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Cultura Popular Negra e Subalternidade: uma análise do espetáculo Zumbi de João das Neves

Culture Populaire Noire et la Subalternité: une analyse du spectacle Zumbi de João das Neves

Resumo:

O presente artigo tece uma análise da peça Zumbi (2012) de João das Neves, obra inspirada em Arena conta Zumbi (1965) de Boal e Guarnieri, apresentando as problemáticas ligadas às questões contemporâneas em perspectiva ao passado escravista e ao presente político do Brasil, que desembocaram no momento atual de restrição dos direitos democráticos. Em seguida, desenvolve-se temas como o da condição pós-colonial, que permeia as relações centro/periferia e intercâmbios culturais; e o das narrativas subalternas, que procuram trazer à tona narrativas dissonantes às oficiais. Por fim, busca-se trabalhar, dessa forma, a análise de Zumbi à luz das culturas populares negras, ressaltando a dimensão política contida na encenação de 2012.

Palavras-chave:
João das Neves; Cultura Popular Negra; Pós-Colonial; Teatro Político; Teatro de Arena

Résumé:

Cet article formule une analyse de la pièce de théâtre Zumbi (2012) de João das Neves, oevre inspirée par l’Arena conta Zumbi (1965) de Boal et Guarnieri, en présentant les problématiques liées aux questions contemporaines en perspective au passé d’esclaves et au présent politique du Brésil, qui ont abouti au moment actuel de restriction des droits démocratiques. Ensuite, il s’est développé des thèmes comme ce de la condition post-coloniale, qui envahit les rapports centre/périphérie et des échanges culturels, et ce des narratives subalternes, qui cherchent ramener des narratives discordantes aux officielles. À la fin, on cherche travailler, de cette manière, l’analyse de Zumbi à la lumière des cultures populaires noires, en soulignant la dimension politique dans la mise en scène de 2012.

Mots-clés:
João das Neves; Culture Populaire Noire; Post-Colonial; Théâtre Politique; Arène Théâtre

Abstract:

This article analyzes the play Zumbi (2012) by João das Neves, a production inspired in Arena conta Zumbi (1965) by Boal and Guarnieri, presenting the aspects related to contemporaneous issues related to the slavery past and the current political scenario in Brazil, which resulted in the present moment of democratic rights restriction. Next, it develops topics such as the postcolonial condition, which permeates the relations center/periphery and cultural interchanges, as well the subaltern narratives, aimed to bring up narratives that do not agree with the official ones. Lastly, the paper seeks to develop the Zumbi analysis in the light of black popular culture, emphasizing the political dimension contained in the 2012 staging.

Keywords:
João das Neves; Black Popular Culture; Postcolonial; Political Theater; Arena Theater

No passado, podiam-se acusar os historiadores de querer conhecer somente as ‘gestas dos reis’. Hoje, é claro, não é mais assim. Cada vez mais se interessam pelo que seus predecessores haviam ocultado, deixado de lado ou simplesmente ignorado. ‘Quem construiu Tebas das sete portas?’ - perguntava o ‘leitor operário’ de Brecht. As fontes não nos contam nada daqueles pedreiros anônimos, mas a pergunta conserva todo seu peso (Ginzburg, 2006GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução: Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 11).

O presente artigo tece uma análise do espetáculo Zumbi, dirigido em 2012 por João das Neves1 1 João das Neves é daquelas personalidades que se pode chamar de um artista completo - diretor, escritor, ator, iluminador, cenógrafo e produtor cultural. Possui trajetória ímpar, além de permanência de 16 anos no Grupo Teatral Opinião; ganhou notoriedade por sua produção dramatúrgica, com destaque para o texto O último carro. Como poucos artistas da área, durante determinado período saiu do eixo de produção cultural do Sudeste, trabalhando e residindo no estado do Acre, onde fundou o Grupo Poranga. Atualmente vive no estado de Minas Gerais, na cidade de Lagoa Santa, onde dirige trabalhos que se destacam nos cenários de produção mineiro e nacional, sobretudo a Trilogia Afro-Brasileira, da qual fazem parte as peças Besouro Cordão de Ouro e Galanga, Chico Rei, ambas escritas por Paulo César Pinheiro, e Zumbi, espetáculo baseado no musical Arena Conta Zumbi, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. . Zumbi é inspirado no musical Arena Conta Zumbi2 2 No decorrer do texto, quando mencionarmos Arena Conta Zumbi estaremos nos referindo à obra de Boal e Guarnieri, encenada em 1965, e Zumbi, à encenação de João das Neves de 2012. (1965), de Boal e Guarnieri, considerado uma das primeiras respostas no campo cultural ao golpe de 1964. João das Neves propôs em sua montagem a formação de um elenco com atores negros, deslocando o foco da resposta política ao golpe militar de 1964 para um debate, não menos político, sobre a cultura afro-brasileira, redirecionando o olhar para uma discussão acerca do racismo e das desigualdades sociais presentes em nossa sociedade desde sempre. Esse deslocamento político, característico de nosso atual momento histórico, para além das suas motivações e consequências, nos chama a atenção para o quanto certas reivindicações, ligadas à relação da representação do negro no palco, ainda passavam despercebidas até a primeira década de 2000. O movimento entre sintoma do hoje e ressignificação do ontem, nos traz, tanto do ponto de vista teórico como artístico, alguns desafios no que diz respeito à visão social, cultural e econômica que trazemos do negro em nossa formação, passando pela situação de uma colônia baseada na economia escravista, até os problemas e embates raciais que enfrentamos cotidianamente em nosso país. Por encontrar-se em um contexto político-econômico brasileiro de perspectiva ainda progressista, porém já em xeque e transição - quadro esse evidenciado desde as manifestações de maio de 2013, cujas consequências e análises começam a emergir em nosso momento atual (Demier; Hoeveler, 2016DEMIER, Felipe; HOEVELER, Rejane (Ed.). A Onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016.) -, Zumbi, apostamos, se apresenta como um espetáculo que nos traz questões fundamentais de análise de acontecimentos contemporâneos (Barraclough, 1983BARRACLOUGH, Geoffrey. Introdução à História Contemporânea. Tradução: C.A. Watts & Co. Ltd. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.).

O início do século XXI em nosso país foi marcado por discussões e políticas de fomento à arte, como o Movimento Arte contra a Barbárie3 3 Arte contra a Barbárie foi um movimento de organização em torno da classe de artistas de teatro, que ocorreu na virada do século XX para o XXI, na cidade de São Paulo. Tal movimento, além de gerar caras discussões a respeito da função do artista em nossa sociedade, obteve alguns resultados concretos no que diz respeito ao entendimento e à organização de grupos teatrais, sendo a Lei de Fomento ao Teatro um de seus resultados mais contundentes. Para aprofundar o assunto, ler Desgranges e Lepique (2012) e Costa (2012). , políticas públicas de ações afirmativas, como a política de acesso por cotas às universidades públicas4 4 A Lei de Cotas foi instituída no âmbito federal em 2008, mas já vinha sendo discutida há mais tempo, bem como, desde 2000, implantada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). e abertura de órgãos como a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial5 5 A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) foi criada em 2003, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sendo resultado do reconhecimento das lutas históricas do Movimento Negro. , trazendo para o contexto tanto da produção profissional cênica quanto das universidades temas e realidades transversais, que deram abertura para novas discussões e reivindicações. Nesse sentido, entendemos que essas novas discussões e reivindicações possuem uma dimensão política, que pode ampliar as noções de luta de classes e representação. Consideramos, portanto, o espetáculo Zumbi, de João das Neves, exemplar para a discussão dessa dimensão política.

