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ADORNO, LEITOR DE MARX

ADORNO, READER OF MARX

Resumo

O artigo tem como objetivo analisar a relação entre a teoria de Theodor W. Adorno a respeito da indústria cultural e os conceitos de fetichismo da mercadoria, de Marx, e de reificação, de Lukács. A ideia é sustentar uma interpretação do conceito que chame atenção para seu caráter de sistema e que o relacione a uma teoria mais ampla da dominação no âmbito do capitalismo tardio. O artigo visa ainda discutir os desdobramentos do conceito no âmbito da constituição da subjetividade e argumentar que o núcleo da indústria cultural está na função que ela exerce e não no conteúdo dos bens culturais, ao contrário do que defende sua interpretação corrente.

Palavras-chave
Karl Marx; Theodor W. Adorno; indústria cultural; crítica do valor; marxismo

Abstract

The article aims to analyse the relationship between Theodor W. Adorno’s theory of the culture industry and Marx’s concept of commodity fetishism, as well as Lukács’s concept of reification. The idea is to advocate an interpretation of the concept that draws attention to its systemic character and relates it to a broader theory of domination in the context of late capitalism. The article also aims to discuss the unfolding of the concept within the scope of the constitution of subjectivity and to defend the idea that the core of the culture industry lies in the function that it exerts and not in the content of cultural goods, contrary to what its current interpretation sustains.

Keywords
Karl Marx; Theodor W. Adorno; culture industry; critique of value; marxism

A presença do marxismo na obra de Adorno é parcialmente reconhecida, pois o materialismo histórico dialético compõe uma das bases da teoria crítica. Seguindo a interpretação do filósofo Georg Lukács, Max Horkheimer diferenciava a crítica da economia política das demais ciências, considerando-a não uma forma de conhecimento entre outras, mas uma ciência fundamental (Grundwissenschaft), para a qual o capítulo de O capital referente ao fetichismo da mercadoria seria a chave. Apesar da presença de uma série de elementos que apontam para uma ligação imanente entre a teoria crítica e a obra marxiana, alguns intérpretes importantes, como, por exemplo, Jürgen Habermas (2002)Habermas, Jurgen. (2002). O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes. e Axel Honneth (1991)Honneth, Axel. (1991). The critique of power: reflexive stages in a critical social theory. Cambridge (Mass): MIT Press., defendem que, a partir da Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1985)Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max. (1985) [1947]. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. teriam passado do materialismo predominante na “primeira fase” para uma abordagem mais centrada na chamada filosofia da história, que se distanciaria cada vez mais da crítica da economia política proposta por Marx. Honneth (1991)Honneth, Axel. (1991). The critique of power: reflexive stages in a critical social theory. Cambridge (Mass): MIT Press., por exemplo, enxergaria nas tentativas de interpretação da vida social e das formas de dominação contemporânea que recorrem à psicanálise uma espécie de deficit sociológico. Essa interpretação dominou o Instituto de Pesquisa Social, do qual Honneth é diretor desde 2001, e, portanto, toda a interpretação da primeira geração da Escola de Frankfurt, dele derivada. Soma-se a essa vertente outra tendência a ler a Dialética do esclarecimento e, portanto, o conceito de indústria cultural, a partir da crítica à razão instrumental, de inspiração weberiana,1 1 A expressão “marxismo weberiano”, de Merleau-Ponty, explica, em meio a outros aspectos, a conjunção na obra de Lukács entre os conceitos de “burocracia” e “reificação”, e acabou servindo também para a análise da Dialética do esclarecimento. Seria possível argumentar, no entanto, que a Dialética do esclarecimento empresta de Marx não apenas conceitos - como o de “razão instrumental”, de Weber - mas o método dialético, que submete igualmente a sociologia weberiana, a psicanálise freudiana e a filosofia alemã a seu crivo. Por isso, falar sobre marxismo weberiano faz tanto sentido quanto falar em marxismo kantiano ou freudiano. Cf. Merleau-Ponty (2006); Löwy (2014). ou como crítica da razão em geral, que tende a obliterar a importância fundamental que as teorias de Marx e Lukács desempenham no argumento de Adorno e Horkheimer.

Fora do Instituto, formou-se nas últimas décadas, uma geração de intérpretes menos conhecida (cf. Backhaus, 1992bBackhaus, Hans Georg. (1992b). Dialektik der Wertform. Untersuchungen zur marxschen. Bielefeld: Transkript.; Reichelt, 2013Reichelt, Helmut. (2013). Sobre a estrutura lógica do conceito de capital em Karl Marx. Campinas: Editora da Unicamp.; Kurz, 2014Kurz, Robert. (2014). Dinheiro sem valor. Lisboa: Antígona.; Braunstein, 2011Braunstein, Dirk. (2011). Adornos Kritik der politischen Ökonomie. Bielefeld: Transkript.; Jappe, 2000Jappe, Anselm. (2000). La critique du fétichisme de la marchandise chez Marx et ses développements chez Adorno et Lukacs. Tese de Doutorado. École des Hautes Études en Sciences Sociales.; Postone, 2014Postone, Moishe. (2014). Tempo, trabalho e dominação social: uma interpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo.), proponentes, com diferentes níveis de participação, da chamada nova leitura de Marx, que busca reestabelecer o vínculo da teoria crítica com o marxismo. Entende-se, assim, que Marx parte das categorias da economia política para então criticá-las e apresentá-las de modo que suas falhas e antinomias sejam compreendidas a partir das contradições presentes na própria realidade contraditória que essas categorias buscam descrever. Por isso, seguindo a interpretação da Escola de Frankfurt, a Economia Política de Marx, que na verdade é crítica da economia política, torna-se teoria crítica (cf. Backhaus, 1992aBackhaus, Hans Georg. (1992a). Between Philosophy and Science: Marx Social Economy as Critical Theory. In: Bonefeld, Werner et al. Open Marxism. Volume I. Dialectics and History. London: Pluto Press.; Demirovi, 1999Demirovi, Alex. (1999). Der nonkonformistische Intellektuelle. Die Entwicklung der Kritischen Theorie zur Frankfurter Schule. Frankfurt am Main: Suhrkamp.).

Nessa chave, busco a seguir demonstrar - na trilha desses autores, bem como de Gabriel Cohn (1994)Cohn, Gabriel. (1994). Adorno e a teoria crítica da sociedade. In: Adorno, Theodor W. São Paulo: Ática. (Coleção grandes cientistas sociais.) e Wolfgang Leo Maar (2002)Maar, Wolfgang Leo. (2002). A produção da “sociedade” pela indústria cultural. Revista Olhar, ano 2, 3, p. 1-24., e contra as leituras que afastam Adorno da tradição marxista - que as teses referentes à “indústria cultural” destacam os nexos entre a estrutura das relações de produção e a estrutura das relações de dominação a partir da teoria do valor. Trata-se, portanto, de demonstrar que o conceito de “indústria cultural” de Adorno consiste num desdobramento do conceito de “fetichismo da mercadoria” de Marx.

