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O romance Quarup, de Antônio Callado: entre a literatura e a crise brasileira

The Novel Quarup, by Antonio Callado: Between Literature and the Brazilian Crisis

La novela Quarup, de Antônio Callado: entre la literatura et la crisis brasileña

RESUMO

O artigo pretende examinar a repercussão, nas páginas do Jornal do Brasil e do Correio da Manhã, do romance Quarup, publicado por Antônio Callado em 1967. A análise quer mostrar o modo pelo qual o livro foi lido como um romance que expressava a complexidade das diferentes saídas políticas em jogo durante aquele momento de crise. Nesse sentido, Quarup era lido como um romance da “crise brasileira”. Mais que isso, já naqueles anos, Quarup era percebido como um momento de inflexão e transformação das formas literárias no Brasil. Por último, pretende-se ratificar, a partir das consequências do AI-5 e da censura para as atividades do próprio Antônio Callado, como a ação da ditadura militar restringiu o debate cultural e artístico, contribuindo para limitar os horizontes da imaginação política do período.

Palavras-chave:
Antônio Callado; Quarup; literatura; ditadura militar; imaginação política

ABSTRACT

This article examines the reactions to Antônio Callado’s novel Quarup (1967) that were published in Jornal do Brasil and Correio da Manhã, and gives particular attention to the way in which readers saw the novel as expressing the complexity of different political issues during a moment of crisis. In one sense, Quarup was read as a novel about the “Brazilian crisis”. But, more than that, Quarup was perceived as expressing a moment of inflection and transformation of literary forms in Brazil. The text also shows how censorship and AI-5 had consequences for the activities of Antônio Callado, thus affirming that the military dictatorship restricted the cultural ant artistic debate, and limited the horizons of the political imagination of the period.

Keywords:
Antônio Callado; Quarup; Literature; Military Dictatorship; Intelectualls

RESUMEN

El artículo pretende analizar la repercusión, en las páginas del Jornal do Brasil y el Correio da Manhã, del romance Quarup, publicado por Antonio Callado en 1967. El análisis pretende mostrar el modo por el cual el libro fue leído como un romance que expresaba la complejidad de las diferentes salidas políticas en juego durante aquel momento de crisis. En este sentido, Quarup fue percebido como un momento de inflexión y transformación de las formas literarias en Brasil. Por último, se pretende ratificar, a partir de las consecuencias del AI-5 y de la censura para las actividades del propio Antonio Callado, cómo la acción de la dictadura militar restringió el debate cultural y artístico, contribuyendo para limitar los horizontes de la imaginación política del período.

Palabras clave:
Antônio Callado; Quarup; literatura; dictadura militar; intelectuales

Introdução

Antônio Callado (1917-1997) era já um jornalista e um intelectual com relevância no cenário cultural e político brasileiro em meados da década de 1960. Na década de 1940, foi correspondente do jornal Correio da Manhã na Inglaterra, em plena Segunda Guerra Mundial. Nos anos 1950, foi convidado por Assis Chateaubriand para acompanhar uma expedição ao Xingu e escrever uma reportagem especial. No final da década, suas reportagens sobre os camponeses em Pernambuco foram importantes para a repercussão nacional do tema da reforma agrária, no contexto da formação das Ligas Camponesas. No início dos anos 1960, as reportagens sobre as transformações implementadas pelo governo de Miguel Arraes na prefeitura de Recife e no governo do estado tiveram impacto similar.1 1 Baseamo-nos na tese de Lilian Juliana Martins sobre a atividade jornalística de Antônio Callado (MARTINS, 2018). As reportagens de Callado, naquele contexto de acirramento de lutas sociais, o colocaram como uma das referências intelectuais dos grupos posicionados à esquerda do espectro político. Não à toa, tornou-se próximo de figuras como Francisco Julião, Brizola e Miguel Arraes.

No que diz respeito às suas publicações literárias, que já incluíam os romances Assunção de Salviano, de 1954, e A madona de cedro, de 1957, a relação destas com seu trabalho jornalístico é inegável. A imbricação das duas linguagens é um traço de uma literatura que poderia ser definida como uma atualização, nos anos 1960 e 1970, de certa “vocação empenhada” da literatura brasileira. O universo ficcional de Callado buscava uma figuração das transformações sociais de então e de certos grupos sociais no Brasil. Como afirma Ligia Chiappini:

uma ficção que pretende servir ao conhecimento e descoberta do país. Mas o resgate dessa tradição do romance empenhado ou engajado se realiza aqui com um refinamento que não compromete a comunicação e com um caráter documental que não perde de vista a complexidade da vida e da literatura. Busca difícil, que termina resultando em uma obra desigual, mas, por isso mesmo, interessante e rica (CHIAPPINI, 2010CHIAPPINI, Ligia. Antonio Callado e os longes da pátria. São Paulo: Expressão Popular, 2010., p. 61).

Desde os anos 1950, Callado escrevia, portanto, além das reportagens, romances e peças de teatro. No teatro, escreve peças que já buscam questionar certa “objetificação” dos povos indígenas (como em Frankel, de 1955) e abordar o contexto do surgimento das Ligas Camponesas (como em Forró no Engenho Cananeia, de 1964). Uma outra parte importante do seu trabalho teatral tem como foco a realidade das favelas cariocas, como Pedro Mico, de 1957, e a questão da negritude no Brasil, como Uma rede para Iemanjá, do mesmo período (CHIAPPINI, 2010CHIAPPINI, Ligia. Antonio Callado e os longes da pátria. São Paulo: Expressão Popular, 2010., p. 76-78). Embora seu trabalho literário também já tivesse reconhecimento, seu trabalho no jornal ainda era o aspecto determinante de sua trajetória. Entretanto, Quarup foi publicado por Antônio Callado em meados de 1967 e teve uma repercussão nos cadernos de crítica cultural e literária bastante ampla.

Este artigo pretende examinar as diferentes tomadas de posição em relação ao romance, a partir das notas, resenhas e críticas ao livro publicadas no Jornal do Brasil (e, de forma complementar, no Correio da Manhã) nos anos imediatamente posteriores à sua publicação. Com isso, queremos mostrar como os embates políticos e sociais do período se expressaram também em torno das discussões sobre o significado cultural de Quarup. O romance acaba por se tornar um dos focos de atenção dos debates culturais de então, em que intelectuais de diferentes posições se colocam a partir de seus projetos e pontos de vista. A repercussão de Quarup na imprensa da época é significativa até o acirramento da censura, com a instauração do AI-5, em 1968, e a própria prisão de Callado, em janeiro de 1969. Seu próximo romance, Bar Don Juan, é publicado em 1971, mas não obtém a mesma repercussão - seja pelo menor interesse na obra, ou por efeitos do controle dos censores à imprensa. Pretendemos, aqui, examinar, nesse breve período, a repercussão da obra de Callado e as diferentes apropriações do romance que evidenciariam posições sobre a crise política e social do país de então.

Examinar a repercussão do romance de Callado em jornais como o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã exige algumas considerações, na medida em que o próprio Callado ­ocupou posições de destaque nas duas redações e as linhas editoriais vinham sofrendo pressões e transformações no período de publicação de Quarup. O Correio da Manhã, que, logo após o golpe de 1964, mantinha certa independência editorial e denunciava torturas e arbitrariedades do regime, sofre uma série de cortes publicitários até que cede a pressões e demite vários de seus colaboradores, inclusive Antônio Callado (MARTINS, 2018MARTINS, Lilian Juliana. Antônio Callado jornalista: a narrativa da grande reportagem e o ideal do Brasil possível. Tese (Doutorado em Comunicação) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2018., p. 45). Callado volta ao Jornal do Brasil, onde tinha publicado reportagens nos anos 1950 e início dos anos 1960. A linha editorial do periódico vivia no período um momento de tensão: tinha apoiado o golpe de 1964, foi o jornal que Costa e Silva escolheu para o primeiro pronunciamento em 1966, mas queria, com Alberto Dines à frente da linha editorial, mostrar certa independência. Além disso, passava por mudanças significativas na diagramação desde o início dos anos 1960, que modernizava a apresentação do jornal e tinha criado o Caderno B dedicado aos temas culturais e artísticos. A chegada de Antônio Callado, jornalista com posições explícitas à esquerda, indicava esses sinais (MARTINS, 2018MARTINS, Lilian Juliana. Antônio Callado jornalista: a narrativa da grande reportagem e o ideal do Brasil possível. Tese (Doutorado em Comunicação) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2018., p. 42-46; p. 122). A publicação de Quarup vai ter repercussão nos jornais nos quais Callado era ainda uma referência.