Zumbi é inspirado no musical Arena Conta Zumbi, de Boal e Guarnieri, que, com base no romance Ganga Zumba, de João Felício dos Santos (1962SANTOS, João Felício dos. Ganga Zumba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1962.), trouxe uma narrativa da história do Quilombo dos Palmares. Começa com a vinda do rei Zambi ao Brasil, num navio negreiro, e termina com a derrota de Palmares, porém, a obra não se limita apenas a tal narrativa histórica, mas, sobretudo, significou na época uma resposta ao golpe político sofrido pelo País em 1964 (Campos, 1988CAMPOS, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes e Outras Histórias Contadas pelo Teatro de Arena de São Paulo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988.).

Procuramos trazer um entendimento da cultura afro-brasileira como cultura popular negra, buscando, assim, a possibilidade de diálogo com uma tradição do teatro brasileiro, ao mesmo tempo que, em se falando da presença do negro no palco, percebe-se a reivindicação de uma nova pauta para o entendimento dessa cultura. Esse deslocamento da dimensão política da primeira montagem de Arena Conta Zumbi (1965) para a montagem de Zumbi (2012) nos oferece a oportunidade de trazer para a discussão temas transversais, que muito contribuem para o entendimento de nosso momento cultural e político, entendendo que esse deslocamento nos aponta para um terreno ainda em construção, que deve ser trilhado de forma cuidadosa, levando em conta as rupturas e continuidades, desvelando temas como condição pós-colonial, identidade e narrativas subalternas. Nesse sentido, aqui entendemos que trabalhar com esses temas não significa a construção de uma nova narrativa, mas a possibilidade de afirmação de uma narrativa muitas vezes encoberta.

O teatro brasileiro nos últimos anos tem expandido seu campo de escolhas e linguagens em diferentes direções, e tal construção pode nos trazer a ideia de que o teatro contemporâneo pode ser compreendido como um tipo específico de fazer teatral. Essa afirmação corre o risco de generalizar, tornar a categoria contemporânea um gênero específico, que já nos remeteria a um tipo de linguagem específica. Da mesma forma, afirmar que o entendimento do contemporâneo é de ordem simplesmente cronológica pode também suscitar outro risco, no sentido de que olhar para a produção teatral de agora seria estabelecer uma faixa temporal linear, que separa o ontem e o hoje em categorias estanques; ou, ainda, entender o teatro contemporâneo como uma superação do teatro moderno. Nesse caso, a afirmação se torna mais problemática ainda, uma vez que o classifica como uma categoria que não oferece clara oposição epistemológica ao período anterior, correndo, assim, o risco de ser compreendido como conceito que traz uma suspensão histórica. Procurando voltar o olhar para um tipo de teatro produzido nos últimos anos, que se inscreve no cenário atual, e ressaltando sua dimensão política, entendemos que, na construção de conhecimento específico da área, o teatro contemporâneo, dada a efêmera notabilidade própria das artes cênicas, possa ser entendido não como uma classificação conceitual, mas como campo de investigação numa área expandida de diálogos, rupturas e continuações.

Agamben (2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o Contemporâneo? e outros ensaios. Tradução: Vinícius Nikastro Honesko. Chapecó: Editora Argos, 2009.), em O que é o contemporâneo?, mostra a necessidade de um anacronismo, de uma posição desfocada diante do presente para melhor apreendê-lo. Trata-se de um posicionamento ao mesmo tempo presente e deslocado, um olhar privilegiado indicando que, para ser contemporâneo, é preciso não estar completamente imerso em seu tempo e assim vislumbrar suas sombras e suas luzes: “[...] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (Agamben, 2009, p. 62). O autor revela a importância de se deslocar dos grandes consensos, esclarecendo que a contemporaneidade não está apenas associada à cronologia, mas àquilo que é possível fazer emergir de seu tempo e transformá-lo.

Falar sobre o teatro que está sendo produzido em nosso próprio tempo gera alguns desafios, tanto do ponto de vista metodológico quanto do conceitual. De início, podemos apontar a dificuldade de realizar uma análise que, embora imersa em nossa experiência atual, deva estar livre dos consensos desse mesmo tempo, visto que, ao tratar de um tempo presente, incorremos no perigo de, estando inseridos no momento de geração, das transições e transformações dos paradigmas ideológicos, não os perceber. Como sinaliza o historiador britânico Geoffrey Barraclough (1983BARRACLOUGH, Geoffrey. Introdução à História Contemporânea. Tradução: C.A. Watts & Co. Ltd. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.), não podemos correr o risco de não lhes perceber os contrastes:

Se quisermos que ela tenha algum valor perene e duradouro, a análise de acontecimentos contemporâneos requer profundidade, nunca menor - talvez, de fato, uma boa dose mais - do que qualquer outro gênero de História; nossa única esperança de discernir as forças efetivamente em ação no mundo que nos cerca é alinhá-las, de maneira firme de encontro ao passado, para que o contraste lhes dê o devido realce (Barraclough, 1983BARRACLOUGH, Geoffrey. Introdução à História Contemporânea. Tradução: C.A. Watts & Co. Ltd. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983., p. 19).

Nesse campo, muitas vezes movediço, uma vez que ainda se encontra em construção, o teatro produzido nos últimos anos, além de oferecer uma rica arena de pesquisa de linguagens e estruturas, afirma uma luta no campo da política de forma ampliada, pois sabemos bem o quanto trabalhar com teatro em nossos tempos (não o sendo menos em outros momentos) pode ser considerado, acima de tudo, um ato de resistência política e ideológica. Diante do retrocesso no campo democrático e dos direitos humanos que estamos sofrendo nos últimos tempos, torna-se difícil defender o argumento de que apenas o gesto de tomar uma narrativa deslocada, que traz à tona as vozes antes encobertas, possa oferecer um novo paradigma para a relação explorado/explorador, colonizador/colonizado. Porém, exatamente por nos concentrar no presente, nos apoiar na arte, mais especificamente no teatro, e por preferir não o consolo de uma “empatia com o passado”, para falar com Walter Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas I. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994., p. 225), buscamos aqui seguir a lição do aforismo de Gramsci: pessimismo da inteligência, otimismo da vontade.

Colocada a problematização metodológica e conceitual da análise do teatro produzido em nosso tempo, tratemos de discorrer sobre alguns conceitos que nortearão tal análise, começando pelo de pós-colonial. Logo no início do artigo Quando foi o pós-colonial?, pensando no limite do próprio conceito, Stuart Hall (2003HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução: Adelaine L. Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 95) já sinaliza que este é “um signo de desejo para alguns, e igualmente para outros um sinal de perigo”. Tal se dá pelo longo debate discorrido sobre a teoria, que insurge nas últimas décadas como uma novidade, tanto teórica como metodológica, se propondo a um debate das relações criadas pela colonização e a expansão do capitalismo, levantando questões como as relações centro/periferia e intercâmbio cultural. Nessa perspectiva, aqui nos interessa o conceito em sua proposição teórico-metodológica, posto que se compromete com os periféricos, sempre com vistas ao fenômeno de expansão capitalista em todas as esferas do planeta.

Para pensar em nossa condição pós-colonial, contudo, precisamos traçar algumas especificidades dentro do tema, como, por exemplo, refletir sobre o quanto essa teoria, que começa a ser elaborada nos anos 1960, pode dar conta de todo o processo colonial, uma vez que se inicia a partir dos processos recentes de independência das colônias inglesas. Assim, é preciso cuidado com certa universalização e homogeneização devido à ampliação do uso do termo. Hall chama a atenção:

A América Latina seria ‘pós-colonial’, ainda que suas lutas de independência tenham ocorrido no início do século dezenove - portanto bem antes da recente fase de ‘descolonização’ à qual o termo se refere mais evidentemente - e tenham sido lideradas pelos descendentes dos colonizadores espanhóis que haviam colonizado os ‘povos nativos’? Em seu artigo, Shohat explora com eficácia essa deficiência, ficando claro que, à luz da crítica ‘pós-colonial’, aqueles que utilizam o conceito devem atentar mais para suas discriminações e especificidades e/ou estabelecer com mais clareza em qual nível de abstração o termo está sendo aplicado e como isso evita uma ‘universalização’ espúria (Hall, 2003HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução: Adelaine L. Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 100).

