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O livro de Damião de Góis sobre a Etiópia

The book of Damião de Góis on Ethiopia

Libro de Damião de Góis sobre Etiopía

RESUMO

Em 1533, o humanista português Damião de Góis esteve com o monge etíope Sāgā za-Ab em Lisboa, em conversas sobre a religião cristã, pedindo que ele fizesse uma síntese de seus dogmas e prometendo verter o texto para o latim, o que resultou no opúsculo Fides, religio moresque Aethiopum (1540). Góis, além do testemunho de Sāgā, acrescentou ao livro cartas régias e eclesiásticas da diplomacia entre Portugal e Etiópia, a partir de uma colagem de textos, em que vozes distintas, em diálogo, revelam interesses que se complementam ou polemizam. A crítica tem sugerido que, nesse livro, Góis propõe ecumenismo e tolerância religiosa. O presente artigo sugere, ao contrário, que ele, embora dê voz à Igreja Copta da Etiópia, faz interferências no texto, propondo que os etíopes se sujeitem às verdades católicas, para que a incorporação da Etiópia ao plano do catolicismo facilite antigos propósitos políticos: ocupar terras próximas do mar Vermelho e anular os projetos comerciais dos turcos.

Palavras-chave:
Renascimento; expansão portuguesa; império marítimo; Damião de Góis; ortodoxia católica

ABSTRACT

In 1533 the Portuguese humanist Damião de Góis encountered the Ethiopian monk Sāgā za-Ab in Lisbon, in conversations about Christian religion, and asked him to make a synthesis of his dogmas by promising to translate the text into Latin. The result was the publication of the booklet Fides, religio moresque Aethiopum (1540). Góis, in addition to Sāgā’s testimony, added to the book some royal and ecclesiastical letters of diplomacy between Portugal and Ethiopia, based on an imbrication of texts, in which distinct voices, in dialogue, reveal interests that complement or polemic each other. Critics have suggested that Góis in this book proposes ecumenism and religious tolerance. This article suggests, on the contrary, that he, while giving voice to the Coptic Church of Ethiopia, makes interferences in the text, by suggesting that Ethiopians be submitted to Catholic truths, so that an incorporation of Ethiopia into the Catholic plan facilitates old political purposes: to occupy lands near the Red Sea and nullify the commercial projects of the Turks.

Keywords:
Renaissance; Portuguese expansion; maritime empire; Damião de Góis; Catholic orthodoxy

RESUMEN

En 1533, el humanista portugués Damião de Góis se encontraba con el monje etíope Sāgā za-Ab en Lisboa, en conversaciones sobre la religión cristiana, pidiéndole que hiciera una síntesis de sus dogmas y prometiéndole traducir el texto al latín, lo que resultó en la folleto Fides, religio moresque Aethiopum (1540). Góis, además del testimonio de Sāgā, añadió al libro cartas reales y eclesiásticas de la diplomacia entre Portugal y Etiopía, a partir de un collage de textos, en los que diferentes voces, en diálogo, revelan intereses que se complementan o chocan. Los críticos han sugerido que, en este libro, Góis propone el ecumenismo y la tolerancia religiosa. El presente artículo sugiere, contrariamente, que, si bien da voz a la Iglesia Copta de Etiopía, también interfiere en el texto, proponiendo que los etíopes se sujeten a las verdades católicas, para que la incorporación de Etiopía al plano del catolicismo facilite antiguos propósitos políticos: ocupar tierras cercanas al Mar Rojo y anular los proyectos comerciales de los turcos.

Palabras clave:
Renacimiento; expansión portuguesa; imperio marítimo; Damião de Góis; ortodoxia católica

I. Antecedentes históricos do livro

Em meados de 1541, o cardeal infante D. Henrique, inquisidor-geral do Santo Ofício de Lisboa, por intermédio do secretário Jorge Coelho, escrevia de Évora a Damião de Góis, dando-lhe novas do polêmico livro sobre a Etiópia publicado pelo humanista português no ano anterior. O opúsculo a que D. Henrique se referia era o Fides, religio, moresque Aethiopum sub imperio preciosi Joanni (conhecido em português como A fé, a religião e os costumes da Etiópia), editado em Lovaina na importante oficina de Rutgerus Rescius. D. Henrique, filho mais moço do rei D. Manuel, mostrou-se particularmente cauteloso na abordagem do tema com seu interlocutor, a quem conhecia pessoalmente: dizia que, a respeito da obra, o oficial da Santa Inquisição “achou nella muitas cousas muito boas somente algũa cousa o ofendeu as Razões que o embaixador do preste nella daa sobre as cousas da fee contra o bispo adayam e mestre margalho hirem muy fortes e as que eles dam contra ho embayxador serem mais fracas” (SÁ, 1983MARCOCCI, Giuseppe. Gli umanisti italiani e l’impero portoghese: una interpretazione della Fides, Religio, Moresque Æthiopum di Damião de Góis. In: LUPETTI, Monica (ed.). Traduzioni, imitazioni, scambi tra Italia e Portogallo nei secoli. Florença: Olschki, 2008. p. 61-124., p. 65). A segunda parte do livro, a julgar pelo registro do oficial, via-se interditada pelo inquisidor-geral e proibida de circular em Portugal.

Mas Góis já vinha divulgando seu opúsculo pela Europa e escrevendo sobre isso a muitos amigos na Itália. Havia dedicado o livro ao papa Paulo III, e chegara a escrever a um seu amigo, o cardeal Pietro Bembo, em outubro de 1540, desejando que “junto de sua Santidade conseguísseis se digne dar o livro - em que tão-só se trata do seu múnus pastoral e sobre o mesmo assunto, em face dos dogmas dos homens bárbaros da África e da Ásia, de modo não vulgar se discreteia - a ler em assembleia de esclarecidos varões” (GÓIS, 2009GÓIS, Damião de. Correspondência latina. Trad. Amadeu Torres. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra / Associação Portuguesa de Estudos Neolatinos, 2009., p. 109). Assim, prontamente escreveu de volta ao inquisidor-geral D. Henrique (carta que não chegou até nós, mas cujo conteúdo certamente deve ser o protesto contra a interdição), o qual, por sua vez, voltou a escrever ao humanista em 13 de dezembro de 1541. A essa altura, uma segunda edição da Fides, junto com a Deploratio lappianae gentis, também de autoria de Góis, já circulava em Paris nas prensas da oficina de Christianum Wechelum. D. Henrique, dessa vez, embora tenha mantido os mesmos ares fraternais com seu interlocutor, mostrava tonalidade levemente mais rígida e intransigente, informando da recolha da obra e de suas razões: “hũa coisa he Relatar simprezmente os Ritos de hũa naçam e outra querellas corroborar com Razões falsas como faz este embaixador sem auer logo confutaçam delas” (SÁ, 1983MARCOCCI, Giuseppe. Gli umanisti italiani e l’impero portoghese: una interpretazione della Fides, Religio, Moresque Æthiopum di Damião de Góis. In: LUPETTI, Monica (ed.). Traduzioni, imitazioni, scambi tra Italia e Portogallo nei secoli. Florença: Olschki, 2008. p. 61-124., p. 67). O cardeal, assegurando que se mantinha intacta a reputação religiosa do amigo, acrescentava que a heresia dos etíopes podia exercer influência sobre a prática infame dos cristãos-novos e que, por fim, o livro era ofensivo ao reino.

O embaixador a que D. Henrique se refere na segunda carta é Sāgā za-Ab, ou Zaga Zabo, como Góis o chamava, arcipreste da Etiópia que se encontrava na corte portuguesa desde 1527, como enviado diplomático do imperador Dāwit II (Lebna Dengel). Góis mantivera estreitas conversações com esse embaixador etíope em 1533 e, dessa relação, nasceu o livro a respeito das crenças e práticas religiosas da Etiópia. O humanista português, no entanto, vivendo no estrangeiro desde 1523, quando fora nomeado secretário da Feitoria da Índia em Antuérpia, nos Países Baixos, com missões diplomáticas pelo norte da Europa (HIRSCH, 2002BALDRIDGE, Cates. Prisoners of Prester John: The Portuguese mission to Ethiopia in search of the mythical king, 1520-1526. North Carolina: MacFarland & Company, 2012., p. 7), parecia não ter se dado conta das mudanças políticas de seu país, quando se dispôs a tratar de assunto tão espinhoso como a matéria religiosa da Etiópia.

Entre fins de 1520 e começo de 1530, Portugal assistiu à ascensão de um conjunto de teólogos e conselheiros régios em torno da corte, escolásticos e ortodoxos em sua essência, formados em sua maioria na Universidade de Paris. Tratava-se de um grupo coeso, sólido, politicamente fortalecido sob o respaldo de D. João III com o propósito de unificar a crença dogmática católica nos domínios do império português (MARCOCCI, 2011aHIRSCH, Elisabeth Feist. Damião de Góis. Trad. Lia Correia Raitt. 2. ed. Lisboa: Serviço de Educação e Bolsas / Fundação Calouste Gulbenkian, 2002., p. 69; MARCOCCI, 2011bHIRSCH, Elisabeth Feist. Damião de Goes’ contacts among diplomats. Bibliothèque d’Humanisme et Renaissance, t. 23, n. 2, p. 233-251, 1961., p. 26). O fundamento teológico da unificação ortodoxa legitimava a sistemática perseguição às heresias, e o movimento ganhou robustez com a instalação do tribunal do Santo Ofício de Lisboa em 1536 e com o tribunal de Goa, na Índia, em 1560. Portugal, como resposta à expansão luterana e às dissenções entre cristãos na Europa, e fazendo uso das bulas papais quatrocentistas que autenticaram sua propensão colonialista e evangelizadora junto aos povos longínquos, buscava edificar de si a imagem do império zelosamente católico, ortodoxo em cada rincão ou colônia que lhe devia obediência. A expansão de seus domínios comerciais, políticos e militares na África, na América e na Ásia, vinha acompanhada de um plano unificador de propagação da fé, e a nomeação de D. Henrique como inquisidor-mor em 1539, a despeito de certa tolerância religiosa de D. João III, conferiu ao tribunal, e de alguma forma, ao próprio reino, uma gama de poderes jurídicos muito amplos.