O romance narra a trajetória de Nando (CALLADO, 1967CALLADO, Antônio. Quarup. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.), inicialmente um padre em Pernambuco que, como várias descrições do livro reafirmaram, “despe-se” de sua batina e de sua visão idealizada do mundo. Essa trajetória é atravessada por uma série de situações que colocam à prova as crenças iniciais do personagem e desafiam Nando a assumir uma perspectiva complexa e contraditória sobre seu lugar no mundo. Inicialmente, Nando é apresentado planejando uma ida ao Xingu, por acreditar serem os índios dotados de uma pureza original e capazes de constituir uma verdadeira comunidade cristã, algo inspirada nas imagens sobre os Sete Povos das Missões. Essa primeira parte ainda é atravessada pelos conflitos entre camponeses e latifundiários, nas origens do que seriam as Ligas Camponesas, e pelos próprios dilemas sexuais de Nando, que viveria atormentado pela falta de confiança no seu próprio voto de castidade.

O momento central do romance é passado no Xingu, onde rapidamente aquelas imagens idílicas são desfeitas. Em certa medida, esses capítulos poderiam ser descritos como uma série de situações que mostram as dificuldades no encontro entre o Estado e os grupos indígenas. O romance, entretanto, apresenta uma diferenciação entre etnias que complexifica o enredo e a trajetória dos personagens. Em vez de um grupo indígena uniforme, uma variedade de modos de viver, línguas, rituais, disputas territoriais e outros elementos incorporam ao romance um vocabulário e sentidos que deixam de lado um olhar monolítico sobre os povos originários para dar lugar a uma proposta formal bem mais complexa. Incorporando, já nos anos 1960, um elemento central dos debates contemporâneos sobre o tema, Quarup apresenta um modo não homogeneizador na figuração literária dos povos indígenas. A trajetória dos protagonistas é marcada pelas particularidades e territórios de povos como os juruna, uialapiti, cren-acárore, camaiurá, uaurá e outros. A expedição ao centro geográfico do país, ao mesmo tempo em que se busca uma personagem que teria fugido, é marcada não só pelo encontro de um enorme formigueiro, mas também pelo encontro com um grupo de indígenas atingido por uma epidemia de sarampo e que se esvai em diarreias. A cena parece querer evidenciar a tragédia que tem sido esses contatos na história brasileira e a dificuldade de se constituir o país enquanto nação.

O longo romance se desdobra ainda com a volta de Nando a Pernambuco, já sem a batina, onde se envolve com um projeto de educação popular e alfabetização de adultos, em referência aos princípios desenvolvidos por Paulo Freire. A politização crescente do grupo no qual está envolvido tem consequências importantes quando a situação política se acirra e o golpe de 1964 encerra brutalmente esse momento da trajetória do personagem. Ele e outros personagens são presos e torturados, sua companheira sai do país e a escola em que trabalhavam é desfigurada. Nando vive um período de desilusão, ainda em Pernambuco e relativamente afastado do centro urbano. O acirramento da situação política do país leva Nando a novos encontros com antigos conhecidos e, numa cena que remeteria à santa ceia para uns e a um ritual antropofágico para outros, ao mesmo tempo que é uma referência ao ritual quarup a que o personagem assistira no Xingu, assume o nome de um amigo assassinado por latifundiários no início do romance e parte para o sertão em direção a um grupo que começaria uma luta armada contra o governo dos militares.

O romance é objeto de inúmeros comentários e ensaios críticos nas páginas dos jornais por ocasião de sua publicação e é mobilizado por diferentes pesquisadores e ensaístas nas décadas seguintes como indício do clima artístico e cultural do período. Neste artigo, pretendemos examinar mais detidamente os comentários sobre Quarup publicados nos jornais assim que o livro sai pela editora Civilização Brasileira. Entretanto, examinar rapidamente alguns argumentos centrais da crítica e historiografia posterior pode nos situar diante das posições tomadas em relação ao romance.

Ligia Chiappini, em artigo dos anos 1990 no qual examina Quarup e sua repercussão, parece contribuir para a complexificação da interpretação do romance. Chiappini (1994) argumenta sobre o modo como Quarup realiza o embate, na sua própria trama, das posições que movimentavam a cena pública do Brasil nos anos 1960. A caracterização dos personagens produziria, segundo a autora, uma polifonia no romance que colocaria em diálogo vozes significativas de grupos e classes sociais que disputavam a sociedade brasileira, mostrando suas fragilidades parciais e o caráter de crise no período. Neste sentido, a repercussão de Quarup, que marcou diferentes perspectivas políticas do período, como pretendemos desenvolver a seguir, estaria relacionada à atenção dada no romance às próprias expectativas políticas e sociais dos diferentes atores da época. Chiappini destaca, ainda, o modo pelo qual Quarup sobreviveria a seu próprio tempo, e ganharia uma atualidade renovada. Quarup se tornaria, segundo a autora, um desses “lugares de memória” que expressam não só o passado ao qual pertence, mas, talvez principalmente, colocam em evidência uma relação específica do presente com esse passado. Para Chiappini, Quarup ocupa esse lugar quando elabora, mais ou menos implicitamente, uma reflexão e crítica sobre a relação entre os intelectuais e as classes populares no período e que reverberaria naquele momento político que ela mesma escreve.2 2 Esse ensaio foi incluído, junto de outros que ampliam o olhar sobre Quarup e a trajetória do seu autor, em Antonio Callado e os longes da pátria (CHIAPPINI, 2010).

A nova edição de Quarup, publicada em 2021, confirmaria o romance como esse “lugar de memória”, destacado por Ligia Chiappini. Os prefácios dos escritores indígenas Daniel Munduruku e Márcia Kambeba ressaltam a sensibilidade que Quarup pode proporcionar no que diz respeito ao entendimento dos povos indígenas na construção da sociedade brasileira. A leitura desses prefácios incorpora novas camadas de leitura ao romance no Brasil contemporâneo, em que a luta pela afirmação dos territórios indígenas ganha, mais uma vez, destaque por ocasião da violência perpetrada por grupos relacionados ao garimpo, ao latifúndio, às madeireiras e outros agentes econômicos e políticos. As apresentações de Daniel Munduruku e Márcia Kambeba ressaltam a possibilidade de ler Quarup a partir de uma via de mão dupla: o ritual do Xingu como uma chave para interpretar a construção da identidade nacional; e a compreensão da história da sociedade à volta dos povos originários para entender sua própria dimensão e significado para a sociedade brasileira (CALLADO, 2021CALLADO, Antônio. Quarup. Rio de Janeiro: José Olympio, 2021.). A incorporação dos prefácios desses autores destaca ainda mais aquele elemento de Quarup que problematiza um olhar monolítico sobre os povos indígenas e complexifica, a partir de uma apresentação que não é generalista sobre as etnias da região do Xingu, as visões de mundo e os modos de vida que importam ao enredo do romance.

Na historiografia dedicada ao período da ditadura, Marcelo Ridenti, em O fantasma da revolução brasileira, apresenta uma interpretação do personagem Nando que pode restringir as complexidades que temos visto serem apresentadas por outros autores. Ridenti descreve a trajetória do protagonista de Quarup que sai da posição de um padre-intelectual para um guerrilheiro-popular, que se despiria de suas vestimentas para enfrentar heroicamente a ditadura militar, num encontro idílico entre o intelectual e o povo (RIDENTI, 2010RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 2010., p. 117). Essa interpretação, nos parece, vai na contramão das leituras críticas que analisamos acima, assim como não parece confirmada pelo conjunto de comentários e ensaios escritos por ocasião da própria publicação do romance. Ridenti acaba por imputar em Quarup um romance que seria uma propaganda da luta armada, em uma forma literária sofisticada. Sua interpretação direciona o leitor a restringir o lugar mais amplo que Quarup pode ter ocupado no período, relacionado às formas contraditórias que assumiriam as saídas políticas da crise que se estabelecera, principalmente a partir de 1964. Em determinado momento, Ridenti afirma que Antônio Callado e outros intelectuais “encastelaram-se numa posição defensiva em relação à modernização industrial e tecnológica que o regime militar veio impor, mantendo as propostas estéticas anteriores ao golpe e ressaltando o apego às tradições populares pré-capitalistas (RIDENTI, 2010RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 2010., p. 88). Tal afirmação desconsideraria que a trajetória de Nando não é marcada por uma adesão inconteste, seja a uma interpretação idílica dos povos originários ou a uma suposta pureza de princípios camponeses. Em vez disso, como vimos com Ligia Chiappini, o romance se constitui a partir de um diálogo complexo entre diferentes vozes, que conformariam uma expressão de significativos embates políticos e sociais do período. Os embates entre as leituras do romance apresentadas nos jornais da época ratificariam essa interpretação a respeito de Quarup.

