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EXPERIÊNCIAS EDITORIAIS LATINO-AMERICANAS E A CRIAÇÃO DE UM CIRCUITO INTELECTUAL AUTÔNOMO

Sorá, Gustavo. . (2017). Editar desde la izquierda en América Latina: la agitada historia del Fondo de Cultura Económica y de Siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores.

O universo intelectual de vários países latino-americanos foi marcado, a partir da década de 1930, por um processo de diferenciação das ciências sociais e humanas em que disciplinas como sociologia, antropologia, política e economia começaram a se institucionalizar e trilhar caminhos autônomos. Foi nesse contexto que um grupo de economistas mexicanos propôs à prestigiosa editora espanhola EspasaCalpe a criação de uma coleção voltada para a formação universitária de especialistas que pudessem intervir na administração do Estado após a revolução de 1910. A resposta de José Ortega y Gasset, um dos principais articuladores das decisões editoriais da empresa, foi fundamental para os rumos intelectuais da região: no dia em que os latino-americanos tivessem alguma interferência nas atividades editoriais da Espanha, afirmou o filósofo, a cultura daquele país e de todos os outros de língua espanhola, “se volvería una cena de negros” (p. 25). A impossibilidade de propor uma seleção própria de traduções está na origem da criação, em 1934, da editora Fondo de Cultura Económica, fundamental na consolidação das ciências sociais na região.

A anedota, que funciona como ponto de partida narrativo de Editar desde la izquierda en América Latina: la agitada historia del Fondo de Cultura Económica y de Siglo XXI, novo livro do antropólogo argentino Gustavo Sorá, é reveladora dos obstáculos e aspirações que fizeram parte dos empreendimentos culturais da região no século XX. Tomando como eixo central da análise o duplo movimento de unidade e fragmentação do espaço editorial ibero-americano, o livro remonta o contexto de criação da editora mexicana Fondo de Cultura Economica, seus primeiros anos de funcionamento sob a direção de Daniel Cosío Villegas, sua sucessão pelo argentino Arnaldo Orfila Reynal e o embate político que resultou na criação da editora Siglo XXI.

A obra surge na sequência de uma série de outras publicações do autor, que vem contribuindo para a consolidação da sociologia histórica do livro e da edição. No cerne desse campo de pesquisa está a concepção de que a edição de livros e demais formas de materialização e circulação de ideias, diferente do que pretende a crença romântica do trabalho intelectual como atividade transcendental, desempenha papel fundamental na configuração do universo intelectual e no estabelecimento de uma esfera pública. A publicação em 1957 de L'apparition du livre, de Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, pode ser entendida como o marco moderno das pesquisas sobre o livro e a edição, mas é somente na década de 1980, entretanto, que passam a ser realizados estudos com mais regularidade, podendo-se falar na constituição de um campo de pesquisas propriamente dito.

A publicação em 1985 de O livro no Brasil (sua história), tese de doutoramento do bibliotecário inglês Laurence Hallewell (2005)Hallewell, L. (2005). O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Edusp., é vista como um marco na inauguração desse debate em âmbito nacional. Gustavo Sorá torna-se referência na consolidação desse campo de estudos ao defender em 1998, no Departamento de Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sua tese de doutoramento, que viria a ser publicada posteriormente em livro, pela Edusp, com o título Brasilianas: José Olympio e a gênese do mercado editorial brasileiro (Sorá, 2010Sorá, G. (2010). Brasilianas: José Olympio e a gênese do mercado editorial brasileiro. São Paulo: Edusp /Com-Arte.), em que aborda o protagonismo do editor na organização da cultura brasileira, chamando atenção para aspectos do mercado editorial até então ignorados na discussão sobre a consolidação do cânone literário nacional.