Mas Damião de Góis, conforme se vê, parece não ter se apercebido de nada disso quando publicou seu livro sobre a religião e os costumes da Etiópia (já à época tida como país herético), ou pelo menos não compreendeu que a nova realidade política e religiosa de Portugal poderia definir os rumos de seu livro, e de certa forma, de sua vida. Para entender esse opúsculo de Góis, bem como as razões profundas de sua proibição, é preciso traçar os fundamentos históricos que o motivaram.

Portugal, desde o séc. XV, vinha buscando descobrir a rota de uma Etiópia imaginária. A lenda do Preste João das Índias, iniciada com a famosa carta fictícia do soberano do Oriente endereçada ao imperador de Bizâncio, Manuel I Comenos, no distante séc. XII, ainda alimentava as mentes eruditas da Europa no começo do séc. XVI. Tudo indica que os portugueses conheceram o teor daquela epístola desde cedo, e quando o Preste João, soberano riquíssimo, dono de vastos territórios a perder de vista, passou a ser identificado com a Etiópia, único reino essencialmente cristão a oriente, o infante D. Henrique, o navegador, e depois dele, D. João II, empenharam-se com entusiasmo na procura do mítico reino (BALDRIDGE, 2012GÓIS, Damião de. Fides, religio, moresque Aethiopum sub imperio Preciosi Ioannis (quem vulgò Presbyterum Ioannem vocant) degentium, unà cum enarratione confoederationis ac amicitie inter ipsos Aethiopum Imperatores, & Reges Lusitaniae initiae, Damiano a Goes Equite Lusitano autore ac interprete. Parisiis: apud Christianum Wechelum, 1541 versão digital disponível em [ https://digitalis-dsp.uc.pt/bg5/UCBG-VT-20-7-2/UCBG-VT-20-7-2_item1/index.html].
https://digitalis-dsp.uc.pt/bg5/UCBG-VT-...
, p. 26). Em 1486, D. João II enviou emissários por mar e por terra em busca do soberano. Viajando com Afonso de Paiva, Pero da Covilhã, o único deles a efetivamente alcançar as terras etíopes, disfarçado de mercador e conhecedor da língua árabe, esteve na corte da rainha Eleni (ou Helena), mas jamais voltou a Portugal para contar suas descobertas e aventuras. Só foi localizado por portugueses 35 anos depois, em 1521, casado e com filhos, à época em que a embaixada de Rodrigo de Lima esteve na Etiópia (­FICALHO, 1988BAIÃO, António. Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa. 2v. Porto / Rio de Janeiro: Renascença Portuguesa / Luso-Brasiliana, 1919.). Afonso de Albuquerque, governador da Índia, procurara manter os primeiros contatos com o país africano, enquanto tentava conquistar, em vão, a soberania política e comercial do mar Vermelho, dominado pelos turcos. Mandou emissários à Etiópia, e em retorno, a rainha enviou Matēwos (Mateus), um mensageiro armênio que chegou a Lisboa em 1514 com cartas da rainha, efusivamente recebido por D. Manuel I como o “embaixador do Preste João”. O rei português, acreditando na missão lusitana de levar ao mundo o seu projeto de evangelização e exploração comercial, enviou de volta à Etiópia uma embaixada que, somadas as adversidades e desencontros, com mudanças de toda ordem, só chegou a seu término em 1520, quando Rodrigo de Lima pisou de fato em terras etíopes, na corte do jovem Lebna Dengel (Dāwit II), o negus nagast (título real usado pelos imperadores) que dava continuidade à dinastia salomônica e que foi confundido com o lendário Preste João.

Francisco Álvares, capelão da armada, registrou a histórica viagem de seis anos pelo interior da Etiópia em seu livro Verdadeira informação das terras do Preste João das Índias, publicado anos depois, em 1540. O livro de Francisco Álvares teve extraordinário êxito e impacto antes mesmo de sua publicação, e manuscritos inéditos circularam entre mãos de eruditos e humanistas, inclusive Damião de Góis, que se serviu de um deles para delinear seus primeiros esboços sobre a religião e as práticas da Etiópia (ANDRADE, 1982CORTESÃO, Armando; THOMAS, Henry (orgs.). Carta das novas que vieram a El Rei Nosso Senhor do descobrimento do Preste João (Lisboa, 1521). Lisboa: Bertrand, 1938., p. 19). O título do volume de Álvares (Verdadeira informação) sugere qualquer coisa de desapontamento histórico, a insinuar que as informações disponíveis até então sobre o lendário soberano eram falsas (o que, com efeito, eram) e que a vida modesta do Preste João que ele conhecera, o imperador de parcos recursos que andava a armar tendas pelo interior de seu país, estava longe de fazer par com as notícias sobre o fausto e luxuoso soberano da carta medieval. O livro de Álvares punha à vista o registro de uma decepção histórica. Como aponta Manuel João Ramos (1997MARCOCCI, Giuseppe. A fé de um império: a Inquisição no mundo português de Quinhentos. Revista de História, n. 164, p. 65-100, 2011a., p. 181), o itinerário do Preste João entre os séculos XII e XVII constituiu uma espécie de ajustamento da visão que a Europa teve sobre o Oriente.

A corte portuguesa, no entanto, muito antes do relato de Álvares, ainda anunciava a descoberta do caminho da Etiópia como se isso fosse, ao mesmo tempo, a promessa de aliança com o riquíssimo soberano cristão que haveria de unir-se à cristandade portuguesa na guerra santa contra os mouros. Em 1521, a considerar as notícias que vieram pelas missivas de Diogo Lopes Sequeira e de Pedro Gomes Teixeira, uma Carta das novas que vieram a El Rei Nosso Senhor do descobrimento do Preste João, escrita por algum secretário da corte manuelina, livrinho de 14 folhas, provavelmente impresso por Romão Gualharde, chegado a nós em exemplar único, tornava ainda mais robusta a grandeza do mito medieval. Fechava esse opúsculo uma carta do Preste João (na verdade, da rainha Helena) enviada a D. Manuel em 1514, por intermédio do embaixador Mateus. Há nesse documento certo milenarismo tipicamente manuelino, a par de uma persistência dos mitos que nortearam por séculos o cristianismo na Etiópia, como as pregações de São Mateus apóstolo por aquelas terras1 1 A questão do messianismo e do milenarismo é uma pauta essencial no entendimento da política imperial manuelina. Luiz Filipe Thomaz (2008) esclarece que o projeto messiânico de D. Manuel, de forte herança medieval, implicou diversos elementos messiânicos, como sinais premonitórios (no caso da aliança com o Preste João), percepção de aproximação do fim dos tempos, ideologia de cruzada, tendência a considerar mártires os mortos em combate e, por fim, crença em um reino terrestre do Messias antes do fim dos tempos, o que, de resto, correspondia aos anseios de entrada dos portugueses no Oriente, considerada o início de uma nova era de paz, de prosperidade e de justiça. . Mesmo considerando o regozijo no encontro das culturas cristãs do Ocidente e do Oriente, a conclusão do livro, no entanto, já antecipava a sugestão de unificação religiosa: sobre os etíopes, diz-se que “tantos infindos anos esteueram sem vijerem de todo no verdadeyro reconhecimento da sua Sancta Jgreja de Roma: que he cabeça de toda christandade & de nos outros atee agora” (CORTESÃO; THOMAS, 1938CORTESÃO, Armando; THOMAS, Henry (orgs.). Carta das novas que vieram a El Rei Nosso Senhor do descobrimento do Preste João (Lisboa, 1521). Lisboa: Bertrand, 1938., p. 122). O volume arremata-se com uma declaração essencial para os desdobramentos nas relações entre Portugal e Etiópia dali para frente: “E que em tempo del Rey nosso senhor & por sua maão seja tanto sua Sancta fee acrecentada naquelas partes & em todas outras. como he seu desejo. Que beem se vee pelo que nysso trabalha. Por que seja feyto huũ soo curral & huũ soo pastor” (CORTESÃO; THOMAS, 1938RAMOS, Manuel João. Ensaios de mitologia cristã: o Preste João e a reversibilidade simbólica. Lisboa: Assírio e Alvim, 1997., p. 122). Portugal já desenhava nesse tempo o anseio da uniformidade religiosa (um só curral e um só pastor) nas terras de seus senhorios e domínios. Em 8 de maio de 1521, D. Manuel I escreveu ao papa Leão X, dando conta dos achados recentes, convicto que estava de ter descoberto o mítico soberano que prometia aliança na guerra contra os turcos nas proximidades do mar Vermelho, região cobiçada pela coroa.