Por fim, a partir de uma perspectiva que considera a história das formas literárias, Pedro Chagas colabora na mesma direção interpretativa. O autor identifica em Quarup um indício de uma lenta transformação na literatura brasileira. Essa transformação estaria relacionada, sobremaneira, ao aumento da complexidade da sociedade brasileira no período. No argumento de Pedro Chagas, torna-se cada vez mais fora de perspectiva a tentativa de buscar-se a figuração da totalidade do modo em que era realizada até então, por meio de metonímias que apontariam para uma interpretação geral da sociedade brasileira:

‘Romance de arquivo’, Quarup não representa a totalidade brasileira pela seleção de tempos e locais específicos tomados como metonímias do país (imagens reveladoras da sua ‘essência’), mas através da passagem do tempo que expõe uma longa sequência de lugares e de cadeias de acontecimentos que apenas ao final são unificados pela projeção de um inimigo comum: a ditadura militar (CHAGAS, 2014CHAGAS, Pedro Ramos Dolabela. Sobre a origem histórica da diversidade do romance brasileiro contemporâneo (uma leitura de Quarup como ‘romance de arquivo’). Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, v. 3, n. 1, p. 237-264, 16 jul. 2014., p. 260).

Quarup, embora sem abandonar completamente os princípios de certo modelo da estética realista, assumiria a dificuldade em encontrar um elemento que seria símbolo da realidade nacional, e direciona seus esforços, na trajetória descontínua do protagonista, na justaposição de fragmentos diacronicamente no enredo. Essa estratégia seria um sintoma sutil da lenta transformação da literatura brasileira da segunda metade do século XX e apontaria, igualmente, para a importância singular de Quarup no cenário cultural e literário dos anos 1960.

Nesse sentido, como dissemos, pretendemos desenvolver dois argumentos sobre a trajetória do romance de Antônio Callado. Em primeiro lugar, ao analisar a recepção de Quarup em dois dos principais jornais do período, queremos argumentar que o romance foi lido, em grande medida, como sendo sobre a crise pela qual passava a sociedade brasileira. Esse debate contribuía para fomentar a discussão sobre a complexidade das soluções implicadas nas saídas políticas que se colocavam a partir do golpe de 1964. Além disso, Quarup expressava também um dos sinais de certa crise da própria forma do romance, relacionando a crise social e política com a crise da forma da arte.

Em segundo lugar, e mais brevemente, queremos ratificar como o acirramento da ditadura a partir do AI-5 em dezembro de 1968 limitou não só a circulação de bens culturais e artísticos, a partir da censura e das prisões que se sucederam, mas, também significativamente, suprimiu em grande medida o debate sobre as dimensões da complexidade da realidade brasileira que ainda aparecia nos jornais. Assim, uma parte dos debates em torno das contradições sociais e culturais do Brasil ficou limitada pelas alternativas binárias impostas pela ditadura. Para isso, analisamos os documentos produzidos por ocasião da investigação sobre as atividades de Callado para a cassação de seus direitos políticos a partir do final de 1968, mas também o modo pelo qual a publicação do próximo livro de Callado, Bar Don Juan, é acompanhada do silêncio expressivo nas páginas dos jornais que antes discutiam calorosamente Quarup, do mesmo autor.

Crise brasileira, crise do romance

O primeiro tipo de repercussão que podemos perceber nas páginas do Jornal do Brasil é aquele que reconhece as qualidades literárias do romance e exalta o sucesso de vendas do livro, assim como suas traduções e reedições. Vamos percebendo como Quarup passa a ser mobilizado, paulatinamente, para repercutir diferentes questões políticas, sociais e culturais do período, relacionadas aos projetos nacionais que discutiam a reforma agrária, a democracia, a relação entre intelectuais, estudantes e trabalhadores, e o papel dos povos indígenas na formação da sociedade brasileira. Algumas notas parecem registrar situações de leitura nas quais Quarup se apresenta como um elemento da cena. Dois meses depois da publicação do livro, um exemplo desse tipo aparece na seção Informe JB: “Ontem, no botequim do Lili, era proibido falar. Estavam todos lendo Quarup, de Antônio Callado. O livro exige concentração”3 3 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 18 jul. 1967, p. 10. . Em um tom mais irônico, no ano seguinte, mas que leva em conta a repercussão do romance, uma colunista diz que acontece com certo livro recém-publicado o que teria acontecido um ano antes com a publicação de Quarup: “Muita gente não leu, mas porque ficou na moda todo mundo fala dele como se tivesse lido”4 4 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 17 abr. 1968, p. 29. .

As notas apresentam Quarup como objeto cultural de relevância, que modifica e impulsiona certas posições no ambiente intelectual e literário de então. Cerca de cinco anos depois de publicado, a importância do livro ainda é notada quando um jornalista faz questão de observar como o romance estava sendo lido. Em uma visita ao Museu de Arte Moderna para a exposição do artista plástico Alfredo Volpi, em 1972, “um pormenor observado pelo repórter e que dá ideia da atmosfera cultural reinante do MAM: o ascensorista estava lendo Quarup, de Antônio Callado”5 5 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 31 out. 1972, p. 16. .

As primeiras notas que anunciam a publicação do romance descrevem ainda de maneira abstrata o seu enredo, mas ressaltam a importância que o livro poderia vir a ter no cenário cultural e literário brasileiro. Em uma página de Panorama das letras, o livro é anunciado e descrito como “evolução de um brasileiro a partir de uma visão barroca e abstrata do mundo (o herói é, no início, padre) e que acaba na plena aceitação do Brasil desnorteado e sem lideranças, mas com uma cega fé no que há de vir”6 6 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 2 jun. 1967, p. 22. . Em outras edições, são destacadas passagens do enredo que poderiam despertar a curiosidade do leitor. Quando Callado publica um texto no jornal, como colaborador, sua assinatura vem seguida de uma apresentação como “autor de Quarup”,

que dá uma visão de um quarto de século de Brasil em que cidades, o interior, os indígenas se encontram nos seus diferentes planos de vida e de crença. Às vezes se encontram de fato, como quando o tuxaua Uruaco e o chege Vargas morrem, ou como quando um eclipse lunar assusta os brasileiros em geral e os selvagens também: o eclipse do dia em que que renunciou Jânio.7 7 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 17 jun. 1967, p. 31.

Algumas destas notas, ao mesmo tempo que reconhecem e promovem as vendas do livro, destacam algumas características formais e o conteúdo que o livro tenta alcançar. Em mais um Informe JB, a nota descreve o impacto que o romance pode ter para interpretar a realidade brasileira e comenta a variedade de temas que compõem o enredo, além de indicar o engajamento que o protagonista assume progressivamente: “indispensável para estar bem com a civilização brasileira. O livro é um panorama que abrange um Brasil que vai dos tempos da Coluna Prestes aos dias de hoje e mostra a transformação de um homem que parte de uma concepção barroca da vida para uma total aceitação dos problemas do seu tempo”8 8 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 20 jun. 1967, p. 10. . Em certa medida, a interpretação que leva em conta a relação de Quarup com os dilemas sociais e políticos da década de 1960 vai ganhando corpo. Poucos dias depois, um novo comentário sobre Quarup: a nota destaca a trajetória de Antônio Callado como jornalista e aponta o caráter engajado do livro, embora possa ter simplificado os dilemas do personagem principal:

Callado consolidou a sua visão do drama brasileiro após um convívio prolongado com o camponês do Nordeste, quando publicou uma série de reportagens sobre os industriais da seca, de Pernambuco, e uma peça teatral Forró no Engenho Cananeia. Intelectual participante no bom sentido, sem submissão a qualquer dogma incompatível com a realidade do País, Callado enfoca em Quarup a figura de um padre que se descobre a si próprio, despindo o hábito e os preconceitos para atingir o seu momento de glória.9 9 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 4 jul. 1967, p. 24.

