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O Brasil visto por intelectuais médicos

Hochman, Gilberto; Trindade, Nísia. (orgs.). Médicos intérpretes do Brasil. São Paulo: Hucitec, 2015, 666 p.

Médicos intérpretes do Brasil, organizado por Gilberto Hochman e Nísia Trindade, que vem a público em uma edição caprichada da Hucitec Editora, reúne 29 intérpretes do Brasil que, como expressa bem o título, das mais variadas formas, produziram “fabricações” de Brasil sob a perspectiva da formação e/ou do exercício da medicina. Esse ponto em comum, entretanto, não produz uma obra monotemática; muito pelo contrário: a multiplicidade de pontos de vista e de experiências na medicina - das mais engajadas àquelas em que a arte médica consiste em um aspecto não tão importante na trajetória individual - faz com que o livro seja um excelente abre-alas para o leitor que se inicia nos estudos sobre interpretações do Brasil. A abrangência da coletânea permite ao leitor/leitora inúmeras ênfases e caminhos dessa mirada sobre e para entender o Brasil.

Nos escritos desses 29 homens e mulheres sobre o país, a arte médica, por um lado, pode ser percebida como o meio que tais intérpretes adotaram para compreender as engrenagens que mantinham o Brasil identificado, para alguns, como uma nação atrasada e, para outros pensadores, como uma promessa de moderno. Por outro lado, é a partir dos diagnósticos médicos que são prescritos os movimentos/receitas/remédios para a construção de um país “saudável”, “moderno”, “desenvolvido”. Além disso, a organização interna da obra − com texto inédito de cada intérprete precedido de apresentação feita por um estudioso daquele intérprete − também a torna bastante acessível a um público não especializado e aos alunos das graduações. Os intérpretes dos intérpretes oferecem ao leitor textos que fogem ao academicismo, mas, nem por isso, deixam de ser densos, além de oferecer também interpretações sagazes e instigantes sobre as trajetórias e as visões de Brasil dos 29 médicos-intérpretes ou intérpretes-médicos que compõem a publicação. Já para um público mais especializado, o livro traz significativas contribuições seja na seleção dos autores, seja na escolha de seus textos.

Penso que o principal mérito de Médicos intérpretes do Brasil é o de permitir ao seu leitor o acesso a inúmeras perspectivas e visões que buscaram responder quais foram os caminhos − e os descaminhos − que levaram − e ainda levam − o Brasil a ser o que é. Organizado e estruturado tal qual um poliedro, o livro nos leva a viajar junto com a imaginação desses intérpretes. E a viagem nos permite travar uma primeira experiência com diversas “fabricações” de país, que fundam tradições e identidades nacionais. Sem dúvida, tradições/identidades marcadas por permanências e descontinuidades, mas que buscam “descobrir” as particularidades/especificidades deste país continental e as “saídas” para sua integração social, cultural e econômica. Essa variedade de Brasil faz de Médicos intérpretes do Brasil um documento importante para entendermos os retratos esboçados sobre o Brasil feitos por médicos na formulação, implementação e avaliação de políticas públicas de saúde.

Além de cunharem visões de Brasil, é preciso destacar que a intervenção pública de muitos dos intérpretes médicos relacionados no livro orientou a própria práxis dos profissionais da saúde no Brasil. A constituição de uma área de saúde pública atuante é uma das consequências de várias das interpretações calcadas na ação que estão presentes no referido livro. Nele, há diversos exemplos de como, a partir dos diagnósticos de doenças e males do brasileiro, se construíram interpretações do Brasil que tinham por objetivo o enfrentamento e a superação das condições impeditivas do progresso civilizacional do país. O Brasil moderno está, para alguns mais perto do que para outros, no horizonte possível, mas somente se apresenta viável se os entraves apontados pela experiência/vivência desses agentes forem considerados nas políticas públicas. O mal-estar assim assume uma crítica à política e aos políticos - embora, tenhamos alguns dos intérpretes seguindo trajetória política, mas são exceções.