A relação específica nossa, portanto, é diferente daquelas estabelecidas na África, Índia, que dirá no Canadá, para citar aqui aleatoriamente alguns exemplos. Não somos pós-coloniais em um mesmo sentido, no entanto, se por um lado essa diferenciação nos serve para não perder de vista nossa perspectiva histórica, por outro, o termo pós-colonial, ao trazer essa perspectiva universalizante, abarca como potencialidade o entendimento de que o fenômeno colonial afetou não apenas a colônia e, nesse sentido, nunca foi algo externo às sociedades da metrópole, estando profundamente inscrito tanto na cultura da colônia como da metrópole, mesmo que com suas especificidades. Nesse aspecto, as narrativas que emergem da periferia deixariam de ser entendidas apenas como periféricas, para tomar o centro de uma grande narrativa não mais dividida entre centro e periferia, mas universalizada, tomada como várias perspectivas correntes. Tal ideia pode soar um tanto romantizada quando levamos em conta nossa realidade político-econômica, na qual o presente não nos deixa perder de vista o quanto o Brasil ainda estabelece uma relação de dependência neocolonial com o bloco de países desenvolvidos no mundo capitalista. Nesse raciocínio, a perspectiva colonial não está morta; sobrevive ainda de outras formas. Valorizar a narrativa pós-colonial pode, contudo, e antes de tudo, significar um posicionamento político-ideológico diante desse quadro irreversível da mundialização do capitalismo.

Em termos de periodização, contudo, o ‘pós-colonial’ retém alguma ambiguidade, pois, além de identificar o momento posterior à descolonização como momento crítico para um deslocamento nas relações globais, o termo também oferece - como toda periodização - outra narrativa alternativa, destacando conjunturas-chave àquelas incrustadas na narrativa clássica da Modernidade. Vista sob a perspectiva ‘pós-colonial’, a colonização não foi um subenredo local ou marginal de uma história maior (por exemplo, da transição do feudalismo para o capitalismo na Europa Ocidental, esse último se desenvolvendo ‘organicamente’ nas entranhas do primeiro). Na narrativa reencenada do pós-colonial, a colonização assume o lugar de um amplo evento de ruptura histórico-mundial. O pós-colonial se refere à ‘colonização’ como algo mais que um domínio direto de certas regiões do mundo pelas potências imperiais. Creio que significa o processo inteiro de expansão, exploração, conquista, colonização e hegemonia imperial que constituiu a ‘face mais evidente’, o exterior constitutivo, da modernidade capitalista europeia e, depois, ocidental, após 1492 (Hall, 2003HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução: Adelaine L. Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 105-106).

Pensar-nos como pós-colonizados, da mesma maneira, faz emergir na atualidade um tipo de reivindicação política que difere daquela clássica. Traz para o protagonismo narrativas antes entendidas apenas como pano de fundo de um processo maior. Nesse sentido, Florestan Fernandes (2017FERNANDES, Florestan. O Significado do Protesto Negro. São Paulo: Expressão Popular; Perseu Abramo, 2017.) já alertava a respeito do quanto o 13 de maio é uma ficção.

Uma princesa assinou uma lei que extinguia uma instituição que já estava morta. No entanto, a historiografia oficial e as classes dominantes posteriormente transformaram essa data em um marco histórico e a converteram no símbolo de que, no Brasil, a escravidão se encerrara por iniciativa dos de cima e de ‘modo pacífico’ (Fernandes, 2017FERNANDES, Florestan. O Significado do Protesto Negro. São Paulo: Expressão Popular; Perseu Abramo, 2017., p. 77).

Assim, olhar para a atual montagem do espetáculo Zumbi, ou seja, para a história do Quilombo dos Palmares e toda a narrativa que compreende a vinda de Zambi ao Brasil, num navio negreiro, até a derrota de Palmares, ganha, nos corpos negros que sobem ao palco, uma luta política por espaço e representação de forma contundente, fazendo aflorar a possibilidade de realização de uma crítica a partir da condição subalterna, que aqui também identificamos não como uma mudança de paradigma, mas como um elemento presente em nossa história - tanto do país como mais especificamente do teatro -, porém, como já dito, muitas vezes encoberto por uma narrativa oficial, que tende a manter a camada subalterna obediente e pacífica, ou seja, meros coadjuvantes da história. Dessa maneira, nos pareceu frutífero, para enfatizar esse novo espaço de afirmação, pensar nosso lastro de diálogo do teatro com a cultura popular, levando em conta que uma grande parcela daquilo a que chamamos de cultura popular aqui no Brasil tem farto diálogo com a cultura afro-brasileira e representa forte tensão histórica e cultural nesse processo de aceitação e resistência em relação à cultura dominante.

Dessa maneira, o posicionamento de entendimento da cultura popular como cultura subalterna se torna estratégico se pensarmos no próprio termo subalterno, aqui pinçado dos escritos de Antonio Gramsci. De acordo com Hall (2003HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução: Adelaine L. Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 276-316), Gramsci traz, para o campo dos estudos marxistas, contribuições que não foram apresentadas pelo marxismo clássico, opondo-se a um tipo de economismo e encaminhando para o bojo das discussões novas condições históricas, que não poderiam ser apreendidas ou previstas por Marx ou Engels no estágio de desenvolvimento social em que ambos se encontravam:

Gramsci pratica um marxismo genuinamente ‘aberto’ que expande muito dos insights da teoria marxista na direção de novas questões e condições. Sobretudo, sua obra coloca em funcionamento conceitos que o marxismo clássico não forneceu, mas sem os quais a teoria marxista não conseguiria explicar adequadamente os complexos fenômenos sociais que encontramos no mundo moderno. É essencial que esses pontos sejam compreendidos, para que possamos situar a obra de Gramsci no contexto das formulações teóricas, paradigmas e esquemas interpretativos das ciências sociais e humanas (Hall, 2003HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução: Adelaine L. Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 277-278).

Quanto ao termo classe ou à expressão grupo subalterno na obra de Gramsci, não há uma acepção clara, embora se possam definir alguns aspectos, como tratar-se de grupos que se encontram em uma posição de dominação nas relações de poder social. Segundo Gramsci (2002GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v. 5. Tradução: Luiz Sergio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2002., p. 135), “A história dos grupos sociais subalternos é necessariamente desagregada e episódica” e “Os grupos subalternos sofrem sempre a iniciativa dos grupos dominantes, mesmo quando se rebelam e insurgem”. O campo dos estudos dos grupos subalternos foi ampliado por diversos estudiosos, destacando-se Edward Thompson e Raymond Williams, e, mais recentemente, Edward Said e Stuart Hall; aqui também ressaltamos a historiografia proposta por Carlo Ginzburg. Nesse aspecto, o uso do conceito se amplia, partindo do pressuposto de Gramsci, ou seja, do camponês italiano meridional, para tratar da perspectiva pós-colonial. Sendo assim, tratar a cultura popular como cultura subalterna busca uma linha de associação entre os estudos marxistas e pós-coloniais, sendo uma delimitação pertinente do ponto de vista aqui proposto.

O historiador Carlo Ginzburg (2006GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução: Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 11-26), no prefácio à obra O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição, traça críticas sobre algumas obras que se utilizam do conceito de cultura popular, valorizando o conceito e mostrando as possibilidades de trabalho com a documentação e sua “imagem mais ou menos deformada”. Chama a atenção o quanto o emprego do termo cultura como um conjunto de práticas e comportamentos das classes subalternas é relativamente tardio. Emprestado da antropologia cultural, o conceito de “cultura primitiva” foi a base para o reconhecimento dos indivíduos “definidos de forma paternalista como ‘camadas inferiores dos povos civilizados’” (Ginzburg, 2006, p. 12), possuidores de cultura. Dessa feita, houve uma superação, segundo o autor, ao menos no nível verbal, não só de uma “concepção antiquada de folclore como mera coleção de curiosidades”, mas também do lugar de onde vinham essas ideias, superando-se o princípio de que o conjunto de crenças e atitudes das classes subalternas era fruto de uma leitura de algo há tempos elaborado pela cultura dominante. A partir daí tem início também a discussão sobre a relação entre cultura dominante e cultura subalterna, procurando identificar até que ponto a segunda se submete à primeira. A relação dominante/subalterno se dá pelo estabelecimento de uma sociedade desigual, que pressupõe a posição de uma classe em detrimento de outra.