Embora, desde os tempos de Marx, o capitalismo tenha se transformado significativamente, Adorno nunca deixou de reconhecer que a persistência de alguns fatos conserva vivo o diálogo da teoria marxiana com o presente, conforme ele defendeu na conferência “Sociedade industrial ou capitalismo tardio?”, ao dizer que “a dominação sobre os seres humanos continua a ser exercida através do processo econômico” (Adorno, 1994Adorno, Theodor W. (1994). Capitalismo tardio ou sociedade industrial? In: Cohn, Gabriel. Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática. (Coleção grandes cientistas sociais.): 67). Num curso dedicado à Introdução à sociologia, o autor reforça a atualidade explicativa da teoria de Marx “justamente porque o todo ou a totalidade da sociedade se mantêm vivos não em decorrência da solidariedade, a partir de um sujeito social coletivo, mas apenas através dos interesses antagonistas dos homens, por isso se introduz de modo constituinte nessa sociedade da troca racional, a partir de sua raiz, um momento de irracionalidade, que a todo momento ameaça explodi-la” (Adorno, 2008Adorno, Theodor W. (2008). Introdução à sociologia. São Paulo: Editora Unesp.: 128). A sociedade, considerada como “objetividade social”2 2 Nessa e nas demais citações de originais em idioma estrangeiro a tradução é nossa. (Backhaus, 1992aBackhaus, Hans Georg. (1992a). Between Philosophy and Science: Marx Social Economy as Critical Theory. In: Bonefeld, Werner et al. Open Marxism. Volume I. Dialectics and History. London: Pluto Press.: 58), é concebida por Adorno nos mesmos termos da crítica da economia política de Marx - a partir do antagonismo entre capital e trabalho. Isso implica uma leitura de Marx que diferencia a crítica da economia política do economicismo, uma vez que Adorno afirma que a dominação na sociedade capitalista ocorre por meio da dominação econômica e não se reduz a ela. Tomar a economia como um processo social fundamental (“Lebensprozess”, Backhaus, 1992bBackhaus, Hans Georg. (1992b). Dialektik der Wertform. Untersuchungen zur marxschen. Bielefeld: Transkript.) envolve considerar a nova objetividade social capitalista (Maar, 2016Maar, Wolfgang Leo. (2016). O novo objeto do mundo: Marx, Adorno e a forma valor. Dois pontos, 13/1, p. 29-40.), isto é, a sociedade em suas determinações objetivas e subjetivas, a partir do desdobramento da forma mercadoria. Nesse sentido, o que produz o modo de produção? A resposta tanto de Marx quanto de Adorno seria: o modo de produção produz a sociedade. Isso é fundamental para a compreensão da ligação da teoria de Adorno com a de Marx, bem como de sua tentativa de atualização do marxismo por meio do conceito de “indústria cultural”.

FETICHE E REIFICAÇÃO

No primeiro capítulo de O capital, na famosa passagem sobre o fetichismo da mercadoria, Marx (2006: 83)Marx, Karl. A mercadoria. (2006). São Paulo: Ática. Ensaios comentados. registra: “como a forma mercadoria é a forma mais geral e não desenvolvida da produção burguesa, e por isso irrompe cedo, embora não na mesma maneira dominante e característica de hoje em dia, o seu caráter de fetiche parece ainda relativamente fácil de penetrar. Em formas mais concretas desaparece mesmo essa aparência de simplicidade”.

Marx refere-se nessa passagem ao desenvolvimento subsequente do fetichismo do dinheiro e do capital, derivado da forma mercadoria, que ganha complexidade e poder de comando sobre as relações sociais, além de tornar-se cada vez mais impenetrável.

Seguindo as pistas deixadas por Marx, Lukács descobriria no “fetichismo da mercadoria” o segredo para a compreensão do desdobramento das contradições em O capital. A forma mercadoria, oriunda e portadora da contradição entre valor de uso e valor, espraia-se para toda a sociedade. Por isso Lukács (2003: 193)Lukács, Georg. (2003). História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes. afirmaria que “pode-se descobrir na estrutura da relação mercantil o protótipo de todas as formas de objetividade e todas as suas formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa”. O fetichismo da mercadoria, concebido como fenômeno social, dá forma ao conjunto da sociedade, bem como às subjetividades que nela se desenvolvem. Conforme sustentou Lukács, ele penetra a consciência - tanto dos trabalhadores quanto dos filósofos burgueses que tomam as antinomias presentes na sociedade capitalista como problemas filosóficos. Esse alargamento do conceito de reificação foi fundamental para o surgimento da teoria crítica.

Lukács, entretanto, ainda restringiria, de certo modo, a origem da reificação da consciência ao âmbito do trabalho, demonstrando como estão submetidos a esse processo, em diferentes intensidades, os trabalhadores na fábrica, os jornalistas, os juristas, os filósofos etc. Veremos que Adorno dá um passo adiante e desenvolve a teoria do fetichismo da mercadoria não a partir das atividades laborais, como pretende o marxismo centrado unicamente nas categorias de trabalho e de classe, mas a partir de seu espraiamento social com base na forma generalizada da mercadoria. As análises da indústria cultural mostram com clareza que Adorno considerava não ser possível reduzir o problema da reificação a um problema da consciência, sendo antes uma questão da constituição dos indivíduos sob o capitalismo (lembremos: o modo de produção produz a sociedade, a categoria central aqui é a mercadoria, que moldará todas as formas de objetividade e subjetividade, e não o trabalho). Ao reduzir a questão a um problema da consciência, Lukács, de acordo com Adorno, recai no idealismo, uma vez que o problema da materialidade das relações sociais e a necessidade de uma transformação radical, que atravessa a constituição social dos indivíduos subsumidos a determinadas formas, ainda não estavam totalmente claros para o autor húngaro.

Existem maneiras diversas de compreender o conceito de indústria cultural.3 3 A fortuna crítica da noção de “indústria cultural” é imensa e não cabe esgotá-la aqui (cf., por exemplo, Freitas, 2002). No Brasil encontramos trabalhos importantes como os de Renato Ortiz (1994) e de Luiz Costa Lima (2000), entre diversos outros, que buscam pensar as tensões entre o que se chama de cultura de massa e a realidade brasileira. Sem negar em nenhuma instância a importância desses trabalhos, meu objetivo aqui é chamar atenção para a necessidade de uma leitura do conceito de “indústria cultural” que o diferencie da ideia de mass media ou mesmo de “cultura de massa”, expressão que deixou de ser utilizada por Adorno a partir dos anos 1950. O que pretendo fazer neste artigo é pensar a relação desse conceito, passo a passo, com os conceitos de “fetichismo da mercadoria” de Marx e de sua subsequente interpretação por Lukács, por meio da leitura da “reificação”. Minha interpretação não pretende esgotar o conceito, que possui muitos desdobramentos e aparece em vários textos de Adorno até sua morte, em 1969. Acredito, no entanto, que essa interpretação pode colaborar com o debate sobre a obra de Adorno, posto que afasta esse conceito de leituras mais genéricas, que pensam a “indústria cultural” como o estado da arte no capitalismo tardio ou como um atributo dos bens culturais (que permitiria julgar o que é e o que não é “indústria cultural). Demonstrar que o conceito de indústria cultural é um desdobramento do fetichismo da mercadoria permite defendê-lo como consistindo numa teoria mais ampla da dominação sob o capitalismo tardio e não apenas numa teoria da produção cultural.

A INDÚSTRIA CULTURAL É UM SISTEMA

A generalização do capitalismo veio embutida na transformação da forma mercantil “em forma de dominação efetiva sobre o conjunto da sociedade” (Lukács, 2003Lukács, Georg. (2003). História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes.: 197). Em História e consciência de classe, inspirado na teoria weberiana, Lukács (2003)Lukács, Georg. (2003). História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes. mostra como cada esfera da vida - a economia, a política, o direito, a ciência, a filosofia etc. - se torna, com o processo de racionalização, um sistema fechado com legalidade interna própria. Essas esferas, no entanto, não são completamente independentes, pois estão ligadas à estrutura comum da forma mercadoria, isto é, à contradição capitalista fundamental.

Lukács explica a crise econômica a partir do desencontro entre esses sistemas reificados, cujo processo de racionalização entrópica gera uma irracionalidade do todo. Como desdobramentos do fetichismo, não só as diversas formas do capital, como previra Marx, mas as mais variadas esferas da vida social são percebidas como formas puras e autônomas. O domínio totalitário do cálculo racional gera a aparência de que os fenômenos seguem seus rumos de acordo com leis próprias e não são resultados da ação humana. A racionalização penetra, então, todas as esferas da vida, e o indivíduo passa a viver sob a impressão de que todas essas esferas são regidas por leis imanentes uniformes. Isso é mera aparência, afirma Lukács, mas uma aparência socialmente necessária à manutenção do capitalismo. A adaptação do modo de vida, do trabalho e da consciência aos pressupostos socioeconômicos do capitalismo passa a ser a consequência desse processo.