Entre 1533 e 1540, a matéria da Etiópia ampliou-se razoavelmente em Portugal e na Europa. Em 1533, Francisco Álvares foi despachado por D. João III a Bolonha, em comitiva ao papa, junto com Martinho de Portugal, para entregar ao pontífice as cartas de Dāwit II, as quais ofereciam a submissão do imperador etíope à Igreja de Roma. Mas era promessa vã, feita à pressa, e não deu em nada. Naquele mesmo ano, também em Bolonha, saiu sob a editoria de Giacobo Keymolen Alostese, o volume Legatio Dauid Aethiopiae regis ad Clementem VII, de que ativamente participara Paolo Giovio, bispo de Nocera, cronista das guerras italianas e conhecedor das coisas do Oriente, autor de um Commentario de le cose de’ Turchi de 1531. Giovio afirmava ter tido o consentimento de Francisco Álvares para verter para o latim seu rico testemunho sobre as coisas da Etiópia, trabalho que Góis sonhava empreender (­LAWRENCE, 1992BAUSI, Alessandro. Heritage and Originality in the Ethiopic Sinodos. Journal of Ethiopian Studies, v. 25, p. 15-33, 1992., p. 312). De toda forma, em 1532, foi publicada em Antuérpia uma Legatio Magni Indorum Imperatoris Presbyteri Ioannis, de Góis, por iniciativa de amigos, sem o seu conhecimento. Era seu livro de estreia, com matéria sobre a Etiópia, que, conforme ele mesmo explica, vinha com informações que recolhera da carta de Dāwit II, entregue a D. Manuel I na embaixada etíope de 1514, somadas a um texto de António Carneiro, secretário do rei, que anotou as respostas do embaixador Matēwos às perguntas de uma junta de doutores em teologia que o inquiriram na corte sobre as “cousas da Fé, & religião q hos Christãos do Abexi tem, & usam” (GÓIS, 1954, III, p. 222). Pouco depois, Frans Titelman publicava o seu De fide et moribus aethiopum christianorum, como anexo à Chronica Compendiosissima Ab Exordio Mundi Usque Ad Annum Domini Millesimum (1534), de Amandus Zierixeensis, sacerdote e teólogo de Lovaina. Ludovico Becadelli, que estivera no consistório da comitiva portuguesa de Francisco Álvares junto ao papa, acabou por ter em mãos uma versão italiana da Verdadeira informação, a que ele fez emendas e retoques linguísticos, numa versão que possivelmente será aquela publicada por Giovanni Battista Ramusio na sua famosa coleção ­Navigazioni e viaggi, cuja primeira parte saíra em Veneza em 1550 (LAWRENCE, 1992BAUSI, Alessandro. Heritage and Originality in the Ethiopic Sinodos. Journal of Ethiopian Studies, v. 25, p. 15-33, 1992., p. 312).

É nessa atmosfera efervescente sobre os assuntos da Etiópia que Damião de Góis irá produzir o seu opúsculo Fides, religio, moresque Aethiopum sub imperio preciosi Joanni, aquele livro cuja segunda parte o cardeal e inquisidor-geral D. Henrique proibiu em 1541, comunicando ao autor, por meio de duas cartas, a decisão do oficial do Santo Ofício. Góis encontrava-se em momento decisivo de sua vida quando produziu esse livro: alguns anos antes, por volta de 1531, depois de uma visita à Lapônia, havia decidido romper definitivamente com a vida diplomática para dedicar-se aos estudos. Em 1527, entendera que precisava mergulhar fundo nos estudos de latim, porque do contrário não poderia haver-se com o mundo culto da Europa2 2 Amadeu Torres (1982, p. 150) sugere que Góis teria aprendido latim na juventude, na corte manuelina, e que o aprimorou a partir de 1529, aos 27 anos. Michel Bataillon (1952, p. 171), ao contrário, entende que Góis, tendo se dedicado tardiamente ao latim, será sempre um frágil latinista: “Damião de Góis aprendeu o latim tarde demais. Foi em vão que ele tenha tido mestres humanistas tão sábios quanto um Grapheus ou um Rutger Rescius, e em vão que ele tenha vivido cinco meses na intimidade de Erasmo, que, ao que parece, escreveu para ele uma Retórica. Depois de dois anos em Pádua, ele o salvou de erros de que os alunos de treze anos teriam sorrido” (tradução nossa). No original: “Damião de Góis s’était mis trop tard au latin. C’est en vain qu’il avait pris pour maîtres des humanistes aussi savants que Grapheus et Rutger Rescius, en vain qu’il avait vécu cinq mois dans l’intimité d’Érasme, lequel avait, semble-t-il, composé pour lui une Rhétorique. Après deux années de Padoue, il lui échappait des fautes dont auraient souri des écoliers de treize ans”. . Buscou como mestre o humanista luterano Cornelius Graphaeus, saído da prisão em Bruxelas em 1523 por questões políticas e religiosas (HIRSCH, 1951BATAILLON, Marcel. Damião de Góis. In: PINA MARTINS, José V. de. Humanisme et Renaissance de l’Italie au Portugal: les deux regards de Janus. 2 v. Lisboa / Paris: Calouste Gulbenkian, 1989. p. 1-16., p. 558). Os biógrafos dão notícia de Góis em Lovaina em 1532 tão envolvido com os estudos latinos que um médico lhe recomendou uma pausa para viagens (HIRSCH, 2002BALDRIDGE, Cates. Prisoners of Prester John: The Portuguese mission to Ethiopia in search of the mythical king, 1520-1526. North Carolina: MacFarland & Company, 2012., p. 87). O fato é que, no ano seguinte, D. João III chamou-o de volta à corte para lhe oferecer o cargo de tesoureiro da Casa da Índia em Lisboa. Mais burocracia, mais trabalho diplomático, de que ele, ao que tudo indica, procurar livrar-se. Era a contramão de seus projetos. Góis permaneceu na corte por uns meses em 1533, mas tomado pelo anseio das letras, recusou o cargo, viajou a Santiago de Compostela, voltou a Lovaina e, em 1534, desfrutou da preciosa amizade de Erasmo de Rotterdam por nada menos que cinco meses na casa do humanista holandês em Friburgo. Por fim, sob recomendação do próprio Erasmo, foi à Itália, matriculou-se na Universidade de Pádua, e lá estará pelo menos até 1538.

É esse curto tempo na corte portuguesa em 1533 que nos interessa. Conforme já se disse, lá estava, desde 1527, Sāgā za-Ab, ou Zaga Zabo, como Góis o chamou, o arcipreste etíope da Igreja Copta, vendo-se maltratado pelos conselheiros régios, desrespeitado, humilhado, tido como herege e ignorante. Tinha chegado com a comitiva do embaixador Rodrigo de Lima, enviado pelo imperador Dāwit II, sob a companhia do capelão Francisco Álvares. Os teólogos da corte o haviam submetido a uma inquirição e a uma devassa exaustiva, chegando a proibi-lo de receber a eucaristia. Góis, ao contrário, interessou-se profundamente por ele. Mais que isso: interessou-se pela versão cristã de sua Igreja Copta etíope. Sāgā za-Ab deve ter aprendido bastante da língua portuguesa nos seis anos de convívio na corte de Lisboa, e Góis quer nos convencer de que aprendera os rudimentos do amárico, uma das línguas etiópicas: “pelo muito trato com o embaixador da Etiópia, já lhe entendia tanto a fala como os escritos” (GÓIS, 1945GÓIS, Damião de. Opúsculos históricos. Trad. Dias de Carvalho. Porto: Livraria Civilização Editora, 1945., p. 162)3 3 Daqui em diante, para as citações da Fides, religio moresque Aethiopum, utilizo a tradução portuguesa de Dias de Carvalho (da edição Opúsculos históricos de 1945), com as referências do original latino extraídas da edição de Paris, 1541: “Inde quod sic digesta & composita ad phrasim chaldaicam & Aethiopicam essent, ut vix à quopiam intelligi potuissent, nisi à me, qui ea omnia tam ex ore, quam ex scriptis ipsius Aethipici Oratoris, per multam familiaritatem consequi iam poteram” (GÓIS, 1541, p. 52). , o que se afigura improvável, a julgar pelo curto tempo de conversas e pelos propósitos literários do humanista português4 4 Francisco Álvares (1989, p. 95) dá notícia de que Sāgā za-Ab sabia “falar um pouco italiano”, sem esclarecer em que circunstâncias o monge teria aprendido essa língua. .

De toda forma, entre os dois há notoriamente um sentimento de grande afeição e simpatia. Ainda que pontuada por discreto senso de superioridade étnica e religiosa da parte de Góis, conforme ainda se verá, a amizade dos dois, no entanto, é reveladora do entendimento das diversidades. Sāgā za-Ab chama-o “querido filho” (GÓIS, 1945GÓIS, Damião de. Opúsculos históricos. Trad. Dias de Carvalho. Porto: Livraria Civilização Editora, 1945., p. 185)5 5 “filiolo meo charissimo” (GÓIS, 1541, p. 91). . Adivinhando a flagrante rejeição e a humilhação do etíope no cenário régio de D. João III, bem como nos domínios da Igreja, Góis, em reuniões privadas com o arcipreste, mostrou-se acolhedor, palestrou com ele sobre religião e cultura e insuflou-lhe o ânimo para que escrevesse um pequeno tratado sobre os costumes, crenças e rituais de sua religião cristã, garantindo que verteria o texto para o latim. Sāgā, a despeito das limitações linguísticas, aceitou a oferta, possivelmente na esperança de que pudesse encontrar no humanista português um protetor e um defensor para os assuntos da sua condição de exilado com rótulo de herege.