Outra contribuição fundamental foi a obra Traducir el Brasil: una antropología de la circulación internacional de ideas, publicada pela Libros del Zorbal, em que Sorá (2003)Sorá, G. (2003). Traducir el Brasil: una antropología de la circulación internacional de ideas. Buenos Aires: Libros del Zorbal. aborda a tradução como uma das dimensões centrais dos debates culturais, apontando as dificuldades de implementação de um fluxo satisfatório de trocas intelectuais entre Brasil e Argentina como fator explicativo para um certo distanciamento simbólico entre os países vizinhos. A necessidade de que os diálogos regionais passem por filtros de outros mercados internacionais - como os da Feira de Frankfurt, por exemplo - é reveladora do processo em questão.

É na esteira dessas preocupações, e fruto de uma pesquisa que vem se desdobrando há mais de uma década, que se pode localizar seu novo livro Editar desde la izquierda en América Latina. A obra apresenta sensibilidade transnacional bastante alinhada às recentes discussões sobre a geopolítica do conhecimento, com o diferencial de que toma o universo editorial como objeto privilegiado de análise, destacando a importância de se compreender as dinâmicas de inscrição e circulação de ideias na configuração de uma comunidade intelectual.

Contando com memórias, cartas, entrevistas, etnografia e catálogos editoriais, o livro está dividido em nove capítulos e conta com distintos níveis de análise, o que possibilita a apresentação de um extenso material de pesquisa − embora faça falta, em alguns momentos, mais coesão entre as abordagens. A trajetória de Cosío Villegas, tema do primeiro capítulo intitulado “Tierra firme para un intelectual: la trayectoria de Daniel Cosío Villegas, como miniatura mexicana”, possibilita reconstituir a criação da editora, criada em 1934 com o apoio do governo mexicano, e analisar o processo de diferenciação das esferas da cultura e da política no México da primeira metade do século XX.

A análise do catálogo da editora e de fontes secundárias é o que possibilita avançar na compreensão da configuração da empresa e na importância que teve na região, como se pode ver no segundo e terceiro capítulos, intitulados “Antecedentes, inicios y perfil del Fondo de Cultura Económica” e “Misión de la edición para una cultura en crisis”, respectivamente. Se nos primeiros anos a editora esteve muito voltada para a disciplina econômica, com grande foco na revista El Trimestre Económico e nos livros didáticos para cursos universitários, a partir de 1939 teve uma expansão dos seus interesses, contando, em grande medida, com a contribuição de intelectuais republicanos espanhóis exilados da Guerra Civil. Um dos marcos desse período é a coleção Tierra Firme, que publicou obras fundamentais do pensamento latino-americano, consolidando uma sensibilidade regional que já estava na raiz do projeto editorial.

As publicações em ciências sociais, tais como Ideologia e utopia (1941), de Karl Mannheim, Economia e sociedade (1944), de Max Weber, ou O capital (1946), de Karl Marx, tiveram papel preponderante na consolidação da editora. Como esclarece Antonio Candido − em depoimento dado em 1991 e transcrito no livro −, nos anos 1930, 1940 e 1950 não se contava ainda com suficiente bibliografia nas áreas de ciências sociais e humanas no Brasil, e a Fondo de Cultura Económica contribuiu com os grandes textos de filosofia, sociologia, economia, antropologia, história, teoria da arte e literatura (Sorá, 2017: 77) necessários à formação dos alunos. É de notar, dessa forma, a importância que a editora teve no processo de diferenciação e institucionalização das ciências sociais e humanas na América Latina, possibilitando o acesso a textos canônicos que só se dava, até então, nas línguas originais e a partir de custosas importações.

A fundação da sucursal portenha, em 1945, marcou o início da expansão da editora pela região, cuja filial ficou sob a direção de Arnaldo Orfila Reynal, editor e militante socialista que participou ativamente da Reforma Universitária de 1918 na Argentina e cuja biografia é tema do quarto capítulo intitulado “Química de la edición: vocación, linaje y alianzas de Orfila”. A direção geral da FCE ficaria sob sua responsabilidade a partir de 1948, momento em que se inicia estrita profissionalização da atividade editorial na região e se amplia uma sensibilidade política de esquerda nas publicações da editora, que passaria a contar com filiais também em Santigo (1954), Lima (1961) e Madri (1963).