Logo na abertura do capítulo “A indústria cultural como mistificação das massas”, Adorno e Horkheimer (1985: 109)Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max. (1985) [1947]. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. referem-se ao fenômeno da indústria cultural como um sistema, composto pelo cinema, pelo rádio, pelo jazz e pelas revistas. Em outros ensaios Adorno inclui a televisão, o esporte, a moda e os romances best-sellers nesse sistema. Seria um equívoco, por isso, tratar os elementos da indústria cultural isoladamente, como se a expressão “indústria cultural” fosse um adjetivo dos bens culturais, conforme propõe Steinert (2004)Steinert, Heinz. (2004). Culture industry. Malden, MA: Polity. ao afirmar que os filmes de Woody Allen não cabem no esquema da “indústria cultural”.4 4 É porque não compreendem a indústria cultural como um sistema que bons intérpretes de Adorno como, por exemplo, Deborah Cook, criticam o diagnóstico da indústria cultural por ser demasiadamente generalizante e não se ater a objetos específicos. Compreender o conceito de “indústria cultural” como uma enorme coleção de bens culturais oblitera a abordagem desse fenômeno como uma forma de dominação, não redutível a coisas, a produtos culturais. Esse tipo de crítica, que normalmente ressalta o fato de Adorno não conhecer todos os produtos da indústria cultural - como determinado filme ou série televisiva, por exemplo -, acaba recaindo na armadilha da verificação empírica e na falácia da confirmação factual, como se fosse necessário conhecer todos os produtos da indústria cultural para criticá-la. Isso explica por que interpretações como essa buscam pensar bens culturais que “resistem à reificação” no interior da indústria cultural em vez de refletir sobre o caráter abrangente e dominador desse fenômeno. Até porque Adorno não pensa a arte autônoma como algo que resiste à reificação, mas como algo que, a partir dela gestado, a problematiza. O conceito de indústria cultural não se resume ao conjunto de produtos reificados produzidos pela indústria do entretenimento (cf. Cook, 2007; Adorno, 1995: 77). Em seu livro sobre o jazz,Steinert (2003) segue a mesma linha e reforça a ideia de que o argumento de Adorno é elitista e remete a sua formação aristocrática. Adorno (1995: 88)Adorno, Theodor W. (1995). Televisão e formação. In: Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra. previne-se contra essa leitura no debate televisionado com Hellmut Becker:

gostaria de chamar a atenção para que não se veja isoladamente a televisão, que constitui somente um momento no sistema conjunto da cultura de massa dirigista contemporânea orientada numa perspectiva industrial, a que as pessoas são permanentemente submetidas em qualquer revista, em qualquer banca de jornal, em incontáveis situações da vida, de modo que a modelagem conjunta da consciência e do inconsciente só pode ocorrer por intermédio da totalidade desses veículos de comunicação de massa.

Se a indústria cultural é um sistema, seus efeitos só podem ser sentidos em conjunto e só podem ser medidos com mais precisão na passagem de uma geração para a outra. Por isso, não faria sentido pensar “indústria cultural” como um predicado dos bens culturais, assim como o fetiche da mercadoria não é predicado de uma ou outra mercadoria específica, mas uma forma de relação social que se desdobra em outras relações sociais. A especificidade do conceito de indústria cultural consiste também em ser uma forma assumida pelas relações sociais, forma essa que não diz respeito unicamente à organização da cultura, mas a um sistema de socialização que também dá forma às subjetividades. Trata-se, então, de um sistema no qual está integrado, pela técnica submetida ao capital, tudo aquilo um dia atribuído à cultura, que se transmuta em entretenimento indiscriminado. Nesse sentido, a experiência nos Estados Unidos, onde esse sistema era mais desenvolvido, havia servido como uma espécie de posto de observação privilegiado para investigar o fenômeno (cf. Claussen, 2005Claussen, Detlev. (2005). Ein letztes Genie. Berlin: Fischer Taschenbuch Verlag.). Esse caráter abrangente da indústria cultural fica muito mais claro atualmente com a difusão da internet e das chamadas redes sociais.5 5 O caráter sistemático da indústria cultural se evidencia com a internet uma vez que produz uma vida vivida de tela a tela, do celular ao computador, do trabalho à diversão etc. Ademais, as redes sociais reúnem também aquela indistinção entre trabalho e lazer intuída por Adorno: ela é um meio de instrução, de notícias, de relacionamentos de trabalho, família etc. que acompanha a maioria das pessoas, ocupando seus sentidos, da hora de acordar à hora de dormir, isto é, um sistema que funciona como mediador de suas relações com as pessoas e objetos do mundo. Também o caráter totalitário se torna mais explícito; basta observar a programação de um canal de variedades, nos quais as atrações se apresentam como guias de culinária, comportamento, moda, relacionamento, decoração, educação, entre muitos outros, que, por sua vez, se ligam aos apps de smartphone para que o indivíduo, mesmo quando distante da televisão, se possa manter conectado. Há um desempenho prescrito do momento em que um indivíduo se levanta até a hora em que se deita. Esse caráter totalitário da indústria cultural como sistema está ligado a sua função como “prolongamento do trabalho”, como subsunção industrializada da cultura: “ao subordinar da mesma maneira todos os setores da produção espiritual a esse fim único - ocupar os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a chegada ao relógio do ponto, na manhã seguinte, com o selo da tarefa de que devem se ocupar durante o dia - essa subsunção realiza ironicamente o conceito de cultura unitária que os filósofos da personalidade opunham à massificação” (Adorno & Horkheimer, 1985Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max. (1985) [1947]. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: 108).

A ideia de “prolongamento do trabalho” não tem a ver somente com o descanso tão monótono quanto a monotonia do trabalho que põe o indivíduo em condições de encará-lo novamente, tal como Adorno (2002a)Adorno, Theodor W. (2002a). Tempo Livre. In: Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra. descreve em “O tempo livre”. A indústria cultural é prolongamento do trabalho porque oferece, fora dele, o mesmo sistema fechado e impenetrável que o trabalhador encontra na fábrica e nas empresas. Ao descrever o processo de reificação, Lukács realça a tese de Marx de que, como mero suporte do processo de produção, o homem é levado a assumir uma atitude contemplativa frente ao trabalho, apresentado como um sistema fechado de leis próprias e imutáveis. O indivíduo que chega na fábrica para trabalhar encontra pronto todo o aparato de produção ao qual ele é submetido, frente ao qual parece ser tão dispensável e do qual é mero apêndice. O modelo do que acontece na fábrica espalha-se para toda a sociedade. Isso, explica Lukács, produz uma atitude contemplativa no trabalhador que se vê impotente diante da organização do mundo que parece precedê-lo. O sistema, que parece funcionar de maneira autônoma, produz a aparência de que sua existência independe dos indivíduos; porque não há alternativa a ele, o trabalhador se submete. Por isso, a reificação é, seguindo o argumento lukácsiano (2003), o reflexo na consciência, da forma mercadoria.

Seguindo o conceito de fetichismo da mercadoria exposto por Marx em O capital, o que se tem aqui é uma inversão específica entre forma e substância, sujeito e objeto: o trabalho - a substância - é submetido a uma forma que lhe é estranha - o capital. Isso gera uma dialética truncada, ou seja, o fato de que, ao se desdobrar, levará consigo essa contradição para os próximos patamares,

o capital não pode descrever perfeitamente tal movimento, porque ele não é a verdadeira substância. Quem deveria elevar-se de “substância" a “sujeito” é a força de trabalho, a “fonte” efetiva do valor. [...] Não é esta riqueza, enquanto “substância”, que se eleva à autodeterminação, à posição de um verdadeiro “sujeito”. Ao contrário, ela se coloca como o oposto da “atividade” que a cria, definindo-a como atividade vazia de objetividade, incapaz mesmo de existir por si própria enquanto atividade. A substância é como que cindida, por força do despojamento original, em uma pura subjetividade e uma pura objetividade. E esta última, autonomizada enquanto capital, subordina formalmente a outra parte, pretendendo por isso elevar-se à posição de “sujeito”, pois a força de trabalho só é posta em atividade quando o capital a emprega, organiza e associa tecnicamente aos meios de produção (Grespan, 2002Grespan, Jorge Luis da Silva. (2002). Dialética do avesso. Crítica marxista, 14, p. 21-44.: 39).

A subsunção do trabalho ao capital, que dá ao capital a aparência de ser sujeito do processo, nada mais é do que um desdobramento do fetichismo. Seu reflexo na consciência envolve a assimilação dessa impotência ou passividade do trabalhador no processo de produção, que gera a atitude contemplativa.

