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Povoar a Cultura com a Performance da Floresta: a vida de viadoplantas e a cena transespécie

Peupler la Culture avec la Performance Forestière: la vie des viadoplantas et la scène transespèces

RESUMO

O texto aborda a performance da floresta como um paradigma de povoamento cultural que rompe com as noções totalizantes de humanidade-urbanidade presentes nas hegemonias sexo-gênero coloniais. Tem-se como cerne do trabalho as figuras corporais viadoplantas e transespécies como modos vegetativos de inclinação da vida e da cena. A partir de linhas das forças do trabalho Corpoflor e da acepção corpoluz elaborada na obra TRAVED: palestra-performance em realidade virtual, o estudo articula paradigmas ético-filosóficos de povoamento da cultura, reconhecendo, assim, as florestas como entidades performativas sexualizadas e generificadas.

Palavras-chave:
Performance da Floresta; Povoamento Cultural; Viadoplantas; Transespécie; Anticolonialidades

RÉSUMÉ

Le texte aborde la performance de la forêt comme paradigme de peuplement culturel qui rompt avec les notions totalisantes d'humanité-urbanité présentes dans les hégémonies coloniales de sexe et de genre. Le cœur du travail sont les figures corporelles viadoplantas et les trans-espèces comme moyens végétatifs d’incliner la vie et la scène. Basé sur les lignes de force de l'œuvre Corpoflor et le sens corps-lumière développé dans l’œuvre TRAVED: conférence-performance en réalité virtuelle, l'étude articule les paradigmes éthiques et philosophiques de la culture de peuplement, reconnaissant ainsi, les forêts comme entités performatives sexualisées et genrées.

Mots-clés:
Performance Forestière; Peuplement Culturel; Viadoplantas; Trans-espèces; Anticolonialités

ABSTRACT

The text addresses the performance of the forest as a paradigm of cultural peopling that breaks with the totalizing notions of humanity-urbanity present in colonial sex-gender hegemonies. The core of the work is the bodily figures viadoplants and trans-species as vegetative ways of inclining life and the scene. Based on the lines of strength of the work Corpoflor and the conception of corpoluz developed in the work TRAVED: palestra-performance em realidade virtual, the study articulates ethical-philosophical paradigms of peopling of culture, thus recognizing forests as sexualized and gendered performative entities.

Keywords:
Performance of the Forest; Cultural Peopling; Viadoplants; Trans-specie; Anticolonialities

Introdução

As configurações hegemônicas ocidentais de sexualidade e gênero nas artes da cena fundam-se em noções coloniais do binômio humanidadeurbanidade. Observa-se que o conjunto de processos criativos e obras produzidas nessa égide assentam majoritariamente as dimensões subjetivas e expressivas sexuais e de gênero das corporalidades, sejam elas dissidentes ou não, nos preceitos humanos e urbanos. Sendo assim, desenvolve-se neste estudo a performance da floresta como um paradigma de povoamento cultural de sexo-gênero e como uma veia de ruptura anticolonial com o panorama normativo nas artes da cena.

A partir dessa discussão como principal instância no que tange ao texto, serão desenvolvidos alguns movimentos conceituais que nos podem auxiliar nessa proposição performativa de relação com a cultura, ou melhor, de povoar a cultura através de uma performance da floresta. Portanto, falar-se-á do posicionamento urbanístico nessa proposição anticolonial de cultura, bem como da movimentação desta nos espaços da cidade. Logo, o trabalho buscará compreender o povoamento cultural por meio da performance da floresta diante das dinâmicas culturais de massa, levando em consideração construções coloniais e neoliberais que suscitam, aliás, tecnologias hegemônicas de propagação de um modo canônico cultural.

O povoamento da cultura para além da supremacia da espécie humana (Haraway, 2022HARAWAY, Donna. Quando as Espécies Se Encontram. São Paulo: Ubu Editora, 2022.) e que recusa a centralidade da urbanidade como base epistêmica (Viveiros de Castro, 2018VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu/n-1 edições, 2018.) tem na perspectiva da performance da floresta uma guia profícua de composição da cena e da vida1 1 “[...] quando pronunciamos a palavra vida, deve-se entender que não se trata da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam” (Artaud, 2006, p. 8). . No Brasil, por exemplo, a ancestralidade dos modos culturais de sexo e gênero de povos indígenas originários e de povos africanos escravizados não possui relevância político-contextual na visão urbana moderna-ocidental nem na primazia humana sobre outras formas de vida. Dito de outro modo, intentamos mostrar que a complexidade da ancestralidade de pessoas indígenas e afrodiaspóricas não está presente nas programações modernas de cidade, de espaço social e de mobilidade corpórea, tampouco dos entendimentos de cultura. Nesse sentido, interessa-nos investigar: quais são as potencialidades da performance da floresta como2 2 “A palavra ‘como’ faz parte dessas palavras que mudam singularmente de sentido e de função a partir do momento em que [...] fazemos delas expressões de devires, e não estados significados nem relações significantes” (Deleuze; Guattari, 2012, p. 70). um paradigma de povoamento cultural de sexogênero?

Este estudo tem como base as premissas da obra Corpoflor, de Castiel Vitorino Brasileiro (Vitória, 2016), e da significação corpoluz desenvolvida no trabalho TRAVED: palestra-performance em realidade virtual, de Dodi Leal e Robson Catalunha (São Paulo, 2021). Ambas as propostas rasgam o pacto colonial de noções normativas de sexualidade e de gênero ao desvendar performatividades em viços corporais vegetativos e de luz. Trata-se de configurações que, ao pôr em xeque a superioridade impressa nas unidades urbana e humana de manifestação das corporalidades, instauram consequentemente outros modos de disposição da sexualidade e do gênero.

Para tanto, falaremos dos conceitos de viadoplantas (Farias, 2023FARIAS, Saile Moura. A Vida de Viadoplantas: a morte é de quem? - rumo a outras reedificações de corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero nas paisagens urbanas. PÓS, Belo Horizonte, v. 13, n. 27, p. 1-27, 2023.) e transespécies (Habib, 2021HABIB, Ian Guimarães (Org.). Transespécie/Transjardinagem. Uberlândia: O Sexo da Palavra, 2021.) como veículos cênico-políticos de fabulação desse povoamento performativo que leva em consideração novas relações espaciais, materiais e sobretudo de outras narrativas corpóreas no que também pode tanger à cultura. Nesse sentido, enquanto pressuposto metodológico, a pesquisa desenvolve um percurso que compõe a análise bibliográfica com a elaboração epistêmico-filosófica do povoamento da cultura a partir da performance da floresta.

No que tange às duas obras referidas, mais do que as analisar a fundo, parte-se das proposições aí continentes - corpoflor e corpoluz - para averiguar os tensionamentos políticos que desenham a performance e a floresta. Apresentam-se, então, as formulações viadoplanta3 3 Esse conceito, que mais à frente é mais bem destrinchado, está sendo desenvol-vido em pesquisa de Doutorado intitulada A vida de viadoplantas: A morte é de quem? - corporificações crítico-pedagógicas ao humano-urbano nas Artes da Cena, na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC). Trata-se de uma proposta conceito-estética cênica que dialoga veementemente com demandas políticas de estudos ecológicos de sexualidade e gênero, como modo de criação de novos discursos filosóficos, epistemológicos, corpóreos etc. (Farias, 2023). e transespécie4 4 Segundo Habib (2021, p. 25), “Transespécie está para além da espécie, ou do que significa o limite das espécies, isto é, indica que a espécie em Transespécie não tem limite próprio. Transespécie questiona o limite específico, rompendo os limites do humano e do mais-que-humano, do vivo e do mais-que-vivo, do animado e do mais-que-animado, do sexo e do gênero, da natureza e da cultura, do corpo e da alma, do exterior e do interior, do visível e do invisível, da literalidade e da figuração. Transespécie interpela também as produções de sentido sobre percepções de seres, interroga abrangências e limitações de operação e aplicabilidade da espécie, exponencia avaliações ontocosmoepistemológicas da diferença e da riqueza espacial, fissura separabilidades entre realidades e irrealidades corporais, e indaga a própria possibilidade de agrupamento de seres em distintos universos materiais e imateriais - morfológicos, genéticos, reprodutivos, ambientais, espaço-temporais, de fluxo”. enquanto insígnias de povoamento cultural de sexo-gênero pela performance da floresta. Por se tratar de uma pesquisa em processo, a investigação levanta elementos preliminares das dinâmicas generificadas e sexualizadas da floresta. Além dessa delimitação, o trabalho não é generalista a todos os biomas.