Nesse ponto nos perguntamos: em se tratando da cultura subalterna, pode ela se colocar, nesse sentido, como um ponto de resistência à dominação de classe, uma vez que, apesar da oposição de classes, pode não estabelecer necessariamente uma relação de subordinação? Tal pergunta serve de estímulo para pensar os diversos níveis em que se pode compreender a cultura subalterna ou cultura popular. E coloca aos estudos referentes à cultura popular a necessidade de posicionamento ideológico e metodológico: ideológico porque usamos o termo cultura cunhado a partir de uma visão aristocrática, precisando sempre desconstruir a ideia civilizatória e elevada que lhe é própria; metodológico em função das dificuldades advindas do fato de a cultura popular ser em grande parte de cunho oral.

Vejamos agora mais de perto quais as perspectivas temáticas em que se enquadram as obras e quais relações podem ser tecidas entre os espetáculos Arena Conta Zumbi e Zumbi e a cultura popular ou subalterna. Arena Conta Zumbi foi concebido como um musical, o primeiro de uma série que será apresentada pelo Teatro de Arena6 6 Importante grupo teatral paulista das décadas de 1950 e 1960; é considerado uma referência para o teatro político no Brasil. Sobre o assunto, ler Costa (1996) e Prado (1988). . Considerado uma das primeiras respostas ao golpe de 19647 7 O musical Opinião, considerado a primeira resposta teatral ao golpe de 1964, foi encenado ainda em dezembro de 1964. , sua estreia data de 1o de maio de 1965. O popular é amplamente explorado na peça e é fundamentalmente ligado ao universo afro-brasileiro, o que se faz pela escolha da história da luta negra em Palmares, mas que também pode ser percebido na figura do cantador nordestino, participando da estrutura da peça como narrador. Muito desse vínculo com a cultura afro-brasileira se dá pela música - embora em sua maioria composta por Edu Lôbo, inclui uma composição de Vinícius de Morais -, adotando sambas e batuques e trazendo nas letras o universo africano e afrodescendente. Além das músicas, o texto da peça traz na fala dos personagens negros um tipo de português errado que pretende reforçar as origens populares desses personagens; tal construção da fala, segundo Claudia Arruda Campos (1988CAMPOS, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes e Outras Histórias Contadas pelo Teatro de Arena de São Paulo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988.), origina-se de uma das obras utilizadas para a elaboração da dramaturgia, o livro Ganga Zumba, de João Felício dos Santos. Cabe mencionar, aliás, outro livro usado como referência: O Quilombo dos Palmares (2011CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.)8 8 A primeira edição da obra de Edison Carneiro data de 1958, pela editora Brasiliana. , de Edison Carneiro, que reúne uma série de documentos de autores do período colonial.

Em relação à dramaturgia, a adaptação Zumbi feita por João das Neves manteve praticamente a integridade do texto, ou seja, foi fiel ao roteiro da história, às músicas e à forma de falar das personagens, com apenas alguns cortes de cenas, mudanças de algumas palavras e acréscimos de algumas falas e elementos, como, por exemplo, músicas do congado mineiro, que não pertenciam à montagem original. Com respeito à encenação, entretanto, as duas montagens se diferenciam bastante e, apesar da ausência de documentação em vídeo do Arena Conta Zumbi, é possível, pela comparação de fotos e relatos, identificar essas diferenças. Para começar, como já destacado, o elenco da adaptação Zumbi é todo negro e há na construção dos elementos visuais da cena uma ambientação do quilombo, o que leva a uma leitura mais dramática do ponto de vista visual. Há forte presença da cultura negra mineira, na constituição dos instrumentos, da musicalidade e dos elementos do congado mineiro. Além da complexidade dos arranjos musicais: diferentemente da montagem de 1965, que contava apenas com flauta, bateria e violão, em 2012 os arranjos ganham corpo com outros tipos de instrumentos percussivos, melódicos e harmônicos.

Se pensarmos na dimensão política de cada montagem, podemos perceber a chave de leitura para cada uma. A primeira, apropria-se da história do Quilombo dos Palmares para trazer a importância da resistência frente ao quadro político estabelecido com o golpe de 1964; a segunda, apropria-se da mesma história para trazer, porém, a importância da luta diária de resistência ao racismo e às diferenças sociais vividas no Brasil por grande parte da população negra até os dias de hoje. Nas duas montagens, o valor mais significativo não repousa na reprodução da história daquele quilombo, mas no símbolo de resistência que tal narrativa contém. Nesse sentido, torna-se mais pertinente a investigação dos elementos culturais e da forma como é construída essa narrativa do que a averiguação da veracidade dos fatos históricos, embora, por se tratar de narrativa que envolve a reconstrução de um momento histórico, não se possa desprezar a pertinente visão historiográfica.

O texto de Arena Conta Zumbi tem construção épica. Além de se constituir como um musical, incluindo, portanto, várias intervenções por meio da música, possui narrativa não linear, com cenas curtas e nem sempre interligadas pelo mecanismo de causa e efeito. Outro elemento que reforça o caráter épico encontra-se na forma da encenação − é na montagem de Arena Conta Zumbi que Boal começa a desenvolver o sistema coringa, segundo o qual os atores podem revezar-se na interpretação dos personagens9 9 Para mais informações sobre o sistema coringa, ver Boal (1977). . Como o texto tem sua integridade quase totalmente mantida na adaptação Zumbi, que se apresenta como objeto de interesse neste artigo, optamos pelo enredo da montagem dirigida por João das Neves.