Góis receberá o texto, escrito talvez em português ruim, apenas no ano seguinte, em 1534, quando já se encontrava em Pádua, estudando na universidade. Cumpriu a promessa: pôs-se de fato a verter o livrinho de seu amigo para a língua de Cícero. Não é possível saber quanto tempo terá levado nessa tarefa. Fato é que, enquanto o fazia, Góis também escreveu em latim um opúsculo histórico sobre a vitória portuguesa no caso do cerco em Diu, na Índia, e uma contestação contra Paolo Giovio, o bispo italiano que acusara o governo português de manter monopólio no comércio com a Índia e de comercializar especiarias deterioradas a alto custo aos países da Europa. Ambos os textos foram publicados em 1539. A versão latina do opúsculo de Sāgā za-Ab, sob o título Fides, religio, moresque Aethiopum sub imperio preciosi Joanni (A fé, a religião e os costumes da Etiópia), saiu no ano seguinte, em Lovaina, sob os cuidados de Rutgerus Rescius, conforme já se disse.

Nesse livro, Góis fez mais do que apenas verter o texto de Sāgā za-Ab para o latim: ele incorporou ao testemunho do amigo toda uma documentação epistolar régia e eclesiástica a que tivera acesso, igualmente vertida para o latim, as quais ele acreditou que poderiam ser esclarecedoras para o entendimento do texto. A considerar a montagem e a colagem dos originais, nascia um dos livros mais intrigantes do renascimento português: não havia ali propriamente um autor, mas um entrelaçamento de muitas vozes falando de um tema que, com o tempo, se revelaria bem mais espinhoso do que Góis imaginou. Não podia sonhar o humanista português que, mais de 30 anos depois, quando foi julgado e condenado por luteranismo no tribunal do Santo Oficio da Inquisição, esse polêmico livrinho sobre a Etiópia ainda tinha um peso qualquer na memória dos inquisidores.

II. O livro sobre os etíopes: Fides, Religio, Moresque Aethiopum

No conjunto, o opúsculo Fides, religio, moresque Aethiopum contém dez documentos “costurados” e distribuídos a partir de uma espécie de moldura explicativa, único elemento em que, em tese, aparece a voz de Damião de Góis: há 1) uma carta-dedicatória de Góis endereçada ao papa Paulo III; 2) uma carta da rainha Helena a D. Manuel, de 1509 (já publicada antes na Legatio, de Góis, em 1532), em que ela confirma o envio do emissário Matēwos a Portugal e anuncia a aliança com os portugueses para expulsar mouros e pagãos dos territórios etíopes; 3) uma carta do imperador Dāwit II a D. Manuel, de 1520, em que ele, chamando de pai ao rei D. Manuel, reafirma as promessas da rainha Helena; 4) uma carta do imperador Dāwit II a D. João III, de 1524, em que ele oferece ouro e mantimentos aos portugueses que ajudarem na expulsão dos mouros, e condena as guerras entre cristãos na Europa; 5) uma carta do imperador Dāwit II ao papa, em 1524, em tom notoriamente submisso (“vós pastor e eu ovelha vossa”), em que ele pede a união dos cristãos em torno de uma única causa; 6) outra carta do imperador Dāwit II ao papa, de 1524, no mesmo tom de submissão, em que ele anseia pelo combate aos infiéis; 7) uma carta de D. João III ao papa, de 1532, em que ele dá notícia das conquistas portuguesas a oriente e anuncia que Francisco Álvares vai a Roma levar as cartas de submissão do imperador da Etiópia; 8) o “tratado” de Sāgā za-Ab sobre a religião dos etíopes, que ocupa boa parte do livro; 9) uma carta de D. ­Manuel ao papa, de 1513, em que dá notícia das façanhas portuguesas na África e das conversões ali efetivadas; e 10) uma carta de D. João III ao papa, de 1536, em que ele dá notícia dos feitos portugueses na Ásia, especialmente na Índia, e anuncia a propagação da fé em terras longínquas. Conforme se disse, esses documentos se distribuem pelo livro por meio de uma costura narrativa, de natureza historiográfica, espécie de moldura do todo, em que Góis põe o leitor a par das questões históricas e políticas anunciadas nos documentos. O testemunho de Sāgā, portanto, revela-se um documento a mais entre os demais registros históricos.

Há uma proposta muito original na totalidade orgânica do livro. Maria da Conceição Almeida (2008, p. 151) já havia observado que o opúsculo apresenta um caráter essencialmente polifônico e “expõe um diálogo em que são ‘ouvidas’ diversas vozes que polemizam entre si, completam-se ou respondem umas às outras sobre questões relativas à fé”. Nesse sentido, o que faz com que as diversas vozes do todo, eventualmente harmoniosas ou contraditórias, tenham senso de organicidade e coesão é a moldura do livro, que ordena e cataloga as vozes conforme seus critérios e escolhas. Portanto, Góis é mais do que um eventual selecionador de textos ou organizador da coletânea, diferentemente, por exemplo, de Valentim Fernandes, tipógrafo e editor alemão que, em 1507, publicou uma coletânea de textos sobre viagens marítimas portuguesas, com raras notas explicativas ou interpolações aos textos que havia coletado.

Seria justo, contudo, supor que a voz de Sāgā za-Ab é a mais determinante, aquela em torno da qual gravitam as demais vozes, tendo sido naturalmente o ponto de partida do livro. Mas não parece ser assim. Embora haja leitores do opúsculo chamando a atenção para a acuidade da voz de Sāgā za-Ab6 6 Veja-se, por exemplo, a observação de Jeremy Lawrence: “The most notable fact about both the Legatio and Fides religio moresque Aethiopum is the large space given in each case to the actual words of Ethiopian informants, unaccompanied by comment, censorship or improving gloss” (LAWRENCE, 1994, p. 320). , não é possível rastrear no texto do etíope aquilo que é efetivamente seu e aquilo que são interpolações, substituições, acréscimos ou emendas de Góis, que verteu para o latim um original a que a posteridade não teve acesso. E há motivos para se pensar em alterações ideológicas da parte de Góis, que sabia estar pisando em terreno movediço e delicado, posto em ação pela autoridade jurídica dos teólogos da corte portuguesa.

Fiquemos com dois exemplos. Na abertura do livro, provavelmente a parte mais “corrigida” por Góis, ao anunciar os elementos centrais de sua crença religiosa, Sāgā za-Ab diz: “creio numa Igreja Santa Católica e Apostólica; creio num só batismo, que é a remissão dos pecados” (GÓIS, 1945GÓIS, Damião de. Opúsculos históricos. Trad. Dias de Carvalho. Porto: Livraria Civilização Editora, 1945., p. 165)7 7 “Credo unam Sanctam Catholicam, & Apostolicam Ecclesiam, credo unum batismum, qui est remissio peccatorum, spero resurrectionem mortuorum, & vitam venturi sæculi” (GÓIS, 1541, p. 56). , e por fim, crê “que os santos Profetas, os Apóstolos, os Mártires e os Confessores foram verdadeiros discípulos de Cristo [...]” (GÓIS, 1945GÓIS, Damião de. Opúsculos históricos. Trad. Dias de Carvalho. Porto: Livraria Civilização Editora, 1945., p. 166)8 8 “Credo sanctos Profetas, & Apostolos, Martyres, & confessores, veros Christiani imitatores fuisse” (GÓIS, 1541, p. 57). . Há princípios notadamente contraditórios nessas sentenças. Góis, por motivos que ainda serão aqui discutidos, esforça-se por trazer os etíopes à ortodoxia católica, compondo uma visão doce e ortodoxa da Igreja Copta, que, como se sabe, apresenta inúmeras divergências com o modelo da Igreja de Roma (MARCOCCI, 2008HIRSCH, Elisabeth Feist. The Friendship of the “Reform” Cardinals in Italy with Damião de Goes. Proceedings of the American Philosophical Society, v. 97, n. 2, p. 173-183, 1953., p. 86). De resto, os santos, e sobretudo, os mártires mencionados nas sentenças compõem naturalmente uma tradição que não pertence à Etiópia. Francisco Álvares, durante sua permanência no país africano, teve de explicar ao imperador Dāwit II, a quem ele chama erroneamente de Preste João, que a Europa tinha mais santos e mártires do que a Etiópia (que, com efeito, não tinha nenhum), porque “naquelas partes [da Europa] senhoreavam muitos imperadores e seus adiantados gentios, que eram cruéis, e os cristãos que à Fé de Jesus Cristo se convertiam, eram tão constantes na Fé que antes queriam morrer por Cristo que adorar ídolos” (ÁLVARES, 1989ÁLVARES, Francisco. Verdadeira informação das terras do Preste João das Índias. Introd. Neves Águas. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989., p. 164). O batismo ali mencionado é outra questão polêmica. O mesmo Francisco Álvares observara, com certa perplexidade, que os etíopes eram batizados todos os anos no dia de Reis, e perguntado sobre se o ritual era pertinente, o padre, compreensivo e diplomático, diz entender que “as cousas de Deus que eram feitas a boa fé sem mau engano e em seu louvor que eram boas, mas que tal ofício como aquele não o havia em nossa Igreja” (ÁLVARES, 1989ÁLVARES, Francisco. Verdadeira informação das terras do Preste João das Índias. Introd. Neves Águas. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989., p. 187). O texto de Sāgā za-Ab, pelo menos aquele que chegou a nós, em língua latina e sob a sujeição e o crivo de Góis, apresenta contradições flagrantes sobre o sacramento do batismo: ao mesmo tempo em que diz que crê num só batismo, o autor afirma que “também, em recordação do baptismo de Cristo, nos baptizamos todos os anos no dia da Epifania do Senhor” (GÓIS, 1945GÓIS, Damião de. Opúsculos históricos. Trad. Dias de Carvalho. Porto: Livraria Civilização Editora, 1945., p. 169)9 9 “Item, in memoriam Christi baptismi, singulis annis, omnes in Epiphanijs domini baptizamur” (GÓIS, 1541, p. 65). .