Assim, tendo em vista a assunção estética dos corpos fora de si (Pérez Royo, 2022PÉREZ ROYO, Victoria. Cuerpos Fuera de Sí: figuras de la inclinación en las protestas sociales. Córdoba: Ediciones DocumentA/Escénicas, 2022.), são observados no texto os modos vegetativos de inclinação corporal5 no campo das artes cênicas. Auferimos aqui a temporalidade como um fator fabular da inclinação corporal constituindo o que vamos chamar, então, de performances fora de si. Ainda, a partir do marco das filosofias amazônicas (Kopenawa; Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu. Prefácio: Eduardo Viveiro de Castro. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.), põe-se em ação um conjunto de referentes que permite fundamentar a performance da floresta enquanto prática de povoamento cultural de sexo-gênero na vida e na cena. Por fim, apontam-se esquadros de contraste das figuras viadoplanta e transespécie em relação à disforia do mundo cis-heterocolonial (Preciado, 2022PRECIADO, Paul B. Dysphoria Mundi: el sonido del mundo derrumbándose. Barcelona: Anagrama, 2022.), firmando-as como sintagma da cultura popular de sexo-gênero.

Do prédio à pedra: a performance da floresta nos povoamentos culturais

Povoar a cultura com uma performance da floresta requer que nos inclinemos a pensar como atua essa floresta e de que modo esses corpos operam nos escopos culturais. Requer, ainda, que verifiquemos de que maneiras essa dita floresta cria artefatos de povoamento nas cidades, nas comunidades, nas instituições, nos corpos das pessoas, das espécies, das espéciesoutras-de-pessoas, nas páginas de papéis etc. De antemão, interessa-nos traçar uma visualização desse exercício filosófico, ético e estético que subsiste no presente estudo.

Trata-se de pensar por meio do que Eduardo Viveiros de Castro, no prefácio de A Queda do Céu, denomina de filosofia amazônica:

É essencialmente um onirismo especulativo, em que a imagem tem toda a força do conceito, e em que a experiência ativamente ‘extrospectiva’ da viagem alucinatória ultracorpórea ocupa o lugar da introspecção ascética e meditabunda (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O Recado da Mata. In: KOPENAWA, Davi. ALBERT, Bruce. A Queda do Céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 40).

O exercício performativo da floresta de articular o povoamento da cultura por meio da vida de viadoplantas e da cena transespécies se configura na força imagética e imaginativa de ocupações culturais Ele se dá também nas práticas de reconstrução política da condição de corpos vivos e na capacidade germinativa de não só poder sonhar mais, mas também deliberar modos mais afetivos da floresta. Trata-se de inferir atuações políticas que transmutem as relações culturais por meio de dinâmicas inextricavelmente críticas e criativas de povoamento espacial e temporal.

Corpoflor, série fotográfica da performer e psicóloga Castiel Vitorino Brasileira realizada em Vitória (ES) desde 2016, trata dos processos de transmutação corporal em que a artista frui na radicalidade das suas expressões com as de outras espécies vegetais, animais, minerais e entidades simbólicas. Trabalhando com produção de visualidades e gestualidades performativas, a obra consiste na realização de fotografias de si e de pessoas convidadas expressando processos transformacionais do corpo, enfatizando a experiência com a matéria corporal.

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Castiel Vitorino Brasileiro, registro fotográfico da série Corpoflor.

O estatuto normativo de humanidade do corpo neste trabalho é rompido fundamentalmente. A aposta das continuações nervosas entre a carne e a folha, entre a pele e a energia, entre o sentimento e a transfiguração inscrevem modos de povoamento de cultura que são irreconciliáveis com o projeto sexo-gênero colonial.

Meu prazer em transfigurar me trouxe até aqui. ‘Corpo-flor’ é o jeito que decidi nomear uma promessa que fiz a mim mesma: continuar transmutando num hibridismo radical com vidas de outros reinos e mundos. Porque sempre que CorpoFlor aparece, há uma nova aparência, uma nova mistura de signos, símbolos, cores, texturas, caretas, olhar, porque Corpo-flor é uma fagulha de mim que eu criei para me fazer lembrar de que posso sempre assumir formas de viver e estar não previstas por mim ou à mim. essa promessa de dar continuidade às minhas transfigurações da carne... nas imagens eu registro momentos de medo, dor, coragem, raiva, tesão dessa promessa.... e criar essas imagens são rituais que me dão energia para continuar minhas perambulações entre no mundo dos vivos e mortos. Por muito tempo, acreditei que Corpoflor referenciava apenas a mim, e durante esse tempo eu construí esse Ser, num movimento de resistência à violência da racialização. Digo, porque também por muito tempo eu vivi uma solidão absurda em meu primeiro local de morada, Vitória. A transição de gênero me arremessou numa camada ainda mais profunda dessa solidão, e Corpoflor acompanhou tais angústias. No entanto, ao longo desses seis anos de obra, foi percebendo que algumas camadas de minha vida mudaram de rota, e Corpoflor se tornou uma nomenclatura que mais designa uma espécie do que um nome que diz respeito apenas a uma só vida6 6 Trecho de texto reflexivo e de apresentação de Corpoflor, escrito por Castiel Vitorino Brasileiro, disponível em: https://castielvitorinobrasileiro.com/foto_corpoflor/ Acesso em: 29 jan. 2023. .

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Castiel Vitorino Brasileiro, registro fotográfico da série Corpoflor.

Em TRAVED: palestra-performance em realidade virtual, com dramaturgia e atuação assinadas pela iluminadora e performer Dodi Leal e com roteiro e direção sob responsabilidade do ator Robson Catalunha, observamos a concreção da forma corpoluz como uma matéria de transmutação do corpo enquanto força de luz. A obra, cuja estreia ocorreu no ano de 2021, em São Paulo/SP, conta com uma série de demonstrações da inversão das atribuições da luz à máquina e do humano ao corpo.

O trabalho consiste na experimentação performativa da corporalidadeluz em relação com outras formas de máquina. A obra é composta de um prólogo e um epílogo presenciais, além de uma sessão intermediária de fruição de um vídeo em realidade virtual com uso de óculos 360°. A dramaturgia do espetáculo trata da apresentação conceitual das potencialidades da luz cênica, expandindo o formato normativo da palestra para a prática da palestra-performance. Aos poucos, a difusão espacial das posições em que são apresentados os argumentos teóricos conduzem a/o espectador/a à história do acidente de bicicleta de Dodi Leal, apresentando as transformações cirúrgicas corporais decorrentes desse processo, além da relação íntima com sua família e a sua transição de gênero a partir da colocação corporal dos materiais cirúrgicos de titânio.

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Dodi Leal, registro fotográfico da palestra-performance TRAVED.

As prerrogativas indicativas da luz enquanto uma forma corporal e do corpo como um aparato maquínico, ou tecnológico, se dão precisamente pelo fato de a protagonista portar titânio em seu cotovelo direito após cirurgia decorrente de acidente de bicicleta ocorrido em 2015. No argumento do espetáculo, ao conter ferro dentro de si, a atriz transforma-se não apenas num corpo ciborgue: o corpo ferrado anuncia que Dodi transmutou-se em bicicleta. A matéria tecnológica de seu corpo é, então, preceito de investigação de sua propulsão de luz.

A palestra-performance reúne, no palco, presenças humanas e outras-que-humanas: uma escada metálica, uma bicicleta, a luz, cadeiras, headsets de realidade virtual 3D etc. Dodi parte do acidente que sofreu em 2015, quando andava de bicicleta e quebrou o cotovelo, para refletir sobre processos de transição e transformação. Não só ganhou uma placa de titânio e vários parafusos no cotovelo direito, como confirmou sua traição de gênero e acolheu essa “força estranha” (na letra de Caetano Veloso) que transmuta corpos em luz. Ressignificou a bicicleta, ressignificou a própria vulnerabilidade ─ fez dela resistência, agência, canto, encanto e teoria. A correia travada da bicicleta que a fez cair também a fez levantar travesti. Travessia tecno-orgânica: Depois que Dodi, no alto da escada, encara os riscos de seu corpo-carne (ainda lidando de forma cautelosa com a bicicleta largada no chão), embarcamos todes em outra dimensão com os óculos de realidade virtual. E é nesse momento que nós, espectadoras e espectadores, nos damos conta de nossa porção ciborgue: “perdemos” corpo para expandir consciência e perspectiva. Não há fronteiras espaciais nem temporais; fluímos com tecno-organicidade ─ afinal, traved é travessia, atravessar, como diz Dodi em cena. A reflexão teórica acompanha um passeio no parque num dia de sol e drinks, ou um dueto entre mãe e filha no quintal de casa. O tempo é espiralar. O espaço é expansão. (Ora, que Ocidente é esse que separou pensamento e prática, signo e carne?) A dramaturgia se baseia no artigo Biotecnologias da cena: generética do corpoluz e filosofia estética das encruzitravas (2021), escrito pela artista7 7 Trecho da crítica teatral do espetáculo TRAVED: palestra-performance em realidade virtual, intitulada ><Eu, Você: Espectador/a-Ciborgue<>, escrita por Maria Fernanda Vomero para o portal Itaú Cultural e publicada em 23/06/2022. Disponível em: http://portale.icnetworks.org/secoes/opiniao/eu-voce-espectador-ciborgue/. Acesso em: 29 jan. 2023. .

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Dodi Leal, registro fotográfico da palestra-performance TRAVED.

Ambas as elaborações, corpoflor e corpoluz, contidas nas obras referidas, apresentam tensionamentos à urbanidade-humanidade como formas hegemônicas do corpo. As duas acepções sugerem uma prática de relacionalidade entre espécies, energias, imaginários e formas como caminho poéticoexperimental de desconfiguração e transmutação de normas do corpo nas quais se inscrevem, por exemplo, os modos sexo-gênero coloniais que legitimam quem pode conceber cultura.