Zumbi começa com a chegada do rei Zambi em um navio negreiro. Já na apresentação, a personagem chama seus iguais a se rebelarem contra as condições em que se encontram. Nesse contexto, são apresentadas as mazelas do sistema da escravidão, a tortura, a violência, o trabalho forçado. A narrativa segue, mostrando a formação do quilombo e os ataques que sofreu por parte dos brancos, ataques sempre motivados por interesses econômicos e impulsionados ideologicamente pelo moralismo e pelo racismo, evidenciando o quadro no qual a relação entre o branco e o negro nunca passa por nenhum nível de igualdade, mas sempre pela soberania branca, exercida pela posição de poder. No espetáculo, porém, é possível constatar a forte contradição contida nessa posição de poder, seja na construção do texto ou da encenação. Nessa construção, percebemos por parte dos negros um grande esforço em construir uma sociedade melhor, com base no trabalho, na cooperação mútua e na conquista de sua libertação da escravidão, imposta pelos brancos. O rei Zambi e seus sucessores caracterizam-se por um tom de nobreza e liderança, enquanto os brancos mostram caracterização cômica na encenação, sendo sempre representados de forma burlesca10 10 Tal caracterização também ocorreu no espetáculo Arena Conta Zumbi. . Seus interesses se ligam à defesa da propriedade privada, à moral da tradição familiar e, principalmente, aos interesses econômicos acima de qualquer outro. Palmares é erguida e representada como uma sociedade livre, construída a partir do trabalho e da solidariedade. A construção dessa sociedade não é inteiramente aprovada pelos brancos, contudo, o Governo, na figura de Dom Pedro de Almeida, chega à conclusão de que é mais custoso travar uma guerra e recuperar os negros aquilombados do que trazer mais homens da África. Palmares cresce, vende sua produção e compra armas para sua defesa. Os brancos se dividem em dois grupos - os comerciantes e os donos das sesmarias. Os brancos comerciantes, a princípio, têm boa relação com os quilombolas, pois negociam com eles, comprando mercadorias e vendendo armas. Os brancos donos das sesmarias, todavia, não concordam com a existência do quilombo, que consideram afrontosa. Há então o erro trágico cometido pelos quilombolas, quando, imbuídos da fé na boa relação com os brancos comerciantes e na promessa de paz e liberdade, aumentam os preços de suas mercadorias e param de comprar armas. Nesse momento, os brancos comerciantes se unem aos brancos donos das sesmarias contra o quilombo. Chegam ao Brasil, Ganga Zona, neto de Zambi, e sua companheira, Gongoba; eles são separados e, a caminho da propriedade em que trabalharia, Ganga Zona toma conhecimento dos negros de Palmares, que vão encontrá-lo para conduzi-lo ao quilombo. Os brancos comerciantes, com seus interesses feridos, unidos aos brancos donos das sesmarias, começam uma campanha pela conquista da opinião pública, papel esse reservado especialmente às mulheres de família, divulgando a mensagem ideológica de que o quilombo era uma ameaça à tradição e à família. Gongoba dá à luz Ganga Zumba, filho de Ganga Zona e bisneto de Zambi. O tempo passa, Ganga Zumba cresce e vai para Palmares, assumir seu lugar de liderança. Gongoba é açoitada e morta, e há um confronto entre brancos e quilombolas, com baixas de ambos os lados. A proposta de paz por parte de Dom Pedro de Almeida é aceita pelo rei Zambi. Dom Pedro de Almeida, entretanto, é destituído do cargo de governador, para o qual é nomeado Dom Ayres, que promete, como podemos ler na fala da personagem, “um governo enérgico [que] toma medidas impopulares de proteção à coroa, não aos insatisfeitos”. Nomeia um capitão-mor de campo para “prender, torturar, castigar e matar estes negros fugidos e levantados”. Ganga Zona morre, e Ganga Zumba assume o trono de Palmares, que se prepara para a luta convocando os líderes de todo o território quilombola. O governo elege o paulista Domingos Jorge Velho para comandar a invasão ao território do quilombo. As forças quilombolas são vencidas, mas até o fim Ganga Zumba resiste.

Na montagem de Arena Conta Zumbi, reiteramos, a fábula é tecida para se falar do presente e por isso são várias as referências ao contexto de 1964, servindo o episódio de Palmares como metáfora aos acontecimentos de então. A proposta era de análise e possível resposta ao golpe, o que, portanto, justifica elementos como a força dos interesses econômicos e da coroa, que representavam, aliás, os interesses do capital externo; a conquista da opinião pública, missão outorgada especialmente às mulheres, em alusão às marchas pela família que antecederam o golpe; a destituição do governo legítimo e a substituição por um governo impopular − para ficar apenas com alguns exemplos, que pensávamos, mesmo em 2012, na época da montagem de João das Neves, se tratar de eventos guardados no passado histórico; eles vêm à tona, porém, em nosso presente histórico, colocando o estado democrático do País em xeque. A proposta da peça era trazer os eventos do golpe para avaliar suas causas e analisar a derrota popular para, então, propor uma atitude de resistência.

A fábula se materializa na chave de luta contra o racismo e a desigualdade social na montagem de João das Neves; e, da mesma forma, questões como a força do capital, o trabalho ideológico repetido pelo exemplo da família tradicional brasileira, e governos que se colocam de forma violenta contra os populares igualmente ganham força como argumento de luta. No caso de Zumbi, a presença da cultura popular negra é ferramenta rica e astuta. Ao analisar com mais vagar os elementos da cultura popular negra inscritos nessa montagem, percebemos alguns pontos que trazem questões caras à relação palco/história/cultura popular negra. Tais questões se revelam em uma primeira instância no texto original de Arena Conta Zumbi e se estendem à montagem de Zumbi. Essas questões, contudo, não chegam a comprometer o potencial de luta simbólica que a peça detém, tanto na montagem de 1965 quanto na remontagem de 2012; elas são importantes, no entanto, para que avancemos no campo da resistência cultural aqui proposto.

Segundo Stuart Hall (2003HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução: Adelaine L. Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.), para se trabalhar com a cultura popular é preciso desconstruir a visão ingênua que a circunda; nesse sentido, a cultura popular pode ser compreendida como as tradições e práticas transmitidas informalmente, mas também no movimento de tensão que essas práticas estabelecem com a cultura dominante. Assim, ao contrário da noção reducionista que tende a reconhecer a cultura popular como uma prática folclórica ou aquela que se liga à rede de mercado, sendo a mais consumida ou vendida, ou ainda aquela que se estabeleceria por um conteúdo específico ou um “programa político popular”, a cultura popular se estabelece em um terreno da “luta pelo poder” decorrente de um movimento de consentimento e resistência populares, portanto trazendo para seu seio elementos da cultura tradicional, da cultura de massa, bem como dos meios de produção e fruição contemporâneos (Hall, 2003, p. 231-247). Nesse contexto, trabalhar a partir do conceito de cultura popular negra como aquele inscrito por Hall traz a possibilidade de uma leitura complexa, que inclui as contradições da cultura popular se justapondo a um intrincado movimento de tradições dispersas no momento da diáspora.

Desse modo, Stuart Hall entende que, para a cultura popular negra, não existem formas puras; ao contrário, ela é resultado de negociações, de experiências e tradições de populações negras, sendo tais experiências profundamente marcadas por similaridades e continuidades em articulação com diferenciações e rupturas. Essas articulações se devem à experiência da diáspora, na qual o tráfico atlântico trouxe para a lavoura homens e mulheres provenientes de diferentes culturas, comunidades que falavam línguas próprias, cultuavam divindades específicas, traziam hábitos distintos, e em contato com as culturas ocidentais criaram novos repertórios que, por sua vez, “[...] conduziram a inovações linguísticas na estilização repertórica do corpo, a formas de ocupar um espaço social alheio, a expressões potencializadas, a estilos de cabelo, a posturas, gingados e maneiras de falar, bem como a meios de constituir e sustentar o companheirismo e a comunidade” (Hall, 2003, p. 324-325).

No caso específico do Brasil, os estudos sobre a diáspora e o tráfico atlântico apontam a chegada de povos provindos de uma grande extensão da África, configurando esses conjuntos uma variedade de culturas, etnias, línguas e nações. Podem ser classificados genericamente em dois grandes grupos linguísticos: os bantos e os sudaneses. Os bantos são os povos da região centro-sul-africana, compreendendo uma área que vai do Oceano Atlântico ao Índico, hoje a região de Angola, Zaire e Moçambique. Os sudaneses pertencem a uma região mais ao norte, representada hoje por Nigéria, Daomei e Costa do Ouro. Essa classificação dos grupos bantos e sudaneses, como já apontado, é geral, portanto, cada grupo representa dezenas de etnias e nações11 11 Sobre o assunto, ver Prandi (2000) e Slenes (1992). . As referências às origens dessas etnias e nações são de muito difícil estabelecimento, uma vez que o cativo desembarcado no Brasil muitas vezes trazia como referência as áreas de captação ou embarque na África em vez de seu local de origem. Dessa maneira, chegando ao porto, os indivíduos eram designados por nações, ou seja, denominações usadas pelos mercadores e administração colonial no Brasil, que traziam características como, além do local de embarque, atributos físicos e qualidades relacionadas à capacidade de trabalho. Essas nações transatlânticas traziam, por parte do homem escravizado, laços de afinidades com a língua, a visão de mundo e religiosidades, numa identidade criada de forma relacional e histórica. As nações mais conhecidas, e de forma genérica atribuídas aos dois grandes grupos linguísticos, são os congo-angola para os bantos e os nagô-ioruba para os sudaneses, embora haja outras nações ligadas a esses grupos, como os benguelas e moçambiques (bantos) e jejes e minas (sudaneses).