Adorno demonstra - desenvolvendo aqui os temas de Marx e Lukács - que o caráter sistemático da indústria cultural é um desdobramento do fetichismo que explica como o processo de reificação impõe sua forma também ao mundo da diversão e do descanso. Uma sociedade estruturada é pressuposto desse processo de reificação, que, ao se desdobrar, produz e reproduz essa estrutura, conforme se apossa de e domina o conjunto da sociedade. A indústria cultural apresenta-se como sistema fechado e racionalizado, com suas próprias leis. Isso se evidencia no âmbito de sua produção, altamente especializada: o cinema é dividido em diversas áreas técnicas pelas quais são responsáveis os seus especialistas, em música, no vestuário, nos efeitos especiais; nas revistas, convocam-se os especialistas em moda que ensinam com seus tutoriais como vestir-se para cada ocasião, nutricionistas que ensinam como se deve comer, sexólogos que ensinam como melhorar a performance sexual etc. Frente a todo esse conhecimento, a sociedade se torna leiga e impotente no que se refere ao controle que tem sobre todos esses meios.

A indústria cultural se constitui como um desdobramento complexo - e, por isso, de difícil penetração - do fetichismo da mercadoria, que ganha poder de comando sobre as relações sociais. Sem adentrar ainda a discussão sobre como a indústria cultural produz pseudoindividualização e semiformação, vale reforçar o quanto ela é elemento fundamental da reprodução do sistema capitalista enquanto sistema diante do qual não resta alternativa aos indivíduos a não ser assumir uma atitude contemplativa. Nesse sentido, Adorno e Horkheimer (1985: 127)Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max. (1985) [1947]. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. afirmariam que “a cultura sempre contribuiu para dominar os instintos revolucionários, e não apenas os bárbaros. A cultura industrializada faz algo a mais. Ela exercita o indivíduo no preenchimento da condição sob a qual ele está autorizado a levar essa vida inexorável. [...] Basta se dar conta de sua própria nulidade, subscrever a derrota - e já estamos integrados”.

Tal qual a fábrica, a indústria cultural apresenta-se para nós como um sistema pronto. Além disso, como sistema, ela tem, conforme descrevem Adorno e Horkheimer, uma abrangência enorme, do rádio à televisão, das revistas aos best-sellers, da moda ao esporte etc. Como descreve Adorno (2002b)Adorno, Theodor W. (2002b). On popular music. In: Essays on Music. Berkeley: University of California Press. em Sobre a música popular, o plugging, a repetição das mesmas músicas no rádio, das mesmas fórmulas no cinema (basta pensar como o cinema se divide em no máximo dez gêneros diferentes nos quais se encaixa a maioria dos filmes)6 6 Apesar de Alexander Kluge ter dito certa vez que Adorno não entendeu o cinema porque só conhecia o cinema comercial norte-americano, sua crítica sobre a indústria cultural esteve na base das experimentações do Cinema Novo Alemão nos anos 1960, conforme destaca o próprio Kluge (1988). etc., visa quebrar a resistência dos indivíduos ao se oferecer como única alternativa. É claro que essa alternativa não aparece sempre como o mais do mesmo, mas com um verniz de novidade, daí o entusiasmo causado pela indústria cultural. Hoje, porém, basta passar dois dias explorando uma plataforma como a Netflix para compreender o argumento de Adorno.

O caráter de sistema da indústria cultural contribui, então, para produzir uma atitude de contemplação também fora do ambiente de trabalho. Afinal, se não parece haver escapatória, só resta adaptar-se:

A pressão sob a qual os seres humanos vivem cresceu a tal ponto, que eles não a suportariam, caso os precários esforços de adaptação, que eles uma vez realizaram, não lhes fossem novamente demonstrados e neles próprios repetidos. Freud ensinou que o recalque das pulsões nunca é totalmente bem-sucedido e nem dura muito, e que, por isso, a energia psíquica inconsciente do indivíduo é desperdiçada incansavelmente para manter no inconsciente aquilo que não pode alcançar a consciência. Esse trabalho de Sísifo da economia pulsional do indivíduo aparece hoje “socializado”, sendo seu controle assumido pelas instituições da indústria cultural, para benefício das instituições e dos poderosos interesses que estão por trás delas. A televisão, tal como é, contribui com a sua parte. Quanto mais completo o mundo como aparência, mais impenetrável a aparência como ideologia (Adorno, 1977Adorno, Theodor W. (1977). Prolog zum Fernsehen. In: Tiedemann, Rolf (org.). Gesammelte Schriften. Bd. 10.2. Frankfurt am Main: Suhrkamp.: 508).

Ora, mas o que está dado aqui senão uma inversão similar à discutida acima, entre forma e substância? Quando assume algo da ordem da dinâmica pulsional individual e socializa o processo de adaptação, a indústria cultural dá uma forma heterônoma à subjetividade, tirando-lhe a potência de sujeito. Adorno atualiza o conceito de fetichismo da mercadoria ao mostrar como, assim como o capital impõe ao trabalho uma forma que lhe é estranha, também a indústria cultural impõe ao indivíduo a forma de sua subjetividade. Um dos momentos desse processo passa pelo caráter sistemático, pronto e totalitário que a indústria cultural assume perante o indivíduo, que se torna objeto dessa instância. A própria ideia de espectador (e de consumidor daquilo que já se apresenta como um conjunto de mercadorias prontas no mercado) contém essa passividade infligida.

A indústria cultural não só manipula o desejo, através da publicidade, mas o cria ao impor ao indivíduo “necessidades retroativas” (Adorno & Horkheimer, 1985Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max. (1985) [1947]. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: 114). Até aí encontra-se o caráter de sistema, cujo “princípio impõe que todas as necessidades lhe sejam apresentadas como podendo ser satisfeitas pela indústria cultural, mas, por outro lado, que essas necessidades sejam de antemão organizadas de tal sorte que ele [o indivíduo] se veja nelas unicamente como um eterno consumidor, como objeto da indústria cultural” (Adorno & Horkheimer, 1985Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max. (1985) [1947]. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 117). O sistema produz reificação e é um desdobramento do fetichismo da mercadoria porque inverte o sujeito e o objeto do processo.

Além disso, Adorno ressalta um aspecto fundamental que diz respeito à indiferenciação que a indústria cultural produz entre vida e aparência, o que se teria agravado profundamente com a disseminação da televisão:

O que ocorreu há muito com a sinfonia, que o cansado funcionário tolerava a meia orelha tomando sua sopa em mangas de camisa, ocorre agora também com as imagens. [...] Com a justificativa de que ver televisão no quarto escuro seria doloroso, deixa-se à noite a luz elétrica acesa, e recusa-se, durante o dia, a fechar as persianas: a situação deve descolar-se o mínimo possível da normal. É impensável que a experiência da própria coisa permaneça independente disso. Para a consciência, a fronteira entre realidade e imagem é reduzida. A imagem é tomada por um pedaço da realidade, uma espécie de acessório do apartamento que se comprou junto com o aparelho7 7 No original: Was längst der Symphonie geschah, die der müde Angestellte, in Hemdsärmeln seine Suppe schlürfend, mit halbem Ohr toleriert, geschieht nun auch den Bildern. [...] Mit der Begründung, Fernsehen im dunklen Raum sei schmerzhaft, lässt man abends das elektrische Licht brennen, und weigert sich, unter Tags die Rollläden zu schließen: die Situation darf sich von der normalen möglichst wenig abheben. Undenkbar, dass die Erfahrung der Sache selbst davon unabhängig bliebe. Die Grenze zwischen Realität und Gebilde wird fürs Bewusstsein herabgemindert. Das Gebilde wird für ein Stück Realität, eine Art Wohnungszubehör genommen, das man mit dem Apparat gekauft hat [...]. (Adorno, 1977Adorno, Theodor W. (1977). Prolog zum Fernsehen. In: Tiedemann, Rolf (org.). Gesammelte Schriften. Bd. 10.2. Frankfurt am Main: Suhrkamp., p. 500-501).