Para as cosmovisões indígenas, há um modo relacional essencialmente presente entre os corpos, humanos e não humanos, e a Terra. Segundo Ailton Krenak (2019)KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., a Terra é um organismo vivo. Portanto, traçar uma diagramação que perspectiva a cultura não mais sucumbida numa dialética natureza-cultura converge com a possibilidade de pensá-la pelas vias do multinaturalismo amazônico, que “[...] não afirma uma variedade de naturezas, mas a naturalidade da variação, a variação como natureza” (Viveiros de Castro, 2018VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu/n-1 edições, 2018., p. 68).

Segundo o autor de Metafísicas Canibais (2018), há, na perspectiva ocidental, um multiculturalismo que entende uma diversidade de representações subjetivas e parciais, organizando-se numa ideia totalizante de natureza (Viveiros de Castro, 2018VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu/n-1 edições, 2018.). O que se infere, então, com o multinaturalismo é a defesa de que não pode haver uma perspectiva que represente efetivamente a reunião múltipla de todos os corpos. Logo, entendemos que não há uma única forma de cultura que possa abarcar povos, saberes, hábitos, modulações afetivas de sexualidade e gênero etc. sem já exercer violências simbólicas e concretas. Por isso, propor uma performance da floresta como povoamento cultural, pensado por e a partir de viadoplantas e transespécies, demanda articulações substancialmente de relação corpóreo-vegetal em função dos projetos políticos e relacionais da Natureza.

O multinaturalismo da acepção corpoluz nos remete não apenas às expressões da iluminação cênica do corpo, mas também às sombras e às corporalidades na sala escura. Vejamos, por exemplo, o efeito histórico pretendido com o blecaute teatral: a magia de desaparecimento, cujo peso e gravidade se desfazem em fenômeno instantâneo de ambientação (Perruchon, 2016PERRUCHON, Véronique. Noir: lumière et théâtralité. Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2016.). Ou seja, a técnica-estética de corpoluz considera as múltiplas presenças na Terra como aparições gravitacionais cujas massas corporais se inscrevem enquanto iluminação cênica.

Já na acepção corpoflor, encontramos procedimentos que sugerem uma prática multinaturalista ao pôr em xeque a racialização negra colonial. Devolver a escuridão aos corpos negros é, então, reconhecer que “sua escuridão pertence ao universo e não à modernidade” (Brasileiro, 2022BRASILEIRO, Castiel Vitorino. Quando o Sol Aqui Não Mais Brilhar: a falência da negritude. São Paulo: n-1 edições, 2022., p. 27). A autora continua: “Se quebrarmos a aliança com a racialidade negra, a nossa escuridão transformar-se-á em que, senão em tudo aquilo que nem sequer podemos imaginar? Tornamo-nos imensuráveis. O acaso. Tornamo-nos livres”.

Outro aspecto trabalhado em TRAVED e que guarda similitudes com as operações de Corpoflor é a proposta em que corpoluz é um rearranjo da fotossíntese para a afetossíntese8 8 Posteriormente à sua referência dramatúrgica na estreia de TRAVED, o conceito afetossíntese ensejou a curadoria, com mesmo título, do Eixo Ações Pedagógicas da 8ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), realizada em 2022, assinada por Dodi Leal. Disponível em: https://mitsp.org/2022/. Acesso em: 29 fev. 2023. . Afetossíntese trata da força afetiva da elaboração cênico-performativa no sentido de gerar vigor nutritivo nas relações existenciais-sociais. Enveredando por pedagogias teatrais que abalam a supremacia da espécie humana com relação a todas as outras formas de vida, a proposta da afetossíntese é o estudo e a experimentação das propriedades minerais e vegetativas da corporalidade afetiva. Assim, a geração de energia corporal pela transmutação em luz dos afetos é vetor para a vivência cênicopedagógica das relações gênero-classe-raça-geracionalidade para além de uma perspectiva especista.

Tratamos em corpoflor e corpoluz de modos existenciais nos quais os corpos tendem a se deslocar de um ideário moderno, ao qual se liga a figura do prédio (edificações ocidentais da urbanidade). O sentido: para uma vida do universo, ao qual se liga a figura das pedras (conjunto de manifestações geopsíquicas não urbanas). Dos prédios às pedras.

Dessa forma, a performance da floresta se mediatiza por uma busca por novos rumos de mobilização das agrupações éticas para se povoar o agora, visto que “[...] a meta não é tanto o outro lado, mas o aqui, esse aqui para onde estamos indo e onde já estamos. O aqui de onde viemos” (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota. Não Vão nos Matar Agora. 1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021., p. 17). É preciso, por conseguinte, restituir a imagem da floresta como entidade ético-estética de visualização da cultura para, com isso, abarcar a multiplicidade de existências como projeto cultural, como povoamento efetivo, pelas vias do encantamento da vida (Simas e Rufino, 2020SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Encantamento: sobre política de vida. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2020.) ou de um encantravamento da cultura (Leal, 2021aLEAL, Dodi. Fabulações Travestis sobre o Fim. Conceição/Conception, Campinas, v. 10, p. 1-19, 2021a.) enquanto um agenciamento em potencial.

Nos tópicos a seguir, procuramos continuar indicando estudos que vêm redistribuindo o povoamento da cultura a partir, inclusive, de outros modos de cultuar a/o outro/a e a si como um método de autocuidado presente nos meios de redistribuição do monopólio da violência (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota. Não Vão nos Matar Agora. 1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.). Ele também atua diante das noções de humanidade brancociscolonial e demais práticas que reagrupam a atuação política e pedagógica de povoamento performativo, florestal, viado-plantado-transcorrendo-espécies. Procura-se, portanto, que pensemos a cultura tendo como horizonte, por exemplo, o sistema radicular (Coccia, 2018COCCIA, Emanuele. A Vida das Plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.; Mancuso, 2019MANCUSO, Stefano. Revolução das Plantas. São Paulo: Ubu Editora, 2019.), como uma ressonância corpórea e afetiva para novas tecnologias culturais, como é o interesse primordial que rege a criação da viadoplanta e das transespécies nos estudos cênicos.

A vida de viadoplantas

O conceito de viadoplantas se dá, primeiramente, a partir da observação de que corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero têm inscrições nas paisagens urbanas divergentes da hegemonia humanista. Nesse sentido, há nas práticas culturais de corpos não heterossexuais e não cisgêneros aspectos existenciais e corpóreos semelhantes aos modos de espacialização das plantas. Nota-se que não há como ser um corpo bixa9 9 A aparição deste termo faz referência ao livro Ética Bixa, de Paco Vidarte (2019), em que o autor elabora perspectivas que essencialmente fundamentam desdobramentos éticos aqui traçados, que corroborarão para pensarmos o tema do presente artigo por corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero na cultura. sem já ser planta, sobretudo levando em consideração as paisagens das cidades como espaços não projetados para nenhum desses corpos.

Como um exercício de restituição de termos pejorativos, atribui-se aqui a palavra viado às plantas, exercendo uma espécie de refutação da taxonomia primária para formular a viadoplanta. Mobilizam-se, assim, deflagrações subsequentes acerca de discursos que centralizam o humano (biológicocolonial) como vértice principal. Trata-se de estabelecermos um esforço de autonominação e autorressiginificação feito pela escolha de outros paradigmas terminológicos, pois em vias de um povoamento cultural viadoplantado10 10 O movimento político de reapropriação de termos pejorativos em uma significa-ção afirmativa remonta a uma genealogia que perpassa tanto por referentes euroestadunidenses, como uranistas, pederastas e queer (Preciado, 2022), como por referentes latino-americanos, como viado, travesti, sapatão, bixa e cuir (Leal, 2021b). . Entende-se, por isso, “uma tecnologia de micropolítica que precisamos compreender e saber elaborar” (Farias, 2023FARIAS, Saile Moura. A Vida de Viadoplantas: a morte é de quem? - rumo a outras reedificações de corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero nas paisagens urbanas. PÓS, Belo Horizonte, v. 13, n. 27, p. 1-27, 2023., p. 162).

Leva-se em consideração que o termo humano universal promove violências simbólicas e concretas por meio de uma noção excludente de humanidade, porque é branca, hétero, cisgênera, capacitista, capitalista e colonial. Utiliza-se, portanto, desse imbricamento de tecnologias dos sentidos e sentires, tais como presentes na condição de viadoplanta, não somente para fomentar criações epistemológicas não heterossexuais, mas também para falar por meio de vulnerabilidades e inventividades, fazendo o exercício de fabular saberes através da condição vitimada como método de enfrentamento, como nos incita Joice Berth (2020)BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo: Jandaíra, 2020. no livro Empoderamento.

