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Exu Pisa no Toco de um Galho Só: performance e performatividade em Exu

Exu Étapes sur le Moignon d’une Seule Branche: performances et performativité dans Exu

RESUMO

Este artigo discute performatividade e performance através da analogia com o orixá Exu e as entidades Exus. A pesquisa de campo e a observação participante no candomblé e nas giras de Exus permitiram aprofundar as reflexões. Através de experiências como um omorixá Exu, projeta-se o terreiro e a encruzilhada como espaço de produção de conhecimento. Alargando o entendimento de performance tendo a diáspora africana como contribuição e influência. Conclui-se que performatividade/Exu e performance/Exus não podem ser subjugados a olhares universalistas e padronizadores. A encruzilhada é um espaço capaz de apontar caminhos que contribuem para a compreensão das performances e corporeidades negras.

Palavras-chave:
Exu; Exus; Performance e Performatividade; Performance Afro; Corpo Encruzilhada

RÉSUMÉ

Cet article discute de la performativité et performance par le biais de l’analogie avec l’orisha Exu ainsi que les entités Exus. La recherche de terrain et l’obseration participante au sein du Candomblé et dans les rouages de Exu ont permis d’approfondir les réflexions. A travers des expériences telles que Omorixá Exu, le temple et le carrefour se projettent comme des espaces de production du savoir. La compréhension de la performance s’élargit grâce aux influences et contribuitions de la dispora africaine. Il en découle que la performativité/Exu et la performance Exu ne peuvent se réduire exclusivement à la vision occidentale. Le carrefour est un espace capable de montrer le chemin qui contribue à la compréhension des performances et esprits corporels noires.

Mots-clés:
Exu; Exus; Performances et Performativité; Performances Afro; Corps Carrefour

ABSTRACT

This paper discusses performativity and performance through an analogy with the orixá Exu and the Exus entities. The field research and participant observation in Candomblé and giras of Exu allowed for an in-depth reflection. Experiences as an Omorixá Exu allows us to approach the terreiro and the crossroads as a knowledge production space. Our understanding of performance is broadened due to the contributions and influences of the African diaspora. We conclude that performativity/Exu and performance/Exus cannot be subjugated to universalist and standardizing views. The crossroads is a space with the capacity of pointing out paths that contribute to the understanding of Black performances and corporealities.

Keywords:
Exu; Exus; Performance and Performativity; Afro Performance; Crossroads Body

Exu pisa no toco de um galho só

Exu pisa no toco e pisa no galho

O galho balança Exu não cai ô ganga1 1 Ponto cantado para Exu nos centros de umbanda.

O referido ponto faz menção à capacidade dos Exus de serem maiorais, a sua forma de lidar com as situações e a como causam o caos para promover a ordem na controversa do esperado. Este artigo flerta com os conceitos e concepções de performance e performatividade como quem anda na corda bamba, ciente de que a qualquer momento pode tropeçar nas armadilhas, as quais os autores referenciados caíram na tentativa de engessar o que é fluido e dinâmico. Este trabalho promove reflexão sobre os conceitos de performatividade e performance através de diálogo e aproximação com Exu e Exus. Para tal, arriscamos recorrer a algumas disciplinas, como a antropologia, a arte e a filosofia, atreladas às experiências dos terreiros de candomblé, nas encruzilhadas e nos centros de umbanda para servir como aporte na construção de reflexões que possam contribuir com o debate acerca dos Estudos da Performance. Debruçamo-nos também sobre performances afro a fim de compreender sobre os aspectos similares entre as diversas performances de matriz africana.

Para isso, recorremos à encruzilhada como lugar de criatividade e produção de epistemes que proporcionam outras possibilidades estéticas e experiências corporais para expressar a performance e a corporeidade negra. Minha experiência enquanto candomblecista e omorixá Exu também participa desse “[...] ebó epistêmico” (Rufino, 2016, p. 23RUFINO, Luiz. Performances afrodiaspóricas e decolonialidade: o saber corporal a partir de Exu e suas encruzilhadas. Revista Antropolítica, Niterói, n. 40, p. 54-80, 2016.). Esta pesquisa floresce junto à necessidade de nos conscientizarmos sobre a importância de valorizar e conhecer outras formas de produção de conhecimento, da expressão de corpos há muito silenciados e por apresentar outras perspectivas, as quais as artes podem fluir. Promove contribuições significativas para os Estudos da Presença, das Artes Cênicas, da Performance e da Cultura Afro-Brasileira. Assim para que o xiré, a festa, ocorra a contento de Exu ofertamos esse padê conceitual, minha farofa amarela, para referenciar aos ancestrais no estudo da performance.

Embora artistas futuristas, dadaístas e surrealistas já tenham realizado intervenções que buscavam romper com os dogmas e paradigmas da arte tradicional e no meio social da década de 1950, 1960 e 1970, (Goldberg, 2007GOLDBERG, RoseLee. Arte da performance: do futurismo ao presente. 1 ed. Lisboa: Orfeu negro, 2007.) assinala que a performance só ganha notoriedade e reconhecimento enquanto gênero e expressão artística independente na década de 1970. Momento em que as obras de arte eram reconhecidas apenas como algo supérfluo e comercial. A arte conceitual desfrutava de forma plena os salões nobres de artes, museus e galerias, impulsionando as obras enquanto mercadoria a ser comercializada.

Marcel Duchamp (1913) apud (Goldberg, 2007GOLDBERG, RoseLee. Arte da performance: do futurismo ao presente. 1 ed. Lisboa: Orfeu negro, 2007.) critica o fato de uma elite de artistas terem poder para chancelar e definir o que poderia ser considerado obra de arte. Assim, como num passe de mágica, qualquer objeto cotidiano tocado por um artista e chancelado pela elite, seria, por essência, considerado uma obra de arte, mais uma obra disponível à venda nos salões nobres (Salgado, 2014SALGADO, Tiago Barcelos Pereira. Performance. Dispositivo, Belo Horizonte, v. 2, n. 2 nov. 2013/ jun. 2014. P. 74-90.). A arte dessa época estava voltada a valorizar o produto em detrimento do processo. É nesse cenário que a performance surge como catalisador, demolidor contra a categorização, onde o performer não só a usava para atrair publicidade para si, mas também como estratégia para pôr em prática, para materializar, dar corpo às ideias e aos diversos conceitos sobre a criação artística rompendo com a ideia de que a arte estava aprisionada a um conceito único. Logo, as “[...] demonstrações ao vivo sempre foram usadas como arma contra os convencionalismos da arte estabelecida” (Goldberg, 2007, p. 7GOLDBERG, RoseLee. Arte da performance: do futurismo ao presente. 1 ed. Lisboa: Orfeu negro, 2007.).

Com isso, os artistas canônicos tiveram que repensar suas abordagens, voltando uma atenção maior para os processos, o que lhes permitiu transgredir os limiares de uma arte elitista através da performance enquanto uma disciplina maleável e aberta a promover diálogos entre as linguagens e campos diversos como: literatura, artes, ciências sociais. É inquestionável que sua origem tenha se dado nas artes visuais e que foi por meio desses diálogos que a performance ganhou fôlego para se expandir por diversos campos como já citados e diversos setores da vida humana. Tornando-se assim um campo fértil de produção em arte e sem fronteiras – o que possibilita troca e contato entre as linguagens artísticas, gerando um universo de diversas abordagens, além das artísticas, nas esferas da antropologia, sociologia, história e dos esportes (Ligiéro, 2010LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.).

Nascida de um cenário de pós guerra fria, a performance é também produto dos diversos levantes sociais e disciplinares que no final da década 1960 estremeceram a Europa e os Estados Unidos, rompendo radicalmente com as noções de comportamentos normativos promulgados pela sociologia. Reduziu as divisões disciplinares entre antropologia e o teatro (Taylor, 2003TAYLOR, Diana. Hacia uma definición de performance. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 17-24, 2003.; 2013TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Tradução de Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.).

Ressalto que nos Estados Unidos as décadas de 1960 e 1970 compreenderam importantes momentos marcados histórica e socialmente pelos crescentes questionamentos direcionados à Arte clássica. Essas décadas também foram conhecidas como virada performativa ou giro da performance consolidada como linguagem para questionar valores e estruturas políticas e culturais, pondo a Arte e o artista em xeque. Há nesse momento uma busca por abolir toda forma de pensar arte que se distancie da vida.

O comprometimento dos estudos da performance com a reflexão e a análise dos objetos de arte são formas de intervir na relação do homem com seu meio social e no seu corpo através da tenuidade entre interfaces da arte com a vida cotidiana (Zenicola, 2014ZENICOLA, Denise Mancebo. Performance e Ritual: a dança das iabás no xirê. Rio de Janeiro: Mauad x; Faperj, 2014.). Para a pesquisadora, a performance resulta da possibilidade de permitir que se tornasse aplicável e funcional o diálogo entre as diversas esferas da vida. Nei Lopes (2010, p. 09)LOPES, Nei. Prefácio. In: LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. P. 09-11., no prefácio do livro Corpo a corpo: estudo das performances afro-brasileiras, assinala que a performance é uma disciplina “[...] atraente e misteriosa [...]” – há na sua percepção a ideia de superação da dicotomia entre arte e vida, onde ambas se mostram atraente e misteriosa para o homem.