Outro exemplo é o problema altamente controverso do monofisismo, tema de que conscientemente se esquivam tanto Francisco Álvares quanto Sāgā za-Ab, por saberem estar lidando com assunto a exigir cautela: quando o sacerdote etíope diz de Jesus Cristo como “tão perfeito Deus como perfeito homem”, deve haver aí ou uma sentença propositadamente incompatível com o cristianismo copta ou uma emenda de Góis. Desde o Concílio de Calcedônia, em 451, a Igreja Copta de Alexandria vinha mantendo sua autonomia em relação ao restante da cristandade justamente em função de uma crença sobre a natureza de Cristo. O Concílio reafirmou a doutrina católica ortodoxa, legitimando a figura de Jesus como a segunda pessoa da Trindade e sua dualidade divina e humana, contra heresias ensinadas por Nestório, acusado de “dividir Cristo, de afirmar dois Cristos e dois Filhos, isto é, o homem e o Deus”, e por Êutiques, que admitia “uma só natureza em Cristo, e não duas, humana e divina” (SIMONETTI, 2002SIMONETTI, Manlio. Monofisitas. In: Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Trad. Cristina Andrade. Petrópolis: Vozes, 2002., p. 996 e 956). Ao final de seu texto, Sāgā za-Ab retoma, com consciência, a questão das heresias e esforça-se por condenar os diversos heresiarcas da história antiga, em proposições visivelmente mais católicas do que etiópicas: põe em xeque os ensinamentos de Ário, principis hæreticorum (“príncipe dos hereges”), Nestório e Êutiques, e reafirma que “desde o começo da primitiva Igreja, os nossos certamente reconheceram o Pontífice Romano como primeiro Bispo, e hoje lhe obedecemos como a Vigário que é de Cristo” (GÓIS, 1945GÓIS, Damião de. Opúsculos históricos. Trad. Dias de Carvalho. Porto: Livraria Civilização Editora, 1945., p. 181)10 10 “Nostri certè ab exordio primitive Ecclesiae Romanum Pontificem ut primum Episcopum agnouerunt, cui etiam hodierno die, ut Christi vicario paremus” (GÓIS, 1541, p. 85). . Naturalmente essa afirmação terá sido ou adequação conveniente de Sāgā za-Ab, depois de suas disputas com os teólogos da corte, ou uma emenda posterior de Góis11 11 A base teológica de Sāgā za-Ab, que Góis naturalmente não conheceu, eram os Sínodos da literatura etió­pica posterior à restauração salomônica do séc. XIII, que nosso arcipreste etíope menciona diversas vezes em seu testemunho. Os Sínodos fazem parte de uma coletânea de textos que datam do séc. XIV, em geral traduzidos do árabe, a partir de fontes árabes e gregas, mas cujas origens são atribuídas aos próprios apóstolos, com autorias pseudoepígrafas. Como ensina Bausi, “The Sinodos is a work of canon law concerned with every aspect of the life of the Church: election of the bishop, ordination of the ecclesiastical hierarchy, liturgy of the Eucharist, observance of the holy days, penitence for those who violate the canon law, and so on. […] In the Sinodos we can distinguish three sections: 1. A section composed of pseudo-apostolic and pseudo-clementine; 2. The canons of the so-called ‘provincial’ councils and of Nicea; and 3. A section composed of homilies and treatises” (BAUSI, 1992, p. 16). .

Como se vê, o texto da Fides parece ter sido submetido a certa “censura” prévia, ou crivo ideológico, seja de Góis, seja do próprio Sāgā za-Ab, no sentido de apagar elementos polêmicos ou heterodoxos que, por certo, seriam refutados pelos teólogos e conselheiros eclesiásticos da corte de D. João III. Ambos conheciam, em parte, a natureza melindrosa da ortodoxia católica, embora não estivessem conscientes de seus limites e dos poderes de suas instituições. No entanto, a censura prévia (de quem quer que tenha sido, e se de fato aconteceu nos termos em que aqui se considera), bem como a tentativa de evidenciar a submissão da Igreja Copta etíope ao poder da Santa Sé de Roma, não foram capazes de eliminar certos elementos mais acentuadamente controversos das práticas religiosas da Etiópia, algumas já inclusive observadas e catalogadas por Francisco Álvares, como a circuncisão, a guarda do sábado, as práticas alimentares, o casamento de clérigos e a definição de “semicristãos” que se atribuía às crianças que morriam pagãs12 12 O texto da Sāgā za-Ab diz que “nesses dias santíssimos [sábado e domingo], as almas dos fiéis defuntos não sofrem no purgatório. Deus concedeu-lhes este repouso até que de lá saiam, terminando o tempo de seus padecimentos, castigo dos pecados que no mundo cometeram” (GÓIS, 1945, p. 166). É possível que o sacerdote etíope, ao afirmar isso, esteja se baseando no Apocalipse de Paulo, apócrifo do séc. IV, de que resta uma cópia em língua etiópica, em que o apóstolo de Jesus, descendo aos infernos, pede intercessão pelas almas dos condenados, e Deus concede aos supliciados um dia e uma noite de descanso aos domingos por toda a eternidade. Pode ser que Góis tenha substituído “inferno” por “purgatório”, inicialmente porque o purgatório foi uma invenção católica do séc. XII (os etíopes não devem ter conhecido o conceito), e depois porque, segundo a crença católica, as almas, uma vez arremessadas ao inferno, de lá não saem mais. .

Sāgā za-Ab menciona tudo isso, e o faz sem rodeios. E aí estão os aspectos mais impugnáveis do seu testemunho que Góis legitima. Algumas das práticas e rituais religiosos da Etiópia foram prontamente identificados com judaísmo, com influências islâmicas ou mesmo com luteranismo. Giuseppe Marcocci (2012, p. 198-199) sugere que, ao colocar em cena essas práticas, a versão goisiana do texto de Sāgā za-Ab procura evitar certas relações e identificações com heresias: ritos religiosos como circuncisão e práticas alimentares foram, na Fides, associados não ao judaísmo ou ao islamismo, mas a Jesus Cristo e a Paulo de Tarso, que também foram circuncidados; e o casamento de clérigos mostrou-se elemento exterior de pouca monta, que não levava à heterodoxia nem podia ter analogia com protestantismo e anabatismo. Mas nada disso parece ter sido bastante para convencer os olhares inquisitoriais.

O texto se complica ainda mais quando Sāgā za-Ab usa seu relato também como espaço para se queixar contra os maus tratos e humilhações que sofrera na corte. O monge etíope fora submetido a interrogatório por dois teólogos formados na Sorbonne, Diogo Ortiz de Villegas, bispo de São Tomé e deão da Capela Real, e Pedro Margalho, doutor em teologia e cosmógrafo, ambos mencionados no texto como aqueles com quem Sāgā za-Ab tivera “frequentes disputas”13 13 Elaine Sanceau afirma que, antes da publicação da Fides, ninguém se importara com as diferenças religiosas da Etiópia e ninguém tinha visto os etíopes como heréticos (SANCEAU, 1944, p. 168). Mas não é verdade. O próprio Pedro Margalho, no seu Physices Compendium (1520), já havia caracterizado o cristianismo copta etíope por meio de “heresias, falsos dogmas, observância da Lei Velha” (MARCOCCI, 2012, p. 160). . A considerar a irrelevância das práticas religiosas diante da fé, o arcipreste etíope denunciou que fora “censurado por estas e outras coisas, que em nada afetam a crença”14 14 “ut ego de hac re, & de alijs, quæ minime ad veram fidem spectabant, reprehensus fui” (GÓIS, 1541, p. 78). , e que “me proibiram (desconheço por que motivos piedosos) de receber o Corpo do Senhor, desde que cheguei a Portugal - há já sete anos -, e (não o direi sem dor e sem lágrimas) me têm considerado entre os irmãos cristãos como étnico e excomungado” (GÓIS, 1945GÓIS, Damião de. Opúsculos históricos. Trad. Dias de Carvalho. Porto: Livraria Civilização Editora, 1945., p. 177)15 15 “A quibus (nescio quam pie) mihi interdictum est sumere corpus Dominicum postquam in Lusitaniam veni quod spacium est septem annorum & (id quod sine dolore ac lachrimis dicam) reputor inter fratres Christianos tamquam Ethnicus & Anathem. De quibus rebus ille, qui omnia vegetat, cuiús iudicio omnia comitto” (GÓIS, 1541, p. 83). Ethnicus, que Dias de Carvalho traduziu como “étnico”, seria traduzido melhor como “gentio”, “pagão”. . Corroborava sua denúncia da injúria buscando a autoridade da Epístola de Tiago: “Quem desdenha a seu irmão, ou o julga, desdenha e julga a lei” (GÓIS, 1945GÓIS, Damião de. Opúsculos históricos. Trad. Dias de Carvalho. Porto: Livraria Civilização Editora, 1945., p. 180)16 16 “Qui detrahit fratri, aut qui iudicat fratrem suum, detrahit legi et iudicat legem; si autem iudicas legem” (Epístola de Tiago 4, 11). . Os protestos de Sāgā za-Ab foram mal recebidos pelo oficial da Inquisição, que comunicou seus achados ao inquisidor-geral, D. Henrique, conforme se viu. António Baião observa que, mais de 30 anos depois, quando Góis se viu como réu no tribunal do Santo Ofício, tudo parecia pesar contra seu testemunho, inclusive o fato de, à época da edição de seu livro sobre a Etiópia, ele ter posto razões mais fortes em defesa da sua religião na boca pagã do embaixador do Preste João do que na do bispo Adaim (BAIÃO, 1919GÓIS, Damião de. Crónica do felicíssimo rei D. Manuel. 4v. Coimbra: Por Ordem da Universidade, 1949-1954., I, p. 36). Os argumentos do arcipreste etíope tinham ganhado relevo e importância excessiva num debate teológico que por si já tinha sido definido pela ortodoxia da Igreja, enquanto as refutações dos teólogos debatedores sequer tinham sido mencionadas no livro. Góis, no afã de evidenciar o testemunho de seu amigo Sāgā za-Ab, não se deu conta de que o imenso edifício argumentativo da ortodoxia católica não entrava em cena, ou entendeu que ele não era o centro das questões postas no livro.

