • A Estação, Rio de Janeiro, 15 dez. 1881; 31 maio 1882.
  • Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 17 jul.; 12 set.; 12 dez. 1881; 16 fev.; 21 abr. 1882.
  • Gazetinha, Rio de Janeiro, 10-11, 12, 17-18, 21 abr.; 1-2, 5 maio1882.
  • Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 2 abr., 16 abr.; 7 maio 1882.
  • O Mequetrefe, Rio de Janeiro, 20 maio 1882.
  • O Investigador Portuguez em Inglaterra, Londres, jun. 1817.
  • Revista Ilustrada, Rio de Janeiro, 14 maio 1882.

Impressos não periódicos

  • ALMEIDA GARRETT, João Baptista da Silva Leitão de. A sobrinha do marquez Lisboa: Imprensa Nacional, 1848.
  • ALMEIDA GARRETT, João Baptista da Silva Leitão de [1845-1846]. Viagens na minha terra Porto: Porto Editora, 2016.
  • BRITO ARANHA, Pedro Wenceslau de. Diccionario bibliográfico portuguez… t. XXII(15º do sup.). Lisboa: Imprensa Nacional , 1908.
  • BARBOSA, Rui. Centenario do Marquez de Pombal Rio de Janeiro: G. Leuzinger & Filhos, 1882.
  • CASCAIS, Joaquim da Costa [1862]. A inauguração da estátua equestre Comédia original portuguesa em cinco atos Lisboa: José Bastos, 1899.
  • CASTELO BRANCO, Camilo [1852]. Horas de paz Lisboa: 1916.
  • CASTELO BRANCO, Camilo. Perfil do marquês de Pombal Porto/Rio de Janeiro: Clavel & Cia./L. Couto & Cia. 1882.
  • [GUANABARENSE] Collecção de poesias distribuídas no imperial teatro de D. Pedro II por ocasião do festival comemorativo organizado pela grande comissão nomeada pelo club de regatas guanabarense Rio de Janeiro: s./e., 1882a.
  • [GUANABARENSE]. Homenagem ao marquez de Pombal pela Grande Comissão Executiva do Primeiro Centenario do Grande Ministro… Rio de Janeiro: Faro & Lino, 1882b.
  • [GUANABARENSE] [1882]. Marquez de Pombal. Obra comemorativa do primeiro centenario de sua morte Lisboa: Imprensa Nacional, 1885.
  • MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O alienista Rio de Janeiro [1881] 1882.
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  • 1
    Cita-se conforme o publicado em O Investigador Portuguez em Inglaterra, jun. 1817.
  • 2
    Gazeta de Notícias, 15 dez. 1881; 16 fev. 1882; 17 jul. 1881. Rio de Janeiro (1874-1942). Jornal barato, popular e liberal, dos mais importantes no Brasil oitocentista.
  • 3
    Fundado em 1874, foi dos primeiros clubes ligados ao remo na capital. Reunia setores importantes das emergentes elites urbanas da capital.
  • 4
    As conferências, públicas e gratuitas, decorreram entre 1873 e 1889 - idealizadas e organizadas pelo cons. Manoel Francisco Correia. Atraíam muitos assistentes (entre eles, o imperador) e abarcavam temas relacionados à cultura e à ciência. À altura, eram realizadas uma vez por semana. Ver: Carula (2013). As conferências sobre Pombal ocorreram nos dias 19 de junho (n. 378), 17 de julho (n. 382) e 21 de agosto de 1881 (n. 387), por João Manoel Pereira da Silva.
  • 5
    Fundado em 1868 por imigrantes portugueses, ainda em funcionamento.
  • 6
    Jornal do Comércio, 2 abr. 1882.
  • 7
    O movimento abolicionista ganhou bastante força nos principais núcleos urbanos na década de 1880, período marcado pelo relevo da imprensa abolicionista. Ver: Alonso (2015), Costa ([2008] 2010) e Machado (2014).
  • 8
    O Mequetrefe, 20 maio 1882. Rio de Janeiro (1875-1893). Jornal ilustrado, com teor humorístico, simpático a bandeiras republicanas e abolicionistas.
  • 9
    Revista Ilustrada, 14 maio 1882. Rio de Janeiro (1876-1898). Periódico semanal ilustrado satírico, com teor republicano e abolicionista.