Seria essa capacidade da performance de relacionar, de forma intrínseca, os mistérios da arte com os mistérios da vida que permite e/ou provoca na performance um distanciamento e/ou fuga do teatro. Por mais que Carlson (2009)CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução critica. Tradução de Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2009. busque refutar essa ruptura, ela não é possível de ser negada, visto que a performance vem para dar ênfase à presença física do sujeito, buscando romper com a distância entre artista e público. As personagens fictícias saem de cena para dar lugar ao sujeito; o performer não representa nenhuma personagem a não ser a si mesmo, não há domínio dos acontecimentos, o roteiro não é uma prisão como no teatro clássico. A performance dá ao performer a potencialidade de ser, ao mesmo tempo, criador e criatura, uma vez que não há a separação entre artista e obra de arte, arte e vida vibram num lapso tempo-espacial onde ambos são sendo no aqui e agora.

A literatura aponta que a performance floresce do futurismo, do dadaísmo, surrealismo, dos happenings e das pinturas poemas, onde o corpo e a presença física assumem o centro da ação por meio de comportamentos e gestualidades (Goldberg, 2007GOLDBERG, RoseLee. Arte da performance: do futurismo ao presente. 1 ed. Lisboa: Orfeu negro, 2007.; Carlson; 2009CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução critica. Tradução de Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2009.; Salgado, 2014SALGADO, Tiago Barcelos Pereira. Performance. Dispositivo, Belo Horizonte, v. 2, n. 2 nov. 2013/ jun. 2014. P. 74-90.).

Kaprow trabalha com a perspectiva de que o espetáculo ao vivo (desempenho) aproximava-se da vida social, ou seja, a vida em si oferece conteúdo à arte e pode ser vivida como arte. Tal aproximação entre arte e vida presente nas obras de Kaprow é bastante influenciada pelo pensamento de Erving Goffman (Toro, 2010 apud Salgado, 2014, p. 8SALGADO, Tiago Barcelos Pereira. Performance. Dispositivo, Belo Horizonte, v. 2, n. 2 nov. 2013/ jun. 2014. P. 74-90.).

Arte e vida estão associadas de forma complementar, num processo de inter-nutrição, onde a arte floresce da vida ao mesmo tempo em que a alimenta, conotando assim, uma relação de reciprocidade indissociável. Dentre os artistas que desenvolveram seus trabalhos com uma perspectiva que se aproximasse ou fosse geratriz da performance, ganha destaque Allan Kaprow, que em 1950 concebeu obras que mesclavam diversas linguagens artísticas, as quais não era possível identificar e/ou classificar como sendo dança, música, teatro, pintura ou escultura, e suas práticas artísticas eram muito ligadas à Installation Art e aos Happenings.

São de notória importância para o surgimento e o fortalecimento da performance, artistas como “Ana Mendieta, Chris Burden, DanGraham, Gina Pane, Joan Jonas, John Cage, Lao Tzu, Laurie Anderson, Marina Abramovic, Vito Acconci, Stelarc” (Salgado, 2014, p. 81SALGADO, Tiago Barcelos Pereira. Performance. Dispositivo, Belo Horizonte, v. 2, n. 2 nov. 2013/ jun. 2014. P. 74-90.), que desenvolveram suas obras artísticas de forma interserccional, rompendo barreiras entre gêneros e os campos de conhecimento, buscando a superação da dicotomia vida e arte.

Por mais que Carlson (2009)CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução critica. Tradução de Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2009. aponte a impossibilidade de conceituar performance, atrever-me-ei a tecer algumas reflexões a caminho de um conceito que contemple e auxilie essa escrita. Para tal, recorrerei também à reflexão sobre o conceito e a presença da performatividade desenvolvida pelo orixá Exu e as entidades Exus brasileiros. Crio uma analogia entre os dois conceitos, performance e performatividade, como Exu e Exus, não respectivamente. Debruço-me sobre a complexidade que é refletir conceitualmente sobre esses quatros elementos: Performance, Performatividade, Exu e Exus. Performance/Exus e Performatividade/Exu de forma análoga. Parto da performatividade/Exu como ponto inicial, como quem faz de trás para frente, como quem nega para afirmar. Assim deixo os conceitos centrais Performance/Exus dentro de minha moringa para acessar em um momento oportuno, como quem espera sorrateiramente pelo momento certo de atacar.

Os Exus estão para o orixá Exu como a performance está para a performatividade: ambos surgem para ratificar a presença de sua matriz, seja na forma de anunciação ou na própria forma de agir, de entrar em ação. Taylor (2013)TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Tradução de Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. assinala performance e performatividade como falsos cognatos; eu ouso, aqui, dizer que Exu e Exus também os são na mesma medida – eles contraditoriamente são tão parecidos quanto diferentes. Os Exus brasileiros, entidades da umbanda, são elementos que conotam a presença, a fisicalidade do orixá. Em outras religiões que não o candomblé, eles surgem e se fortalecem na relação que o candomblé traça com outras culturas. Por sua vez a performatividade surge através de pesquisadores vindos da retórica e da filosofia, como Derrida, Foucault, Lacan e Butler (Taylor, 2003TAYLOR, Diana. Hacia uma definición de performance. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 17-24, 2003.; 2013TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Tradução de Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.); (Carlson, 2009CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução critica. Tradução de Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2009.) e (Lopes, 2010LOPES, Nei. Prefácio. In: LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. P. 09-11.), todos creditando à ação, à enunciação, seja através de gestos, comportamentos preestabelecidos por símbolos, códigos ou fala, o que nos remete à relação de interação no campo físico que os exus têm com os devotos por meio da bebida, cigarro, da comida, da fala, da dança e das vestimentas. A performance está para a ação tanto quanto a performatividade está para o enunciado, a energia, a força do discurso que presentifica o orixá.

Outro elemento que permite flertar nessa encruzilhada conceitual Exu/performatividade e Exus/performance é a afirmativa de Schechner (2003SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 25-50, 2003.; 2006SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. In: SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. 2. ed. New York; London: Routledge, 2006. P. 28-51.; 2012SCHECHNER, Richard. Performance e Antropologia de Richard Schechner: seleção de ensaio organizada por Zeca Ligiéro. Tradução de Augusto Rodrigues da Silva Junior et al. Rio de Janeiro: Mauad x, 2012.), quando o mesmo aponta que nem tudo é performance, mas tudo pode ser estudado, visto enquanto performance. Logo, se a performance está no intermédio do performer, a ação e a audiência, a performatividade é o discurso que amarra o sentido, contexto, ou o não sentido. A performatividade é composta por micro performances que proporcionam ao performer a sensação de alcançar, ou não, os objetivos a que se propôs, expandindo assim os sentidos dos códigos e símbolos.

Se emergirmos no campo místico e mítico para observar e relacionar esses aspectos, perceberemos que quando Exu se faz presente no terreiro, mesmo na expressão das entidades Exus, seu enunciado se faz pela fisicalidade expressa no salão. Assim como, no campo energético que envolve o imaginário dos devotos acerca da divindade, seja através das cores, dos elementos usados para adornar o ambiente, das bebidas, das músicas, toques e danças executadas no ritual. Exu/performatividade e Exus/performance se fazem presença de forma simultânea, inter-relacional e/ou interdependente.

Porém, encontramos na figura de Zé Pelintra um enigma que nos coloca de volta na encruzilhada conceitual sobre o ser Exu/performatividade e o ser Exus/performance. Zé Pelintra é entidade do catimbó, que uns apontam como não sendo um Exus, e outros como sendo um espírito desencarnado, egun, que é invocado na quimbanda, na umbanda nas giras para Exus. Sua enunciação é da falange das almas, mas sua presença se faz no campo representativo e simbólico de Exus. As entidades são vistas enquanto Exus, logo sua performance é permeada por cantigas, danças, bebidas e vestimentas que expressam performatividade que possibilita compreendê-lo como Exus, conotando a energia enunciativa do orixá Exu. Isso nos posiciona no meio da encruzilhada Schechneriana do enquanto. Zé Pelintra é visto enquanto egun, assim atuaria na falange das almas, porém atua enquanto Exus na falange de Exu no culto da umbanda. Performance e performatividade em uma só entidade. Assim a performatividade compõe um conjunto de movimentos, gestos, falas, símbolos culturais que podem ser estudados enquanto performance, mas não é performance. Há na performatividade grande presença de teatralidade, o que lhe aproxima e quase a deixa íntima do teatro, porém ela também não é teatro (Féral, 2015FÉRAL, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2015.). Logo a performance pode ser entendida como uma encenação da vida vivida, enquanto a performatividade uma análise, estudo sobre a vida.

