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Ricardo Lísias - Artes plásticas São Paulo: Edição do Autor, 2010. Fisiologia da solidão (plaquete) Rio de Janeiro: Espectro Editorial, 2010.

Lísias, Ricardo. - Artes plásticas São Paulo: Edição do Autor, 2010.
Lísias, Ricardo. - Fisiologia da solidão (plaquete) Rio de Janeiro: Espectro Editorial, 2010.

Dois textos recentes de Ricardo Lísias, com naturezas semelhantes - não se trata exatamente de dois livros - chegaram pelo correio, recentemente, um depois do outro. O primeiro deles, Fisiologia da solidão, uma plaquete editada pela Espectro, parece um pequeno ensaio sobre o processo de criação, mas deve ser, digamos com certa prudência, um conto; e o segundo, Artes plásticas, enviado pelo próprio autor, que chegou dentro de um envelope azul, impresso em folhas de formato A4, todas soltas - há sempre o risco de embaralhar a sequência e remontar a narrativa - com um selo, um carimbo, um cartaz, um timbre, uma notícia de jornal, enfim, tudo também deve formar um conto.

O correio, neste caso, é o caminho mais provável - ou, a rigor, o único caminho possível - de circulação; em outras palavras, o correio torna-se uma espécie de suplemento do próprio texto, um excesso que já constitui sua ficção: a mediação é a mensagem. É certo que em Artes plásticas o processo da circulação por correspondência é ainda mais importante, já que o conto tematiza, expõe - manipulando, inclusive, um timbre dos Correios - e mimetiza, portanto, o circuito em que está inserido; mas no caso de Fisiologia da solidão, editado por um selo essencialmente de poesia, com apenas 80 exemplares, todos carimbados, a circulação alternativa também procura uma imagem que está no nome do projeto editorial: a imagem do fantasma. Enfim, a circulação restrita, o envio pessoal, a construção artesanal do suporte, tudo parece mover-se como parte de um projeto poético - de autoria, mas também de edição.

Artes plásticas tem uma espécie de enredo muito vago, dividido em duas partes, que possuem algumas relações entre si, mas também diferenças fundamentais. Na primeira parte, depara-se com um artista plástico falando sobre um processo mais ou menos fracassado de construção de um objeto, uma pasta; na segunda parte, impressa em folhas amarelas, o leitor tem contato com uma série de documentos do publicitário João Tobias - e-mails, um telegrama, a notícia de sua morte, o resumo de um projeto de documentário que pretende tratar da “ascenção [sic] dos governos da esquerda bolivariana na América do Sul”, entre outros - que também exibe a sua maneira, em forma de pastiche acadêmico, um processo fracassado; em e-mail a um professor da USP, por exemplo, Tobias escreve: “Obrigado por ter lido o meu projeto de mestrado sobre as esquerdas bolivarianas com tanta rapidez. Devo dizer que a sua recusa incondicional me decepcionou um pouco. Peço que o senhor reconsidere”. Na primeira parte, o leitor é levado a acreditar, através de uma série de pistas incertas - sabe-se que Ricardo Lísias joga xadrez, por exemplo - que quem enuncia é o próprio escritor; na segunda, está mais claro que se trata de uma ficção, embora paradoxalmente seja realizada inteiramente com documentos.

A literatura de Ricardo Lísias parece dedicada, de modo geral, a enfrentar um embate difícil com a escrita: a reinvenção constante do próprio estilo a partir, necessariamente, dos lugares onde o enredo está inserido. Explico: se seu livro anterior, por exemplo, O livro dos mandarins, trata da vida no mundo corporativo, de todo o imaginário que cerca este mundo, então a própria escrita terá uma aparência fria, eu diria, um ritmo direto e circular, quase documental. Isto pode ser dito com exemplos mais sutis. Paulo, o personagem principal do romance, na medida em que é distinguido por suas qualidades profissionais, recebe asteriscos em seu nome, que são incorporados na própria escrita: Paul*, Pau**, Pa***, P****, até que seu nome desapareça:*****. De outro modo, a maioria dos personagens tem nomes semelhantes: Paulo, Paula, Paul, seu Paulo, Paulinho, Pauling, Paulson, Paolo, Pauline, dona Paula. O recurso é eficiente pelo que silencia: no mundo das grandes corporações, todos são mais ou menos iguais.