Essa riqueza de referências culturais se encontra na encenação de Zumbi, espalhada ao longo do texto em expressões e palavras africanas, sonoridades e musicalidades, atestando visibilidade à cultura popular negra e sua diversidade. Um exemplo dessas referências pode ser o tratamento dado ao culto simultâneo de divindades africanas e cristãs:

ZAMBI: Ave Maria cheia de graça. Olorum é convosco.
Bendito é o fruto de vosso ventre
Bendita é a terra que plantamos.
Bendito é o fruto que se colhe.
CORO: Ave Maria, bendita seja
Ave Maria cheia de graça, Olorum. [...]
(Boal; Guarnieri; Lôbo, 1965BOAL, Augusto; GUARNIERI, Gianfrancesco; LÔBO, Edu. Arena Conta Zumbi. Brasil; RCA, 1965. 1 LP., LP).

Olorum é o deus supremo, o dono do céu para os iorubas, palavra, portanto, que faz referência à presença de homens de origem do grupo sudanês (Evaristo, 2012EVARISTO, Conceição. África: âncora dos navios de nossa memória. Via Atlântica, São Paulo, n. 22, p. 159-166, 2012.). Na peça, porém, a começar pelo tratamento dado aos líderes, os gangas, encontramos esta palavra, cuja origem pode estar no quimbundo nganga, que significa feiticeiro, sendo o quimbundo uma língua do grupo banto (Lopes, 1995LOPES, Nei. Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; Centro Cultural José Bonifácio, 1995.). Há, nos estudos sobre a cultura afro-brasileira, uma tendência, que já vem se redesenhando no plano acadêmico, mas ainda se encontra forte no senso comum, de que os traços culturais sudaneses, que podemos chamar de nagô-iorubas, trazem mais autenticidade cultural; essa tendência se apresenta fortemente nos estudos relacionados às religiões afro-brasileiras de valorização do candomblé desde Nina Rodrigues (1935RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional , 1935. ), Edison Carneiro (1981CARNEIRO, Edison. Religiões Negras e Negros Bantos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1981.) e Artur Ramos (1942RAMOS, Artur. Pesquisa estrangeiras sobre o negro no Brasil. In: RAMOS, Artur. A Aculturação Negra no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca pedagógica Brasileira, 1942. ), passando por Verger (1981VERGER, Pierre. Orixás. Salvador: Corrupio, 1981.; 1999VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na antiga costa dos escravos, na África. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1999.) e Bastide (1974BASTIDE, Roger. Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1974.; 1978BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia (rito nagô). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.; 1989BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpretações de civilizações. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989.). Yeda de Castro (2001CASTRO, Yeda Pessoa de. Línguas africanas e realidade brasileira. Revista da FAEEBA, Salvador, v. 10, n. 15, p. 83-91, 2001.) chama a atenção ainda para a valorização dos estudos das línguas negro-africanas, que erroneamente classificaram os povos que se valem de uma tradição oral como portadores de cultura inferior, valorizando a cultura sudanesa em relação à banto.

Ainda como testemunho do que afirmamos e tendo em mente que o iorubá é a única língua africana prestigiada por livros editados no Brasil desde 1958 (Ver Introdução ao estudo gramatical da língua yorubá de Edson Nunes da Silva, publicação da Universidade da Bahia), basta conferir as inúmeras e fantasiosas tentativas para se descobrir um étimo em língua iorubá para o termo brasileiro candomblé (do banto *kandombile, ação de rezar), e o fato de se colocar os palmarinos falando iorubá numa época em que não há registro da presença de iorubafones no Brasil. Esse episódio aconteceu no filme produzido, nos anos 80, por Cacá Diegues, com vistas a narrar a saga da República de Palmares, e que teve grande divulgação também no exterior (Castro, 2001CASTRO, Yeda Pessoa de. Línguas africanas e realidade brasileira. Revista da FAEEBA, Salvador, v. 10, n. 15, p. 83-91, 2001., p. 86).

Da mesma forma, percebemos em Zumbi a presença de palavras e expressões iorubanas não apenas no trecho aqui citado, como também em outras partes do texto. Nesse sentido, atentamos para essa tendência de valorização da cultura sudanesa como uma forma de legitimação do elemento africano. Tal tendência pode ser compreendida na obra original Arena Conta Zumbi, se pensarmos que se tratava então de obra que, antes da referência histórica e cultural afro-brasileira, buscava na fábula uma metáfora para o momento presente. É possível, aliás, que a tendência de valorização da cultura sudanesa tenha na época influenciado os autores. Em se tratando, porém, da ressignificação da obra, na montagem de Zumbi a presença da língua iorubana pode abrir perspectivas para a diversidade da cultura popular negra, uma vez que, mais importante do que a reprodução arqueológica e histórica de Palmares, será a representação da força, pertinência e diversidade cultural que a presença negra trouxe para a formação cultural de nosso país. Sendo assim, voltando à afirmação de Hall de que na cultura popular negra não existem formas puras, entendemos que, mais do que buscar aquilo que guarda o africano legítimo ou a soberania cultural, se faz necessário o reconhecimento da riqueza das fontes e possíveis diálogos, no constante movimento de aceitação e resistência.

Outro elemento em Zumbi que chama a atenção, como já destacado, é a opção pela formação de um elenco todo negro, o que, ao contrário da montagem de 1965, na qual o negro era essencialmente tema, concretiza sua presença no palco. A presença do corpo negro, por si só, traz à cena uma potência expressiva; sabemos o quanto o corpo é importante nas tradições afro-brasileiras, que o utilizam de formas diversas. Stuart Hall (2003HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução: Adelaine L. Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 324) ressalta o fato de “[...] como essas culturas têm usado o corpo como se ele fosse, e muitas vezes foi, o único capital cultural que tínhamos. Temos trabalhado em nós mesmos como em telas de representação”.

Ainda sobre o capital cultural e corporal em Zumbi, também podemos destacar o tratamento musical e coreográfico do espetáculo, que traz, além de vozes e corpos negros, uma variedade de instrumentos melódicos, harmônicos e percussivos. Os instrumentos e as sonoridades do congado mineiro são marcantes no espetáculo, o que, além de incluir a sonoridade de uma cultura popular negra, dialoga diretamente com as tradições regionais mineiras − a montagem foi feita em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, com um elenco formado por atores dessa região. A sonoridade e corporeidade próprias do congado mineiro entram na peça em diferentes situações, como, por exemplo, em momentos de oração ou de preparação para a guerra. A significância, nessas situações, extrapola as leituras cognitivas das cenas e traz para o espetáculo momentos rituais em que, mesmo sem participar diretamente da execução da música ou do desenvolvimento da coreografia, o público é envolvido pela potência das performances. Leda Martins (2003MARTINS, Leda. Performance do tempo e da memória: os congados. O Percevejo, Revista de teatro, crítica e estética, Rio de Janeiro, UNIRIO, Ano II, n. 12, p. 68-83, 2003. ), ao tratar do congado mineiro, destaca a performance ritual, como uma operação que reorganiza e transmite princípios filosóficos africanos.

Segundo Ngugi wa Thiong’o (1997: 139), na cosmovisão africana,

[...] nós que estamos no presente somos todos, em potencial, mães e pais daqueles que virão depois. Reverenciar os ancestrais significa, realmente reverenciar a vida, sua continuidade e mudança. Somos os filhos daqueles que aqui estiveram antes de nós, mas não somos seus gêmeos idênticos, assim como não engendraremos seres idênticos a nós mesmos. [...] Desse modo, o passado torna-se nossa fonte de inspiração; o presente, uma arena de respiração; e o futuro nossa aspiração coletiva.

Essa percepção cósmica e filosófica entrelaça, no mesmo circuito de significância, o tempo, a ancestralidade e a morte. A primazia do movimento ancestral, fonte de inspiração, matiza as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene transformação (Martins, 2003MARTINS, Leda. Performance do tempo e da memória: os congados. O Percevejo, Revista de teatro, crítica e estética, Rio de Janeiro, UNIRIO, Ano II, n. 12, p. 68-83, 2003. , p. 78-79, em itálico no original).