Performatividade é um falso cognato da performance, não de forma semântica, mas a performatividade expressa um vasto domínio cultural, não estando, como a performance, relacionada e voltada a uma questão e/ou preocupação puramente estética, como aponta (Féral, 2009FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Sala Preta, São Paulo, v. 8, p. 197-210, 2009.) ao abordar o tema performance e teatro performativo. A autora aponta duas perspectivas para performance: a primeira expande e amplia o conceito de performance aos campos da antropologia, ciências sociais, voltados aos estudos de rituais e dramas sociais pautados por Turner e Schechner; a segunda, do professor Huyssen, que busca expressar as perspectivas artísticas que valorizam as questões estéticas em detrimento às sociológicas e antropológicas, uma visão que distancia a arte das demandas socioculturais. Assim aponta a performance cultural e a performance artística:

Sua visão trata da performance no seu sentido puramente artístico - e não antropológico. Ele se coloca numa visão essencialmente estética que continua a dominar nas artes do espetáculo. A performance, no sentido, é a performance arte, uma arte que abalou nossa visão de arte nas décadas de 70 e 80 (Féral, 2009, p. 199FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Sala Preta, São Paulo, v. 8, p. 197-210, 2009.).

A performatividade é um dos tentáculos centrais da performance que a possibilita se expandir e ser multifacetária. A performatividade está na instância que atua sobre a cultura. Assim como os Exus demarcaram a presença do orixá Exu nos cultos afro-brasileiros, onde se resguardaram alguns aspectos do orixá em cada fragmento seu lançado aos nove Orun, em cada um dos Exus, da mesma forma o conceito de performatividade desloca o olhar do enunciado e de seu conteúdo para os modos de enunciação discursiva, desconstruindo e ressignificando símbolos e signos, criando uma fricção entre vida e arte, a realidade e o imaginário.

A compreensão desses termos, Performatividade/Exu e Performance/Exus, será desnecessária caso também não compreendamos sua essência. Assim, é sabido que ambos são elementos multifacetários e complexos para serem apreendidos em uma concepção que se diga purista e conservadora. Contudo essa busca se faz legítima por demonstrar como eles estão associados à vida de forma inseparável. Performatividade/Exu, Performance/Exus têm seu cerne na ação, no corpo presente, na fisicalidade. Seria muito simplista buscar um campo semântico para dar conta de temas tão ambíguos. Nessa perspectiva, Carlson (2009)CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução critica. Tradução de Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2009. aponta a futilidade na perseguição por compreensão e a apreensão semântica sobre performance:

Se considerarmos a performance como um conceito essencialmente questionado, isso nos ajudará a compreender a futilidade de procurar algum campo semântico inclusivo para cobrir os usos díspares como a performance de um ator, de uma escola, de um automóvel (Carlson, 2009, p. 16CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução critica. Tradução de Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2009.).

Assim Exu e a performatividade têm a capacidade de dialogar e promover diálogo entre diversas linguagens artísticas e em diferentes esferas da vida. As diferentes perspectivas da performance como prática ou objeto de estudo que dificultam precisar sua conceitualização, se considerarmos que ela, como Exu, está presente em todas as culturas e que pode ser tomada como ações que se realizam em contextos diversos. A performance, na fala de Schechner (2003SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 25-50, 2003.; 2006SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. In: SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. 2. ed. New York; London: Routledge, 2006. P. 28-51.), serve como um guarda-chuva onde se resguardam variadas manifestações artísticas e culturais. Quanto a esse aspecto da performance importa assinalar que:

A performance sempre afixou uma multiplicidade de inspirações e de formas, que nenhuma outra arte pôde preservar com a mesma intensidade. Vindo a performance de horizontes muito diferentes (música, pintura, dança escultura, literatura, teatro) (Féral, 2015, p. 136FÉRAL, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2015.).

Esses aspectos, como outros da performance, também são identificados nos Exu/Exus: maleabilidade, capacidade de transmutação e adaptação no tempo e no espaço. Não se prendem aos espaços físicos e nem ao tempo; sendo elas capazes de jogar com os dois, impõem sua temporalidade própria e suas próprias imagens e projeção, jogando com o espaço, ora o expandindo, ora o retraindo. A performance dobra o tempo como Exu o faz com o seu ogô – porrete mágico – que lhe permite se transportar no tempo-espaço.

A capacidade de manipular o corpo no espaço, dilatando-o em possibilidades não é uma característica de existência e permanência inerente tanto à divindade e entidades, quanto às linguagens aqui invocadas. O corpo é o cordão umbilical que conecta Exu ao universo, expressando sua performatividade enquanto Elegbara, o senhor do corpo, e é através desse mesmo corpo que ele, o Exu umbilical, conecta todos os seres viventes aos deuses, ao Orun, mundo dos não viventes. E não por coincidência é através do corpo, a partir do processo de incorporação ou corporificação, que as entidades Exus performatizam todas as mazelas e dramas socioculturais em forma de dança, música, cânticos, baforadas e gargalhadas. É por meio dessas ações, atos, gestos performativos que Exus espalham pelo universo físico e metafísico seu ebó simbólico.

Quando os Exus expressam sua performance nos centros, invocam de forma mística a performatividade de Exu. O rodar da saia da pombagira manipula o tempo-espaço e projeta o axé, a energia essencial do Orixá, fazendo com que esse seja reverenciado e presentificado nas mensagens inscritas nos corpos e no imaginário dos presentes. As gargalhadas das Pombagiras, o riscado do Zé Pelintra e as baforadas do charuto de Tranca-ruas são ebós simbólicos, performatizados para invocar nos sujeitos e para os sujeitos toda potencialidade de subversão inscrita no/pelo senhor do corpo, Orixá Exu Bara, para anunciar a rua e a encruzilhada como lugar de possibilidades epistêmicas diversas e variadas. Para tanto, o performer/sacerdote precisa colocar seu corpo em jogo, à risca, tendo consciência de que a mutilação, o ferimento e o desequilíbrio em algum momento podem ser uma realidade e que essa mutilação não ocorrerá, como pensa o senso comum, como uma forma de negação ou punição ao performer ou ao corpo. Será uma forma de reafirmá-lo cura que purifica, que permite brotar corpo do corpo, afirmando a certeza de presença, a entrega da alma. Mutilação que abre o corpo, mas que também fecha, protege e prepara. Deixar com que a plateia manipule seu corpo ou algo nele possibilita ressignificação e dilatação, o expandindo para uma pluralidade e diversidade de sentido.

Outros aspectos que legitimam e são basilares para as analogias aqui desenvolvidas são as capacidades dos elementos aqui envolvidos de manipular e transformar, tanto o espaço quanto a realidade que os envolvem. Para sustentar tal hipótese invoco e corporifico aqui neste texto Exu personificado em Enugbarijó, que na fala de Santos (2008)SANTOS, E. Juana. Os nagôs e a morte: padê e o culto egun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 2008. e Santos e Santos (2014)SANTOS, E. Juana; SANTOS, Deoscoredes Maximiliano dos (Mestre Didi Asipa). Èsù. Salvador: Corrupio, 2014. também é conhecido como o primeiro ser vivente, Exu Ianguí, sendo ele o intérrete e o linguista do sistema iorubá, conectando o Orun ao Aiê. Essa faculdade se dá pelo fato de que:

[...] todos os quatrocentos irumilés decidiram dar um pedaço de suas próprias bocas para Exu, no dia em que ele deveria representá-los aos pés de Olorum. Exu pegou esses pedaços e os colocou na própria boca; desde então ele fala por todos eles e sua boca os representa (Santos; Santos, 2014, p. 108SANTOS, E. Juana; SANTOS, Deoscoredes Maximiliano dos (Mestre Didi Asipa). Èsù. Salvador: Corrupio, 2014.).

Assim sendo, Enugbarijó seria a boca coletiva do universo, logo a boca que tudo come e que junto a sua competência de intérprete, aquele que torna tudo palatável, compreensível a seu modo ou não. Seria ele a expressão do dinamismo, manipulação e transformação. Para Simas e Rufino (2018, p. 51)SIMAS, Luiz Antonia; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: ciências encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018., Enugbarijó é a boca “[...] que tudo come, é a mesma que devolve o que engoliu de forma restituída [...]”, transformada, processada, modificada. Traga-se as mazelas, a fome, bebe-se as desgraças, as mágoas de mal de amor. As baforadas, as gargalhadas e as requebradas que os Exus performatizam nos centros de umbanda e quimbanda são a devolutiva, a restituição em resposta às demandas por eles engolidas e processadas, são anunciação de boas novas, ou não.