Assim, agregamos a este estudo a vida de viadoplantas como veículo de pensar culturalmente o povoamento de corpos outros para além de uma perspectiva estruturalista e segregacionista da cultura hegemônica e seus desdobramentos discursivos pensados pelo heterocispatriarcado. Para tanto, teceremos algumas formulações acerca de princípios éticos e racionais que produzem, a depender do caráter demográfico etnocentrista atribuído, mazelas de potencialização inventiva e crítico-política, para refletirmos, assim, sobre aspectos culturais multifacetados e relacionais.

Segundo Roque de Barros Laraia (2001LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001., p. 87):

Todo sistema cultural tem a sua própria lógica e não passa de um ato primário de etnocentrismo tentar transferir a lógica de um sistema para outro. Infelizmente, a tendência mais comum é de considerar lógico apenas o próprio sistema e atribuir aos demais um alto grau de irracionalismo.

Essa contribuição do antropólogo brasileiro Laraia já delineia aspectos estruturantes de uma política crítica da cultura como um agenciamento vivo e que se redistribui por formatações diversas, a depender do sistema em que está constituída. O autor disserta sobre o limbo criado pelo etnocentrismo ao deslegitimar algumas dinâmicas culturais, classificando-as como irracionais. Não se trata, nesse caso, do ato reduzido de forjar argumentos de validação de perspectivas enviadescidas11 11 Esse termo faz referência à música de Linn da Quebrada, Enviadescer, presente no álbum Pajubá, lançado no ano de 2017. , pensando a cultura como modo de pertencer a um projeto lógico-ocidental em que a razão está estabelecida como parâmetro primevo.

Paco Vidarte (2019)VIDARTE, Paco. Ética Bixa: proclamações libertárias para uma militância LGBTQ. São Paulo: n-1 edições, 2019., no livro Ética Bixa, elabora confecções discursivas muito sofisticadas a respeito de alguns termos que inclusive recortam e limitam leituras culturais, dependendo do sistema político. O primeiro sobre o qual refletiremos é justamente o conceito de razão, concebendo outra perspectiva, isto é, menos calcada em analíticas centralizadoras e de empreendimento linear e produtiva.

[...] a razão é patriarcal, também é heterossexual, heterossexista, homofóbica e nos amordaça quando queremos usá-la porque foi inventada para nos calar e nos massacrar. Cuidado com a razão! É preciso colocá-la em curtocircuito, se algo for sisudo e racional demais, provavelmente será heterossexista e homofóbico. [...] Nunca nos exterminaram nem nos perseguiram gratuitamente, por esporte, sempre houve razões por trás, crenças, religiões, motivos muito decentes e busca do bem (Vidarte, 2019VIDARTE, Paco. Ética Bixa: proclamações libertárias para uma militância LGBTQ. São Paulo: n-1 edições, 2019., p. 120).

Com esse ponto de vista do filósofo espanhol, nota-se que, se um dos métodos de violência do etnocentrismo é o de classificar como irracional determinada prática e/ou movimentação cultural externa ao projeto neoliberal, refutam-se já, por meio do recorte político de Vidarte, as instâncias negativas do que seria um pensamento irracional. Levamos em consideração, sobretudo, que o sistema que deslegitima dada formulação epistemológica é o mesmo que constrói métodos de exclusão altamente estratégicos: o programa de normatividade de gênero, de sexualidade, de raça, de etnia, de pensamento colonial que, por meio de noções universalizantes, visa abarcar somente corpos alcançados pela higiênica e seleta formatação corpórea hegemônica.

Diante disso, dissertamos que leituras feitas a respeito de modos culturais como indevidos e irracionais podem ser utilizadas como aberturas estratégicas em potencial para promovermos formulações ético-estéticas de outra conjuntura epistemológica, cênica, discursiva etc., porque são contextualizadas, transitórias e múltiplas. Isso é possível se avaliamos e compreendemos o canal sistemático que subjaz dada perspectiva unilateral. Com isso, podemos refletir não apenas sobre os níveis de transitoriedade do conteúdo de uma terminologia, que nunca é somente terminológico, por entre os territórios culturais descentrados, mas também sobre a capacidade pedagógica de leituras dos múltiplos modos de povoamentos.

A performance da floresta como projeto de povoamento cultural, dentre seus métodos de realização, ocorre pela tomada da experiência como vértice de recondução interpretativa dos parâmetros culturais. Ela possibilita leituras corporificadas de discursos e ideais, concebendo capacidade criativa para, inclusive, tecermos territórios em que viadoplantas possam plantar reformulações acerca do que entendem por cultura através de uma epistemologia crítica e viadoplantada, ou seja, de uma inventividade da bixa vegetal, bem como da planta viada (Farias, 2023FARIAS, Saile Moura. A Vida de Viadoplantas: a morte é de quem? - rumo a outras reedificações de corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero nas paisagens urbanas. PÓS, Belo Horizonte, v. 13, n. 27, p. 1-27, 2023.).

Diante disso, vale ponderarmos a noção de humanidade, que sempre vale a pena recobrar, pois tradicionalmente compunha perspectivas culturais, com o pressuposto de ser um viés de representação de todos os corpos. Na verdade, qualquer pressuposto universalizante é primeiramente condicionado ao sistema de exclusão colonial, tal como o etnocentrismo, desencadeando o etnocídio e o epistemicídio. Tais espaços sistêmicos do poder heterocispatriarcal geram entendimentos pouco experimentais dos povoamentos, principalmente um descanso estagnado em terminologias que não acompanham as emergências políticas das várias formas de vidas atuantes na possibilidade de criação de uma cosmopolítica da cultura.

Quando pensada pela viadoplanta, esta última é atinada inclusive pelo cu da bixa (Sáez; Carrascosa, 2016SÁEZ, Javier; CARRASCOSA, Sejo. Pelo Cu: políticas anais. Belo Horizonte: Letramento, 2016.), encarnando um exercício sofisticado de elaboração e recuperação ontológica das dinâmicas expressivas e de fabulação dos corpos marginalizados que podem, por meio desse exercício de reposicionamento cultural, epistêmico e social, atuar efetivamente como corpos também capazes de promover dinâmicas de povoamentos ecológicos, filosóficos e pedagógicos, abarcando a floresta, a planta, a pedra, o viado, a trava, em suma, as tramas relacionais concernentes a corpos sexo-gênero dissidentes, para assim instaurarmos outros modos de cultuar epistemologias culturais nas ressonâncias dos gemidos e sussurros liberados pelo cu que cultua novos saberes.

Quando pensada pelo cu, a cultura se apresenta por meio de outras texturas, outras tessituras, outros cheiros e funcionalidades, porque reencenamos os discursos (fisiológicos e políticos) do buraco como uma esfera de criação estética e filosófica, e não como uma condição de falha operacional. Não queremos, portanto, tirar a cultura do buraco, mas implementar outros modos de bifurcações que possibilitem a entrada de mais membros nas nossas zonas de fabulação cênica, crítica e cultural mobilizadas pelo imaginário de corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero.

Segundo Sáez e Carrascosa (2016)SÁEZ, Javier; CARRASCOSA, Sejo. Pelo Cu: políticas anais. Belo Horizonte: Letramento, 2016., o cu é um órgão que cerceia a condição social de humanidade de corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero. Como já refletido acima, essa programação colonial e eurocêntrica de universalização agencia um projeto cultural potencialmente imbricado nas compreensões de povoamentos políticos vigentes. Por conseguinte, atrelar a cultura ao cu como elemento discursivamente pedagógico da cultura abarca o interesse não só por refutá-lo de uma moral patriarcal, como também por redimensionar seu campo de imagem e imaginação através de um exercício sofisticado. Pensando com Jota Mombaça (2016)MOMBAÇA, Jota. Rastros de uma Submetodologia Indisciplinada. Concinnitas, Rio de Janeiro, ano 17, v. 01, n. 28, set. 2016., trata-se de buscar um povoamento do cu (memória do cu), que tanto nos concerne quanto está por ser agenciado.

Isso não pressupõe uma mera atualização de intersecção conceitual, como numa espécie de imbricamento gratuito. O cu “[...] é um espaço político. É um lugar onde se articula discursos, práticas, vigilâncias, olhares, explorações, proibições, escárnios, ódios, assassinatos, enfermidades” (Sáez; Carrascosa, 2016SÁEZ, Javier; CARRASCOSA, Sejo. Pelo Cu: políticas anais. Belo Horizonte: Letramento, 2016., p. 73). Portanto, tateá-lo ao lado do povoamento da cultura pelo vértice primordial de redistribuição colonial de discursos engessados nos faz refletir sobre os caminhos para os quais podem ir as perspectivas políticas quando revisitadas pela ruptura contextual da viadoplanta, reavendo primordialmente os segmentos que far-se-ão presentes na compreensão crítico-filosófica da cultura.

Segundo Vidarte (2019)VIDARTE, Paco. Ética Bixa: proclamações libertárias para uma militância LGBTQ. São Paulo: n-1 edições, 2019., a ética bixa é uma ética carnal, pois é pensada com o cu. Diante disso, ao propormos tal aspecto relacional entre cu e cultural, forjam-se povoamentos agenciados pela carnadura do viado que se acresce à planta, inexoravelmente, desencadeando não só encontros comunitários, mas também outras coreopolíticas (Lepecki, 2012LEPECKI, André. Coreopolítica e Coreopolícia. ILHA - Revista de Antropologia, Santa Catarina, v. 13, n. 1, p. 41-60, 2012.) nesse modo de povoamento da cultura.