Na mesma semana, um Informe JB comenta as vendas de Quarup, mas destaca particularmente a qualidade literária do romance. Os pontos importantes para a nota seriam a vivência política dos personagens e o debate de ideias no interior do enredo que aconteceria sem maniqueísmos. Segundo a nota, esse aspecto seria fundamental para a repercussão que a obra estava alcançando. O livro teria agradado pessoas tão diferentes como Leandro ­Konder e Hélio Pellegrino, “gregos e troianos”, o que mostraria a força do livro. Alguns aspectos do livro são também destacados na nota, justamente aqueles que parecem revelar não só o engajamento do autor em investigar as questões da história próxima do país, mas também os aspectos mais sensíveis do tratamento figurativo das cenas dos encontros com os indígenas:

A marcha de um grupo desbravador, rumo ao centro geográfico do Brasil, acompanhado pelo espectro de uma tribo atacada de sarampo, é página antológica. A alfabetização realista com que camponeses pernambucanos são iniciados na vida, os acontecimentos de 64 refletidos nos personagens, a jornada de padre Nando até a santidade profana, a presença da selva captada sem o sentimento do pitoresco, enfim, a descoberta do Brasil pela depuração do barroco, compõem um livro que marcará época.10 10 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 8 jul. 1967, p. 10.

Quarup começa a ser lido, então, como “um romance da crise brasileira”11 11 A expressão aparece em, pelo menos, duas ocasiões: JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 4 jul. 1967, p. 25; e JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 15 jul. 1967, p. 39. . O contraponto entre dois artigos que abordam o romance pode ser útil para examinar as questões envolvidas nessa expressão. O primeiro, assinado por José Carlos Oliveira, destaca a profundidade com que trata os problemas nacionais: “cada parágrafo me obriga a interromper a leitura para meditar”. O cronista do Jornal do Brasil imprime em Quarup uma oportunidade para perscrutar a “alma brasileira”, diante das situações que o romance narra: “vocês já ouviram falar nas Missões? Na antecipação brasileira do socialismo, experimentado pelos jesuítas? Pois então, leiam Quarup. Se me oferecessem 45 dias de confinamento numa ilha distante, eu levaria esse romance para lá e ficaria de papo para o ar, decifrando através de Callado a alma brasileira”12 12 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 25 jul. 1967, p. 25. .

Poucos dias depois, entretanto, um artigo não assinado abre seu comentário sobre ­Quarup a partir de uma polêmica com o texto de José Carlos Oliveira. Uma passagem é citada para, em seguida, sugerir outra forma de descrever o romance, provocando um efeito distinto no leitor. A menção idílica ao socialismo brasileiro dos Sete Povos das Missões (imagem relacionada à situação inicial do protagonista, antes de “despir-se”) é substituída pela condensação das variadas situações-limites pelas quais o personagem principal atravessa:

- Vocês já ouviram falar nas Missões? Na antecipação brasileira do socialismo? Pois, então, leiam Quarup.

Assim descreve o cronista José Carlos Oliveira sobre o romance de Antônio Callado. Mas há uma outra forma:

- Vocês já ouviram falar em Brasil? Na antecipação romanesca da revolução brasileira? Pois, então, leiam Quarup.13 13 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 1º ago. 1967, p. 25.

O primeiro artigo, embora pareça ter a intenção de elevar o romance, é questionado por deixar de lado o que, para o autor anônimo, parece ser fundamental em Quarup: o caráter dinâmico da realidade brasileira, e não um ideal idílico de um socialismo questionável e distante no passado. A sugestão de José Carlos Oliveira de levar Quarup para uma “ilha distante” reforça o contraste que queremos chamar a atenção entre esses modos de leitura. O segundo artigo, ao contrário, destaca “a revolução brasileira”, que Quarup anteciparia na forma romanesca, destacando o engajamento que o romance poderia oferecer nos dilemas e saídas políticas daquele momento crítico da história brasileira. Essas duas posições sobre Quarup vão marcar alguns artigos publicados em seguida, definindo uma leve tensão entre dois modos de leitura do romance - aquele que enfatiza a literatura como um “afastamento” dos problemas sociais e aquele que destaca o imbricamento das questões literárias e da realidade brasileira.

A leitura de Quarup como expressão de certo idílio natural, que contrasta com a leitura que enfatiza o engajamento na crise brasileira, também pode ser percebido em uma notícia de 1972 que dá a conhecer uma holandesa de 21 anos que teria saído da Europa e ido viver no Xingu, “em busca de uma ‘naturalidade’ que ela diz não encontrar mais na Europa”. Embora o texto possa conter alguma ironia que tenha ficado perdida no tempo que nos separa daquele contexto, a menção ao romance de Callado não faz questão de comentar o sentido problemático que assume a situação vivida pela personagem que foge para viver com um indígena. A naturalidade com a qual Quarup é citado sugeriria que o romance trata de um encontro idílico no meio da natureza, quando parece se tratar de um aspecto central dos conflitos que o romance dramatiza. Destacamos aqui o comentário de Pedro Chagas que toca esse aspecto do romance: em Quarup, Callado não pretende representar o indígena, mas restringe-se à figuração das “ideações sobre ele produzidas pelo ‘homem branco’ - as únicas que ele poderia conhecer, e que se revelavam frágeis diante da violência da ocupação do território. (…) na narrativa de Callado não há lugar para idealismo” (CHAGAS, 2014CHAGAS, Pedro Ramos Dolabela. Sobre a origem histórica da diversidade do romance brasileiro contemporâneo (uma leitura de Quarup como ‘romance de arquivo’). Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, v. 3, n. 1, p. 237-264, 16 jul. 2014., p. 259). Voltando à notícia de 1972, a holandesa “não leu ainda Quarup, de Antonio Callado, mas admite que repita Sônia, uma das personagens do livro, que largou a civilização e foi viver com os índios na solidão das matas do Xingu e seus afluentes”14 14 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 2 abr. 1972, p. 29. . Em 1968, o Correio da Manhã dá a conhecer uma história similar: “uma antropóloga americana veio ao Brasil e conseguiu autorização para fazer uma viagem de estudos ao Parque Nacional do Xingu. Lá ficou durante algum tempo e tal e qual Sônia, uma das personagens do Quarup, de Callado, apaixonou-se por um índio e nove meses depois teve um bebê”15 15 CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, 1º jun. 1968, p. 7. . Ambas as notas oferecem uma leitura que destaca uma suposta descrição idílica do encontro com os povos originários apresentada no romance.

Diferentemente, uma série de outros comentários que aparecem nos jornais sobre ­Quarup ligam seu enredo aos dilemas centrais da sociedade brasileira, considerando as saídas políticas, inclusive a luta armada sugerida no desfecho do romance, como resultados internos da crise social e política do Brasil. No jornal Correio da Manhã, em janeiro de 1968, Edmundo Moniz assina um artigo em que descreve o modo como

Quarup reflete o desenvolvimento combinado e desigual da sociedade brasileira que vai da comunidade primitiva dos índios até o estado atual do capitalismo. É igualmente importante pelo fundo e pela forma. Não chega à propaganda política. Mas contribui para termos uma visão panorâmica do Brasil do nosso tempo.

O artigo destaca as balizas históricas do livro, descreve a importância da figuração das Ligas Camponesas, assim como dos momentos do golpe de 1964 e das cenas de tortura vividas pelo protagonista e outros personagens e destaca o sentido crítico que assume no enredo a fuga da personagem Sônia, já mencionada outras vezes: “não se trata de um retorno ao idílio romântico de Ceci e Peri, e sim de uma ação realista onde o sexo tem forte preponderância bem como o desejo telúrico de fugir da civilização e voltar à natureza”16 16 CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, 13 jan. 1968, p. 14. .