Nesse jogo de analogia trago Féral (2009)FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Sala Preta, São Paulo, v. 8, p. 197-210, 2009. ao analisar a relação da performance e da performatividade no seu diálogo com o campo representativo e a capacidade em jogar com os signos, códigos e símbolos, em engolir a realidade de uma forma e devolver de outra, de ser intérprete e decodificador dos códigos, implantando certa ambiguidade à cena, que tira o espectador do seu lugar de passividade tal qual faz Enugbarijó ao fazer sua devolutiva em forma de enigma:

A performance toma lugar no real e enfoca essa mesma realidade na qual se inscreve desconstruindo-a, jogando com os códigos e as capacidades do espectador... Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis, fluidos forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma referência à outra, de um sistema de representação a outro... O performer instala a ambiguidade de significação, o deslocamento dos códigos, os deslizes de sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a linguagem (Féral, 2009 p. 203-204FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Sala Preta, São Paulo, v. 8, p. 197-210, 2009.).

O corpo do performer é um corpo camaleão que se adapta a diversos ambientes através da manipulação e da metamorfose; o performer trabalha o corpo como um pintor trabalha a tela (Féral, 2015, p. 151FÉRAL, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2015.). O corpo, tanto na performance/Exus enquanto na Performatividade/Exu, assume o papel de lócus de produção de conhecimento e de vida e, por consequência, é pela ação que a performance se revigora e se permite manifestar, uma ação que parte do eu performer para outro audiência. Para Salgado (2014, p. 86)SALGADO, Tiago Barcelos Pereira. Performance. Dispositivo, Belo Horizonte, v. 2, n. 2 nov. 2013/ jun. 2014. P. 74-90., “O corpo é o lugar privilegiado em que a performance se realiza e, para tanto, convoca uma audiência em torno da qual o ato é exibido”.

A performance é intersticial (Lopes, 2010, p. 8LOPES, Nei. Prefácio. In: LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. P. 09-11.), ela não é o performer nem a audiência. Ela está no meio, no entre, o performer e a audiência, e o performer assume o papel de provocador. Igual a Exu que se localiza exatamente entre Olorum e o homem. Logo ambos, a performance e o Exu, preexistem ao enunciado performativo, ou seja, como uma ação que se dá no corpo a partir de sua expansão entre os diversos gêneros e linguagens artísticos, assim como na literatura, nas ciências sociais, na antropologia e na etnologia. Ela joga com o acaso e busca o romper com o distanciamento entre artista e público. A performance modifica a relação do artista com o público.

Ainda no período do futurismo, Goldberg (2007, p. 20)GOLDBERG, RoseLee. Arte da performance: do futurismo ao presente. 1 ed. Lisboa: Orfeu negro, 2007. assinala que a performance-arte servia para deslocar a plateia preguiçosa de seu lugar de comodismo, onde o objetivo das performances futuristas era fazer com que os artistas saíssem de suas zonas de conforto e que o público abrisse mão do lugar de passividade e do eterno estado de inércia intelectual. A participação da audiência é algo essencial para a performance, sua existência não está nem no performer e nem na audiência, está no entre-lugar, na vinculação, no compromisso e responsabilidade entre performer e audiência de forma interdependente (Salgado, 2014SALGADO, Tiago Barcelos Pereira. Performance. Dispositivo, Belo Horizonte, v. 2, n. 2 nov. 2013/ jun. 2014. P. 74-90.).

O performer controla, escolhe o que revelar de si, e como parte de si pode afetar a audiência; ele gerencia o que deve ou não ser exposto e, mesmo que não tenha controle sobre a ação e reação da audiência, o performer deve estar aberto a liberar a verdade de si. A performance tem capacidade de desvendar e revelar ambos, tanto a verdade da performance quanto da audiência, seja ela verdade verdadeira, ou seja, ela verdade inventada, no pulso do momento como um propulsor efêmero. A refletividade e consciência de apresentação de si mesmo frente ao outro se dá por uma linha tênue entre o “[...] não-eu [e o] não não-eu, [entre a] pessoa [e o] personagem” (Schechner, 1985 apud Salgado, 2014, p. 88SALGADO, Tiago Barcelos Pereira. Performance. Dispositivo, Belo Horizonte, v. 2, n. 2 nov. 2013/ jun. 2014. P. 74-90.).

Importa destacar que tanto Performatividade/Exu e Performance/Exus são a expressão direta do empoderamento, da subversão do subalternizado. Ambos têm caráter intervencional, questionando veementemente as regras que se dão como estabelecidas, seja no campo social ou das artes, literatura, história, entre outros. Dessa maneira, buscam romper com os cânones das sociedades e servem como ferramentas que formam sujeitos críticos, para superar os recalques produzidos por ideologias que logram a superioridade de uma cultura e/ou um povo sobre a outra.

Richard Schechner, junto a Victor Turner, estruturou conceitos e procedimentos que auxiliam o investigador da performance a compreender e apreender demandas sociais. Ambos se puseram a refletir sobre as experiências na encruzilhada das artes, antropologia e sociologia, para compreender a performance como uma relação intrínseca entre essas instâncias. É inspirado nas pesquisas de Turner sobre ritual que Schechner vai fazer uso da proposta de drama social para estruturar seu estudo sobre a performance e vai fundar o conceito de comportamento restaurado ou comportamento duplamente exercido baseado na tragédia grega (Salgado, 2014SALGADO, Tiago Barcelos Pereira. Performance. Dispositivo, Belo Horizonte, v. 2, n. 2 nov. 2013/ jun. 2014. P. 74-90.), conceito esse que para Schechner é primordial na compreensão da performance. Assim, para ele, na arte, algo é performance quando é feito para um show ou espetáculo de teatro, de dança, de música, ou seja, para ser exibido a alguém. No cotidiano se dá no seu contexto histórico-social, quando há uma dinâmica social que a aponta enquanto performance (Schechner, 2003SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 25-50, 2003.; 2006SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. In: SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. 2. ed. New York; London: Routledge, 2006. P. 28-51.; 2012SCHECHNER, Richard. Performance e Antropologia de Richard Schechner: seleção de ensaio organizada por Zeca Ligiéro. Tradução de Augusto Rodrigues da Silva Junior et al. Rio de Janeiro: Mauad x, 2012.). Assim sendo, a performance acontece na relação entre arte e vida de forma indissociável.

Schechner compreende que performances são ações físicas e verbais que são preparadas e/ou ensaiadas, que estão sendo exercidas pela segunda vez e que de certa forma são importantes na transmissão, transformação e/ou manutenção e conhecimentos culturais de determinada sociedade (Taylor, 2003TAYLOR, Diana. Hacia uma definición de performance. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 17-24, 2003.; 2013TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Tradução de Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.).

Nessa perspectiva é importante salientar que devido a sua expansão enquanto ação, seu caráter multifacetário, interfaces diversas e os conflitos em sua complexidade conceitual, a performance tem amplos e diversos campos de atuação, sendo então importante trazer ao conhecimento alguns de seus aspectos. Primeiro o ser, que está atrelado à existência como uma questão e problemática que se funda nas reflexões filosóficas sobre o sujeito. Em seguida o fazer, que está relacionado à ação, ao movimento promovido pelo sujeito, assim o sujeito é porque se movimenta, é dono da ação. E por terceiro, o mostrar fazendo – toda performance é inerente à audição, toda performance precisa da audiência por essência e por existência, esse é o fator que a liga ao espetáculo, à espetacularização. Ou seja, há entre esses três pontos um elo que os torna interdependentes: o sujeito é através da ação, do fazer que por sua vez está diretamente conectado ao se mostrar, ser visto fazendo. Esses aspectos apontados são pilares na constituição da performance. Com isso, expande-se o conceito de performance para campos diversos, ampliando cada vez mais sua inclinação de gênero inter e multidisciplinar.

Carlson (2009, p. 15)CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução critica. Tradução de Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2009. invoca Herbert Blau para assinalar que o fato de nossa vida ser baseada em conjuntos de movimentos, comportamentos e gestos socialmente estabelecidos possibilita que toda atividade humana pode ser considerada performance, e o que diferencia o fazer do performar diz respeito à atitude, à ação e não à relação que o teatro traça com a vida. Corroborando com Schechner (2003SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 25-50, 2003.; 2006SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. In: SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. 2. ed. New York; London: Routledge, 2006. P. 28-51.), a ação passa a ser ou pode ser considerada como/enquanto performance quando surge nela uma consciência do comportamento, assim tudo pode ser estudado, observado enquanto performance, bastando aplicar a essa uma ideia e/ou propósito, onde essa possibilidade parte mais do observador que do praticante. Porém, no campo conceitual, esse enquanto corresponde potencialmente à performatividade. Nesse aspecto a performance atua sobre a égide de um padrão preestabelecido. Performance vira sinônimo de desempenho ou, como aponta Schechner, uma ação desempenhada com êxito e que está relacionado ao outro, mostrar-fazendo e o fazer.