A Revolução Cubana funcionou como um elemento a mais de radicalização no ambiente já bastante polarizado por conta da Guerra Fria. O catálogo da editora, que já se notabilizava pelos títulos de ciências sociais e das correntes críticas de pensamento, ganhou novo destaque com obras de apoio às mudanças ocorridas no país caribenho, como no caso, por exemplo, de Escucha, Yanque, do sociólogo C. W. Mills, em 1961. A publicação de Los hijos de Sanchez, etnografia do antropólogo norte-americano Oscar Lewis sobre famílias pobres mexicanas, em 1964, serviu como gota d’água para a expulsão, por iniciativa do governo mexicano, do diretor da FCE. Acusado de “estrangeiro comunista” (Sorá, 2017: 146) e afastado do seu cargo, Orfila Reynal recebeu o apoio e solidariedade de centenas de intelectuais que possibilitaram material e simbolicamente a criação da editora Siglo XXI, cuja história é contada nos quinto e sexto capítulos, “Un ejército de quinientos intelectuales funda Siglo XXI” e “Historia de un Siglo: una empresa cultural ibero-americana”, respectivamente. A nova editora em pouco tempo já ocupava posição de destaque nas ciências sociais e humanas e na literatura latino-americanas.

Uma faceta importante da atividade de edição é tratada nas cartas trocadas entre Orfila Reynal e o escritor argentino radicado em Paris Júlio Cortázar, analisadas no sétimo capítulo, “La vuelta al libro en ochenta cartas: Cortázar, Orfila e el contrapunto editorial de la composición literária”. Embora o nível de detalhe com que as cartas são analisadas pareça deslocado do restante da obra, elas dão conta de revelar a forma como se estabelece a negociação de um livro, em que estão em jogo os custos financeiros, a expectativa de retorno do investimento, o formato e projeto gráfico, conteúdo do texto, revisão, diagramação, meio de divulgação e demais saberes especializados relacionados à figura do editor.

A abertura da sucursal argentina em 1971, como descrito no oitavo capítulo, “Siglo XXI de Argentina: signos de um passado presente”, viria dar vazão à euforia revolucionária que tomou conta do continente e parecia servir de contraponto ao cerco cultural e político que se fechava com a instauração de ditaduras militares em países como Brasil, Chile e Uruguai. O golpe argentino de 1976, entretanto, foi fatal para as pretensões de integração regional do empreendimento, restando as sedes no México e na Espanha que, entretanto, passaram a atuar de forma isolada, como descrito no último capítulo, “Fragmentos de Siglo”.

Forjadas como resposta às dificuldades de criação de agendas autônomas de discussão intelectual na região, as trajetórias erráticas das editoras Fondo de Cultura Económica e Siglo XXI são reveladoras dos obstáculos que se impõem na consolidação desses projetos. A emergência de governos autoritários nas décadas de 1960 e 1970 e, posteriormente, as políticas neoliberais dos anos 1990 contribuíram para a manutenção de um cenário de fragmentação do espaço editorial ibero-americano. Ao destacar esses aspectos, Gustavo Sorá contribui para identificar as editoras como agentes fundamentais na circulação de conhecimento e, consequentemente, na configuração de uma comunidade intelectual com capacidade de impor suas próprias agendas de discussão e resolução de problemas, questão central na pauta dos debates contemporâneos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Hallewell, L. (2005). O livro no Brasil: sua história São Paulo: Edusp.
  • Sorá, G. (2010). Brasilianas: José Olympio e a gênese do mercado editorial brasileiro São Paulo: Edusp /Com-Arte.
  • Sorá, G. (2003). Traducir el Brasil: una antropología de la circulación internacional de ideas Buenos Aires: Libros del Zorbal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2018
  • Revisado
    15 Jun 2018
  • Aceito
    31 Out 2018
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