No Jornal do Brasil, em setembro de 1967, Barbosa Lima Sobrinho examina Quarup em várias dimensões. Para nós, por enquanto, cabe destacar o modo pelo qual o crítico elabora a complexidade do romance de Antônio Callado, que resistiria a uma leitura demasiadamente unilinear. Para ele, Quarup se destaca não por oferecer uma alternativa política para aquela geração, mas justamente por descrever os impasses e encruzilhadas que esta enfrentaria naqueles tempos. As tomadas de posição em Quarup não estão dadas, mas estariam sendo meditadas por toda uma geração. Vale citar longamente o último parágrafo de Barbosa Lima Sobrinho:

Livro denso, livro de pensamento, que precisa ser meditado, para que seus intuitos e sua influência não se percam numa interpretação superficial. Livro de observações agudas, mistura de desalentos e esperanças, que caminham lado a lado, como na vida quotidiana. Livro que surge como a confidência de uma geração, que já não sabe como reagir, ou sobreviver, em face de uma realidade que a esmaga. ‘Temos de fabricar mitos’ - declara o autor, mas sente-se que ele próprio não sabe quais sejam esses mitos, nem mesmo se convém, de fato, que eles sejam criados. Por isso mesmo Quarup é um livro amargo, como a procura de estrelas na mais escura das noites, quando a própria alma não sabe como trancar-se ao desespero e à solidão.17 17 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 4 set. 1967, p. 6.

A ligação de Quarup com as lutas políticas daqueles anos não é, portanto, passível de ser desconsiderada. Em setembro de 1967, o jornal noticia que o jornalista Hélio Fernandes teria voltado ao Rio de Janeiro, depois de sessenta dias preso. Na nota, Hélio Fernandes afirma que continuaria a escrever contra o governo e que leu vários livros na prisão: “Quarup, de Antônio Callado, foi o livro que mais impressionou o jornalista, que considerou este ‘um dos fabulosos romances já escritos no Brasil’”18 18 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 19 set. 1967, p. 3. . Em outubro de 1968, quando o movimento estudantil tinha relevância indiscutível no cenário político, o Correio da Manhã faz uma reportagem sobre algumas iniciativas dos secundaristas. Um dos jovens ouvidos pelo jornal elenca os brasileiros vivos que mais admira: “Celso Furtado, economista, Antônio Callado, romancista de Quarup e o jornalista Otto Maria Carpeaux”19 19 CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, 8 out. 1968, p. 5. . Em conjunto, esses e outros artigos destacam Quarup como expressão de uma série de conflitos sociais. Eles tentam colocar Quarup dentro da dinâmica cultural e política do seu tempo, em vez de tomá-lo como válvula de escape para as difíceis situações que se colocavam - assim, apresentavam o romance como uma espécie de diagnóstico literário das diferentes posições políticas do período.

A atualidade dos temas tratados em Quarup é motivo não só para a discussão do engajamento do autor e seu romance com os conflitos de seu tempo, mas também para discutir as transformações que poderiam ocorrer na própria forma do romance a partir de então. O artigo de Barbosa Lima Sobrinho já citado tem como título “Entre o romance e o jornalismo” e inicia dando relevância para um fenômeno, segundo ele, daquele tempo: a interpenetração dos gêneros e das atividades literárias. Em Quarup, aconteceria a interpenetração da ficção com o jornalismo de forma particularmente instigante, remetendo ora à experiência jornalística do próprio Callado, ora à invenção sofisticada que faria os fatos ganharem valores simbólicos que traduziriam intenções profundas. Essa característica híbrida da obra daria um caráter inovador para o romance, sugerindo os novos caminhos que a arte poderia estar tomando.20 20 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 4 set. 1967, p. 6.

Quarup era, entretanto, frequentemente mobilizado em uma linha tênue, quando o tema do engajamento da literatura ganhava ênfase. Em mais de um caso, os autores faziam ressalvas quanto à qualidade desse tipo de romance, para em seguida “salvar” Quarup, que superaria os riscos panfletários da literatura política. Josué Montello, por exemplo, em dezembro de 1967, destaca o caráter de “arte comprometida” do romance, avaliando este tipo de realismo como uma proposta de influir no pensamento de seus contemporâneos, embora, segundo Montello, em geral, sem sucesso. Quarup seria, portanto, um romance engajado, “mas - conclui Montello - tenho a impressão de que, em Quarup, o que há, acima de tudo, é o escrito, no pleno domínio de sua expressão artística. Daqui a tempos, superada a realidade transitória que inspirou seu protesto”, a linguagem de Quarup seria estudada.21 21 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 14 dez. 1967, p. 6.

As encruzilhadas nas quais a forma literária se encontrava, entretanto, assim como a situação política e social do país, não apareciam como um caso resolvido, particularmente para o próprio Antônio Callado. Em uma nota que também destaca a atividade jornalística do autor como referência para a construção de seus romances, Callado é entrevistado e declara:

O romance achará sua saída, que poderá ser a do relato jornalístico como a de Truman Capote, no A Sangue-Frio. Mas essa forma só se cristalizará com a nova forma que a própria sociedade tomará. O romance não está decadente sozinho: há toda uma estrutura em decomposição influindo sobre ele.22 22 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 1º ago. 1967, p. 25.

Callado imprime nessa breve declaração uma percepção sobre as transformações centrais que a literatura atravessava em meados do século. O seu próprio romance era encarado como o limiar de algumas dessas transformações. Quarup é mobilizado para discutir, mais do que a sociedade brasileira, a situação da literatura no Brasil - deixando evidente que, além de expressão da crise social e política brasileira, o romance expressava também certa crise da arte literária no Brasil. O romance de Antônio Callado, nesse sentido, ligado às questões sociais e políticas do seu tempo, estaria também no limiar de transformações que ocorriam na própria forma literária, que se expressava, naquele momento, no engajamento, mas que o superaria.

Callado e os generais

É evidente que o Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968, resultou numa ruptura significativa para os problemas que estamos tentando mobilizar aqui. O recrudescimento da censura e outras práticas repressivas provocaram o silenciamento do debate sobre aspectos da crise brasileira e da literatura que estariam sendo postos à luz a partir de Quarup e outras produções artísticas e intelectuais. Antônio Callado é detido e interrogado em janeiro de 1969 e sofre um processo, com base nos dispositivos do AI-5, pela cassação de seus direitos políticos e de exercer a atividade jornalística; o processo se arrasta até maio de 1970. Os debates sobre os significados de Quarup, que se desdobravam no final de 1968 nas notícias sobre a preparação de uma adaptação do romance para o cinema por Glauber Rocha, desaparecem das páginas dos jornais. As notas praticamente só reaparecerem em maio de 1969, mas com o anúncio de Glauber sobre o adiamento dos planos de filmar o romance e seu afastamento do Brasil por um tempo indefinido.23 23 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 8 maio 1969, p. 22. Algumas notas sobre as traduções de Quarup na Europa e nos Estados Unidos também são publicadas, mas, embora o romance ainda apareça em algumas listas de livros mais vendidos, e mesmo considerando o tempo transcorrido desde sua primeira edição, as únicas descrições do enredo perdem o caráter polêmico dos anos anteriores e adquirem uma feição abstrata, numa espécie de desconversa sobre as questões principais do romance: “o drama existencial de um jovem padre que emerge para a vida em toda a sua plenitude, no romance do Brasil de hoje”.24 24 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 18 out. 1969, p. 47.

Quando Antônio Callado é levado para ser interrogado em janeiro de 1969, a preocupação dos investigadores militares parece ter sido, principalmente, sua atividade jornalística. Nos documentos reunidos em torno do processo levado a cabo contra Callado, são mencionados e anexados dois artigos de opinião de Callado publicados no Jornal do Brasil, um texto publicado na revista francesa Les Temps Modernes sobre as Ligas Camponesas e a sequência de reportagens sobre o Vietnã do Norte publicada no Jornal do Brasil em 1968. De fato, a atividade jornalística de Callado há algum tempo tinha um caráter engajado e posicionado sobre as questões políticas e sociais do seu tempo, como já mencionamos. As reportagens do final dos anos 1950 e início dos anos 1960, além daquelas sobre a guerra do Vietnã, em 1968, apresentavam uma estratégia discursiva que não escondiam o ponto de vista do repórter-narrador.25 25 Para uma análise do contexto de realização das reportagens e das estratégias discursivas mobilizadas por Callado, ver a tese já citada de Lilian Juliana Martins (MARTINS, 2018). A falta de atenção dos investigadores ao romance de Callado poderia denotar uma preocupação mais imediata com os efeitos da circulação de textos jornalísticos contrários aos projetos da ditadura. Embora a censura tenha visado tanto à atividade jornalística quanto à atividade artística, a ênfase dos investigadores no “Antônio Callado, repórter” durante o processo poderia sugerir uma preocupação maior dos articuladores políticos da ditadura com os efeitos políticos da linguagem jornalística do autor do que da literária.