A performance conota a exibição de uma habilidade específica para além da qualidade. Está relacionada com a realização e ou repetição de um gesto, movimento ou comportamento. As performances são acontecimentos, experiências efêmeras, visto que elas acontecem minimamente na relação entre dois sujeitos. Tendem a não se repetir devido à relação espaçotemporal, ação e reação dos sujeitos envolvidos, entre outros fatores. A performance tem em seu cerne a interação e sobre essa o performer não tem controle pleno. Uma performance pode ser realizada exatamente igual, porém o fator interação determinará outros acontecimentos como chuva ou falta de luz, eventos que estão fora do controle do performer. Como aponta Schechner (2003SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 25-50, 2003.; 2006SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. In: SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. 2. ed. New York; London: Routledge, 2006. P. 28-51.; 2012SCHECHNER, Richard. Performance e Antropologia de Richard Schechner: seleção de ensaio organizada por Zeca Ligiéro. Tradução de Augusto Rodrigues da Silva Junior et al. Rio de Janeiro: Mauad x, 2012.), a interatividade é fluida, assim como o ser não é permanente.

Schechner (2003SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 25-50, 2003.; 2006SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. In: SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. 2. ed. New York; London: Routledge, 2006. P. 28-51.) destaca oito situações onde para ele pode ocorrer a performance. Primeiro na vida diária, as práticas cotidianas estudadas enquanto performance; segundo nas artes, onde o comportamento é ensaiado, treinado com o intuito de ser exibido, a exemplo: espetáculo de dança, música, e teatro; terceiro nos esportes e em entretenimentos populares, vinculados a desempenho e resultados; quarto nos negócios, a exibição está baseada em exibir qualidade ou estética que conote vantagens para o cliente; quinto na tecnologia, que se funda na capacidade de realização com o tempo e qualidade de execução; sexto também corporifica desempenho, estética e rendimento; sétimo nos rituais, diz respeito ao sagrado e secular; oitavo na brincadeira, capacidade de envolvimento, a capacidade de jogar. Importa observar que essas situações podem acontecer de formas tanto isoladas quanto simultâneas, tornando imensuráveis as formas de ocorrências. Dessa forma, um jogo de futebol pode desenvolver grande plasticidade e ser considerado arte, assim como também uma competição culinária ganha aspecto esportivo exaltando seu caráter performativo.

Essas ações cotidianas elevadas à categoria de performance também podem ser listadas como pontos de congruência de estudo e investigação entre as ciências sociais e nos levam a compreender a reflexão sobre a ritualização de comportamento cotidiano, ir ao trabalho, ir à escola, almoço em família, comemoração de aniversário. A ritualização se consolida através da repetição de comportamento, sobre o que, para Schechner (2003SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 25-50, 2003.; 2006SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. In: SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. 2. ed. New York; London: Routledge, 2006. P. 28-51.), nem sempre há consciência. Com isso, como caminho para compreendermos performance, se faz necessária antes a apropriação do que o autor denominou de “[...] comportamento restaurado [...]”(Schechner, 2003, p. 36SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 25-50, 2003.), que para ele está presente nas nossas rotinas, hábitos e ritualizações, onde o que é considerado novidade e/ou inédito, na verdade, é a recombinação e combinação dos comportamentos restaurados. A performance também resulta dessas combinações de comportamentos duplamente executados.

Sobre esse aspecto e importância do estudo dos comportamentos para a investigação e análise da performance, Carlson (2009)CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução critica. Tradução de Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2009. atenua o consenso que existe sobre a performance para a sociedade, manutenção e/ou processos de transformações culturais:

Existe um consenso difundido entre os teóricos de performance de que toda performance é baseada em modelo, roteiro, ou padrão de ação preexistente. Richard Schechner, numa fase bastante útil e sempre citada, chama a performance de ‘comportamento restaurado’. Jhon MacAloon também afirmou que ‘não há performance sem performance’. Por outro lado, muito da análise antropológica recente de performance tem enfatizado como ela pode operar dentro de uma sociedade precisamente para solapar a tradição, a fim de propiciar um local para a exploração de estruturas e modelos de comportamento alternativos e novos. A importância da performance dentro de uma cultura, se para reforçar as suposições dessa cultura ou para fornecer um local possível de suposições alternativas, é um debate em curso, capaz de fornecer um exemplo particularmente claro da qualidade contestada da análise da performance (Carlson, 2009, p. 24-25CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução critica. Tradução de Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2009.).

Nesse aspecto chego à abordagem sobre a performance que, em partes, contempla essa pesquisa, o estudo das performances culturais voltado para investigação do ritual. Taylor (2013, p. 33)TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Tradução de Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. assinala o rompimento da performance com as teorias estruturalistas do sociólogo Émile Durkheim, que traz a ideia de comportamento normativo, postulando que os comportamentos e as crenças humanas são pautados pela sua condição social. A autora aponta antropólogos que contrapõem Durkheim, como Turner, Milton Singer, Erving Goffman e Clifford Geertz, que passam a teorizar e investigar os sujeitos como agentes de seus próprios dramas.

Schechner (2012)SCHECHNER, Richard. Performance e Antropologia de Richard Schechner: seleção de ensaio organizada por Zeca Ligiéro. Tradução de Augusto Rodrigues da Silva Junior et al. Rio de Janeiro: Mauad x, 2012. vai fazer uso da teoria de Turner sobre drama social, buscando lapidá-la e extrair desta os aspectos universalistas. Enquanto fatores constituintes para o estudo da performance cultural na compreensão do drama social e do comportamento, Singer (1959), citado por Carlson (2009, p. 25)CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução critica. Tradução de Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2009., sugere que o conteúdo cultural de uma tradição era transmitido por meios específicos, assim como pelos mensageiros humanos. O estudo do funcionamento de tais meios, em ocasiões particulares, poderia prover a antropologia com “[...] uma particularização da estrutura de tradição complementar à organização social”. E relata a importância dos estudos da performance junto à cultura, seja por sua capacidade de transmitir, armazenar, subverter ou manter as memórias e relações sociais e culturais construídas.

Para Taylor (2003TAYLOR, Diana. Hacia uma definición de performance. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 17-24, 2003.; 2013TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Tradução de Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.) a performance funciona como atos de transferência, transmissão e manutenção do conhecimento, da memória e do sentimento de identidade social, sendo ao mesmo tempo ontológica e epistemológica, dialogando entre o real e o construído. Ela apresenta uma abordagem pós-colonial para a funcionalidade e investigações sobre as performances desenvolvidas nas Américas e enfatiza a importância de identificar um termo que contemple as demandas e concepções de vida e cultura dos latinos, ratificando assim que a performance tem capacidade de dobrar o tempo, moldar identidades, remodelar e adornar o corpo e contar história (Schechner, 2003, p. 27SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 25-50, 2003.).

Fischer-Lichte (2005)FISCHER-LICHTE, Erika. A cultura como performance: desenvolver um conceito. Sinais de Cena, Lisboa, n. 4, p. 73-80, 2005. chama atenção para a necessidade de compreender o corpo, a fisicalidade como forma de dar conta da compreensão de performance cultural.

Não são as ideias, os conceitos, nem os sentidos que devem ser examinados em primeiro lugar para dar visibilidade ao caráter performativo da cultura, mas sim os corpos físicos particulares, através dos quais e entre os quais se produz o espetáculo – o corpo do actor que ao aplicar algumas técnicas e práticas, consegue ocupar o espaço e chamar toda a atenção dos espectadores sobre si, a sua presença física, assim como o corpo dos espectadores, que respondem de forma particular a uma experiência de presença como esta (Fischer-Lichte, 2005, p. 76FISCHER-LICHTE, Erika. A cultura como performance: desenvolver um conceito. Sinais de Cena, Lisboa, n. 4, p. 73-80, 2005.).

A autora ratifica a importância do corpo físico como elemento de copresença na performance cultural destacando alguns pontos que para ela são fundamentais para o estudo da cultura como performance. São eles:

  1. Uma performance ocorre pela co-presença física de actores e espectadores, pelo seu encontro e interação.

  2. O que nela acontece é transitório e efêmero. Apesar de tudo, o que quer que ocorra durante a sua realização, manifesta-se como hicet nunc, e é experienciado como presente de uma forma particularmente intensa.

  3. Uma performance não transmite significados predeterminados. Pelo contrário. É ela que suscita os significados que surgem durante a sua realização.

  4. As performances caracterizam-se pela sua qualidade de “acontecimento”. O modelo específico de experiência que permite é uma forma particular de experiência liminar (Fischer-Lichte, 2005, p.73-74FISCHER-LICHTE, Erika. A cultura como performance: desenvolver um conceito. Sinais de Cena, Lisboa, n. 4, p. 73-80, 2005.).

Os pontos levantados por Fischer-Lichte (2005)FISCHER-LICHTE, Erika. A cultura como performance: desenvolver um conceito. Sinais de Cena, Lisboa, n. 4, p. 73-80, 2005. corroboram com as teorias postuladas por Schechner (2003SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 25-50, 2003.; 2006SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. In: SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. 2. ed. New York; London: Routledge, 2006. P. 28-51.), que enfatizam a presença física como determinante para a realização da performance e suas características como o fato das experiências efêmeras, que acontecem no aqui e agora, tendo a interação e a relação com o outro-audiência como norteadora dos acontecimentos, assim como também o desapego de uma história ou enredo que aprisione o performer. A performance não transmite significado predeterminado, ela transmite discursos que produzem significados diversos, logo, o performer não precisa representar nenhum personagem. É a fisicalidade da performance quem modifica, adorna, molda e emoldura o espaço através de sua exposição e deslocamento.