A cena transespécie

A configuração de relações intrainterespécies e tecnoecossistêmicas no campo das chamadas biotecnologias da cena (Leal, 2022LEAL, Dodi. Biotecnologias da Cena: generética do corpoluz e filosofia estética das encruzitravas: In: DALAQUA, Gustavo; NOYAMA, Samon. Boal e a Filosofia. Curitiba: CRV, 2022.) requer que tenhamos em vista modos atitudinais provenientes de propostas como as teatralidades trans, nas quais se interpela o estatuto da humanidade ciscolonial na cena. Ora, para que não tenhamos uma visão ingênua e superficial das relações entre diferentes espécies, é preciso compreender efetivamente de que modo a cena transespécie sugere modos de estabelecimento de parentalidades teatrais.

Uma das célebres proposições de Haraway (2022)HARAWAY, Donna. Quando as Espécies Se Encontram. São Paulo: Ubu Editora, 2022. pode nos auxiliar nesta reflexão: não faça bebês, faça parentes. Para além da estabelecida biologia da reprodução da espécie, as transespécies nos aproximam de modos de companheirismo enquanto tecnologias de ecossistemas que rompem com a supremacia humana presente no Antropoceno. Estamos tratando aqui de arranjos de parentalidades que cindem as normas hegemônicas do pacto colonial de sexo-gênero-raça. Depreendemos de Leal que os modos de relação da cena transespécie atuam para travar a ecologia por meio de biopolíticas da cena e suas tecnologias de corpo:

É preciso notar que não há separação possível entre os tecnoecossistemas e a biopolítica. Travar a ecologia é promover novas articulações em que reconhecemos, primeiramente, que a cibernética e os elementos são provenientes do mesmo mundo interligado. [...] Travar é recusar-se ao projeto de uma espécie global e também uma recusa ao reducionismo binário de corpo ou máquina. É preciso novas parentalidades para além do reprodutivismo da espécie humana. Reconhecendo, ao mesmo tempo, os fluxos históricos da geopolítica que se inscrevem na tecno-ecologia (Leal, 2022LEAL, Dodi. Biotecnologias da Cena: generética do corpoluz e filosofia estética das encruzitravas: In: DALAQUA, Gustavo; NOYAMA, Samon. Boal e a Filosofia. Curitiba: CRV, 2022., p. 11).

Se as transespécies interpõem modos de existência na vida e na cena teatral, em que a centralidade não está no reprodutivismo da espécie humana, e sim na parentalidade, devemos nos perguntar: como podemos rever os contratos afetivos que se firmam entre humanos? Como romper com a racionalidade da espécie supremacista humana na qual as práticas de prazer e gozo estão engendradas em normas de dominação dos corpos? Como estremecer as regras da reprodução da espécie enquanto uma propriedade de um corpo sobre o outro em função da geração a partir do sexo? Como encontrar na cena modos de companheirismo transespécie para além do casamento e da monogamia?

Diante dessas perguntas, analisemos o sistema radicular, ou seja, o agenciamento de inteligência da planta, aproximando os fazeres de gênero aos existires de espécie. O processamento vegetal radicular, dissertado pelo botânico Stefano Mancuso (2019)MANCUSO, Stefano. Revolução das Plantas. São Paulo: Ubu Editora, 2019., aborda esse sistema como um funcionamento descentralizado no qual as plantas atuam e registram modos de comunicação. Trata-se de “[...] uma rede física cujas extremidades formam uma frente que avança continuamente [...]”, corroborando a compreensão de que “[...] a exploração de ambientes desconhecidos não é uma tarefa para instrumentos dotados de organização centralizada” (Mancuso, 2019MANCUSO, Stefano. Revolução das Plantas. São Paulo: Ubu Editora, 2019., p. 100-101).

Podemos encontrar nas transespécies a aplicação afetossintética da noção de gênero expandido (Leal; Denny, 2021LEAL, Dodi; DENNY, Marcelo. Gênero Expandido: performances e contrassexualidades. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2021.) em plantas-corpos, radiculando a vivência trans em variações de configurações de espécie. Concebemos, assim, por variados modos de transmutação, contratos afetivos que promovem respeito e reverência enquanto ação de elo de agrupamento: parentalidade e companheirismo. E perguntamos: como os modos de relação da cena transespécie promovem e reconhecem novos pactos de corpo?

Se o limite dos agrupamentos de diferenças é interrogado, também o são suas necessidades de conservações, hierarquizações, definições, comparações, localizações, inventariações, e especificidades de reprodução e variabilidades que separam ou unem seres. Contudo, se Transespécie não se desprega completamente da espécie, é que ainda diz de maneiras de sobrevivência e relacionabilidade a partir da diferenciação corporal (Habib, 2021HABIB, Ian Guimarães (Org.). Transespécie/Transjardinagem. Uberlândia: O Sexo da Palavra, 2021., p. 25).

Encontramo-nos, segundo Leal (2022)LEAL, Dodi. Biotecnologias da Cena: generética do corpoluz e filosofia estética das encruzitravas: In: DALAQUA, Gustavo; NOYAMA, Samon. Boal e a Filosofia. Curitiba: CRV, 2022., em encruzitravas, nas quais os modos de afeto de biotecnologias da cena trans incidem em decisões éticas e estéticas que dimensionam as encruzitravas para além do regime cisgênerocolonial do teatro. Assim, as transespécies coadunam com as encruzitravas no sentido de estabelecermos modos profícuos e democráticos de companheirismo cênico para além do casamento, o qual nos assenta na tradicional concepção de espetáculo. “A parentalidade das encruzitravas advogam não o casamento como prática relacional, mas o causamento” (Leal, 2022LEAL, Dodi. Biotecnologias da Cena: generética do corpoluz e filosofia estética das encruzitravas: In: DALAQUA, Gustavo; NOYAMA, Samon. Boal e a Filosofia. Curitiba: CRV, 2022., p. 12).

Se considerarmos o causamento como uma parentalidade que expande regimentos reprodutivos da espécie no que tange à cena teatral, poderíamos verificar que causar é um modo de inclinação do corpo para além de si mesmo, para além de uma ontologia de corporeidade do sujeito moderno ocidental (Pérez Royo, 2022PÉREZ ROYO, Victoria. Cuerpos Fuera de Sí: figuras de la inclinación en las protestas sociales. Córdoba: Ediciones DocumentA/Escénicas, 2022.). “Enquanto o casal visa habitar uma casa, gerando toda uma demanda arquitetônica de família tradicional brasileira, o causal visa habitar uma causa” (Leal, 2022LEAL, Dodi. Biotecnologias da Cena: generética do corpoluz e filosofia estética das encruzitravas: In: DALAQUA, Gustavo; NOYAMA, Samon. Boal e a Filosofia. Curitiba: CRV, 2022., p. 12).

As transespécies constituem-se, então, como causamentos cênicos nos quais as formas de vida são respeitadas como tais e são exponenciadas pelas multiplicidades de seus processamentos vegetais, pelas potencialidades florestais de seus modos de povoar a cultura. “Causar, da perspectiva das encruzitravas, é estabelecer relações em que o apreço a uma luta comum floresce o afeto” (Leal, 2022LEAL, Dodi. Biotecnologias da Cena: generética do corpoluz e filosofia estética das encruzitravas: In: DALAQUA, Gustavo; NOYAMA, Samon. Boal e a Filosofia. Curitiba: CRV, 2022., p. 12). A cena transespécie promove modos de afetossíntese nos quais expandimos as corporalidades para além dos regimes coloniais de familiaridade humana, os quais se fomentam pelo patriarcado, pela branquitude, pela cis-heteronormatividade e pelo especismo.

Formas de viver e morrer importam: quais práticas historicamente situadas de vida e morte multiespécies devem florescer? [...] Mundos de espécies companheiras são tartarugas até o fim. Longe de reduzir tudo a uma sopa de complexidade pós-(ou pré-) moderna em que qualquer coisa acaba sendo permitida, as abordagens de espécies companheiras devem de fato se engajar na cosmopolítica, articulando corpos a alguns corpos e não a outros, nutrindo alguns mundos e não outros, e suportando as consequências mortais. Respeitar é respecere - olhar de volta, considerar, compreender que o encontro com o olhar do outro é uma condição de se ter rosto. Tudo isso é o que estou chamando de ‘compartilhar o sofrimento’. Não é um mero jogo, mas antes o que Charis Thompson chama de coreografia ontológica (Haraway, 2022HARAWAY, Donna. Quando as Espécies Se Encontram. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 128).

Verificaremos na seção a seguir de que modo as transespécies, tais como as viadoplantas, constituem-se enquanto performances fora de si. Interessa-nos desenvolver na continuação deste estudo a indicação dos fundamentos das filosofias amazônicas como nevrálgicas nos caminhos de estabelecimento de parentalidades, companheirismos e causamentos na cena e na vida. Para tanto, avaliaremos as inclinações temporais que ensejam os expedientes das corporalidades vegetais da performance da floresta em vias de um povoamento cultural.