No caso das reportagens em Pernambuco, Callado apresentava um posicionamento explícito a favor das medidas de reforma agrária, das políticas de educação baseadas nas experiências de Paulo Freire e contrário ao poder dos latifundiários e das oligarquias locais. Nas reportagens sobre a guerra do Vietnã, a preocupação de Callado era direcionada em descrever a atuação dos Estados Unidos no país como uma agressão imperialista, assim como em descrever o esforço de um país que há vinte anos enfrentava exércitos invasores, desde a guerra contra o domínio francês.26 26 As reportagens “Tempo de Arraes” e “Vietnã do Norte” foram reunidas posteriormente em um volume único: Antônio Callado, repórter (CALLADO, 2005). Como mostra Lilian Juliana Martins, o modo de exposição desses posicionamentos de Callado possibilitariam a apresentação de uma maior complexidade da situação objeto das reportagens e de sua construção no texto, enquanto as reportagens pretensamente “imparciais” se restringiriam a seus próprios pontos de vista, supostamente e enganosamente ausentes sob o imperativo da “neutralidade”.27 27 A comparação entre as reportagens traduzidas das agências norte-americanas que foram publicadas no Brasil e as reportagens de Callado evidenciam esse aspecto (MARTINS, 2018, p. 129-134).

Callado já havia sido preso em 1964, quando participou de uma manifestação para denunciar o golpe que ocorria no país. Desde então, Callado era frequentemente notado nos relatórios dos serviços de informação das Forças Armadas. O relatório que pede a cassação dos direitos políticos e da atividade jornalística do autor de Quarup evidencia um monitoramento desde 1964: estão anotadas participação em manifestações e reuniões, publicação de artigos de opinião, assinaturas de manifestos e abaixo-assinados, contatos com João Goulart, Brizola e Miguel Arraes. O texto encaminhado ao presidente da República figura Callado como um elemento perigoso para o modelo vigente desde 1964. O documento identifica Callado como um propagandista da luta armada, da violência contra as instituições e incompatível com a ordem do regime. Queremos chamar a atenção para como o relatório limitava a atividade de Callado a uma atividade de propaganda, o que contrasta com a complexidade e amplitude pela qual a obra de Callado era encarada por aqueles que a discutiam nos jornais que examinamos anteriormente:

Quanto ao indiciado Antônio Carlos Callado, é elemento esquerdista, e dado à prática de atos ostensivos visando à subversão da ordem política e social, pregando a queda do regime e incitando a animosidade entre as classes sociais e as Forças Armadas. Os artigos de sua autoria, publicados em jornais, pregam a violência, indicam a guerrilha como único processo de reação do povo, atacam as instituições, em particular o Exército, desmoralizando-o e chegando mesmo a propor sua dissolução; durante o inquérito, o indiciado afirmou que hoje ainda escreveria os mesmos artigos, emitindo os mesmos conceitos. Trata-se pois de elemento cujas atividades são contrárias ao regime e às instituições e incompatíveis com os ideais do movimento de março de 1964, ressaltado ainda o fato de que, pela sua própria profissão, utiliza a imprensa, amplo órgão de informação e de influência da opinião pública, como veículos de sua pregação subversiva.28 28 Dossiê Antônio Callado. Fundo do Conselho de Segurança Nacional. Arquivo Nacional. fl. 9.

Embora sem recorrer exatamente a falsidades, já que Callado de fato se posicionava pela dissolução da ditadura militar, assim como entendia a luta armada como forma legítima de resistência, o relatório faz uma operação de redução da atividade intelectual do autor. Queremos apontar o impacto desse tipo de operação, limitando a discussão da complexidade da “crise brasileira” (como vimos nos debates sobre Quarup) a uma posição simplificadora e binária. Seus trabalhos de reportagem sobre a guerra de guerrilha no Vietnã, que a interpretam como um fenômeno resultado das condições sociais e políticas daquele tempo, se transformam na indicação da “guerrilha como único processo de reação do povo”. Assim, a cassação do direito de expressão de Antônio Callado era não só a proibição de veiculação de suas ideias, mas a imposição de uma imaginação social limitada, na qual haveria somente a “ordem” e a “desordem”. É o tipo de operação característica da polícia política de diferentes regimes e períodos, que atualizariam os dispositivos de uma “caça às bruxas”, voltada a identificar seus alvos como encarnação do Mal que ameaça a existência da sociedade29 29 Para uma análise desse tipo sobre a polícia política brasileira, entre os anos de 1945 e 1964, remetemos ao artigo de Luciana Lombardo Costa Pereira (PEREIRA, 2004). .

As respostas do autor no interrogatório de janeiro de 1969, que consta no dossiê sobre Callado da Comissão de Investigação Sumária do I Exército, dão uma dimensão dessa operação redutora sobre sua atividade. O autor de Quarup não nega nenhuma das “acusações” feitas a ele, mas, corajosamente, problematiza e redimensiona as insinuações dos interrogadores, embora tais respostas não tenham sido levadas em conta no relatório que pedia sua cassação. O olhar para a complexidade da vida social, presente nas suas reportagens e em Quarup, se repete diante dos seus algozes, mas o olhar binário dos investigadores só sublinha onde se confirma uma “identidade” monolítica e superficial.

Os interrogadores perguntam se Callado não acredita que esses artigos podem incitar a população contra as Forças Armadas, mas Callado se mostra pessimista: “respondeu que ainda considera muito grande a apatia das massas brasileira para que possam ser incitadas por artigos de jornal, mas espera que tais artigos contribuam para esclarecer o povo quanto a necessidade de conquistar um controle maior, democrático, sobre a maneira de governar o Brasil”. Ainda sobre o impacto de seus artigos sobre a população, Callado descreve sua posição minoritária na imprensa brasileira que, em grande medida, tinha apoiado o golpe de 1964: é o caso do próprio Jornal do Brasil, no qual Callado publica os artigos em questão, que só começa a se afastar editorialmente do governo militar a partir de 1968 (MARTINS, 2018MARTINS, Lilian Juliana. Antônio Callado jornalista: a narrativa da grande reportagem e o ideal do Brasil possível. Tese (Doutorado em Comunicação) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2018., p. 46). Entretanto, ainda em 1969, alguns meses depois do interrogatório de Callado, uma reorientação interna do Jornal do Brasil define a “prudência” e o “bom senso” para a abordagem de assuntos políticos (KUSHNIR, 2012KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 88. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 44-45). De acordo com o relatório, Callado teria afirmado: “no próprio jornal em que escreveu esses artigos, sua opinião é singularmente isolada. Quem lê no Jornal do Brasil um artigo como ‘a merenda dos generais’ leu tal artigo num jornal que mantém opiniões diametralmente opostas à opinião do depoente”.

Quando Callado é perguntado sobre o conteúdo dos artigos em que questiona a permanência dos militares no governo, e até mesmo a existência do exército, o autor de Quarup não só reafirma sua posição como explica seus fundamentos, descrevendo o que deveria ser a função das Forças Armadas: “respondeu que: seu intuito é caracterizar o fato de que as Forças Armadas de qualquer país tem como missão manter a ordem e defender o país contra alguma agressão externa e que quando invadem o terreno político estão fora do seu papel e merecem críticas as mais severas”. Antônio Callado tenta ainda, nos limites de um interrogatório, explicar o que significaria uma reforma agrária em um país como o Brasil: sem ceder a simplificações, Callado considera a diversidade territorial do Brasil e a necessidade da desapropriação de terras nas regiões mais populosas e empobrecidas do país30 30 O mesmo argumento sobre a reforma agrária foi mais desenvolvido anos antes, na última da série de reportagens de 1963 sobre o período do governo de Miguel Arraes em Pernambuco; naquela ocasião, Antônio Callado escreve: “O Brasil não precisa de uma, e sim de várias reformas agrárias. Mesmo num só estado - e estado pequeno - como Pernambuco, seria impossível fazer a mesma reforma na zona da mata, no agreste e no sertão. (…) É inútil quadricular o mapa do país e sair distribuindo quintais a todo mundo. Mas é extremamente perigoso não começar a dar às massas camponesas do país aquilo que lhes é roubado há séculos: justo preço pelo seu trabalho” (CALLADO, 2005, p. 120). : “num país das dimensões do Brasil teria que adotar mais de um tipi, digo, tipo de reforma da estrutura agrária. Na zona populosa e miserável do nordeste do Brasil, por exemplo, ela teria que assumir uma fórmula severa de desapropriação da terra”.31 31 As passagens são transcrições do interrogatório de Antônio Callado, que pode ser encontrado no Arquivo Nacional, no dossiê já citado disponível no Fundo do Conselho de Segurança Nacional, fls. 48.49 e 50.