  • 10
    Jornal do Comércio, 16 abr. 1882.
  • 11
    Idem.
  • 12
    Gazeta de Notícias, 21 abr. 1882.
  • 13
    Os portugueses eram, na década de 1870, 2/3 dos imigrantes na corte, onde se organizavam em núcleos associativos, mantendo vínculos com Portugal. Ver: Cervo (2000), Ferreira (2007) e Lessa (2002).
  • 14
    Isabel C. V. L. Trabucho (2006) e João C. Zan (2009) se debruçam sobre correspondências portuguesas na Gazeta de Notícias, em que colaboram, dentre outros, Ramalho Ortigão, Eça de Queirós e Guilherme de Azevedo.
  • 15
    Para Marçal Paredes (2007, p. 16-17), pode-se falar de redes discursivas de dimensão luso-brasileira; “uma particular disponibilidade e uma especial atenção a assuntos implicando qualquer uma das margens do Atlântico […]; pelo menos no âmbito intelectual, a cultura portuguesa e a cultura brasileira parecem cultivar um canal informativo eficaz e a possibilidade do estabelecimento e pontes e linhas de contato”.
  • 16
    Os portugueses Emídio Garcia, Júlio de Matos, Latino Coelho, Oliveira Martins e Teófilo Braga; os brasileiros Henrique C. Moreira, Machado de Assis, Sílvio Romero e Tomás Alves Jr. Além de George Weber e Angelo de Gubernatis - alemão e italiano.
  • 17
    Sobre os embates em torno do centenário em Portugal, ver: Bebiano (1982).
  • 18
    Gazetinha, 21 abr. 1882. Rio de Janeiro (1881-1883). Jornal de baixo custo, publicava textos sobre o dia a dia, com teor humorístico e literário, sinalizando simpatias ao republicanismo.
  • 19
    Gazetinha, 5 maio 1882.
  • 20
    Gazetinha, 10-11 abr. 1882.
  • 21
    Gazetinha, 12 abr. 1882. O Centro é o Centro Positivista, liderado por Miguel Lemos. A despeito do peso da ortodoxia (vinculada ao Centro), ressalta-se o “largo espectro tanto ideológico quanto territorial” dos positivismos no Império. Para Ângela Alonso (1995), o que distingue o cientificismo positivista é “um exacerbado senso de missão social”, expresso em “vocabulário específico, composto por conceitos e preconceitos de Comte”. Tais ideias servem de “molde discursivo para a crítica à elite política”. Ver: Alonso (2002, p. 120-146).
  • 22
    Gazetinha, 17-18 abr. 1882. Os festejos camonianos foram mais ampla e positivamente recebidos. Sua iniciativa, na capital, partiu da colônia portuguesa, com destaque ao Gabinete Português de Leitura. Contudo, houve resistências dos portugueses ao aspecto luso-brasileiro dado ao poeta. Ver: Azevedo (2015) e Venâncio (2012).
  • 23
    Gazetinha, 1-2 maio 1882. A referência a São Francisco de Paula remete ao largo onde se encontrava a Escola Politécnica.
  • 24
    O Binóculo, 6 maio 1882. Rio de Janeiro (1881-1882). Semanário ilustrado, dedicado a sátiras de teor político e social.
  • 25
    Segundo João P. Papassoni (2018, p. 12), cuja importante leitura, deve-se ressaltar, acompanha-se de perto nas próximas páginas, o poema recebeu pouca atenção, “percorrendo lateralmente a já lateral obra poética” do autor. Para o texto (doravante citado sem referências), remete-se ao estudo crítico de Papassoni, que cotejou a publicação com outras versões/edições póstumas, atualizando pontuação e ortografia.
  • 26
    Forma métrica clássica: 14 versos com um esquema rimático que forma 2 quadras (4 versos) e 2 tercetos (3 versos).
  • 27
    A primeira referência a sua colaboração é posterior à festa: A Folha Nova, Rio de Janeiro, 28 dez. 1882.
  • 28
    Um jornal comemorativo (GUANABARENSE, 1882b), de número único; uma coletânea de poesias (GUANABARENSE, 1882a); o discurso proferido nos festejos por Rui Barbosa (1882).
  • 29
    A Estação, 31 maio 1882. Rio de Janeiro (1879-1904). Publicação destinada ao público feminino, com conteúdos relacionados a moda e atualidade, além de folhetins.