Performances fora de si: inclinações temporais das corporalidades vegetais

Ao analisar as propriedades da cena teatral contemporânea tendo em vista o colapso do sujeito moderno, Pérez Royo (2022)PÉREZ ROYO, Victoria. Cuerpos Fuera de Sí: figuras de la inclinación en las protestas sociales. Córdoba: Ediciones DocumentA/Escénicas, 2022. cunha a expressão corpos fora de si para se referir às experiências de extensão corporal nas quais se aufere o desalinhamento de um eixo centrado enquanto modo de ação e existência. Nesse sentido, a teatralidade revela não apenas uma outreidade de personagens, mas um deslocamento físico, uma reconfiguração das normas do corpo. Podemos compreender aqui, por exemplo, a radicularidade de um sistema ecológico (Coccia, 2018COCCIA, Emanuele. A Vida das Plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.; Mancuso, 2019MANCUSO, Stefano. Revolução das Plantas. São Paulo: Ubu Editora, 2019.) como uma modulação vegetal do corpo enquanto planta para fora do eixo de si.

Os modos vegetativos da corporalidade são sempre inclinações para fora de si. Nas artes cênicas, verificamos que há um amálgama fundamental entre os fenômenos da presença e da experiência, de modo que forja atos corporais. O estudo de Pérez Royo adiciona a esses dois expedientes a inclinação corporal como um ato de teatralidade no sentido de ruptura com os requisitos do sujeito moderno autônomo e soberano:

[...] a concepção comum que herdamos de um corpo que se auto-pertence, com um si mesmo, íntimo e próprio, que primeiro toma forma e logo se relaciona com outros, não se encaixa com todas essas experiências. Proponho, por isso, a expressão fora de si como uma maneira de dar nome a essas impressões, estritamente corporais, mas que se projetam muito além de onde alcança o corpo fisicamente, estendendo-se até outros ao redor, inclusive até corpos distantes no tempo e espaço, confundindo-se com eles (Pérez Royo, 2022PÉREZ ROYO, Victoria. Cuerpos Fuera de Sí: figuras de la inclinación en las protestas sociales. Córdoba: Ediciones DocumentA/Escénicas, 2022., p. 45, tradução livre).

Na noção de fora de si, há uma atribuição adjacente valorosa ao deslocamento corporal, sugerindo a mudança cultural como um fator de elo e de estatuto político comum da vida e carregada de expressões vivas das temporalidades. Nesse sentido, as inclinações corporais se manejam, portanto, enquanto performances fora de si, já que se referem aos aspectos de sensibilidade e vivacidade com os quais a arte da performance se inscreveu e se transformou ao longo dos anos (Goldberg, 2015GOLDBERG, RoseLee. A Arte da Performance: do futuro ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2015.). Performar o fora como um ato de cultura é uma busca de conferir a base de rede na qual se arranjam os escopos corporais de inclinação e deslocamento.

Tendo em vista a prática de povoamento da cultura que analisamos aqui, a própria noção de mudança cultural pode ser um atributo fundamental da performance da floresta. Nela, uma prática política do tempo configura os corpos para fora de si, ou seja, em relação vegetal com as comunidades que ressoam em outras espécies de sistemas que podemos conceber, visto que são radicados nos povoamentos ecológicos da viadoplanta e das transespécies.

Ao dissertar sobre o caráter dinâmico da cultura, Laraia (2001)LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. reflete sobre mudanças estéticas e comportamentais de povos conforme são afetados por mudanças internas e externas. Incita, fundamentalmente, que possamos também pensar sobre renovações epistemológicas, filosóficas e conceituais, renovações sobretudo de compreensão - ou incompreensão - que nos permitem maior transitoriedade nas acepções críticas e criativas. Isso está essencialmente relacionado com a performance do tempo que atravessa os modos de organização dos povoamentos culturais.

Nesse sentido, vale pensar na prospecção tempografia sincopada (Leal, 2021aLEAL, Dodi. Fabulações Travestis sobre o Fim. Conceição/Conception, Campinas, v. 10, p. 1-19, 2021a.) como um modo de conceber a narratividade das experiências que fazem do tempo um templo: “Mais do que a santificação das horas, mais do que a beatificação dos momentos, e para além de uma hagiografia da memória, a tempografia fabular prospecta a experiência como um verdadeiro altar [...]” (Leal, 2021aLEAL, Dodi. Fabulações Travestis sobre o Fim. Conceição/Conception, Campinas, v. 10, p. 1-19, 2021a., p. 6). A experiência, aliás, é um dos meios de pensarmos a cultura não só de forma mais corporificada, mas também como um movimento filosófico de povoamento, sobretudo se refletirmos que “[...] a experiência é algo que (nos) acontece e que às vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar” (Larrosa, 2019LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 10). Ou seja, modos ativos de “luta contra formas dominantes de linguagem, de pensamento e de subjetividade” (Larrosa, 2019LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 10).

O tempo é um artefato fundamental para pensarmos as reencenações que a cultura pode exercer nos seus processos de dinamizações. Ou seja, dependendo dos pontos de vista traçados, formas não lineares são assumidas. Isso está relacionado com as atualizações não só de costumes e hábitos de um povo, mas também com as novas possibilidades de entendimento do tempo, visto que, quanto mais sincopado, mais passível de percebermos aspectos de durabilidade, segundo a duração bergsoniana dissertada pelo filósofo francês David Lapoujade no livro Potências do Tempo (2017).

A duração, utilizada aqui como um veículo de exploração dessa síncope temporal que potencialmente atravessa movimentos culturais, refere-se, em primeira instância, a um retorno às multiplicidades. Isso porque, para traçar novos escopos acerca da dissecação do tempo, Henri Bergson esboça duas formas: “[...] as multiplicidades qualitativas de justaposição no espaço e as multiplicidades qualitativas de compenetração do tempo” (Lapoujade, 2017, p. 31).

Esse viés de compenetração como modo de entendermos as novas facetas da relação tempo-cultura nos dá espaço para cultuarmos a vida dos povoamentos que se estabelecem segundo seus modos sistemáticos próprios. Ele também nos permite uma compreensão mais exploratória de como se estruturam atualmente as proposições performativas sociais vividas por corpos oprimidos e perseguidos, mas que são consideravelmente mobilizadores de saberes culturais em potencial, pautando-se, inclusive, pela falta de razão como projeto estratégico de tecer discursos concretamente culturais.

Diante disso, nota-se a importância de as temporalidades serem destituídas dos aspectos lineares, ou mesmo sucessivos. Reforçamos isso porque, quando pensamos tempo e cultura, levando em consideração povoamentos concernentes, a complexidade interpretativa disso não se resume a representações puramente cronológicas sem que isso já se realize como um trabalho colonial sobre corpos que se engendram por meandros temporais sincopados.

A viadoplanta e as transespécies, quando estão reformulando o tempo, requerem dele a capacidade disruptiva e descompassada como modo de fabular novas tempografias (Leal, 2021aLEAL, Dodi. Fabulações Travestis sobre o Fim. Conceição/Conception, Campinas, v. 10, p. 1-19, 2021a.). Esse exercício nos capacita a reaver também como as compreensões culturais não só se formam, mas também se estabelecem dentro dos projetos públicos e privados de povoamentos. Elas reiteram, sobretudo, a experiência como um vértice que, sendo uma das óticas de leituras da relação tempo-cultura, permite-nos maior elaboração crítica e receptiva quanto às existências humanas e não humanas, que, independentemente do viés ontológico e biológico de leitura normativa, formam grupos de corpos que potencialmente fazem da cultura um agenciamento vivo.

Nesse sentido, as filosofias amazônicas aportam inclinações temporais da floresta, cujos desdobramentos políticos permitem aferir dimensões do povoamento da cultura. Não nos interessa expor as cosmovisões ameríndias como um método acessório para, sobre isso, depositar dizeres. O que buscamos é a construção de outros modos de uma ambientação estética, revisada para além da centralidade neoliberal e cis-heterocolonial branca de saberes acerca da cultura. Por isso, é necessário referenciar palavras indispensáveis de Davi Kopenawa (2015) e Ailton Krenak (2019)KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., que são duas das grandes potências indígenas que redistribuem as políticas discursivas vigentes. Contudo, “[...] não se trata, enfim, de propor uma interpretação do pensamento ameríndio, mas de realizar uma experimentação, e portanto com o nosso [...]” (Viveiros de Castro, 2016, p. 218).

Nas palavras de Kopenawa e Albert (2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu. Prefácio: Eduardo Viveiro de Castro. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 328):

[...] os brancos não querem ouvir nossas palavras. Só pensam em tornar nossa terra tão nua e ardente quanto o descampado em volta de sua cidade [...]. Esse é o único pensamento deles quando olham para a floresta. Devem achar que nada pode acabar com ela. Estão enganados. Ela não é tão grande quanto lhes parece. Aos olhos dos xapiri, que povoam além das costas do céu, ela parece estreita e coberta de cicatrizes. Traz nas bordas as marcas de queimadas dos colonos e dos fazendeiros e, no centro, as manchas da lama dos garimpeiros. Todos a devastam com avidez, como se quisessem devorá-la.