Góis, contudo, a contragosto, parece ter entendido o recado de D. Henrique. Luís Filipe Barreto (2002, p. 81) diz que o cardeal “em 28 de julho de 1541, proíbe Damião de Goes de escrever sobre assuntos religiosos e incentiva-o a desenvolver outras escritas. E na verdade, Goes jamais voltará a publicar seja o que for directamente sobre matérias religiosas”. Não há registro de uma proibição formal, mas Góis pode ter assim entendido, quando, já como cronista-mor da Torre do Tombo e historiador dos feitos de D. Manuel, mais de 25 anos depois, voltou à matéria da Etiópia entre 1566-1567 na terceira parte da sua Crônica do felicíssimo rei D. Manuel, e aproveitou para publicar uma vez mais o testemunho de Sāgā za-Ab, agora numa versão abreviada e em português que ele mesmo preparara. Na versão nova, Góis excluiu boa parte do texto original, possivelmente os elementos que ele próprio julgou problemáticos ou heterodoxos: omitiu citações de São Paulo sobre casar para não arder no inferno; passagens sobre costumes da lei antiga; uma explicação biológica para a circuncisão feminina e outro longo trecho em defesa da circuncisão; a explicação sobre o conceito de semicristãos e a defesa de que, para ser convertido, o indivíduo deve primeiro ouvir os sermões da igreja (ou seja, uma condenação das conversões em massa praticadas pela Igreja Católica); os nomes dos teólogos da corte e as disputas com eles sobre a máxima “o que entra pela boca não suja a alma”; as queixas de Sāgā za-Ab de que fora censurado por suas crenças e proibido de receber a comunhão, bem como sua apologia da tolerância religiosa; e por fim, o trecho em que o monge etíope afirma que nenhum português antes de Góis expressara o desejo de que ele escrevesse um testemunho sobre sua religião (GÓIS, 1954, III, p. 223-233). Em síntese, a nova versão que foi para a Crônica deve conter pelo menos a metade do texto original do monge etíope, e resumiu-se a uma essência meramente informativa. Os tempos eram outros.

O tratado de Sāgā za-Ab, conforme já se disse, ocupa boa parte da Fides. Em tese, é ele a razão de existir do livro, embora não seja a única voz entre os discursos que ali coexistem. Se assim for, é razoável perguntar as motivações que levaram Damião de Góis a dar crédito ao obscuro representante de uma Etiópia longínqua, nação que, embora já tendo perdido muito de seu fascínio na década de 1530, ainda soava como a terra do Preste João, mas também como o país que oferecia bons recursos para a consolidação do poder da coroa portuguesa na região do mar Vermelho, especialmente depois que Afonso de Albuquerque, tendo conquistado regiões do golfo Pérsico, bem como Malaca e Goa décadas antes, vinha mantendo razoável controle do comércio no Índico (BALDRIDGE, 2012GÓIS, Damião de. Fides, religio, moresque Aethiopum sub imperio Preciosi Ioannis (quem vulgò Presbyterum Ioannem vocant) degentium, unà cum enarratione confoederationis ac amicitie inter ipsos Aethiopum Imperatores, & Reges Lusitaniae initiae, Damiano a Goes Equite Lusitano autore ac interprete. Parisiis: apud Christianum Wechelum, 1541 versão digital disponível em [ https://digitalis-dsp.uc.pt/bg5/UCBG-VT-20-7-2/UCBG-VT-20-7-2_item1/index.html].
https://digitalis-dsp.uc.pt/bg5/UCBG-VT-...
, p. 42).

Há, na verdade, uma confluência de interesses da parte de Góis. O humanista português, embora dê voz à Igreja Copta da Etiópia, só o faz, pelo menos inicialmente, como registro típico da literatura portuguesa renascentista de Quinhentos, em seu interesse pela cultura dos povos distantes, como o fizeram, por exemplo, Duarte Barbosa e Garcia da Orta sobre a Índia, Tomé Pires sobre o Oriente e frei Gaspar de Souza sobre a China. Há diferenças substanciais, naturalmente. É bom lembrar que o próprio D. Henrique já denunciava a ideia de que “hũa coisa he Relatar simprezmente os Ritos de hũa naçam e outra querellas corroborar com Razões falsas como faz este embaixador sem auer logo confutaçam delas” (SÁ, 1983MARCOCCI, Giuseppe. Gli umanisti italiani e l’impero portoghese: una interpretazione della Fides, Religio, Moresque Æthiopum di Damião de Góis. In: LUPETTI, Monica (ed.). Traduzioni, imitazioni, scambi tra Italia e Portogallo nei secoli. Florença: Olschki, 2008. p. 61-124., p. 67). Ainda que haja aí grandes diferenças (a começar pelo registro de voz dos povos nativos), as motivações são muito próximas. Góis, diferentemente da intepretação do inquisidor-geral, não quis corroborar os ritos da nação etíope com razões falsas. Por certo esteve longe de querer uma síntese entre o catolicismo europeu e as raízes coptas da Etiópia. Em vez disso, buscou o conhecimento do outro como forma de ver nele o aliado político e militar. Por mais que Góis tenha tido respeito e consideração por seu amigo etíope, lembre-se que, com ares de inspiração humanista, em carta a Pietro Bembo, ele chama os etíopes de “homens bárbaros da África e da Ásia” (GÓIS, 2009GÓIS, Damião de. Correspondência latina. Trad. Amadeu Torres. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra / Associação Portuguesa de Estudos Neolatinos, 2009., p. 109). “Bárbaro” (barbarus) tem no latim o sentido de “bárbaro”, “estrangeiro”, mas também de “inculto”, “selvagem”, e tudo levar a crer que Góis buscasse esse último sentido, a considerar o tom pejorativo da referência.

Muitos leitores da Fides apontaram no texto certa tendência essencialmente erasmiana, com acentos humanistas, irenistas e mesmo ecumênicos (ALMEIDA, 2008ÁLVARES, Francisco. Verdadeira informação das terras do Preste João das Índias. Introd. Neves Águas. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989., p. 251; BARRETO, 2002GÓIS, Damião de. Opúsculos históricos. Trad. Dias de Carvalho. Porto: Livraria Civilização Editora, 1945., p. 80; BATAILLON, 1982GÓIS, Damião de. Opúsculos históricos. Trad. Dias de Carvalho. Porto: Livraria Civilização Editora, 1945., p. 10; TAVARES, 1999PINA MARTINS, José V. de. Humanisme et Renaissance de l’Italie au Portugal: les deux regards de Janus. 2v. Lisboa / Paris: Calouste Gulbenkian, 1989., p. 58). Parece extemporâneo pensar um sentimento ecumênico da parte de Góis, qualquer que seja o seu teor, a levar em conta o anacronismo do termo e da própria ideia que ele carrega, bem como a natureza e a estrutura do livro. Na Fides, a voz de Sāgā za-Ab, embora ocupe parte substancial do volume, não tem autonomia, não tem existência própria, uma vez que está submetida à história de Portugal como um documento a mais entre os arquivos que garantem os feitos portugueses desde os tempos do infante D. Henrique no séc. XV. E sua voz incomodou as autoridades eclesiásticas porque, diferentemente dos povos da Ásia, retratados por Duarte Barbosa ou Tomé Pires, era a voz herética de um país cristão. A Fides não é apenas o testemunho de um monge etíope, antes, é o entrelaçamento de vozes que discursam em torno de um único mérito heroico: a expansão portuguesa e a edificação de seu império ultramarino.