Essas performances possuem aspectos culturais profundos, trazendo para o espetáculo a força da cultura popular negra e, como continua Leda, nos revelando uma outra relação com o tempo, com o passado, o presente e o futuro, uma outra relação com a história.

A visualidade do espetáculo caminha para o alusivo, as atrizes e atores são caracterizados com vestimentas tribais, estando no início da encenação todos com o peito nu, vestidos com panos que recebem diferentes amarrações no decorrer da encenação. A cenografia segue essa caracterização tribal, com cordas cruas penduradas, tocos e estacas de madeiras, figurando o possível espaço do quilombo. Essa visualidade nos revela certo pensamento de ambientação de uma África idealizada, reforçando uma visão maniqueísta, já existente no texto, de uma sociedade ideal formada pelos negros. Esse maniqueísmo não necessariamente se coloca como um elemento negativo na construção, uma vez que a mensagem pretendida na obra é bem clara: identificação do inimigo, luta e resistência a ele. Tal mensagem está presente tanto na obra de 1965 quanto na de 2012, e a opção maniqueísta, nesse caso, acreditamos, serve para não deixar dúvidas quanto ao lado que está sendo defendido e também sobre quem é esse inimigo contra o qual é preciso lutar e a ele resistir − no caso, é esse poder violento da propriedade, do capital e que quanto a Zumbi ainda podemos estender para um poder racista, de exclusão social, apoiado em um trabalho de bases hegemônicas, na qual o negro é inferiorizado em nossa sociedade.

Tais bases hegemônicas são presentes em nossa sociedade de forma tão forte que, mesmo nos lugares de estudo e reflexão sobre essas questões, podemos enxergar algumas implicações. Ao analisar, por exemplo, a visão histórica que Arena Conta Zumbi e Zumbi trazem, percebemos o quanto, apesar de se tratar de uma obra exemplar, do ponto de vista da valorização da história da escravidão e da presença desses homens e mulheres pela perspectiva da resistência - visão esta que nos mostra homens e mulheres que não eram entendidos apenas como escravizados, mas como reis e rainhas, guerreiros e trabalhadores habilidosos, capazes de construir uma sociedade que desafiava os interesses da coroa - constatamos no tratamento dado à constituição da família uma visão pouco positiva, como aponta Claudia de Arruda Campos (1988CAMPOS, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes e Outras Histórias Contadas pelo Teatro de Arena de São Paulo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988., p. 78):

Também particularidades não-intencionais prendem Zumbi a seu tempo. A plateia de hoje certamente não agradaria, por exemplo, o tratamento que, na peça, se dá à sexualidade ostensiva, ligada um pouco ao companheirismo e muito à reprodução e fortalecimento do quilombo, num contexto merecedor do epíteto ‘machista’. Uma das primeiras providências dos quilombolas é tratar de raptar as negras: ‘- 20 negras! - 40! - Prá cada um!’ E as vítimas do rapto chegam a cantar a sujeição: ‘Pois é, de sinhô em sinhô eu prefiro meu nego que é da minha cor’.

Mais do que “o contexto merecedor do epíteto ‘machista’”, aqui nos chama a atenção a visão corrente na historiografia da época em que a peça foi escrita. Robert Slenes (2011SLENES, Robert. Na Senzala uma Flor: esperanças e recordações da família escrava. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.), na obra Na senzala uma flor, apresenta um longo trabalho de pesquisa, com fontes documentais do século XIX, propondo a verificação de tal visão. Mostra que, até a década de 1970, a historiografia brasileira atribuía pouca ou nenhuma relevância às relações familiares dos escravos no Brasil; ao contrário, retratava o entendimento de um cotidiano marcado pela promiscuidade, desregramento e violência, características estas que se associavam à anulação do cativo como sujeito histórico. Percebemos, portanto, o quanto as formas de exclusão social e racial estão enraizadas em nossa cultura, necessitando de vigília cotidiana dos atos e palavras. E, assim, ao pôr em cena tais questões, descortina e potencializa-se simbolicamente a existência e necessidade da luta de forma ampliada, seja em seus acertos, seja em seus equívocos.

Dessa forma, na obra Arena Conta Zumbi, percebemos o quanto não só o assunto do golpe político e das formas de cerceamento da democracia, como aquelas ocorridas em 1964, mas também do racismo e da exclusão social se fazem pertinentes para o debate. Em 2012, ano da remontagem de João das Neves, momento em que ainda não era possível vislumbrar a concretude dos acontecimentos que viveríamos em nosso país no ano de 2016, que só começariam a se desenhar em 2013, foi possível a ampliação de sua dimensão política, emergindo, na nova proposta de montagem, as potencialidades da peça ligadas ao racismo e à exclusão social; mesmo assim, defendemos a pertinência de Zumbi como uma obra de resistência potencial também ao golpe de 201612 12 Michael Löwy defende que o que ocorreu em 2016 com a destituição da presidenta Dilma Rousseff foi um golpe de Estado, articulado por meio de uma estratégia parlamentar, midiática e política. O autor coloca que, desde o início do século XXI, a esquerda ganhou terreno em alguns países da América Latina. Esta possuía características diferentes, sendo algumas mais tendentes a “coalisões social-liberais” (Brasil, Uruguai e Chile), outras com “governos antioligárquicos, antineoliberais e anti-imperialistas” (Venezuela, Bolívia e Equador) e havia ainda aquelas que se encontram em um meio do caminho em relação a essas duas tendências (Paraguai, Nicarágua, El Salvador, ou Argentina). Desde o início do poder dessa nova esquerda na América Latina houve tentativas de retomada de poder por parte de oligarquias e muitos desses golpes foram barrados por ampla mobilidade popular. No Brasil, com o claro intuito de interromper o processo democrático, em uma articulação parlamentar de aliança do bloco de partidos de direita “[...] conhecido como ‘a bancada BBB’: da ‘Bala’ (deputados ligados à Polícia Militar, aos esquadrões da morte e às milícias privadas), do ‘Boi’ (grandes proprietários de terra, criadores de gado) e da ‘Bíblia” (neopentecostais integristas, homofóbicos e misóginos)” (Löwy, 2016), o golpe de Estado destituiu a presidenta eleita por 54 milhões de votos. O autor ainda chama a atenção quanto à conjuntura internacional, de fim da guerra fria, o que diferenciaria os atuais golpes das “ditaduras sangrentas” vividas de 1964 a 1990, porém, mesmo assim, não excluindo por completo a possibilidade de instauração de processos violentos. Para saber mais sobre o assunto: Singer et al. (2016) e Mattos, Bessone e Mamigonian (2016). , nas suas novas configurações, que permanece ainda hoje, uma vez que ainda estamos procurando entender as consequências desse golpe de 2016, longe ainda de esgotar as reflexões do que passamos de 1964 a 1985.

Eu vivo num tempo de guerra
Eu vivo num tempo sem sol
Só quem não sabe das coisas
É um homem capaz de rir.
Ai triste tempo presente
em que falar de amor e flor
é esquecer que tanta gente tá sofrendo de dor.
Todo mundo me diz que devo cume e bebê
mas como é que eu posso comer
mas como é que eu posso beber
se eu sei que estou tirando
o que vou comer e beber
de um irmão que está com fome
de um irmão que está com sede
de um irmão.
Mas mesmo assim eu como e bebo.
Mas mesmo assim, essa é a verdade.
Dizem crenças antigas que viver não é lutar.
Que sábio é o que consegue ao mal com o bem pagar.
Quem esquece a própria vontade,
quem aceita não ter seu desejo
é tido por todos um sábio.
É isso que eu sempre vejo
e é isso que eu digo
Não!
Eu sei que é preciso vencer
Eu sei que é preciso brigar
Eu sei que é preciso morrer
Eu sei que é preciso matar.
(Boal; Guarnieri; Lôbo, 1965BOAL, Augusto; GUARNIERI, Gianfrancesco; LÔBO, Edu. Arena Conta Zumbi. Brasil; RCA, 1965. 1 LP., LP).