Quando, na forma de sistema, a indústria cultural penetra diversos aspectos da vida cotidiana, quando ela se torna quadro de referência no vestir-se, comportar-se, relacionar-se, divertir-se etc.; quando, como dizem Adorno e Horkheimer, o filme se confunde com a propaganda, o domingo esportivo se confunde com a segunda miserável, o trabalho com o lazer; quando cada garota se parece com a estrela de cinema, cultura, entretenimento e dominação se apresentam como uma totalidade coesa e inescapável. Por isso, afirma Adorno, enquanto aparência, ela é ainda mais ideológica, pois ainda mais difícil de penetrar. Quer dizer,

existir torna-se sua própria ideologia por meio da magia de sua duplicação fiel. Assim se tece o véu tecnológico, o mito do positivo. Se o real se torna uma imagem ao igualar-se ao todo em sua particularidade, tal como um Ford em relação a todos os outros da mesma série, então as imagens, inversamente, se tornam realidade imediata (Adorno, 1997: 301).

A REIFICAÇÃO E A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA

Marx deduzia do modo de produção capitalista e de sua decorrente divisão do trabalho uma série de consequências alienantes para o trabalhador, em relação, por exemplo, aos meios de produção, aos outros trabalhadores, ao produto final do trabalho etc. (cf. Marx, 2006Marx, Karl. A mercadoria. (2006). São Paulo: Ática. Ensaios comentados.). Isto é, Marx proporcionava o arcabouço teórico necessário para compreender como as relações sociais capitalistas determinavam os destinos desses trabalhadores, embora sua investigação não se detivesse sobre os efeitos da alienação e do fetichismo sobre a constituição subjetiva. Lukács abordaria, décadas mais tarde, as consequências do processo de reificação no âmbito da consciência, conectando, por assim dizer, as posições de classe e atividade profissional ao seu tipo decorrente de alienação. Ele apontava a formação, no capitalismo, de uma estrutura formalmente unitária da consciência que se apresentava como tal para o conjunto da sociedade, mas com variações. Em suma, “essa estrutura unitária exprime-se justamente pelo fato de que os problemas de consciência relacionados ao trabalhador assalariado se repetem na classe dominante de forma refinada, espiritualizada, mas, por outro lado, intensificada” (Lukács, 2003:Lukács, Georg. (2003). História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes. 222). Assim como a diferença entre o “trabalho simples” e o “trabalho complexo” foi descrita por Marx como uma diferença meramente quantitativa, isto é, de grau, também para Lukács a reificação se intensifica nas atividades nas quais predomina o trabalho complexo, como a burocracia, o jornalismo e a filosofia. Não fortuitamente, Lukács destacaria as profissões liberais burocratizadas, ligadas ao direito, por exemplo, como resultantes de um processo de intensificação da reificação, em relação ao trabalho fabril. No âmbito da burocracia, a reificação teria penetrado a ética, tal qual o taylorismo penetrara o psíquico no âmbito da fábrica.

Em todo caso, a preocupação de Lukács situava-se no âmbito da formação da consciência de cada classe que, em seu interior, apresenta variações. Adorno, mais uma vez, busca desdobrar as concepções de Marx e Lukács, expondo como se intensifica a reificação da consciência. Isso foi exposto na conferência “Capitalismo tardio ou sociedade industrial?”, na qual Adorno afirma que a sociedade industrial se tornou uma totalidade ao expandir processos análogos aos industriais para além do ramo da produção material, como a administração e a cultura, por exemplo. Nesse sentido, argumenta Adorno (1969: 18)Adorno, Theodor W. (1969). Einleitungsvortrag zum 16. Deutschen Soziologentag. In: Deutsche Gesellschaft für Soziologie (DGS) (Ed.): Spätkapitalismus oder Industriegesellschaft? Verhandlungen des 16. Deutschen Soziologentages in Frankfurt am Main 1968. Stuttgart: Ferdinand Enke., os seres humanos mantêm e aprofundam sua condição de apêndice da maquinaria não só por permanecer submetidos às máquinas no processo de produção, mas por ser “obrigados, até dentro de suas emoções mais íntimas, a se integrar ao mecanismo social como portadores de papéis e a se modelar de acordo com ele sem reserva”.

Afirmar que o capitalismo precisou expandir processos análogos aos industriais para o âmbito da cultura envolve, como sugere Adorno, associar a reprodução ampliada do capital ao processo de produção e reprodução dos trabalhadores no capitalismo. Na análise da indústria cultural, é isso que Adorno tem em mente, e muitas vezes ele recorre à psicanálise para explicar os desdobramentos da reificação no que tange aos modos de subjetivação dela decorrentes.8 8 Com isso, não se quer defender que a psicanálise sirva de mero recurso de compreensão de elementos individuais na análise sociológica. Não se encontra nesse caso nem um deficit psicanalítico, nem um deficit sociológico - conforme defende Axel Honneth. Ao contrário, sociologia e psicanálise, submetidas ao crivo da dialética de Adorno, servem à crítica da reificação (cf. Rouanet, 2001, p. 120; Honneth, 1991). As noções de pseudoindividualização e semiformação são conceitos imprescindíveis para a compreensão desse desenvolvimento. Não é por outra razão que Wolfgang Leo Maar (2002: 5)Maar, Wolfgang Leo. (2002). A produção da “sociedade” pela indústria cultural. Revista Olhar, ano 2, 3, p. 1-24. pode afirmar que o núcleo argumentativo da teoria crítica de Adorno consiste em

tematizar o processo de reprodução ampliada do domínio da formação vigente. O conceito marxista de reprodução ampliada adquire com essa focalização sua dimensão plena. [...] Adorno integra a sua apreensão da indústria cultural à crítica da economia política, revelando a indústria cultural e a semiformação como peças-chave para compor adequadamente os mecanismos pelos quais a acumulação capitalista procura se tornar presente.

A indústria cultural não é ideológica unicamente porque afirma positivamente o real. Além de seu impacto enquanto sistema, seu caráter dominador reside também em sua participação no processo de reprodução do capital, autovalorização do valor, ao solapar aquilo que lhe oferece resistência: a subjetividade. Se considerarmos que a espontaneidade é um elemento fundamental para a práxis política, ao fazer dos indivíduos um meio de reprodução do capital, quebrando a resistência subjetiva e gerando adaptação, a indústria cultural torna-se uma das peças-chave da compreensão do capitalismo atual e, na época de Adorno, do processo de integração do proletariado.

Em “Prólogo sobre a televisão”, Adorno (1977)Adorno, Theodor W. (1977). Prolog zum Fernsehen. In: Tiedemann, Rolf (org.). Gesammelte Schriften. Bd. 10.2. Frankfurt am Main: Suhrkamp. destaca a necessidade de estudar os efeitos da televisão em conjunto com a psicanálise, pois esses efeitos são inconscientes. Não basta, portanto, analisar os conteúdos veiculados pela televisão e sua qualidade. Seria preciso verificar em que grau a televisão serve de fato para preencher o tempo vazio e qual função ela realmente exerce, bem como sua relação com os outros elementos do sistema. A análise, por assim dizer, empírica da televisão deveria ser apenas um ponto de partida e não algo autossuficiente no que tange a essa temática.9 9 Mesmo quando empenhado em pesquisas empíricas, Adorno não se detinha perante a coleta dos dados. Eles devem ser submetidos a análise, teoricamente orientada. Conforme destacou Cohn (1998: 12), “a principal contribuição de Adorno à pesquisa empírica consiste na valorização dos recursos analíticos que permitam atingir por vias indiretas as condicionantes sociais das atitudes, das ações e das formas de pensamento em contextos determinados”. Conforme argumentou Adorno (1995: 88)Adorno, Theodor W. (1995). Televisão e formação. In: Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra. em “Televisão e formação”,

Sugiro efetivamente começar detendo-se na configuração do material e na sua integração, para exercer a crítica a partir desse ponto, sem confiar em que, com os métodos positivistas usuais, seja possível registrar essas coisas, sem confiar em que isso atue sobre as pessoas efetivamente hic et nunc (aqui e agora) diretamente como se poderia supor a partir da análise desse material. Contudo, esses talvez sejam detalhes acerca das técnicas de investigação que podem ser deixados de lado aqui. Mas um ponto é fundamental: o fato de não podermos demonstrar com precisão como essas coisas funcionam naturalmente não significa uma contraprova desse efeito, mas apenas que ele funciona de modo imperceptível, muito mais sutil e refinado, sendo por isso provavelmente muito mais danoso.