Propor, portanto, um estudo que visa pensar a cultura por meio de uma performance da floresta requer que entendamos pedagogicamente como está posta essa realidade dentro do campo epistemológico e cultural na sociedade capitalista vigente. Essa foi uma das camadas do movimento político dos autores indígenas citados: eles trazem à tona conhecimentos de seus povos não porque simplesmente precisavam que povos não indígenas tivessem acesso a eles, mas porque viram a necessidade, e emergência, exatamente dos povos não indígenas diante de uma predação epistemológica, articulada à necropolítica do ocidente (Mbembe, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.). Sobre isso, Davi Kopenawa disserta:

Gostaria que os brancos parassem de pensar que nossa floresta é morta e que ela foi posta lá à toa. Quero fazê-los escutar a voz dos xapiri, que ali brincam sem parar, dançando sobre seus espelhos resplandecentes. Quem sabe assim eles queiram defendê-la conosco. Quero também que os filhos e filhas deles entendam nossas palavras e fiquem amigos dos nossos, para que não cresçam na ignorância. [...] Minhas palavras não têm outra origem. As dos brancos são bem diferentes. Eles são engenhosos, é verdade, mas carecem de muita sabedoria (Kopenawa; Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu. Prefácio: Eduardo Viveiro de Castro. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 65).

Evidentemente, não nos interessa entrar num comparativo de vivências ou propor um estudo que vá na mesma intenção política dos autores de A Queda do Céu e Ideias para Adiar o Fim do Mundo. O que desejamos, sobretudo, é a reiteração da interseccionalidade (Akotirene, 2019AKOTIRENE, Karla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.) que nos reagrupa por meio dos discursos não hegemônicos. Queremos abrir campos para pensar outros modos de mundos, de saberes e de formulações epistemológicas por meio da viadoplanta e das transespécies como possuidoras de tecnologias temporais próprias de incorporações perspectivadas na cultura em que atuam, numa construção articulada de redes de povoamentos que se retroalimentam, porque não são vistas como prioritárias e centralizadoras.

Portanto, o que Davi Kopenawa faz com o lançamento magnânimo de A Queda do Céu não só nos permite sonhar mais com o outro e menos com o ouro (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O Recado da Mata. In: KOPENAWA, Davi. ALBERT, Bruce. A Queda do Céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.), mas também nos incita a traçar perspectivas e segredos que fornecerão projetos mais estratégicos de enfrentamento dos meios de povoamento que podemos exercer culturalmente.

A própria noção de inclinação que nos permite pensar o fora de si do corpo, ao imprimir-se na performance fora de si enquanto ato de temporalidade não linear e ao arregimentar-se dos fundamentos das filosofias amazônicas (Kopenawa; Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu. Prefácio: Eduardo Viveiro de Castro. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.), mobiliza vínculos de compreensão da performance da floresta. As inclinações temporais das corporalidades vegetais cênico-existenciais de viadoplantas e transespécies são atos da flora e fauna; minério e entidade. O colapso do sujeito moderno é sempre uma síncope do tempo. Assim, na ruptura com a normatividade urbano-humana, o fora é sempre flora. Com isso, afloram-se, inexoravelmente, povoamentos ecológicos cultuados por outros agenciamentos existenciais - de sexualidade e de gênero. Performances fora de si são, portanto, performances flora de si.

Humanidade disfórica: culturas populares de viadoplantas e transespécies

A cultura enquanto uma tecnologia de poder e catalisadora de processos sistêmicos no campo da centralização epistêmica, econômica e, sobretudo, existencial também constrói discursos sociais que reagrupam corpos em condições de patologias e fundamentos excludentes. Pensar isso dentro de movimentos culturais não distribuídos para outros contextos (além de somente o heterocispatriarcal e colonial) deflagra a perspectiva de uns corpos vivos em detrimento da vida de Outros.

Nesse caso, trazemos à reflexão a disforia como um veículo de reproposição das condições políticas de corpos desobedientes de gênero e que, por conseguinte, interpela as existências dissidentes sexuais. A disforia, segundo estudos realizados por Preciado (2022)PRECIADO, Paul B. Dysphoria Mundi: el sonido del mundo derrumbándose. Barcelona: Anagrama, 2022. no livro Dysphoria Mundi, surge no século XX já como uma vertente patológica, sem ainda estar vinculada aos entendimentos que a atrelariam às pessoas transgêneras. Desde então, essas modulações discursivas, sobretudo mantida pelas:

[...] disciplinas modernas, como a psicologia ou a psiquiatria e a farmacologia normativas, que trabalham e comercializam a dor psíquica, devem ser substituídas por práticas experimentais que sejam capazes de elaborar e reduzir a dor epistêmica. A arte, o ativismo e a filosofia possuem essa capacidade (Preciado, 2022PRECIADO, Paul B. Dysphoria Mundi: el sonido del mundo derrumbándose. Barcelona: Anagrama, 2022., p. 13-14, tradução livre).

A proposta emergente que o autor de Dysphoria Mundi articula é a retomada do viés disfórico como uma técnica ecológica de um mundo que é disfórico porque resiste às investidas capitalistas e coloniais de abusos e violências. O povoamento da cultura se dá, então, como mais um dos vértices de concatenação de saberes que remodulam as condições planetárias da terra, dos corpos, do céu, das plantas, dos viados, das pessoas transvestigêneres e das demais espécies de vida que se circunscrevem nesse movimento éticoestético de ruptura com a disforia. Em outras palavras, assim como a disforia de gênero é uma consequência do pacto colonial, a própria colonialidade é disfórica e depende, fundamentalmente, da violência disfórica de gênero para constituir-se enquanto tal.

O povoamento cultural através da performance da floresta atua como uma tecnologia de povoamento epistêmico. Ora, performar a floresta é, assim, não apenas provocar o pensamento das medicinas clássica e contemporânea, mas também formular o modo como os corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero podem se organizar acerca de novos formatos de saberes e defesas contra técnicas hegemônicas da medicisna (Leal, 2021bLEAL, Dodi. Performatividade Transgênera: equações poéticas de reconhecimento recíproco na recepção teatral. Série TEATRA. São Paulo: Hucitec, 2021b.). Ao romper com o pacto disfórico-colonial, as viadoplantas e as transespécies rescindem, sobretudo, a própria disforia impressa no conceito de humanidade, já que ele comporta a normatividade de sexo-gênero.

Historicamente, discursos de violação de corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero têm como base a desqualificação dessas existências enquanto humanas. Por outro lado, as reivindicações de grupos sociais que contrariam as normatividades cisgênera e heterossexuais têm sido associadas às políticas públicas e pautas de direitos humanos. Ora, observamos que a concepção abstrata de humanidade é um dos legados do estruturalismo no campo estético-filosófico. Da mesma maneira, aí opera a designação generalista de outros fenômenos sociais de subjetivação, tais quais: a arte, a natureza, o mundo, a cultura etc. Trata-se daquilo que Krenak (2019)KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. nomeia de abstração civilizatória do Ocidente, perspectiva que pode nos ajudar a explicar o desencaixe das dissidências sexuais e de gênero num paradigma global e abrangente de humanidade.

Essa constatação não enseja a nós, no entanto, a recuperação da condição social-biológica-neoliberal de seres humanos para as viadoplantas e as transespécies. Pretendemos aqui estender o entendimento da noção de dysphoria mundi de Preciado (2022)PRECIADO, Paul B. Dysphoria Mundi: el sonido del mundo derrumbándose. Barcelona: Anagrama, 2022. para uma acepção de humanidade disfórica, ou seja, não apenas o ideário de mundo, mas também o de humanidade que traz consigo a violência disfórica enquanto prática de dominação. Assim, podemos analisar o povoamento cultural de corpos oprimidos no quadro das culturas populares (Coelho, 2001COELHO, Teixeira. O que É Ação Cultural. São Paulo: Brasiliense, 2001.), fundado em um projeto ecológico e planetário das existências que não se enquadram nos dispositivos totalizantes do humano colonial (Haraway, 2022HARAWAY, Donna. Quando as Espécies Se Encontram. São Paulo: Ubu Editora, 2022.).

Na proposta de povoamentos culturais por meio de uma performance da floresta, há a notação epistemológica enquanto alicerce de corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero. Nesse proceder cognitivo, cabe o emprego do que Mombaça (2021)MOMBAÇA, Jota. Não Vão nos Matar Agora. 1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021. chama de redistribuição anticolonial do monopólio da violência no sentido de desconstrução da compreensão cultural vigente: abstrata, normativa e generalista. Interessa-nos, sobretudo, mobilizar as irrupções estético-epistêmicas que deflagram os discursos políticos hegemônicos a partir de uma reencenação dos corpos que exercem o trabalho de fabular saberes e pedagogias de povoação cultural como ato de teatralidade. Logo, rasurar zonas centralizadas no poder colonial e neoliberal é também restituir o exercício prático de performarmos métodos friccionais diante da lisura de projetos heterocisnormativos, tais como da linguagem.