Diante de toda complexidade que é conceituar performance e performatividade em suas diferentes e variadas esferas, fica aqui o levantamento de alguns pontos de concordância entre os diversos teóricos da performance, tanto da área das artes quanto da antropologia e ciências sociais – o que demonstra quão ampla e abrangente é sua área de atuação, possibilitando a esta pesquisa criar e/ou assinalar encruzilhadas/encruzamentos de epistemes para traçar diálogos com os agentes sociais, a fim de compreender as performances culturais no ritual do candomblé voltado ao orixá Exu, assim como também com seus interlocutores.

Com isso, Performatividade/Exu e Performance/Exus são fenômenos que ocorrem de forma indissociável da vida e que apresentam tantas ambiguidades que os tornam complexos demais para serem apreendidos em um conceito ou em uma disciplina. Suas capacidades de subversão os tornam atraentes a todos que veem no universalismo um obstáculo para as diversas possibilidades de expressão artística, social e cultural. O sujeito e o corpo são lugares importantes por ser por meio deles que os rituais, as ações e os comportamentos se dão de forma concreta, efêmera, isolada ou combinada. A performance está no intermédio da ação com o agente, espaço/tempo e audiência, enquanto a performatividade está nas instâncias operantes que estruturam e/ou determinam os aspectos sociocultural, histórico, político e econômico das diversas sociedades.

Performance Afro

Com isso, faz-se necessário e é o desejo estudar performance afro, por este ser um tema pouco explorado no campo dos estudos da performance no Brasil, assim como também, pela familiaridade do autor com as práticas afro-brasileiras abordadas neste trabalho. Concordo com Frigerio (2003)FRIGERIO, Alejandro. Artes Negras: uma perspectiva afrocéntrica. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 51-67, 2003. quando aponta que para a compreensão das dinâmicas performáticas afro e afrodiaspóricas faz-se necessário abrir mão de toda visão colonizadora e buscar dialogar com uma “[...] perspectiva afrocêntrica” (Frigerio, 2003, p. 51FRIGERIO, Alejandro. Artes Negras: uma perspectiva afrocéntrica. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 51-67, 2003.). Sendo assim, além da pesquisa bibliográfica, recorro ao que Rufino (2016, p. 58)RUFINO, Luiz. Performances afrodiaspóricas e decolonialidade: o saber corporal a partir de Exu e suas encruzilhadas. Revista Antropolítica, Niterói, n. 40, p. 54-80, 2016. denominou de “exusíaco” e Santos (2014, p. 22)SANTOS, E. Juana; SANTOS, Deoscoredes Maximiliano dos (Mestre Didi Asipa). Èsù. Salvador: Corrupio, 2014. chamou de “baraperspectiva”, para chancelar todo conhecimento que reconhece o corpo como lugar epistemológico de produção de conhecimento científico, todas as possibilidades de diálogo e interseccionalidade creditadas ao corpo através de Exu/Bara. Apoiamo-nos nos autores, dado que ambos dialogam em número e gênero com a proposta metodológica da afrocentricidade, que busca desconstruir e/ou reformular o que é produto da colonização, que tem a África, o africano e/ou o afrodiaspórico como referência, como lugar, centro de produção de conhecimento (Asante, 2009ASANTE, Molefi Kete. “Afrocentricidade”: notas sobre uma posição disciplinar. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. São Paulo: Selo Negro, 2009. P. 93-110.). Nesta investigação, a experiência dos autores, negros afrodiaspóricos, candomblecistas, performers, artistas e investigadores de danças afro-brasileiras também são postas à disposição como ferramenta de acesso à memória corpórea e oral, marcante e importante nas performances afro (Martins, 2003aMARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, Santa Maria, v. 25, p. 55-71, 2003a.).

O estudo das performances afro é necessário também porque o termo afro, em questão, está relacionado a uma grande variedade de grupos étnicos, culturais e linguísticos distintos, porém de um mesmo continente. O que busco nesta reflexão é explanar os aspectos similares entre as diversas performances de matriz africana (Frigerio, 2003FRIGERIO, Alejandro. Artes Negras: uma perspectiva afrocéntrica. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 51-67, 2003.), assim como refletir sobre as “[...] motrizes culturais [...]” apontadas por Ligiéro (2010, p. 107)LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. como “[...] um conjunto de dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para recuperar comportamentos ancestrais africanos”, que através dos diversos processos, mecanismos e estratégias permitem que essas performances se adaptem e resistam às adversidades, às quais foram e são submetidas. Para isso, faz-se necessário pensar o corpo negro afrodiaspórico a partir de suas referências. Assim tomaremos o terreiro de candomblé e os centros de umbanda como referências para estruturar um pensamento sobre esse corpo. Contudo, isso não será feito por crer que todos os negros professem ou devam professar essas religiões ou forma de fé, mas por acreditar que a ancestralidade é um ponto comum à construção e afirmação dessa identidade negra.

O corpo negro é uma encruzilhada por natureza e o negro faz dela lugar de produção, seja de estratégia de sobrevivência ou de fluxo e armazenamento de conhecimento e de memória. Os mecanismos que permitem que a performance afro codifique e assimile diferentes sistemas culturais nascem e também têm sentido na encruzilhada, firmando assim, a performance afro e as práticas performativas enquanto uma questão ontológica e epistêmica. A encruzilhada é lugar tanto de encontro quanto de passagem, é dinâmica e sobre ela passam culturas e etnias diversas. Figura como espaço de interseção cultural, porém, nada passa por ela sem deixar um pouco de si, sem pagar pedágio a Exu o que faz dela lugar de troca, “[...] a cultura negra é lugar das encruzilhadas” Martins (2013b, p. 70). Zenicola (2014, p. 91)ZENICOLA, Denise Mancebo. Performance e Ritual: a dança das iabás no xirê. Rio de Janeiro: Mauad x; Faperj, 2014. destaca que o corpo humano para o iorubá é onde se concentram e se processam de forma harmoniosa “[...] todas as forças da natureza [...]” o que explica, em parte, sua mitologia, uma vez que o corpo é o centro de toda energia que existe no mundo.

O corpo encruzilhada é reino de Exu. É onde os caminhos se imbricam e se processam, pelo e no corpo encruzilhada que as intermediações entre homens e deuses acontecem com a chancela de seu guardião Exu – o senhor dos caminhos e das encruzilhadas. Lá o movimento se dá ora na estrutura circular, ora espiralada ou de forma simultânea. Assim, o corpo encruzilhada tem por essência a potencialidade de ser centrífugo e centrípeto, ou seja, de dentro para fora e de fora para dentro. Essa é a essência que permeia as performances afro. Performances que se inscrevem em uma esfera de difícil compreensão devido a sua complexidade, mas também é essa característica que garante a longevidade, lhe permitindo transmutar, se adaptar, frutificar e florescer em campos hostis.

A cultura negra nas Américas é de dupla face, de dupla voz, e expressa, nos seus modos constitutivos fundacionais, a disjunção entre o que o sistema social pressupunha que os sujeitos deviam dizer e fazer e o que, por inúmeras práticas realmente diziam e faziam. Nessa operação de equilíbrio assimétrico, o deslocamento, a metamorfose e o recobrimento são alguns dos princípios e táticas básicos operadores da formação cultural afro-americana, que o estudo das práticas performáticas reiteram e revelam. Nas Américas, as artes, ofícios e saberes africanos revestem-se de novos e engenhosos formatos (Martins, 2003b, p. 69MARTINS, Leda. Performances do tempo e da memória: os Congados. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 68-83, 2003b.).

Essa ambivalência pertencente à cultura negra, onde leio africana, apontada por Martins (2003b)MARTINS, Leda. Performances do tempo e da memória: os Congados. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 68-83, 2003b., são na verdade os dois lados da mesma moeda. Para sobreviver aos sistemas de escravidão, os africanos tiveram de camuflar seus desejos e vontades, o que irá refletir de forma direta nas práticas performáticas artístico-culturais e no corpo dos africanos e seus descendentes. Ligiéro (2010)LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. ressalta a importância do corpo para as práticas performativas de origem africana, exaltando suas qualidades e assinalando sua atuação efetiva na vida do africano e afrodescendente:

Nas performances de origem africana hoje, podemos observar: o corpo é o centro de tudo. Ele se move em direções múltiplas, ondula o torso e se deixa impregnar pelo ritmo percussivo. A dança que subjuga o corpo nasce de dentro para fora e se espalha pelo espaço em sincronia com a música sincopada típica do continente africano. De tão insistente e envolvente, ela faz parte tanto do festivo, do religioso, como do cotidiano do povo brasileiro; das celebrações católicas aos folguedos e ritos afro, como o candomblé e a umbanda (Ligiéro, 2010, p. 131LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.).