Somos levados a crer que a luta e a resistência, além de demandar vigília cotidiana, em nossa sociedade está longe de se encerrar. Com clara referência ao poema de Brecht (1986BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Tradução: Paulo Cesar de Souza. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986., p. 214-216) “Aos que vão nascer”, a peça ainda hoje, pareada aos acontecimentos históricos que estamos vivendo desde o ano seguinte ao de sua estreia, nos faz lembrar o quanto a luta e as formas de opressão se repetem de tempos em tempos, e avanços e recuos históricos são dados concretos que devem ser enfrentados no próprio movimento histórico. O olhar em perspectiva para as montagens de Arena Conta Zumbi e Zumbi, pondo em contraste 1965 e 2012, nos revela que, para essa luta, é preciso unir esforços; vivemos tempos sombrios, em que precisamos entender e buscar mais aquilo que nos une na luta do que aquilo que nos distancia.

As possibilidades de leitura que buscam, em um panorama pós-colonial, entender a cultura popular negra como cultura subalterna, procuram indagar, por meio da análise das relações de subordinação e resistência, como essas categorias, hoje vistas como identitárias, reivindicam sua representação junto à sociedade como instrumento de luta de transformação social. Nesse sentido, ao ampliarmos o olhar, na perspectiva dos estudos culturais marxistas, para a luta de classes, podemos perceber o importante papel de luta dessas categorias, na sociedade contemporânea, para, a partir de suas reivindicações específicas, almejar uma transformação estrutural ampla dessa sociedade. Por esse ângulo, as bases materiais e culturais, compreendidas como práxis - práticas sociais organizadas numa sociedade de classes -, revelam aquilo que o pensamento dominante tende a ocultar, ou seja, que vivemos diferenças e conflitos sociais. Apesar de nosso passado histórico, o conhecimento das práticas culturais populares negras ainda é restrito e o protagonismo social das camadas subalternas ainda encoberto, trazendo à tona a pertinência de obras como Arena conta Zumbi e Zumbi no panorama político-cultural do teatro produzido nos últimos anos no Brasil.

Referências

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  • 1
    João das Neves é daquelas personalidades que se pode chamar de um artista completo - diretor, escritor, ator, iluminador, cenógrafo e produtor cultural. Possui trajetória ímpar, além de permanência de 16 anos no Grupo Teatral Opinião; ganhou notoriedade por sua produção dramatúrgica, com destaque para o texto O último carro. Como poucos artistas da área, durante determinado período saiu do eixo de produção cultural do Sudeste, trabalhando e residindo no estado do Acre, onde fundou o Grupo Poranga. Atualmente vive no estado de Minas Gerais, na cidade de Lagoa Santa, onde dirige trabalhos que se destacam nos cenários de produção mineiro e nacional, sobretudo a Trilogia Afro-Brasileira, da qual fazem parte as peças Besouro Cordão de Ouro e Galanga, Chico Rei, ambas escritas por Paulo César Pinheiro, e Zumbi, espetáculo baseado no musical Arena Conta Zumbi, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri.
  • 2
    No decorrer do texto, quando mencionarmos Arena Conta Zumbi estaremos nos referindo à obra de Boal e Guarnieri, encenada em 1965, e Zumbi, à encenação de João das Neves de 2012.
  • 3
    Arte contra a Barbárie foi um movimento de organização em torno da classe de artistas de teatro, que ocorreu na virada do século XX para o XXI, na cidade de São Paulo. Tal movimento, além de gerar caras discussões a respeito da função do artista em nossa sociedade, obteve alguns resultados concretos no que diz respeito ao entendimento e à organização de grupos teatrais, sendo a Lei de Fomento ao Teatro um de seus resultados mais contundentes. Para aprofundar o assunto, ler Desgranges e Lepique (2012DESGRANGES, Flávio; LEPIQUE, Maysa. Teatro e Vida Pública: o fomento e os coletivos teatrais de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 2012.) e Costa (2012COSTA, Iná Camargo. Nem uma Lágrima: teatro épico em perspectiva dialética. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2012.).
  • 4
    A Lei de Cotas foi instituída no âmbito federal em 2008, mas já vinha sendo discutida há mais tempo, bem como, desde 2000, implantada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
  • 5
    A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) foi criada em 2003, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sendo resultado do reconhecimento das lutas históricas do Movimento Negro.
  • 6
    Importante grupo teatral paulista das décadas de 1950 e 1960; é considerado uma referência para o teatro político no Brasil. Sobre o assunto, ler Costa (1996COSTA, Iná Camargo. A Hora do Teatro Épico no Brasil. São Paulo: Graal, 1996.) e Prado (1988PRADO, Décio de Almeida. O Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo: Perspectiva , 1988.).
  • 7
    O musical Opinião, considerado a primeira resposta teatral ao golpe de 1964, foi encenado ainda em dezembro de 1964.
  • 8
    A primeira edição da obra de Edison Carneiro data de 1958, pela editora Brasiliana.
  • 9
    Para mais informações sobre o sistema coringa, ver Boal (1977BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.).
  • 10
    Tal caracterização também ocorreu no espetáculo Arena Conta Zumbi.
  • 11
    Sobre o assunto, ver Prandi (2000PRANDI, Reginaldo. De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião. Revista USP, São Paulo, n. 46, p. 52-65, 2000.) e Slenes (1992SLENES, Robert W. ‘Malungu, ngoma vem!’: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP , São Paulo, n. 12, p. 48-67, 1992.).
  • 12
    Michael Löwy defende que o que ocorreu em 2016 com a destituição da presidenta Dilma Rousseff foi um golpe de Estado, articulado por meio de uma estratégia parlamentar, midiática e política. O autor coloca que, desde o início do século XXI, a esquerda ganhou terreno em alguns países da América Latina. Esta possuía características diferentes, sendo algumas mais tendentes a “coalisões social-liberais” (Brasil, Uruguai e Chile), outras com “governos antioligárquicos, antineoliberais e anti-imperialistas” (Venezuela, Bolívia e Equador) e havia ainda aquelas que se encontram em um meio do caminho em relação a essas duas tendências (Paraguai, Nicarágua, El Salvador, ou Argentina). Desde o início do poder dessa nova esquerda na América Latina houve tentativas de retomada de poder por parte de oligarquias e muitos desses golpes foram barrados por ampla mobilidade popular. No Brasil, com o claro intuito de interromper o processo democrático, em uma articulação parlamentar de aliança do bloco de partidos de direita “[...] conhecido como ‘a bancada BBB’: da ‘Bala’ (deputados ligados à Polícia Militar, aos esquadrões da morte e às milícias privadas), do ‘Boi’ (grandes proprietários de terra, criadores de gado) e da ‘Bíblia” (neopentecostais integristas, homofóbicos e misóginos)” (Löwy, 2016LÖWY, Michael. Da tragédia à farsa: o golpe de 2016 no Brasil. In: SINGER, André et al. Por que Gritamos Golpe?: para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.), o golpe de Estado destituiu a presidenta eleita por 54 milhões de votos. O autor ainda chama a atenção quanto à conjuntura internacional, de fim da guerra fria, o que diferenciaria os atuais golpes das “ditaduras sangrentas” vividas de 1964 a 1990, porém, mesmo assim, não excluindo por completo a possibilidade de instauração de processos violentos. Para saber mais sobre o assunto: Singer et al. (2016SINGER, André et al. Por que Gritamos Golpe?: para entender o impeachment e a crise política no Brasil . São Paulo: Boitempo Editorial , 2016.) e Mattos, Bessone e Mamigonian (2016MATTOS, Hebe; BESSONE, Tânia; MAMIGONIAN, Beatriz G. Historiadores pela Democracia: o golpe de 2016 e a força do passado. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2016.).
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2017
  • Aceito
    02 Jul 2018
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