Giuseppe Marcocci (2008, p. 85), julgando que a intenção de Góis não seja meramente informativa, considera que há pelo menos dois objetivos na Fides: a proposta de paz religiosa numa Europa dilacerada pela cisão do protestantismo e a apologia do império português. É importante lembrar que a recolha de documentos para a elaboração da Fides foi feita no período em que Góis esteve em estreito convívio com o círculo humanista e reformista de Pádua: a amizade com figuras influentes como Lazzaro Bonamico, Reginald Pole, Pietro Bembo e Jacopo Sadoleto, logo depois da temporada em Friburgo, na casa de Erasmo, revela talvez um dos mais importantes momentos da vida intelectual de Góis, quando ele transitava por espaços humanistas e eruditos, mantendo contatos significativos com o pensamento católico reformista. Em Pádua, por exemplo, Góis serviu como intermediário na proposta do cardeal Sadoleto, defensor do reformismo, para trazer de volta à Igreja ninguém menos que Filipe Melâncton, o grande colaborador de Lutero17 17 Em carta ao cardeal Sadoleto, de 1.º de julho de 1537, Góis aceita colaborar com o projeto de trazer Melâncton de volta à Igreja, rogando que Sadoleto não desista do empreendimento e informando, por fim, que “a carta que me requereis remeta a Filipe Melâncton, cuidei de transmiti-la por correio fidedigno para Augsburgo, no dia seguinte ao da recepção” (GÓIS, 2009, p. 83). .

Elisabeth Hirsch, no entanto, argumenta que, a despeito das amizades reformistas e das tendências humanistas desse período, Góis saiu de Pádua tão católico quanto entrou, e que o casamento com a noiva holandesa, de família rigidamente ortodoxa, poderá ter pesado nessa decisão (HIRSCH, 1961BARRETO, Luís Filipe. Damião de Goes. Os caminhos de um humanista. Lisboa: CTT Correios de Portugal, 2002., p. 243; HIRSCH, 1953BATAILLON, Marcel. Le cosmopolitisme de Damião de Góis. In: BATAILLON, Marcel. Études sur le Portugal au temps de l’Humanisme. Coimbra: Por Ordem da Universidade, 1952., p. 178). Somem-se a isso outras sugestões biográficas: Jean Aubin (1996), por exemplo, compondo um painel geral da vida de Góis, percebe que a propensão reformista do escritor português parece ter sido ideal de juventude, impulso de primeira fase, movido superficialmente por influência de amigos, uma vez que, passada essa aptidão, ele voltou ao sectarismo e à ortodoxia católica, destruindo, por orientação de Erasmo, suspeitas protestantes que compuseram seu acervo pessoal, como cartas de Lutero e Melâncton.

De toda forma, é possível imaginar um Góis de tendência reformista e humanista no período em Pádua, quando vertia para o latim o testemunho de seu amigo etíope. A convivência com Erasmo em 1534, na casa do filósofo holandês em Friburgo, pouco antes da permanência em Pádua, terá ensinado ao humanista português o anseio profundo da docta pietas, da philosophia christi, a essência de um cristianismo interior, original, ligado ao espírito de tolerância, que caracteriza o eixo do pensamento erasmiano (TORRES, 2002TORRES, Amadeu. Damião de Góis no V° Centenário do seu Nascimento: Erasmismo e “Philosophia Christi”. Revista Portuguesa de Filosofia, t. 58, fasc. 4, p. 943-952, 2002., p. 946). Ainda que tudo isso esteja esboçado na totalidade da Fides, especialmente na pobre voz de Sāgā za-Ab clamando pela aceitação das diferenças, Góis, na busca da afirmação dos feitos portugueses, de que vinha sendo um ágil defensor nos anos finais de 1530, precisou sutilmente romper com Erasmo, que sempre viu com reservas o projeto expansionista português e sempre suspeitou que a cruzada universal contra os turcos tinha qualquer coisa de intenção imperialista (MARGOLIN, 1982HIRSCH, Elisabeth Feist. The Friendship of Erasmus and Damião de Goes. Proceedings of the American Philosophical Society, v. 95, n. 5, p. 556-568, 1951., p. 52). Rui Luís Rodrigues (2011RODRIGUES, Rui Luís. Reflexões sobre o Humanismo português no alvorecer da época confessional. Angelus Novus, n. 2, p. 51-80, 2011., p. 71) argumenta que Góis, e não apenas ele, mas os humanistas portugueses que defenderam a expansão marítima e a guerra movida contra inimigos, por interesses comerciais, precisaram distanciar-se de Erasmo e do próprio arcabouço humanista, para defender a moção da violência e as razões políticas do Estado.

O plano geral da Fides, com sua moldura narrativa costurando os diversas documentos que se entrelaçam, embora dê voz ao diferente e se disponha a replicar o discurso da tolerância religiosa (herança dos humanistas e de Erasmo) não parece constituir exatamente um projeto de unificação religiosa, de irenismo, de conciliação dos credos cristãos, conforme propõe Tavares (1999PINA MARTINS, José V. de. Humanisme et Renaissance de l’Italie au Portugal: les deux regards de Janus. 2v. Lisboa / Paris: Calouste Gulbenkian, 1989., p. 172). No plano da obra, era a Etiópia que devia subjugar-se à Igreja de Roma, e mesmo Góis, atento às questões diplomáticas e econômicas de seu tempo, aceitou que as diferenças ritualísticas entre as duas igrejas não teriam qualquer importância na hora de unir as duas nações numa causa política única. Pina Martins (1989MARCOCCI, Giuseppe. A consciência de um Império: Portugal e seu mundo (sécs. XV-XVII). Coimbra: Editora da Universidade de Coimbra, 2012., II, p. 487) propõe que o livro sobre os etíopes sugere o mesmo projeto que o livro sobre os lapões: a ideia de que é preciso conduzir essa gente bárbara e distante, de forma correta, à Santa Sé, por meio de homens sábios. Lembre-se, a esse propósito, que a edição francesa de 1541 juntou num mesmo volume a Fides e a Deploratio lappianae gentis, como a estampar duas faces de um mesmo projeto.

Góis, cronista e investigador, profundamente interessado nas questões portuguesas da expansão, defensor dos direitos políticos e econômicos do império marítimo de que se sentia parte, sabia da importância da Etiópia naquela altura dos acontecimentos. Sabia da proximidade do país africano com as rotas do mar Vermelho, tão ansiadas pelos portugueses desde Afonso de Albuquerque. Sabia que, depois da conquista de territórios no Índico, o fechamento das rotas comerciais aos árabes e venezianos poderia consolidar os interesses mercantis portugueses naquela região. É certo que a Etiópia perderá, nos anos seguintes, muito de sua importância militar e econômica, sobretudo depois da derrota e da morte prematura de Cristóvão da Gama, que arrastou 400 homens de seu exército para ajudar o país cristão africano contra os ataques muçulmanos em 1541. Mas Góis, um ano antes, ainda acreditava na aliança entre Portugal e Etiópia, e sua recolha de documentos régios e eclesiásticos, somada à versão latina do texto de Sagā za-Ab, deixava claro que seu projeto era veicular uma imagem ortodoxa da Igreja Copta da Etiópia, bem como subjugá-la à Igreja de Roma. Ao enxergar no país africano um aliado comercial e militar no controle do Índico, tinha olhos postos nos interesses comerciais de Lisboa e nas ambições colonialistas, de que sempre fora entusiasta. Diante disso, deve ter mesmo se decepcionado com a incompreensão do inquisidor-geral, que, menos atento aos anseios comerciais e, por sua vez, com olhos postos na unificação religiosa dos domínios do império, proibiu a circulação do livro em terras portuguesas.

A Fides não é exatamente, ou não apenas, um livro sobre a fé, a religião e os costumes do povo etíope, como sugerem o título e a parte mais extensa do opúsculo. Começando por fazer um relato circunstanciado dos feitos portugueses à época do infante D. Henrique, o livro é uma narrativa da expansão ultramarina portuguesa, em que a Etiópia entra como um personagem a mais nas relações diplomáticas e econômicas entre Portugal e os povos longínquos, uma nação a ser trazida de volta às verdades da Santa Sé. A continuidade das relações entre Portugal e Etiópia deverá mostrar isso. Quando lá chegaram em 1555, os jesuítas não tinham outra intenção senão converter os nativos e emendá-los de suas bárbaras heresias, até serem de lá expulsos em 1634, vinte anos depois de terem sido expulsos também do Japão, com projeto semelhante. Já em seu tempo, longe de querer propor diálogo entre as crenças coptas e a verdade da Igreja de Roma, como suposto plano de ecumenismo, Góis sugeria que os etíopes se sujeitassem à autenticidade católica, para que a incorporação da Etiópia ao plano do catolicismo facilitasse antigos propósitos políticos: ocupar terras próximas do mar Vermelho para anular os projetos comerciais dos turcos.