No primeiro capítulo do livro Pele Negra, Máscaras Brancas, Fanon (2008)FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. se debruça sobre a relação da linguagem na dimensão da dialética eu-outro, essencialmente refletindo sobre a compreensão do trabalho da língua como uma tomada de posição contextual. Mais do que analisar neste artigo todas as implicações da linguagem enquanto um dispositivo cultural, consideramos que ela é nevrálgica nos contextos discursivos de povoamento da cultura. Estão entre os atributos políticos da linguagem os alargamentos, os tensionamentos e as experiências de povoar a cultura, sobretudo porque “falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 50).

Por sua vez, analisar a constituição ético-discursiva dos movimentos populares de povoamento da cultura é ter em vista a existência cultural como uma linguagem da experiência (Larrosa, 2019LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.). Compreendendo as existências dissidentes sexuais e de gênero enquanto presenças da cultura popular, observamos que a construção estética, filosófica e epistemológica dessas subjetividades se dá por agências de linguagem não humanas.

Para Fanon (2008)FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008., os corpos inferiorizados, também como projetos culturais tidos como aquém das estruturas hegemônicas, são produzidos pelo próprio sistema político que os julga minoritários. Nesse sentido, as culturas populares de viadoplantas e transespécies se desenham a partir da linguagem da experiência e da experiência da linguagem (Larrosa, 2019LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.), forjando reflexões sobre a própria linguagem que as enquadra. Deflagra-se, assim, a condição generalista em que se calca, sistematicamente, a cultura por uma compreensão unilateral discursiva, isto é, de linguagem colonialista e pouco relacional. Dito de outro modo, repensar a linguagem é repensar a cultura.

A linguagem é um dos dispositivos principais do império da disforia, seja na abstração de mundo, seja na de humanidade. Nesse sentido, as experiências de cultura popular sexo-gênero dissidentes performam a floresta a partir de atos discursivos que contra-atacam a condição patológica e farmacológica da disforia do mundo e da humanidade.

Florestas sexualizadas e generificadas: povoar a cultura

Percorremos neste estudo elementos que desvelam potenciais paradigmas ético-filosóficos de povoamento da cultura levando em consideração, sobretudo, a floresta enquanto agenciamento das viadoplantas e das transespécies. Procuramos verificar que povoar a cultura por meio da performance da floresta é também reconhecer os agenciamentos que fazem das florestas entidades sexualizadas e generificadas.

Ao verificarmos os limites urbano-humanos do sujeito moderno a partir das concepções de corpoflor e corpoluz, compreendemos a procedência atitudinal da ruptura com as normas sexo-gênero coloniais assentadas numa noção supremacista da espécie humana. Assim, tanto a vida de viadoplantas como a cena transespécie se configuram como proposições políticas de reagrupamento do discurso enquanto escultura de projetos de povoamento da cultura.

A performance da floresta atua, portanto, como paradigma e agente político, estético e epistemológico que forja temporalidades não compatíveis com as prospecções coloniais do corpo e da cultura. Por não termos tido pretensão generalista de todos os biomas, apontamos neste trabalho a realização de estudos futuros da vida de viadoplantas e da cena transespécie no sertão, no cerrado, no pântano, nos pampas etc.

As filosofias amazônicas, ao nos remeterem a temporalidades não lineares, dão fundamento para que possamos compreender as viadoplantas e as transespécies enquanto mobilizadoras de culturas populares. A própria experiência de tempo das realidades sexo-gênero dissidentes confere caminhos de afetossíntese que redimensionam a linguagem e a maneira como se concebem os fenômenos da cultura para além das acepções abstratas que também se conferem no campo das teatralidades. As vivências vegetativas, portanto, constituem-se como inexoráveis em projetos cênicos que abortam o pacto colonial da dominação humana sobre outras formas de vida.

Por sua vez, os arranjos fora de si, do corpo e da performance, ao se coadunarem com as existências vegetativas flora de si, exponenciam a presença, a experiência e as inclinações como atribuições da cena e da vida. Com isso, buscamos demonstrar aqui a maneira como as rupturas com as configurações dominantes de humanidade abrem espaço para outras relacionalidades cênicas e culturais, tais quais a parentalidade, o companheirismo e o causamento.

Notas

  • 1
    “[...] quando pronunciamos a palavra vida, deve-se entender que não se trata da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam” (Artaud, 2006ARTAUD, Antonin. O Teatro e Seu Duplo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 8).
  • 2
    “A palavra ‘como’ faz parte dessas palavras que mudam singularmente de sentido e de função a partir do momento em que [...] fazemos delas expressões de devires, e não estados significados nem relações significantes” (Deleuze; Guattari, 2012, p. 70).
  • 3
    Esse conceito, que mais à frente é mais bem destrinchado, está sendo desenvol-vido em pesquisa de Doutorado intitulada A vida de viadoplantas: A morte é de quem? - corporificações crítico-pedagógicas ao humano-urbano nas Artes da Cena, na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC). Trata-se de uma proposta conceito-estética cênica que dialoga veementemente com demandas políticas de estudos ecológicos de sexualidade e gênero, como modo de criação de novos discursos filosóficos, epistemológicos, corpóreos etc. (Farias, 2023FARIAS, Saile Moura. A Vida de Viadoplantas: a morte é de quem? - rumo a outras reedificações de corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero nas paisagens urbanas. PÓS, Belo Horizonte, v. 13, n. 27, p. 1-27, 2023.).
  • 4
    Segundo Habib (2021HABIB, Ian Guimarães (Org.). Transespécie/Transjardinagem. Uberlândia: O Sexo da Palavra, 2021., p. 25), “Transespécie está para além da espécie, ou do que significa o limite das espécies, isto é, indica que a espécie em Transespécie não tem limite próprio. Transespécie questiona o limite específico, rompendo os limites do humano e do mais-que-humano, do vivo e do mais-que-vivo, do animado e do mais-que-animado, do sexo e do gênero, da natureza e da cultura, do corpo e da alma, do exterior e do interior, do visível e do invisível, da literalidade e da figuração. Transespécie interpela também as produções de sentido sobre percepções de seres, interroga abrangências e limitações de operação e aplicabilidade da espécie, exponencia avaliações ontocosmoepistemológicas da diferença e da riqueza espacial, fissura separabilidades entre realidades e irrealidades corporais, e indaga a própria possibilidade de agrupamento de seres em distintos universos materiais e imateriais - morfológicos, genéticos, reprodutivos, ambientais, espaço-temporais, de fluxo”.
  • 5
    Os estados de inclinação corporal desenvolvidos em Pérez Royo (2022)PÉREZ ROYO, Victoria. Cuerpos Fuera de Sí: figuras de la inclinación en las protestas sociales. Córdoba: Ediciones DocumentA/Escénicas, 2022., como se verá adiante, desenham-se para além da verticalidade, a qual associa-se aos marcos da masculinidade, branquitude, magrocentrismo e cis-heteronormatividade.
  • 6
    Trecho de texto reflexivo e de apresentação de Corpoflor, escrito por Castiel Vitorino Brasileiro, disponível em: https://castielvitorinobrasileiro.com/foto_corpoflor/ Acesso em: 29 jan. 2023.
  • 7
    Trecho da crítica teatral do espetáculo TRAVED: palestra-performance em realidade virtual, intitulada ><Eu, Você: Espectador/a-Ciborgue<>, escrita por Maria Fernanda Vomero para o portal Itaú Cultural e publicada em 23/06/2022. Disponível em: http://portale.icnetworks.org/secoes/opiniao/eu-voce-espectador-ciborgue/. Acesso em: 29 jan. 2023.
  • 8
    Posteriormente à sua referência dramatúrgica na estreia de TRAVED, o conceito afetossíntese ensejou a curadoria, com mesmo título, do Eixo Ações Pedagógicas da 8ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), realizada em 2022, assinada por Dodi Leal. Disponível em: https://mitsp.org/2022/. Acesso em: 29 fev. 2023.
  • 9
    A aparição deste termo faz referência ao livro Ética Bixa, de Paco Vidarte (2019)VIDARTE, Paco. Ética Bixa: proclamações libertárias para uma militância LGBTQ. São Paulo: n-1 edições, 2019., em que o autor elabora perspectivas que essencialmente fundamentam desdobramentos éticos aqui traçados, que corroborarão para pensarmos o tema do presente artigo por corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero na cultura.
  • 10
    O movimento político de reapropriação de termos pejorativos em uma significa-ção afirmativa remonta a uma genealogia que perpassa tanto por referentes euroestadunidenses, como uranistas, pederastas e queer (Preciado, 2022PRECIADO, Paul B. Dysphoria Mundi: el sonido del mundo derrumbándose. Barcelona: Anagrama, 2022.), como por referentes latino-americanos, como viado, travesti, sapatão, bixa e cuir (Leal, 2021bLEAL, Dodi. Performatividade Transgênera: equações poéticas de reconhecimento recíproco na recepção teatral. Série TEATRA. São Paulo: Hucitec, 2021b.).
  • 11
    Esse termo faz referência à música de Linn da Quebrada, Enviadescer, presente no álbum Pajubá, lançado no ano de 2017.
  • Editor responsável: Gilberto Icle

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    23 Maio 2023
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