  • 30
    Machado colaborou nos festejos camonianos, escrevendo a peça Tu, só tu, puro amor (publicada na Revista Brasileira ainda em 1880 e em formato de livro em 1881), encenada na noite principal, além de ter escrito sonetos em homenagem a Camões, publicados em edições comemorativas.
  • 31
    À altura, a corte se encontrava no Rio de Janeiro, para onde partira, sob escolta britânica, quando da primeira invasão francesa (1807). A terceira invasão iniciou-se em agosto de 1810. Na vila de Pombal, houve, no início de março de 1811, um enfrentamento com forças anglo-portuguesas.
  • 32
    Papassoni (2018) destaca que “E depois de um silêncio” marca a passagem de um passado mais remoto - a época camoniana; a época clássica das epopeias, da glória das descobertas e dos heróis da navegação - a um passado mais recente: o período pombalino. Um salto de quase três séculos; mais uma conexão entre Camões e Pombal a ser pontuada em relação à leitura do poema e às comparações nele apontadas entre as duas figuras históricas portuguesas comemoradas em fins do século XIX.
  • 33
    Acerca do trecho, a ponderação de Papassoni (2018, p. 91) é bastante pertinente: “o mais compreensível seria que a partícula lhe esteja recuperando o termo história, ou seja, como se o ministro tivesse a intenção de dar à história a sua marca, seu rosto, como o fez na obra de escultura”.
  • 34
    Pouco antes, lê-se em A Cruz do Operário (Lisboa, 22 abr. 1882): “quis eternizar-se a si e quer lhe tenham lá o busto, quer o substituam, é sempre o monumento do marquês de Pombal e não o de D. José”.
  • 35
    Paul Ricoeur ([2000] 2018, p. 300) aborda memória como representação/re-apresentação (presença no espírito) do passado/acontecido (realidade anterior ausente; o que não é mais, porém já foi).
  • 36
    Publicado na Revista Brasileira em 1880 e em 1881 em formato de livro. Na dedicatória, lê-se: “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas”.
  • 37
    Publicado em A Estação em 1881 e em livro em Papéis Avulsos, de 1882. O trecho referido: “Uma vez, por exemplo, compôs uma ode à queda do marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era o ‘dragão aspérrimo do Nada’, esmagado pelas ‘garras vingadoras do Todo’” (A Estação, 15 dez. 1881). Ver: Teixeira (2010).
  • 38
    Além das aqui pontuadas, destacam-se duas peças teatrais oitocentistas portuguesas (GARRETT, 1848; CASCAIS, [1862] 1899) que literalmente colocam um marquês-personagem em cena.
  • 39
    No prólogo da terceira edição de Memórias póstumas (1899), lê-se: “Macedo Soares, em carta que me escreveu por esse tempo, recordava amigamente as Viagens na minha terra. […] Assim se explicou o finado: ‘trata-se de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo’. Toda essa gente viajou: Xavier de Maistre à roda do quarto, Garrett na terra dele, Sterne na terra dos outros. De Brás Cubas se pode dizer que viajou à roda da vida”. O Pombal defunto de Garrett não era, pois, estranho a Machado.
  • 40
    O espiritismo recebe então grande atenção. O próprio Machado aborda criticamente a temática. Na versão de 1882 (Papéis Avulsos) de “Uma visita de Alcibíades” (publicado diferentemente no Jornal das Famílias em 1876), uma sessão espírita é mobilizada como artifício para, convocando personagens do passado, resolver problemas históricos - o que Papassoni relaciona, com ressalvas, ao artifício no poema (aponta-se, abaixo, recurso semelhante na crônica de Laet): “a ideia de ‘ouvir’ do autor do ato a verdade sobre o ato, ao invés de conjecturar sobre o mesmo” (PAPASSONI, 2018, p. 107-110).
  • 41
    Jornal do Comércio, 7 maio 1882.
  • 42
    A expressão entre aspas Camilo atribui a um coetâneo, sem nomeá-lo. Trata-se de Joaquim de Santa Clara, autor de “A guarda avançada do cordão sanitário contra a peste jesuítica” (1846).
  • 43
    Para Jaime de Séguier, o esquecimento seria uma “segunda e mais irremediável morte” (A Folha Nova, Porto, 12 nov. 1881).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2021
  • Aceito
    13 Ago 2021
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