Os efeitos da televisão, de acordo com essa entrevista concedida por Adorno, não são imediatos, por isso uma investigação empírica específica de um programa de televisão ou de seus usos é insuficiente. Novamente, o que está em jogo - conforme Adorno desenvolvera na pesquisa do rádio - são os limites da análise empírica para a investigação da realidade. A tese defendida por ele é a de que esse processo é resultado de determinações diversas. Adorno demonstra como a indústria cultural toma para si a tarefa adaptativa que antes era incumbência da dinâmica pulsional individual. No ensaio presente em Dialética do esclarecimento,Adorno e Horkheimer (1985: 103)Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max. (1985) [1947]. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. sugerem também que o cinema serviria de substituto ao esquematismo kantiano, condicionando a nossa apreensão da realidade e usurpando ao sujeito a função “de referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais”. Esse tipo de processo não pode ser comprovado por uma pesquisa empírica, até mesmo porque ele ocorre ao longo de uma geração, na qual os indivíduos são conformados de uma maneira específica.

QUIPROCÓ: SEMIFORMAÇÃO E PSEUDOINDIVIDUALIDADE

Não é incomum nos depararmos, nos textos de Adorno que tratam da crítica da ideologia, com a definição da indústria cultural a partir da padronização e da estereotipia que determinam a estrutura das mercadorias culturais. A conhecida passagem sobre Hollywood realizar aquilo que Kant teorizou sobre o sujeito diz exatamente isso, ou seja, que “as imagens já são pré-censuradas por ocasião de sua própria produção segundo os padrões do entendimento que decidirá depois como devem ser vistas” (Adorno & Horkheimer, 1985Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max. (1985) [1947]. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: 73). É o caráter pronto, sempre igual, pré-organizado, tão fácil de lembrar quanto de esquecer que Adorno e Horkheimer têm em mente quando se referem a esse esquematismo. Basta pensar na ideia de gêneros musicais que encontramos em qualquer aplicativo musical de celular, que oferece os tipos de música reunidos numa caixinha digital ou nas variantes fixas dos personagens das comédias românticas. Dificilmente a indústria cultural produz algo que não se encaixe em nenhum gênero cinematográfico, musical, literário etc. E mesmo que exista um número restrito de “filmes independentes”, por exemplo, sua existência não contraria a noção de indústria cultural; antes a reforça não só por contribuir para essa ideia de ‘liberdade’ a ela conectada, mas também porque ela funciona como um sistema, contra o qual a exceção pode muito pouco ou quase nada. Nas palavras de Adorno e Horkheimer (1985: 117)Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max. (1985) [1947]. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., “contrariamente ao que se passa na era liberal, a cultura industrializada pode se permitir, tanto quanto a cultura nacional-popular no fascismo, a indignação com o capitalismo; o que ela não pode se permitir é a abdicação da ameaça de castração”. O núcleo social de sua existência encontra-se muito mais na função que exerce do que nas ideias que transmite.

A referência a Kant, entretanto, se compreendida num âmbito mais geral e relacionada às reflexões sobre a modernidade de Walter Benjamin, não se resume ao esquematismo do cinema e de seus derivados. O trabalho do esquematismo só pode ser oferecido ao indivíduo pela indústria cultural porque dele foi subtraída toda a experiência. Ele pode ser relacionado ao movimento de substituição da experiência destruída por uma “experiência substitutiva enganosa”, tal como defende Adorno (2003)Adorno, Theodor W. (2003). Theorie der Halbbildung. In: Tiedemann, Rolf (org.). Gesammelte Schriften. Bd. 8. Frankfurt am Main: Suhrkamp. em sua “Teoria da semicultura” - texto aliás, quase sempre restringido às suas reflexões sobre à pedagogia. Embora isso não deixe de ser verdade, a semicultura e a semiformação [Halbbildung] estão de certa forma implícitas nas reflexões sobre a indústria cultural enquanto substitutos para aquilo que se usurpou da sociedade como possibilidade: a experiência e a formação cultural [Bildung]. O esquematismo é aquilo que a indústria cultural oferece para suprir o vazio da experiência destruída. Esse esquematismo, também antes um trabalho do sujeito, é imposto de fora e, por isso, de maneira heterônoma. A semiformação, ao contrário do que pode parecer, não pertence ao reino dos conteúdos. Seu caráter incompleto, “pela metade”, sobrevém da transformação da cultura em valor que altera sua função e neutraliza os conteúdos culturais e os petrifica, produzindo adaptação em vez de autonomia.

A condição do proletariado de excluído da cultura, dessa cultura da qual pode usufruir a burguesia liberal do século XIX, não poderia ser superada, segundo Adorno, apenas por uma educação que visasse preencher esse vácuo, porque essa exclusão não é meramente cultural, mas materialmente determinada pela sociedade de classes. Vale lembrar que Adorno é um crítico dialético da cultura e não um crítico cultural que vê na cultura a saída definitiva para a superação da sociedade de classes. Segundo ele, “o duplo caráter da cultura, cujo equilíbrio teve sucesso apenas momentaneamente, nasce do antagonismo social não conciliado, que a cultura gostaria de curar, mas que, como mera cultura, não pode curar” (Adorno, 2003Adorno, Theodor W. (2003). Theorie der Halbbildung. In: Tiedemann, Rolf (org.). Gesammelte Schriften. Bd. 8. Frankfurt am Main: Suhrkamp.: 96). O duplo caráter da cultura é constituído à imagem e semelhança do duplo caráter da mercadoria, cuja contradição não conciliada gera ao mesmo tempo a autonomia e a impotência que caracterizam a esfera cultural. Autonomia pois, enquanto esfera intelectual autônoma, é livre das demandas imediatas da práxis e da vida material. Impotência, justamente porque encontra nessa mesma autonomia e independência os limites de incidência na organização da vida material. Grosso modo, a ideia é que oferecer as sinfonias de Beethoven numa estação de rádio, vender a Odisseia para ser lida no metrô, a fim de que as massas exaustas do trabalho obtenham a tão proclamada Bildung, é muito mais uma crença ingênua na cultura da parte dos advogados (não pagos) da indústria cultural, do que de Adorno, cujo materialismo é explícito nas críticas que faz à ideia de formação como mero acúmulo de informações sobre a cultura. Isso já se havia evidenciado em suas análises sobre o rádio, às quais Adorno (2003: 113)Adorno, Theodor W. (2003). Theorie der Halbbildung. In: Tiedemann, Rolf (org.). Gesammelte Schriften. Bd. 8. Frankfurt am Main: Suhrkamp. retorna nesse texto com o seguinte exemplo:

Na América, há um livro extraordinariamente disseminado, Great Symphonies, de Sigmund Spaeth. Ele é talhado sob medida, de modo desinibido, para uma necessidade semiformada: a de que, para se provar como culto, possa-se identificar imediatamente as obras-padrão da literatura sinfônica que de todo modo são inevitáveis no ramo dos negócios musicais. O método consiste em adicionar sentenças aos principais temas sinfônicos, por vezes também apenas a motivos isolados, que se permitem assim ser cantados e que grudam na memória as frases musicais respectivas, à moda dos hits [Schlagerart]10 10 No original: In Amerika existiert ein außerordentlich verbreitetes Buch „Great Symphonies”, von Sigmund Spaeth). Es ist hemmungslos auf ein halbgebildetes Bedürfnis zugeschnitten: das, dadurch sich als kultiviert auszuweisen, dass man die im Musikbetrieb ohnehin unausweichlichen Standardwerke der symphonischen Literatur sofort erkennen kann. Die Methode ist die, dass den symphonischen Hauptthemen, zuweilen auch nur einzelnen Motiven daraus, Sätze unterlegt werden, die sich darauf singen lassen und die nach Schlagerart die betreffenden musikalischen Phrasen einprägen. (Adorno, 2003Adorno, Theodor W. (2003). Theorie der Halbbildung. In: Tiedemann, Rolf (org.). Gesammelte Schriften. Bd. 8. Frankfurt am Main: Suhrkamp.: 113).