Apesar disso, há evidente traço a unir os 29 intérpretes médicos, que é, como dito, o de unir a vivência de médico à política. Tal engajamento assume formas diversas entre os 29 intérpretes. Podemos defini-lo com quatro tipos ideais, conforme a proposta de Norberto Bobbio (1997: 104-105)Bobbio, Norberto. (1997). Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Ed. Unesp. em Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea : 1) com a presença do próprio intérprete no poder político; 2) intérpretes que influenciam o poder político, elaborando propostas ou fornecendo informações; 3) intérpretes que atuaram para legitimar o poder constituído; e 4) intérpretes críticos ao poder constituído. Sem qualquer pretensão à exaustão, é possível reorganizar o livro a partir dessa tipologia, tendo como exemplo do primeiro tipo ideal Sérgio Arouca, uma das lideranças na construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e também parlamentar; do segundo, Carlos Chagas e suas descobertas que produziram políticas de saúde; do terceiro, Nina Rodrigues; e, como caso emblemático do último tipo ideal temos, entre outros, Nise da Silveira.

Outra forma de ler o livro é seguindo os termos de outra tipologia também proposta por Norberto Bobbio, na qual os intelectuais são ou “ideólogos” ou “expertos” (Bobbio, 1997Bobbio, Norberto. (1997). Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Ed. Unesp.: 97). Como nos adverte esse autor, o que os difere é a tarefa que desempenham no contexto político. Os “ideólogos” ou “intelectuais” são os sujeitos que, para Bobbio, fornecem os princípios-guia das sociedades, já os “expertos” ou “cientistas” seriam os que oferecem conhecimento-meio. Nos dois casos as ideias são forças sociais organizadoras do mundo social, tendo portadores sociais que são os seus executores. Entre os primeiros podemos relacionar: Nina Rodrigues, Miguel Couto, Manoel Bonfim, Miguel Pereira, Carlos Chagas, Arthur Ramos, Pedro Nava, Thales de Azevedo, Mario Magalhães da Silveira, Nise da Silveira, Josué de Castro, Guimarães Rosa, Noel Nutels e Sérgio Arouca. Entre os “expertos” é possível arrolar: Belisário Penna, Alfredo da Matta, Francisca Praguer Frós, Juliano Moreira, Afrânio Peixoto, Edgard Roquette-Pinto, Júlio Pires Porto-Carreiro, Renato Kehl, Miguel Ozorio de Almeida, Mendes Madeira de Fradique Freitas, Samuel Pessoa, Juscelino Kubistchek, Carlos Gentile de Mello, Helio Pellegrino e Zilda Arns. Evidentemente, essa tipologia não é expressão do real, mas nos permite indicar um dos pontos fortes do livro, que é a força das ideias de saúde, doença, remédio, males, entre tantas do discurso médico a orientar a interpretação do Brasil.

Há um empreendimento coletivo a ser ressaltado no livro que é precisamente o do diálogo que nele se estabelece entre as áreas do pensamento social e de história das ciências e da saúde. A conversa se expressa na diversidade de intérpretes reunidos no livro. De certo ponto de vista, é possível afirmar que este é um dos pesos do livro: a força dessa diversidade interpretativa de “ideólogos” e “expertos” a dizer o que é, para cada um, o Brasil e a sociedade brasileira. Além disso, cabe enfatizar que o livro, a partir do esforço cruzado entre essas diversas áreas de conhecimento, não faz tábula rasa das singularidades desses campos. Muito pelo contrário, tal conjunto de ideias e de sujeitos intérpretes dos portadores das ideias, que é Médicos intérpretes do Brasil , revela aos seus leitores e leitoras como noções de “intelectual” e de “cientista” foram sendo tecidas no Brasil. Se a função/papel e responsabilidade dos intelectuais é aspecto bastante pronunciado na organização do livro, até nas interpretações dos “expertos” de cada intérprete, é possível ler como segundo texto no livro como se deu a consolidação do campo do “cientista” a realizar tarefa outra daquela efetuada/executada pelos “intelectuais”. A configuração do campo da história das ciências e da saúde, de suas formas de transmissão de ideias, de seus símbolos, visões de mundo e ensinamentos práticos é apresentada no livro, revelando os modos próprios de interpretar o Brasil de homens e mulheres ligados à área médica. Por outro lado, as explicações e análises feitas pelos intérpretes dos intérpretes permitem ressignificar o próprio campo e suas noções, costurando pela embocadura do pensamento social as noções de “intelectual” e “cientista”, empreendimento do longo projeto liderado pelos organizadores e que também vem sendo tão bem realizado por outros pesquisadores e pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz - que tem contribuído para a reflexão de como as áreas disciplinares acima arroladas, de modos próprios, produzem suas interpretações e intérpretes de Brasil.