Não se menciona o Quarup no interrogatório, assim como não parece haver, nos documentos do inquérito de Callado, referências extensas ao romance, a não ser sua caracterização como “autor de Quarup”. Ainda assim, temos uma imagem fugaz de como as instituições militares podem ter lido Quarup e formado alguma opinião. Essa imagem é característica dessa operação de redução do olhar sobre a complexidade da vida social e cultural brasileira que estaria sendo mobilizada nesse período. Nesse sentido, a lógica que a organiza não difere daquela que orientava os investigadores do inquérito contra Callado. Em uma matéria no jornal Correio da Manhã, de maio de 1969, é relatada uma conversa de Alfred Knopf, editor da tradução de Quarup nos Estados Unidos, com o então embaixador brasileiro em Washington, Mário Gibson Barbosa. Segundo a matéria, o embaixador teria feito “violenta carga” contra o romance de Antônio Callado. Suas palavras não poderiam ter sido mais simbólicas: “o pior romance já escrito em língua portuguesa”.32 32 CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, 9 maio 1969, p. 3.

Considerações finais: Bar Don Juan e Clarice

Em 1971, Antônio Callado publica Bar Don Juan. As primeiras páginas narram a saída da prisão de um casal, no Rio de Janeiro, onde tinham sido torturados para falar da relação com grupos que resistiam à ditadura. O homem insiste em saber de sua companheira a descrição do policial que a tinha torturado. Depois de conseguirem lembrar um pouco, ele passa tardes em frente à delegacia, tentando identificar qual daqueles policiais que saíam pela porta seria aquele que procurava. Quando finalmente o encontra, segue-o pelas ruas até um bairro popular da cidade, identifica o prédio onde mora o policial, observa-o pela janela e imagina uma vingança. São páginas fortes do livro, que narra um grupo que se envolve na luta armada e se desloca para o Centro-Oeste do Brasil, para formar um foco guerrilheiro ou se juntar a Che Guevara na Bolívia. A inexperiência desses jovens e a dedicação dos órgãos policiais faz a tentativa ser um desastre (CALLADO, 2001CALLADO, Antônio. Bar Don Juan. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.).

A primeira edição do livro é rapidamente esgotada. Mas quase nada aparece nos jornais que antes discutiam sobre Quarup. Sem mencionar a luta armada, nem as cenas de tortura figuradas no romance, o Jornal do Brasil anuncia Bar Don Juan e seus personagens de forma vaga: “se perdem, encontram-se (…) tornam a perder-se”, caracterizados como “intelectuais engajados, boêmios, cínicos e diletantes, todos com uma série de dramas pessoais, de acusações e autocríticas”.33 33 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 24 abr. 1971, p. 53. Em vez de ensaios sobre o livro, Bar Don Juan é comentado quando sua segunda edição é indiretamente proibida de circular. Em 27 de agosto de 1971, lê-se que alguns exemplares teriam sido levados da editora por agentes da Censura Federal e o editor da Civilização Brasileira, Ênio da Silveira, buscava junto ao delegado os motivos de tal medida.34 34 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 27 ago. 1971, p. 10. Em mais três ocasiões se noticiam, primeiro, a falta de resposta e, depois, o envio do processo para uma instância superior, adiando mais uma vez a decisão.35 35 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 6 dez. 1971, p. 13; 31 dez.1971, p. 16; e 10 fev. 1972, p. 14. Somente em abril de 1972, anuncia-se que a segunda edição do livro estaria à venda e resume-se seu enredo, sem mencionar aspectos determinantes de sua trama: “o retrato sincero mas amargo que fixa, de uma clientela de intelectuais engajados e de boêmios curtidos pelo álcool, é uma prova renovada da arte de seu criador, Antônio Callado”.36 36 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 11 abr. 1972, p. 67.

Embora o livro conste em várias listas dos mais vendidos publicadas no jornal, nenhum comentário mais demorado sobre o romance é feito nos meses que se seguem. Uma nota de agosto de 1973 pode dar uma dimensão dos efeitos que as ações da Censura Federal provocavam no período. O jornal informa que o Tribunal Federal de Recursos negou o mandado de segurança impetrado pelos advogados da editora em favor da venda do romance. Segundo o tribunal, não havia nenhum ato por parte do governo que justificasse o sentimento de ameaça. A nota relembra os acontecimentos de dois anos antes: “os dois exemplares foram apreendidos pela Polícia Federal em 1971 ‘para verificação prévia’. E nunca mais se falou no assunto”. O relator do tribunal, entretanto, disse que “não basta o mero receio do paciente” para justificar o pedido dos advogados.37 37 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 17 ago. 1973, p. 12. A imposição do medo, além da censura prévia e da possível colaboração direta dentro das redações dos jornais, teria sido um mecanismo eficaz de restringir o debate público nos meios artísticos e nos jornais naqueles anos. Já mencionamos como o próprio Jornal do Brasil tinha definido a “prudência” e o “bom senso” na sua linha editorial ao tratar de temas políticos.38 38 Ver também o estudo de Beatriz Kushnir (2012). Embora não tenha sido oficialmente censurado, a apreensão do livro para “verificação” inibiria a discussão pública sobre a obra, ainda que esta tenha dividido opiniões, mesmo entre os grupos de esquerda na época (MARTINS, 2018MARTINS, Lilian Juliana. Antônio Callado jornalista: a narrativa da grande reportagem e o ideal do Brasil possível. Tese (Doutorado em Comunicação) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2018., p. 50). O Estado, com alguma malícia, não se responsabilizava pelo medo dos outros.

Quarup, mesmo depois de alguns anos da sua primeira edição, ainda é listado como um livro bem vendido nas livrarias, mas já não era, evidentemente, assunto frequente nos jornais. Não era mais a novidade a ser debatida nos meios intelectuais, e o medo da censura pode ter limitado algum ensaio tardio mais polêmico. Ainda assim, como já vimos, o romance de Callado tinha se tornado uma referência incontornável para discutir os problemas brasileiros daqueles anos. Algumas vezes, alguém mobilizava novamente Quarup e retomava sua relevância para repensar os problemas brasileiros. É o que teria feito, por exemplo, Clarice Lispector, em sua crônica num dia de maio de 1972:

E por falar em escritores, estou relendo com gosto trechos do romance Quarup, de Antônio Callado. É muito, é muitíssimo excelente. Prende desde a primeira página à ultima. Eu ia dizer que as leitoras de espírito delicado não o deviam ler, pois trata-se de um livro franco, realmente sem meias palavras em matéria de fatos. Mas resolvi, muito pelo contrário: as de espírito delicado também o devem ler, para ficarem menos delicadas, para se fortificarem. Vida é vida, e não adianta fugir: quando a gente foge, ela corre atrás. É melhor ir de encontro a ela. É mais bonito para uma pessoa.39 39 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 27 maio 1972, p. 37.