Esse tipo de relação com as obras de arte - note-se que Adorno não está fazendo referência aos produtos já previamente padronizados - oblitera completamente a relação com os objetos, pois o consumo das obras a nada mais visa senão um gosto pelo mero fato de se consumir determinado tipo de cultura. Mais uma vez, Adorno recorre à dialética marxista para demonstrar como a função do consumo oblitera o conteúdo do que é consumido.

A semiformação, portanto, não é para Adorno uma característica de uma classe social específica. O conceito tradicional de formação provém de um contexto exclusivo, que remete imediatamente aos privilégios da burguesia liberal dos séculos XVIII e XIX na Europa - que tinha margem de liberdade em relação às classes trabalhadoras, justamente por não estar submetida ao imperativo da necessidade e da mera sobrevivência. Esse, porém, já não é o caso da sociedade de massas, na qual também a antiga burguesia “ilustrada” se tornou objeto desse processo. Conforme chamou atenção Robert Kurz (2013: 10)Kurz, Robert. (2013). Kulturindustrie Im 21. Jahrhundert. Zur Aktualität des Konzepts von Adorno und Horkheimer. EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft, 9. KULTURINDUSTRIE IM 21. JAHRHUNDERT. Disponível em: <http://www.obeco-online.org/rkurz406.htm>. Acesso em 8 jun. 2016.
http://www.obeco-online.org/rkurz406.htm...
, numa tentativa de atualização do conceito de Adorno e Horkheimer,

Essa velha barbárie culta da burguesia alemã extinguiu-se na época das guerras mundiais e não há que por ela chorar [...] A presunção elitista há muito que já não se refere à capacidade de conseguir recitar Homero no original, mas sim a uma mistura de economia política e ‘competência multimídia’ [...]; a nova elite é notoriamente sem pretensões espirituais e aparelhada para o curso de mercado de modo tão reducionista, que as ‘universidades de excelência’ poderão ser consideradas quando muito ironia objetiva.

“A semiformação”, nas palavras de Adorno (2003: 108)Adorno, Theodor W. (2003). Theorie der Halbbildung. In: Tiedemann, Rolf (org.). Gesammelte Schriften. Bd. 8. Frankfurt am Main: Suhrkamp., “é o espírito capturado pelo caráter de fetiche da mercadoria”, e isso não concerne apenas ao proletariado, mas tem a ver com a generalização, no âmbito da cultura, da forma mercadoria. Nessa chave, a reificação precisa ser compreendida como algo mais do que a reflexão da forma mercadoria na consciência. O que Adorno está dizendo é que ela determina essa consciência e, ao fazê-lo, se apresenta como sujeito, assim como o capital se apresenta como sujeito do processo capitalista. Não se trata mais apenas da penetração da reificação na consciência, mas da própria constituição da última a partir da primeira. Em História e consciência de classe,Lukács (2003)Lukács, Georg. (2003). História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes. atém-se ao fenômeno da reificação e a suas decorrentes formas de “objetividade e subjetividade” como produtos do processo de produção capitalista; e embora destaque a constituição de uma consciência formal unitária para toda a sociedade e o espraiamento da atitude contemplativa produzida no âmbito do trabalho para o restante da vida social, Lukács - principalmente por causa do momento histórico revolucionário que vivia - não deu grande destaque à importância do fenômeno da reificação para a reprodução do capitalismo. Seguindo os passos de Lukács, Adorno desenvolve a teoria da reificação em conjunto com a teoria do valor de Marx e enfatiza muito mais o caráter de pressuposto que o fenômeno de reificação da consciência tem para a autorreprodução do capital do que de produto do modo de produção capitalista.

À semiformação corresponde a noção de pseudoindividualidade, que aparece em diversos momentos da obra de Adorno, como um sucedâneo da individualidade. Há nesse processo um quiproquó, pois a destruição da experiência e da individualidade não deixam um mero vazio, mas são substituídas por versões como que decompostas das primeiras. Nos estudos sobre a presença de tipos de personalidade autoritária nos Estados Unidos, Adorno dá uma explicação que pode esclarecer esse conceito:

O indivíduo tem de lidar com problemas que ele na verdade não compreende e tem de desenvolver certas técnicas de orientação, por mais cruas e falaciosas que sejam, que o ajudam a encontrar seu caminho em meio à escuridão [...] Isso significa preencher uma função dupla: de um lado, elas fornecem ao indivíduo um tipo de conhecimento ou substitutos para o conhecimento, o que lhe torna possível tomar uma posição quando isso é dele esperado, embora ele não esteja realmente preparado para tal. De outro lado, por si mesmas aliviam psicologicamente o sentimento de ansiedade e incerteza e provêm o indivíduo com a ilusão de segurança intelectual de algum tipo, de algo ao qual ele se pode agarrar mesmo quando sente, lá no fundo, a inadequação de suas opiniões (Adorno et al., 1950Adorno, Theodor W. et al. (1950). The authoritarian personality. New York: Harper and Brothers.: 663-664).

A formação é substituída pela semiformação. Quando a subjetividade é esvaziada por esse processo ela não permanece vazia, mas é substituída por algo imposto de fora, há então um quiproquó. Trata-se, na chave da indústria cultural, de uma construção mercantil e reificada da individualidade que se dá em diversos níveis. Usurpados da possibilidade de formar-se, os indivíduos passam a se relacionar com a composição de sua personalidade como mercadorias que se compram no mercado. Como havia descrito Lukács, o processo de reificação faz com que o indivíduo lide com aspectos de sua subjetividade como algo cindido de si mesmo, que pode ser disposto no mercado como um produto qualquer, como o publicitário que concebe sua criatividade como um asset.

Atualmente, isso está presente, por exemplo, na ideia de “perfil”, tão alardeada pelas empresas; não se procura mais um tipo de “personalidade”, porque até mesmo isso é sentido como inadequado, como uma extravagância. A ideia de “perfil” contém a já referida estrutura do esquematismo. A noção de “perfil” não implica apenas um reducionismo em relação à personalidade em termos psicológicos, por assim dizer. Se formos pensar na representação pictórica de um perfil, por exemplo, veremos que ela não é só unifacetada, apresentando apenas uma parte de um rosto, mas é também unidimensional, “achatada”. A escolha desse termo para designar um tipo de comportamento esperado dos indivíduos não é aleatória e reforça a tese de Adorno.

INDÚSTRIA CULTURAL, DESDOBRAMENTO DO FETICHISMO DA MERCADORIA

Nos livros primeiro e segundo de O capital, o fetichismo da mercadoria tem ainda um suporte material, por assim dizer. Marx explica como as coisas possuem “valor” (e um preço que flutua em torno dele), uma vez que são produtos do trabalho. No livro terceiro, Marx penetrará fetichismos de ordem mais complexa, por exemplo, da renda fundiária e do capital a juros, e explicará como coisas que não são produto do trabalho e, portanto, não possuem “valor”, podem ter preço. Esse movimento de exponenciação do fetichismo da mercadoria é fundamental para entender a teoria da indústria cultural de Adorno. A ideia de que a crítica de Adorno se resumiria à crítica da “mercantilização da cultura” consiste em um dos maiores mal-entendidos relativos à recepção do conceito de indústria cultural. Em inglês, a palavra commodification, usada muitas vezes como sinônimo para a reificação, reitera essa leitura que associa fetichismo com o processo de mercantilização. Lida dessa maneira, a teoria da indústria cultural aparece como mera crítica da comercialização da arte.

Marx discorre sobre o processo de naturalização e reificação das formas da vida social. Essas são moldadas pela forma mercadoria, isto é, pela forma da contradição presente na forma mercadoria. A ideia de forma é imprescindível para compreender o fetichismo e seus desdobramentos. Sem a noção de que o fetichismo diz respeito às futuras determinações da forma mercadoria (e não da mercadoria como coisa em si, implícita na ideia de mercantilização), não se compreende como, por exemplo, o capital financeiro e a renda da terra remetem a elementos que têm um preço sem ser produtos do trabalho, isto é, sem ter um valor (como o próprio dinheiro e a terra).