É interessante notar que, em relação aos temas tratados pelos intérpretes, há mais continuidade do que descontinuidade. Tendo como pano de fundo a temática do atraso, compreendido como perene na sociedade brasileira, esses intérpretes do Brasil buscaram identificar as causas e os caminhos para o ingresso do país e de sua sociedade no rol das nações civilizadas. Identidade nacional, questão racial, questão agrária, a integração territorial, superação da desigualdade são algumas temáticas que se destacam pela permanência, ainda que sejam sempre enquadradas ao sabor das conjunturas. Entre esses temas, o papel do Estado assume importância ímpar. O diagnóstico de um país cuja população em sua maioria vive em condições subumanas/desumanas, privada de condições básicas para bem viver, tem como uma das consequências a percepção de uma sociedade destituída das condições cívicas mínimas e, portanto, débil e incapaz de realizar as transformações necessárias para a superação do atraso. Nesse caso, caberia ao Estado o papel de ente de mudança. O Estado é, assim, a instituição capaz de criar e impulsionar as transformações que superariam o atraso e que construiriam o Brasil moderno. Vinte e oito intérpretes compartilham essa perspectiva; apenas Renato Kehl esposa outra percepção, caracterizadamente pessimista, que defende não haver no país elite política capacitada para as reformas necessárias que, no caso, para ele, se constituiriam numa política de embranquecimento da população brasileira, uma vez que identifica a raiz do atraso como problema racial.

As muitas perspectivas que compõem a publicação, como afirmam os organizadores na introdução, “resistem a qualquer tentativa homogeneizadora” (p. XXIV) das ideias-forças de saúde, doença, etc. Ressalte-se que isso não é uma questão numérica, e sim decorre de a publicação comportar atuações no tempo e no espaço, bem como proposições políticas bastante diferentes. Médicos intérpretes do Brasil também permite aos seus leitores um panorama bastante amplo e polissêmico do uso e abuso de categorias analíticas do campo da medicina por parte desses 29 intérpretes. O livro tem a contemporaneidade do discurso médico como chave analítica e explicativa para entendermos o país. De um lado, porque a força do discurso médico para explicar o Brasil está sempre sendo ressignificada (um exemplo, e sem qualquer pretensão científica, apenas como ilustração, se realizarmos uma busca no Google com a frase Brasil, país doente, teremos como retorno centenas de links de artigos opinativos, matérias jornalísticas, entre outros suportes). De outro, o propósito da obra, assim, ao unir interpretações do Brasil e médicos − que ainda não haviam recebido a devida atenção − supre tal lacuna, e, espero, seja o primeiro passo de uma necessária e bem-vinda empreitada de valorização dos intérpretes médicos no Brasil no âmbito do pensamento social.

Por fim, é preciso destacar que Médicos intérpretes do Brasil faz parte da coleção Pensamento Político-Social. Tal iniciativa vem renovando as interpretações sobre o Brasil, apostando em temas e autores para além do mainstream do pensamento social brasileiro. Esse volume engrandece a coleção, põe em diálogo as áreas do pensamento social brasileiro, da história das ciências e da saúde, e a todo momento ilumina o esforço coletivo do empreendimento, ao mesmo tempo em que situa seus matizes. É um livro que pode ser lido como obra de história intelectual, mas também de história dos intelectuais, e ainda como uma sociologia dos intelectuais, o que o coloca como referência no campo de estudos sobre o Brasil, contribuindo significativamente para todos aqueles que buscam entender as muitas “fabricações” que fazem o Brasil ser o que é.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

  • Bobbio, Norberto. (1997). Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Ed. Unesp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2017
  • Aceito
    15 Fev 2018
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