Recentemente, em 2021, uma nova edição de Quarup é publicada, como já dissemos, com prefácios dos escritores indígenas Daniel Munduruku e Márcia Kambeba. A presença desses escritores na nova edição já anuncia uma ênfase peculiar na leitura contemporânea proposta ao livro. O destaque ao tratamento aos povos originários que Antônio Callado dispensa no romance é a chave interpretativa que deveria ser acionada pelos leitores. No entanto, em vez de reforçar a imagem idílica às vezes sugeridas em algumas leituras, como pudemos observar em certas ocasiões, os autores dos novos prefácios destacam as contradições, os impasses e as situações-limites narradas por Callado. Daniel Munduruku observa no prefácio intitulado “Quarup: entre o ser e o talvez”: “personagens se confundem, se contradizem, se equivocam e sonham possibilidades de uma convivência utópica em uma realidade distópica, representada pelo ritual fúnebre celebrado por diferentes povos na região do Xingu” (MUNDURUKU, 2021MUNDURUKU, Daniel. Quarup: entre o ser e o talvez. Prefácio. In: CALLADO, Antônio. Quarup. Rio de Janeiro: José Olympio , 2021. , p. 7-8). O autor do prefácio ainda conclui, apelando para os ensinamentos que os povos indígenas podem oferecer em termos de humanidade, coletividade e pertencimento a uma formação contemporânea da sociedade brasileira. Márcia Kambeba, no prefácio “Quarup: identidade, espiritualidade e memória no território sagrado”, destaca as lutas dos povos indígenas em torno do território e da afirmação de suas culturas. Destaca a transformação do personagem Nando, que desiste de evangelizar os indígenas para lutar ao lado dos menos favorecidos. E, por fim, apresenta a complexidade da vida indígena no mundo contemporâneo: “viver na cidade não tira o direito de ser nação e reviver modos de vida presentes na memória, no orgulho e no sentimento de ser povo originário” (KAMBEBA, 2021KAMBEBA, Márcia. Quarup: identidade, espiritualidade e memória no território sagrado. Prefácio. In: CALLADO, Antônio. Quarup. Rio de Janeiro: José Olympio , 2021., p. 14). Os novos prefácios talvez reafirmem o romance como aquele “lugar de memória”, como Ligia Chiappini tinha sugerido. Quarup continua sendo mobilizado para dar significados novos e relacionar de maneiras insuspeitas o presente e o passado da sociedade brasileira.

Referências

  • CALLADO, Antônio. Quarup Rio de Janeiro: José Olympio, 2021.
  • CALLADO, Antônio. Antônio Callado, repórter Rio de Janeiro: Agir, 2005.
  • CALLADO, Antônio. Bar Don Juan Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
  • CALLADO, Antônio. Quarup Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
  • CHAGAS, Pedro Ramos Dolabela. Sobre a origem histórica da diversidade do romance brasileiro contemporâneo (uma leitura de Quarup como ‘romance de arquivo’). Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, v. 3, n. 1, p. 237-264, 16 jul. 2014.
  • CHIAPPINI, Ligia. Antonio Callado e os longes da pátria São Paulo: Expressão Popular, 2010.
  • CHIAPPINI, Ligia. Nem lero, nem clero: historicidade e atualidade em Quarup de Antônio Callado. Revista Brasileira de Literatura Comparada v. 2, n. 2, 1994, p. 97-108.
  • DOSSIÊ ANTÔNIO CALLADO. Fundo do Conselho de Segurança Nacional. Arquivo Nacional. Disponível em:Disponível em:http://imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/br_dfanbsb_n8/0/pro/css/0158/br_dfanbsb_n8_0_pro_css_0158_d0001de0001.pdf Acesso em: 19 fev. 2022.
    » http://imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/br_dfanbsb_n8/0/pro/css/0158/br_dfanbsb_n8_0_pro_css_0158_d0001de0001.pdf
  • KAMBEBA, Márcia. Quarup: identidade, espiritualidade e memória no território sagrado. Prefácio. In: CALLADO, Antônio. Quarup Rio de Janeiro: José Olympio , 2021.
  • KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 88. São Paulo: Boitempo, 2012.
  • MARTINS, Lilian Juliana. Antônio Callado jornalista: a narrativa da grande reportagem e o ideal do Brasil possível. Tese (Doutorado em Comunicação) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2018.
  • MUNDURUKU, Daniel. Quarup: entre o ser e o talvez. Prefácio. In: CALLADO, Antônio. Quarup Rio de Janeiro: José Olympio , 2021.
  • O GLOBO. Nova edição de ‘Quarup’ tem prefácios de Daniel Munduruku e Márcia Kambeba. O Globo 21 jan. 2021. Disponível em:Disponível em:https://oglobo.globo.com/cultura/nova-edicao-de-quarup-tem-prefacios-de-daniel-muduruku-marcia-kambeba-leia-24847570 Acesso em:19 fev. 2022.
    » https://oglobo.globo.com/cultura/nova-edicao-de-quarup-tem-prefacios-de-daniel-muduruku-marcia-kambeba-leia-24847570
  • PEREIRA, Luciana Lombardo Costa. Polícia política e caça aos comunistas: repressões e pressões sobre o movimento operário no Rio de Janeiro (1945-1964). In: MATTOS, Marcelo Badaró (org.). Trabalhadores em greve, polícia em guarda: greves e repressão policial na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto; Faperj, 2004.
  • RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira São Paulo: Editora Unesp, 2010.
  • 1
    Baseamo-nos na tese de Lilian Juliana Martins sobre a atividade jornalística de Antônio Callado (MARTINS, 2018).
  • 2
    Esse ensaio foi incluído, junto de outros que ampliam o olhar sobre Quarup e a trajetória do seu autor, em Antonio Callado e os longes da pátria (CHIAPPINI, 2010).
  • 3
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 18 jul. 1967, p. 10.
  • 4
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 17 abr. 1968, p. 29.
  • 5
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 31 out. 1972, p. 16.
  • 6
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 2 jun. 1967, p. 22.
  • 7
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 17 jun. 1967, p. 31.
  • 8
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 20 jun. 1967, p. 10.
  • 9
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 4 jul. 1967, p. 24.
  • 10
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 8 jul. 1967, p. 10.
  • 11
    A expressão aparece em, pelo menos, duas ocasiões: JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 4 jul. 1967, p. 25; e JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 15 jul. 1967, p. 39.
  • 12
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 25 jul. 1967, p. 25.
  • 13
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 1º ago. 1967, p. 25.
  • 14
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 2 abr. 1972, p. 29.
  • 15
    CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, 1º jun. 1968, p. 7.
  • 16
    CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, 13 jan. 1968, p. 14.
  • 17
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 4 set. 1967, p. 6.
  • 18
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 19 set. 1967, p. 3.
  • 19
    CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, 8 out. 1968, p. 5.
  • 20
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 4 set. 1967, p. 6.
  • 21
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 14 dez. 1967, p. 6.
  • 22
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 1º ago. 1967, p. 25.
  • 23
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 8 maio 1969, p. 22.
  • 24
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 18 out. 1969, p. 47.
  • 25
    Para uma análise do contexto de realização das reportagens e das estratégias discursivas mobilizadas por Callado, ver a tese já citada de Lilian Juliana Martins (MARTINS, 2018).
  • 26
    As reportagens “Tempo de Arraes” e “Vietnã do Norte” foram reunidas posteriormente em um volume único: Antônio Callado, repórter (CALLADO, 2005).
  • 27
    A comparação entre as reportagens traduzidas das agências norte-americanas que foram publicadas no Brasil e as reportagens de Callado evidenciam esse aspecto (MARTINS, 2018, p. 129-134).
  • 28
    Dossiê Antônio Callado. Fundo do Conselho de Segurança Nacional. Arquivo Nacional. fl. 9.
  • 29
    Para uma análise desse tipo sobre a polícia política brasileira, entre os anos de 1945 e 1964, remetemos ao artigo de Luciana Lombardo Costa Pereira (PEREIRA, 2004).
  • 30
    O mesmo argumento sobre a reforma agrária foi mais desenvolvido anos antes, na última da série de reportagens de 1963 sobre o período do governo de Miguel Arraes em Pernambuco; naquela ocasião, Antônio Callado escreve: “O Brasil não precisa de uma, e sim de várias reformas agrárias. Mesmo num só estado - e estado pequeno - como Pernambuco, seria impossível fazer a mesma reforma na zona da mata, no agreste e no sertão. (…) É inútil quadricular o mapa do país e sair distribuindo quintais a todo mundo. Mas é extremamente perigoso não começar a dar às massas camponesas do país aquilo que lhes é roubado há séculos: justo preço pelo seu trabalho” (CALLADO, 2005, p. 120).
  • 31
    As passagens são transcrições do interrogatório de Antônio Callado, que pode ser encontrado no Arquivo Nacional, no dossiê já citado disponível no Fundo do Conselho de Segurança Nacional, fls. 48.49 e 50.
  • 32
    CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, 9 maio 1969, p. 3.
  • 33
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 24 abr. 1971, p. 53.
  • 34
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 27 ago. 1971, p. 10.
  • 35
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 6 dez. 1971, p. 13; 31 dez.1971, p. 16; e 10 fev. 1972, p. 14.
  • 36
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 11 abr. 1972, p. 67.
  • 37
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 17 ago. 1973, p. 12.
  • 38
    Ver também o estudo de Beatriz Kushnir (2012).
  • 39
    JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 27 maio 1972, p. 37.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2021
  • Aceito
    28 Jun 2022
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