O conceito de forma também diz respeito à configuração de determinadas relações sociais que estão em contradição. Basta pensarmos, por exemplo, na forma social capitalista mais básica, a mercadoria, contradição permanente entre valor de uso e valor de troca. Nesse sentido, o conceito de forma em Marx se refere à maneira intrinsecamente antagônica por meio das quais as relações sociais no capitalismo se desenvolvem sem se resolver, já que isso implicaria a própria superação dessa sociedade. Ou seja, as formas que se seguem são tentativas sem sucesso de se resolver aquela primeira contradição. Sendo assim, embora haja de fato um processo de dominação transportado pela indústria cultural, não se trata apenas de argumentar que os indivíduos se tornam meramente seus objetos, mas, ao contrário, que a inversão entre sujeito e objeto está presente na indústria cultural como um desdobramento do fetichismo do capital que faz com que a estrutura de sua subjetividade seja determinada pelo processo de reificação: crítica dialética da cultura, portanto, e não crítica cultural...

NOTAS

  • 1
    A expressão “marxismo weberiano”, de Merleau-Ponty, explica, em meio a outros aspectos, a conjunção na obra de Lukács entre os conceitos de “burocracia” e “reificação”, e acabou servindo também para a análise da Dialética do esclarecimento. Seria possível argumentar, no entanto, que a Dialética do esclarecimento empresta de Marx não apenas conceitos - como o de “razão instrumental”, de Weber - mas o método dialético, que submete igualmente a sociologia weberiana, a psicanálise freudiana e a filosofia alemã a seu crivo. Por isso, falar sobre marxismo weberiano faz tanto sentido quanto falar em marxismo kantiano ou freudiano. Cf. Merleau-Ponty (2006)Merleau-Ponty, Maurice. (2006). As aventuras da dialética. São Paulo: Martins Fontes.; Löwy (2014)Löwy, Michael. (2014). A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano. São Paulo: Boitempo..
  • 2
    Nessa e nas demais citações de originais em idioma estrangeiro a tradução é nossa.
  • 3
    A fortuna crítica da noção de “indústria cultural” é imensa e não cabe esgotá-la aqui (cf., por exemplo, Freitas, 2002Freitas, Verlaine. (2002). Cotidiano e cultura de massa. Cronos. Revista de história, 5, p. 119-130.). No Brasil encontramos trabalhos importantes como os de Renato Ortiz (1994)Ortiz, Renato. (1994). Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense. e de Luiz Costa Lima (2000)Lima, Luiz Costa (org.). (2000). Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra., entre diversos outros, que buscam pensar as tensões entre o que se chama de cultura de massa e a realidade brasileira. Sem negar em nenhuma instância a importância desses trabalhos, meu objetivo aqui é chamar atenção para a necessidade de uma leitura do conceito de “indústria cultural” que o diferencie da ideia de mass media ou mesmo de “cultura de massa”, expressão que deixou de ser utilizada por Adorno a partir dos anos 1950.
  • 4
    É porque não compreendem a indústria cultural como um sistema que bons intérpretes de Adorno como, por exemplo, Deborah Cook, criticam o diagnóstico da indústria cultural por ser demasiadamente generalizante e não se ater a objetos específicos. Compreender o conceito de “indústria cultural” como uma enorme coleção de bens culturais oblitera a abordagem desse fenômeno como uma forma de dominação, não redutível a coisas, a produtos culturais. Esse tipo de crítica, que normalmente ressalta o fato de Adorno não conhecer todos os produtos da indústria cultural - como determinado filme ou série televisiva, por exemplo -, acaba recaindo na armadilha da verificação empírica e na falácia da confirmação factual, como se fosse necessário conhecer todos os produtos da indústria cultural para criticá-la. Isso explica por que interpretações como essa buscam pensar bens culturais que “resistem à reificação” no interior da indústria cultural em vez de refletir sobre o caráter abrangente e dominador desse fenômeno. Até porque Adorno não pensa a arte autônoma como algo que resiste à reificação, mas como algo que, a partir dela gestado, a problematiza. O conceito de indústria cultural não se resume ao conjunto de produtos reificados produzidos pela indústria do entretenimento (cf. Cook, 2007Cook, Deborah. (2007). Reassessing the culture industry. In: Harvis, Simon (org.). Theodor W. Adorno. Critical evaluations in cultural theory. V. 2. London/New York: Routledge.; Adorno, 1995Adorno, Theodor W. (1995). Televisão e formação. In: Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 77). Em seu livro sobre o jazz,Steinert (2003)Steinert, Heinz. (2003). Die Entdeckung der Kulturindustrie oder: Warum Professor Adorno Jazz-Musik nicht ausstehen konnte. Münster: Verlag Westfälisches Dampfboot. segue a mesma linha e reforça a ideia de que o argumento de Adorno é elitista e remete a sua formação aristocrática.
  • 5
    O caráter sistemático da indústria cultural se evidencia com a internet uma vez que produz uma vida vivida de tela a tela, do celular ao computador, do trabalho à diversão etc. Ademais, as redes sociais reúnem também aquela indistinção entre trabalho e lazer intuída por Adorno: ela é um meio de instrução, de notícias, de relacionamentos de trabalho, família etc. que acompanha a maioria das pessoas, ocupando seus sentidos, da hora de acordar à hora de dormir, isto é, um sistema que funciona como mediador de suas relações com as pessoas e objetos do mundo.
  • 6
    Apesar de Alexander Kluge ter dito certa vez que Adorno não entendeu o cinema porque só conhecia o cinema comercial norte-americano, sua crítica sobre a indústria cultural esteve na base das experimentações do Cinema Novo Alemão nos anos 1960, conforme destaca o próprio Kluge (1988)Kluge, Alexander. (1988). Interview. October, 46..
  • 7
    No original: Was längst der Symphonie geschah, die der müde Angestellte, in Hemdsärmeln seine Suppe schlürfend, mit halbem Ohr toleriert, geschieht nun auch den Bildern. [...]
    Mit der Begründung, Fernsehen im dunklen Raum sei schmerzhaft, lässt man abends das elektrische Licht brennen, und weigert sich, unter Tags die Rollläden zu schließen: die Situation darf sich von der normalen möglichst wenig abheben. Undenkbar, dass die Erfahrung der Sache selbst davon unabhängig bliebe. Die Grenze zwischen Realität und Gebilde wird fürs Bewusstsein herabgemindert. Das Gebilde wird für ein Stück Realität, eine Art Wohnungszubehör genommen, das man mit dem Apparat gekauft hat [...].
  • 8
    Com isso, não se quer defender que a psicanálise sirva de mero recurso de compreensão de elementos individuais na análise sociológica. Não se encontra nesse caso nem um deficit psicanalítico, nem um deficit sociológico - conforme defende Axel Honneth. Ao contrário, sociologia e psicanálise, submetidas ao crivo da dialética de Adorno, servem à crítica da reificação (cf. Rouanet, 2001Rouanet, Sérgio Paulo. (2001). Teoria crítica e psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., p. 120; Honneth, 1991Honneth, Axel. (1991). The critique of power: reflexive stages in a critical social theory. Cambridge (Mass): MIT Press.).
  • 9
    Mesmo quando empenhado em pesquisas empíricas, Adorno não se detinha perante a coleta dos dados. Eles devem ser submetidos a análise, teoricamente orientada. Conforme destacou Cohn (1998: 12)Cohn, Gabriel. (1998). Esclarecimento e ofuscação. Adorno e Horkheimer hoje. Lua Nova, 43., “a principal contribuição de Adorno à pesquisa empírica consiste na valorização dos recursos analíticos que permitam atingir por vias indiretas as condicionantes sociais das atitudes, das ações e das formas de pensamento em contextos determinados”.
  • 10
    No original: In Amerika existiert ein außerordentlich verbreitetes Buch „Great Symphonies”, von Sigmund Spaeth). Es ist hemmungslos auf ein halbgebildetes Bedürfnis zugeschnitten: das, dadurch sich als kultiviert auszuweisen, dass man die im Musikbetrieb ohnehin unausweichlichen Standardwerke der symphonischen Literatur sofort erkennen kann.
    Die Methode ist die, dass den symphonischen Hauptthemen, zuweilen auch nur einzelnen Motiven daraus, Sätze unterlegt werden, die sich darauf singen lassen und die nach Schlagerart die betreffenden musikalischen Phrasen einprägen.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2018
  • Revisado
    18 Nov 2018
  • Aceito
    21 Jan 2019
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