A insistência na profecia do unus pastor na carta-dedicatória ao papa Paulo III incluída na Fides, fórmula que, de resto, estivera também na Carta das novas de 1521 (“por que seja feyto huũ soo curral & huũ soo pastor”), respondia a um anseio de fundo milenarista, tipicamente manuelino (MARCOCCI, 2008HIRSCH, Elisabeth Feist. The Friendship of the “Reform” Cardinals in Italy with Damião de Goes. Proceedings of the American Philosophical Society, v. 97, n. 2, p. 173-183, 1953., 2012FICALHO, Conde de. Viagens de Pêro da Covilhã. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1988.), de evangelização dos povos bárbaros, de consolidação da verdade católica e de fortalecimento das práticas políticas e mercantilistas do império português que avançava pelo mundo. Disposto a consentir na violência da colonização, ou pelo menos a ignorar-lhe a bruta maneira de se fazer presente nos domínios do império, com o pretexto da evangelização, a Fides, religio moresque Aethiopum não é um livro tão erasmiano quanto se pensa, ainda que proponha a aceitação humanista das diferenças e dê voz aos indefesos. Erasmo entra ali mais como discurso do que como prática - insolúvel contradição. É preciso reconhecer, todavia, que Damião de Góis e o inquisidor-geral D. Henrique falavam, na verdade, a mesma língua, mas com instrumentos tão notadamente distintos, que um não pôde entender o outro.

Fontes primárias

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  • GÓIS, Damião de. Fides, religio, moresque Aethiopum sub imperio Preciosi Ioannis (quem vulgò Presbyterum Ioannem vocant) degentium, unà cum enarratione confoederationis ac amicitie inter ipsos Aethiopum Imperatores, & Reges Lusitaniae initiae, Damiano a Goes Equite Lusitano autore ac interprete Parisiis: apud Christianum Wechelum, 1541 versão digital disponível em [ https://digitalis-dsp.uc.pt/bg5/UCBG-VT-20-7-2/UCBG-VT-20-7-2_item1/index.html].
    » https://digitalis-dsp.uc.pt/bg5/UCBG-VT-20-7-2/UCBG-VT-20-7-2_item1/index.html
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Referências

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  • 1
    A questão do messianismo e do milenarismo é uma pauta essencial no entendimento da política imperial manuelina. Luiz Filipe Thomaz (2008) esclarece que o projeto messiânico de D. Manuel, de forte herança medieval, implicou diversos elementos messiânicos, como sinais premonitórios (no caso da aliança com o Preste João), percepção de aproximação do fim dos tempos, ideologia de cruzada, tendência a considerar mártires os mortos em combate e, por fim, crença em um reino terrestre do Messias antes do fim dos tempos, o que, de resto, correspondia aos anseios de entrada dos portugueses no Oriente, considerada o início de uma nova era de paz, de prosperidade e de justiça.
  • 2
    Amadeu Torres (1982, p. 150) sugere que Góis teria aprendido latim na juventude, na corte manuelina, e que o aprimorou a partir de 1529, aos 27 anos. Michel Bataillon (1952, p. 171), ao contrário, entende que Góis, tendo se dedicado tardiamente ao latim, será sempre um frágil latinista: “Damião de Góis aprendeu o latim tarde demais. Foi em vão que ele tenha tido mestres humanistas tão sábios quanto um Grapheus ou um Rutger Rescius, e em vão que ele tenha vivido cinco meses na intimidade de Erasmo, que, ao que parece, escreveu para ele uma Retórica. Depois de dois anos em Pádua, ele o salvou de erros de que os alunos de treze anos teriam sorrido” (tradução nossa). No original: “Damião de Góis s’était mis trop tard au latin. C’est en vain qu’il avait pris pour maîtres des humanistes aussi savants que Grapheus et Rutger Rescius, en vain qu’il avait vécu cinq mois dans l’intimité d’Érasme, lequel avait, semble-t-il, composé pour lui une Rhétorique. Après deux années de Padoue, il lui échappait des fautes dont auraient souri des écoliers de treize ans”.
  • 3
    Daqui em diante, para as citações da Fides, religio moresque Aethiopum, utilizo a tradução portuguesa de Dias de Carvalho (da edição Opúsculos históricos de 1945), com as referências do original latino extraídas da edição de Paris, 1541: “Inde quod sic digesta & composita ad phrasim chaldaicam & Aethiopicam essent, ut vix à quopiam intelligi potuissent, nisi à me, qui ea omnia tam ex ore, quam ex scriptis ipsius Aethipici Oratoris, per multam familiaritatem consequi iam poteram” (GÓIS, 1541, p. 52).
  • 4
    Francisco Álvares (1989, p. 95) dá notícia de que Sāgā za-Ab sabia “falar um pouco italiano”, sem esclarecer em que circunstâncias o monge teria aprendido essa língua.
  • 5
    “filiolo meo charissimo” (GÓIS, 1541, p. 91).
  • 6
    Veja-se, por exemplo, a observação de Jeremy Lawrence: “The most notable fact about both the Legatio and Fides religio moresque Aethiopum is the large space given in each case to the actual words of Ethiopian informants, unaccompanied by comment, censorship or improving gloss” (LAWRENCE, 1994, p. 320).
  • 7
    “Credo unam Sanctam Catholicam, & Apostolicam Ecclesiam, credo unum batismum, qui est remissio peccatorum, spero resurrectionem mortuorum, & vitam venturi sæculi” (GÓIS, 1541, p. 56).
  • 8
    “Credo sanctos Profetas, & Apostolos, Martyres, & confessores, veros Christiani imitatores fuisse” (GÓIS, 1541, p. 57).
  • 9
    “Item, in memoriam Christi baptismi, singulis annis, omnes in Epiphanijs domini baptizamur” (GÓIS, 1541, p. 65).
  • 10
    “Nostri certè ab exordio primitive Ecclesiae Romanum Pontificem ut primum Episcopum agnouerunt, cui etiam hodierno die, ut Christi vicario paremus” (GÓIS, 1541, p. 85).
  • 11
    A base teológica de Sāgā za-Ab, que Góis naturalmente não conheceu, eram os Sínodos da literatura etió­pica posterior à restauração salomônica do séc. XIII, que nosso arcipreste etíope menciona diversas vezes em seu testemunho. Os Sínodos fazem parte de uma coletânea de textos que datam do séc. XIV, em geral traduzidos do árabe, a partir de fontes árabes e gregas, mas cujas origens são atribuídas aos próprios apóstolos, com autorias pseudoepígrafas. Como ensina Bausi, “The Sinodos is a work of canon law concerned with every aspect of the life of the Church: election of the bishop, ordination of the ecclesiastical hierarchy, liturgy of the Eucharist, observance of the holy days, penitence for those who violate the canon law, and so on. […] In the Sinodos we can distinguish three sections: 1. A section composed of pseudo-apostolic and pseudo-clementine; 2. The canons of the so-called ‘provincial’ councils and of Nicea; and 3. A section composed of homilies and treatises” (BAUSI, 1992, p. 16).
  • 12
    O texto da Sāgā za-Ab diz que “nesses dias santíssimos [sábado e domingo], as almas dos fiéis defuntos não sofrem no purgatório. Deus concedeu-lhes este repouso até que de lá saiam, terminando o tempo de seus padecimentos, castigo dos pecados que no mundo cometeram” (GÓIS, 1945, p. 166). É possível que o sacerdote etíope, ao afirmar isso, esteja se baseando no Apocalipse de Paulo, apócrifo do séc. IV, de que resta uma cópia em língua etiópica, em que o apóstolo de Jesus, descendo aos infernos, pede intercessão pelas almas dos condenados, e Deus concede aos supliciados um dia e uma noite de descanso aos domingos por toda a eternidade. Pode ser que Góis tenha substituído “inferno” por “purgatório”, inicialmente porque o purgatório foi uma invenção católica do séc. XII (os etíopes não devem ter conhecido o conceito), e depois porque, segundo a crença católica, as almas, uma vez arremessadas ao inferno, de lá não saem mais.
  • 13
    Elaine Sanceau afirma que, antes da publicação da Fides, ninguém se importara com as diferenças religiosas da Etiópia e ninguém tinha visto os etíopes como heréticos (SANCEAU, 1944, p. 168). Mas não é verdade. O próprio Pedro Margalho, no seu Physices Compendium (1520), já havia caracterizado o cristianismo copta etíope por meio de “heresias, falsos dogmas, observância da Lei Velha” (MARCOCCI, 2012, p. 160).
  • 14
    “ut ego de hac re, & de alijs, quæ minime ad veram fidem spectabant, reprehensus fui” (GÓIS, 1541, p. 78).
  • 15
    A quibus (nescio quam pie) mihi interdictum est sumere corpus Dominicum postquam in Lusitaniam veni quod spacium est septem annorum & (id quod sine dolore ac lachrimis dicam) reputor inter fratres Christianos tamquam Ethnicus & Anathem. De quibus rebus ille, qui omnia vegetat, cuiús iudicio omnia comitto” (GÓIS, 1541, p. 83). Ethnicus, que Dias de Carvalho traduziu como “étnico”, seria traduzido melhor como “gentio”, “pagão”.
  • 16
    “Qui detrahit fratri, aut qui iudicat fratrem suum, detrahit legi et iudicat legem; si autem iudicas legem” (Epístola de Tiago 4, 11).
  • 17
    Em carta ao cardeal Sadoleto, de 1.º de julho de 1537, Góis aceita colaborar com o projeto de trazer Melâncton de volta à Igreja, rogando que Sadoleto não desista do empreendimento e informando, por fim, que “a carta que me requereis remeta a Filipe Melâncton, cuidei de transmiti-la por correio fidedigno para Augsburgo, no dia seguinte ao da recepção” (GÓIS, 2009, p. 83).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2021
  • Aceito
    03 Nov 2021
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