As práticas performáticas afro apresentam peculiaridades a observar na performance e sua origem. Uma das características principais que marca a performance em sua origem nos anos 1960 é sua capacidade de ser permeada pelo encontro de linguagens artísticas (Carlson, 2009CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução critica. Tradução de Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2009.). Assim sendo, as artes visuais, dança, música, arquitetura e outras linguagens compunham um complexo que vai de encontro ao teatro e aos seus dogmas. Na cultura africana esse amálgama de linguagens, que caracteriza a performance nos modos ocidentais sempre fez parte do cotidiano de forma indissociável. A fala de Frigerio (2003)FRIGERIO, Alejandro. Artes Negras: uma perspectiva afrocéntrica. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 51-67, 2003. ao abordar as performances afro-americanas assinala que para a performance acontecer é necessário dominar não só um código, pois há todo um sistema composto por códigos corporais – gestos, movimentos, formas de andar, se vestir, falar, cantar, contar – que fazem com que as práticas sejam dinâmicas.

O autor aponta seis principais pontos similares entre as performances afro-americanas, às quais eu credito também a África por ser matriz dessas práticas e aplico o conceito de motrizes culturais cunhado por Ligiéro (2010)LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2010..

A performance artística afro-americana é caracterizada por ser multidimensional, participativa, onipresente no cotidiano, basicamente conversacional, para destacar o estilo individual de cada participante e para sempre cumprir claramente umas funções sociais (Ligiéro, 2010, p. 64LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.).

Primeiro aspecto da performance afro apontado por Frigerio (2003)FRIGERIO, Alejandro. Artes Negras: uma perspectiva afrocéntrica. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 51-67, 2003. é seu multidimensionalismo, pois as práticas artísticas afro ou de matriz africana não são construídas com base em uma relação hierarquizada, classificada ou separada uma da outra. Um praticante deve conhecer todo seu sistema prático, cultural e simbólico. Observa-se exemplo disso no candomblé, onde o neófito, apontado pelo orixá através do jogo de búzios, passará por todas as possíveis funções necessárias – da cozinha ao salão, da faxina no terreiro aos rituais mais complexos – para se tornar um babalorixá. Ele aprenderá a cozinhar, a costurar, trançar, cantar, dançar, jogar búzios, gerir o espaço, liderar e conduzir os rituais. Assim, seu aspecto multidimensional é uma das características principais e mais importantes da arte negra, e essas características são observadas em manifestações artísticas, religiosas e profanas.

Esse potencial também ganha destaque nas escritas de Ligiéro (2010)LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2010., quando o mesmo recorre ao filósofo congolês Busenki. Kia Fu-Kiau, para destacar a capacidade multidimensional e multidisciplinar do performer afro através de um conjunto de técnicas aplicadas simultaneamente nas performances, ao qual denominou three powerful (poderoso trio): cantar, dançar e batucar.

Ao considerar a junção das artes corporais às músicas e, sobretudo, acrescido do uso do canto como algo simultâneo e percebido como uma unidade dentro da performance africana, Fu-Kiau destaca um dispositivo que, sem dúvida, continua sendo característico das performances da diáspora africana nas Américas – não é possível existir performance negra africana sem este poderoso trio, e o mesmo é aplicável em relação às performances afro-brasileiras (Ligiéro, 2010, p. 109LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.).

Outro aspecto da performance afro que merece o destaque é seu caráter participativo, uma vez, que nela não há uma nítida separação entre o público e o performer, sendo essa relação circunstancial. Em sua maioria, essas performances constroem jogos que rompem com essa dicotomia (público x performers). Desse modo um repentista nordestino, ao tocar seu pandeiro, constrói seu repente improvisando com o suposto público, que a qualquer momento pode interferir na construção da estrofe ou no show. Ao observar um samba de roda, não é possível distinguir sambadores e público, já que todos cantam, batem palma, gesticulam e dançam em uma mesma vibração. Ligiéro (2010)LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. destaca a vocação de associar de forma concomitante jogo e ritual em uma mesma dinâmica; em suma, as performances mesclam esses elementos para refletir e reverberar questões do cotidiano dos praticantes.

Porém, Frigerio (2003)FRIGERIO, Alejandro. Artes Negras: uma perspectiva afrocéntrica. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 51-67, 2003. alerta para a profissionalização desses artistas que fazem com que essa relação passe a incutir em suas apresentações uma perspectiva espetacular característica do Ocidente nas performances afro. Estas passam a criar uma separação entre performers e público. Considera-se plausível essa preocupação, contudo, minhas vivências com grupos tradicionais ou de pesquisa em cultura popular, me fazem acreditar na necessidade de uma abordagem mais aprofundada, visto que a relação com o público é uma busca inerente da performance e que as performances afro não fazem uso do conceito de quarta parede, tal qual uma apresentação cênica num palco tradicional italiano.

Observamos que nos grupos profissionais de dança popular e dança afro-brasileira de que participo e/ou participei sempre havia um elemento ou momento em que os performers rompem essa separação com o público, que pode ser mais presente, mas se dilui facilmente. No grupo de samba de roda ReconcaRio, performei como boiadeiro – entidade do panteão da umbanda, que retrata a forma rústica e a vida dura do sertanejo – cuja função era puxar as pessoas para dentro da roda e mediar a relação dos brincantes buscando intervir na forma de cantar e dançar de todos. Na Companhia Folclórica do Rio – UFRJ os espetáculos e performances são interativos, e o público tem participação efetiva dançando, cantando ou traçando diálogo com os performers. Tudo isso nos faz refletir sobre o fato de que, mesmo no palco, essas relações acontecem de forma interdependente e estão associadas diretamente com o cotidiano de seus praticantes.

A importância da conversa entre as linguagens na performance afro também é algo que merece ser exaltado. Seja no exemplo do repentista nordestino, do jongueiro do sudeste que versa com o tambor, numa roda de samba ou na conversa entre os tambores sagrados que invocam os deuses. É sabido que essa potencialidade de promover trocas direta entre plateia e performer se dá, também, por meio da forma de sua exposição circular. Se Exu faz seu tempo (Sodré, 2017SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. 1. ed. Porto Alegre: Editora Vozes, 2017) é no círculo que as performances afro o dobram. O círculo para a cultura afro é uma das estratégias de acelerar, retroceder ou parar o tempo e nele subverter, mesmo que no imaginário, os papéis sociais e rememorar tempo, se conectando com o ancestral.

Outra peculiaridade desses diálogos é que de forma alguma a performance afro apaga a personalidade do performer, pelo contrário, afirma identidade e promove encontro do sujeito consigo mesmo. Contudo dominar as técnicas corporais e verbais não é o suficiente para realizar uma performance densa como a afro (Frigerio, 2003, p. 59FRIGERIO, Alejandro. Artes Negras: uma perspectiva afrocéntrica. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 51-67, 2003.). Para Frigerio (2003)FRIGERIO, Alejandro. Artes Negras: uma perspectiva afrocéntrica. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 51-67, 2003., é preciso ter personalidade para ser um performer pleno, ter um estilo próprio é fundamental para o desenvolvimento da cultura e performance afro. Essa é uma das características mais acentuadas no repertório de conhecimento do mestre ou líder. Para Ligiéro (2010)LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. este é responsável pela sobrevivência, manutenção e difusão das performances afro e afrodiaspórica. O mestre é o detentor e guardião dos conhecimentos necessários para a continuidade e resistência, seja transmitindo, codificando ou adaptando as informações para torná-las legível às novas gerações. É importante ressaltar que não necessariamente ter o domínio de todo o sistema simbólico credita ao indivíduo o lugar de liderança ou maestria único, e que é possível haver vários líderes em um mesmo sistema. Contudo é inegável que um bom performer reúne em si o domínio de várias qualidades, compreende o sistema simbólico expresso nas manifestações e tem como qualidade maior a capacidade de improviso, além de ser conhecedor das questões sociais que envolvem o grupo.

É no improviso que a criatividade é colocada à prova e é nele que se constitui campo fértil na criação, o que possibilita à atividade performática se propagar e/ou se ressignificar. Um bom dançarino de kuduro é aquele que tem a capacidade de improvisar em cima da batida e das nuances da música, tem movimentos próprios, através dos quais expressam e constrói sua identidade, sua marca. Da mesma forma que uma passista de samba tem e se expressa por meio de seu repertório de movimentos próprios criados pela variação de dinâmica exigida pelo repique e aceleração da bateria.

Os movimentos, gestos e comportamentos (jeito de andar, vestir, falar, se expressar corporalmente para enfatizar a fala) compõem um sistema que neste trabalho se denomina como um repertório ancestral. Acreditamos na memória corporal deixada pelos nossos ancestrais. Um dos autores deste trabalho foi abordado por um aluno de dança pedindo conselhos sobre qual atividade seria boa para seu filho de quatro anos que era muito criativo e inventava movimentos. Então, pediu que a criança mostrasse, ela realizou uma sequência de movimentos muito similares aos do repertório da capoeira mesmo sem nunca ter visto. Eram saltos, giros e quedas muito complicadas para serem aprendidas sem um desenvolvimento técnico e progressivo. Experiências como essa fazem pensar de onde vêm esses movimentos, esse conhecimento, essa inteligência cognitiva e motora se não de uma memória corpórea ancestral?

[...] o corpo em performance é, não apenas, expressão ou representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um sentido, mas principalmente local de inscrição de conhecimento, conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços que performativamente o recobrem. Nesse sentido, o que no corpo se repete não se repete apenas como hábito, mas como técnica e procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do conhecimento, seja este estético, filosófico, metafísico, científico, tecnológico, etc. (Martins, 2003a, p. 66MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, Santa Maria, v. 25, p. 55-71, 2003a.).

O corpo encruzilhada é memória fecunda onde, e por onde, se inscreve e armazena o conhecimento vindo do continente africano. Essa particularidade do corpo negro tem diferentes níveis e formas de ser acessada e é através da autonomia, da sagacidade e da personalidade que o performer processa e adapta as informações decodificadas para o espaço contemporâneo. Desse modo, a performance afro se faz presente no cotidiano do africano e afrodescendente sendo de grande relevância social e cultural. Schechner (2003, p. 32)SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 25-50, 2003. classificou de “[...] comportamento restaurado [...]” a potencialidade de repetição, combinação e/ou reconfiguração no tempo/espaço. Para o autor “[...] os indivíduos que recebem os créditos por inventar os rituais ou os jogos, normalmente acabam sendo os sintetizadores, os decodificadores, os compiladores ou os editores de ações que já foram praticadas [...]” e que, “[...] um comportamento pode ser restaurado a partir de ‘mim mesmo’ em outro tempo ou estado psicológico [...]” Schechner (2003, p. 34)SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 25-50, 2003.. Refletindo o corpo como principal mediador entre o natural e o sobrenatural como pensa o iorubano e na perspectiva aqui tratada (Exusíaco e baraperspectiva), teremos o corpo como principal portal de acesso às memórias ancestrais através da espiritualidade expressa nos comportamentos.

A onipresença da performance no cotidiano do africano é um tópico pontuado por Frigerio (2003)FRIGERIO, Alejandro. Artes Negras: uma perspectiva afrocéntrica. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 51-67, 2003. considerado por ele um diferencial que faz com que cada indivíduo nessa sociedade domine os códigos necessários para integrar as performances:

Nas culturas onde não existe uma separação rígida entre as formas artísticas, onde todo canto implica em música, e esta em dança (que também inclui elementos de mímica), onde tampouco existe uma rígida separação entre performers e o público e onde não há uma separação muito marcada entre situações de representação e da vida cotidiana, não haveríamos de estranhar que cada indivíduo seja um performer em potencial, e cada situação da vida cotidiana seja a possibilidade de ser uma pequena performance (Frigerio, 2003, p. 56FRIGERIO, Alejandro. Artes Negras: uma perspectiva afrocéntrica. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 51-67, 2003.).

É de se esperar que as tensões, problemas e questões sociais hão de se fazer presente nessas performances, seja na demanda do ponto do jongo, no funk brasileiro ou no rap americano, como forma de denunciar os descasos dos governantes com a população menos abastada. Por estar tão inserida no cotidiano dos cidadãos, a performance afro também atua a serviço da sociedade – assim as performances em sua maioria buscam questionar, subverter ou modificar a realidade, baseando-se no cotidiano. A performance afro tem em seu cerne o caráter de ser comunitária. Sendo assim, tende a valorizar e atuar a serviço do coletivo, a exemplo da puxada de rede no litoral nordestino, as quebradeiras de coco, as cirandas e outras expressões que também surgem do trabalho comunitário onde são agregados os seis aspectos levantados por Frigerio (2003)FRIGERIO, Alejandro. Artes Negras: uma perspectiva afrocéntrica. O Percevejo, Rio de Janeiro, a. 11, n. 12, p. 51-67, 2003..

A capacidade multidimensional, a participação, a onipresença no cotidiano, o caráter conversacional, o estilo individual do participante e as funções sociais que se fazem presentes nas performances afro são parte de um complexo de relações e interações que compõem o repertório dos comportamentos e forma de vida do africano e seus descendentes. O que possibilita pensar se existe um prazo de validade para as performances afro? Elas são verdadeiramente efêmeras? A respeito de sua perenidade recorro a Lévi-Strauss (1977)LÉVI-STRAUSS, Claude. Como eles morrem. In: LUCCIONI, Gennie et al. Atualidade do mito. Tradução de Carlos Arthur R. do Nascimento. São Paulo: Duas cidades, 1977. P. 91-100., quando postula que os mitos não morrem, eles se fragmentam e se modificam para dar origem a outro mito com o mesmo contexto narrativo. Assim é a performance afro, a exemplo dos mitos, também se ressignifica e adota outras roupagens, mas não perde sua natureza. Sua capacidade de resistir está associada aos processos de colonização, os quais a África e os africanos foram submetidos. Essa relação intrínseca entre a arte e a vida na performance diz respeito à forma de vida e à visão de mundo dos africanos e seus descendentes. Esse corpo sincopado que o performer de origem africana tem lhe possibilita se envolver em diversos encruzamentos/encruzilhadas sem se perder de sua origem, pois como já dito, a cultura africana tem seu potencial na encruzilhada, e são processados no corpo, ambos os reinos de Exu, que se unificam, constituindo o uno no universo, um universo próprio.

Considerações Finais

Tendo em vista os aspectos observados através das analogias e dos diálogos aqui propostos, considera-se que a performance dos Exus promove uma atmosfera que enuncia a presença do orixá Exu. Seja através da ingestão de bebida alcoólica e sua possibilidade alucinógena, pelas combinações de cores, pela capacidade de comunicação, pela movimentação e gestos exagerados, assim como também pela dinâmica. Exu e Exus se fundem. Por isso causam embaraço na cabeça dos fiéis e dos leigos que se perdem na linha tênue entre divindade e entidade, restando apenas viver as experiências, sentir a energia e se deixar embriagar, se deixar ser tocado pela energia dos seres sobrenaturais. Quanto ao caráter interacional da performance compreendese que por mais que o artista esteja treinado para lidar com os eventos que possam ocorrer durante sua execução há um momento em que ele é forçado a romper com os limites que o separa do público. De forma intencional ou não, esses eventos desestruturam e reestruturam a performance cabendo ao performer se deixar envolver nas propostas perdendo, parcialmente, o controle sobre as ações e interações.

Performatividade e performance se unem a Exu e Exus de forma colaborativa, sendo ambas mediadoras dos acontecimentos num processo de retroalimentação. Junto às perspectivas desenvolvidas, observamos que estão mais envolvidas com o acontecimento no tempo e espaço do que com a forma, o como, adaptando-se às subjetividades advindas do acontecimento do aqui e agora, traçando relação direta com a audiência. Assim, por seu caráter dinâmico metamórfico, adaptável e relacional são difíceis, senão impossíveis, de serem compreendidas em sua totalidade.

Os argumentos alicerçados nesta pesquisa que pensa Performance/Exus e Performatividade/Exu de forma complementar às práticas culturais afro brasileira, expressam-se através de ebós e pontos riscados devotados a Exu nos corpos Negros, corpos encruzilhadas. Ambos se processam em encontros e desencontros para produzir conhecimento em forma de resistência, frutificando presença, seja ela em performance arte ou em performance social. Essa presença transmite ecos ancestrais, sendo Exu o umbigo do universo, tal qual o sujeito negro em qualquer sociedade que habita. Exu é a natureza em trânsito, é o dinamizador entre os meios (visíveis e invisíveis) e todas as formas de vida existentes. Sua performance está em constante transmutação e percorre tanto no mundo tangível, quanto no mundo não tangível. Suas características são complexas e seus campos de atuação são extensos e enigmáticos, sendo essa complexidade que o torna passível de diferentes e variadas interpretações.

Quanto à análise das performances afro conclui-se, por meio dos terreiros de candomblé e os corpos encruzilhada, que Exu constitui um paradigma. O corpo encruzilhada é firmado como possibilidade expressiva de criatividade e potencialidade enquanto existência e expressão da fisicalidade. É presente nas performances que se fundem e confundem com a vida dos sacerdotes/performers, tanto nas práticas performativas culturais e religiosas, quanto nas performances artísticas. Os terreiros de candomblé e os centros de umbanda firmam-se como solo fértil para produção e difusão de conhecimento. Solo esse que é adubado e dinamizado por Exu e Exus em suas esferas física e metafísica que atua de forma efetiva nas relações e interações desenvolvidas pelos sacerdotes/performers. Diante desses desdobramentos, as performances aqui pautadas adotam hábitos e comportamentos também mediados pelo orixá e entidade, a fim de expressar sua identidade e sua negritude.

Notas

  • 1
    Ponto cantado para Exu nos centros de umbanda.

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Editado por

Editora-responsável: Celina Nunes de Alcântara

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2021
  • Aceito
    12 Dez 2021
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