A escrita, neste caso, mimetiza os estereótipos pelos quais os personagens são representados; apropria-se dos jogos sociais como um ready-made. Em sentido mais estrito, enquanto estilo de escrita que nasce de uma série de apropriações sociais, Ricardo Lísias elabora, de fato, uma espécie de geografia. O estilo deve ser pensado como estilete, portanto: algo que age sobre uma superfície; e não pela via da estética, da boa escrita - há trechos de cartas com erros de ortografia, por exemplo, certamente colocados ali com um propósito. Trata-se de uma literatura difusa porque é como se a escrita se espalhasse, neste caso, abrisse espaço. Em uma fórmula, o embate consiste exatamente na relação complexa - pois nem sempre é correspondente - entre o que se diz e o modo como se diz. Por sua vez, Artes plásticas radicaliza o procedimento na medida em que inclui na fórmula uma terceira força: as condições em que se diz.

Que espécie de texto, afinal, é Artes plásticas? Eu diria que se trata de uma instalação; neste caso, uma instalação no próprio espaço do livro, que se modifica então e se excede. O paralelo não é novidade: como sistema moderno de normas, o cubo branco está para a arte contemporânea como o livro para a literatura. É como se o discurso romanesco não coubesse mais nos limites - materiais, mas também simbólicos - que o livro impõe. Se a arte contemporânea parece sempre mais versátil do que a literatura no que se refere à variação de seus procedimentos, principalmente se tratando de uma arte de vanguarda, a literatura de Ricardo Lísias entende que uma aproximação com as artes plásticas - e o seu título não nos diz outra coisa - pode resultar profícua. E resulta profícua em um sentido bastante pontual: no apagamento do autor, através de um sistema complexo de montagens, enquanto agente organizador de um discurso seguro. Deve-se perguntar: na apropriação e na montagem, a voz é de quem? - quem diz? - onde está o autor?

Tanto em Artes plásticas quanto em Fisiologia da solidão, os gêneros de escrita - no primeiro, por exemplo, aparece autobiografia, memória, cartas, notícias, ensaios, cartazes, recibos e até discursos com efeito de ficção - estão em contínuo deslize e associação. Soma-se o fato de que não há categoria bibliográfica que possa estabilizar seus lugares, ou seja: em nenhum espaço está registrada, como acontece com o sistema de livros, por exigência jurídica, a natureza dos textos. Seja como for, ambos os textos abrem com um discurso em primeira pessoa que faz referência direta ao próprio escritor. Em Fisiologia da solidão, ainda mais: “Eu escrevo por dois motivos principais e por uma infinidade de outros, bem menos importantes” (p. 5) - sendo que na sequência ainda se faz coincidir a ficção com sua própria biografia: “Escrevi, na cidade em que eu achava que a garota tinha descido, a última versão da minha novela Dos nervos” (p. 10). Mas o mesmo recurso é usado em Artes plásticas: “Em 1988, eu tinha 13 anos e, ao vencer o Campeonato Pan-Americano de Xadrez Infanto-juvenil, obtive uma vaga para participar do Mundial da mesma categoria”. Será verdade? Pouco importa. Seja como for, Ricardo Lísias deve ser lido com os dois pés atrás.

O que acontece é que, aos poucos, o que era documento - ou seja, o que fazia coincidir as palavras e as coisas, digamos - torna-se falsificação, pura armadilha. Não é em vão que Ricardo Lísias, em suas entrevistas, em uma posição que julgo ética, evite dar pistas sobre a natureza de sua literatura. Neste sentido, aliás, as literaturas de Lísias e de Veronica Stigger, autora de Os anões, entre outros livros, com estratégias provavelmente distintas, encontram semelhanças que nos remetem a Machado de Assis. Em seu texto sobre Stigger, o crítico Alexandre Nodari, publicado no panfleto virtual Sopro, ao reivindicar uma relação bastarda com Machado, enfatiza justamente “uma nascente forma da linguagem que prescinde de sua relação tanto com as coisas, quanto com a verdade, de um novo tipo de enunciado que não diz mais respeito a quem enuncia ou ao local de enunciação”. Na literatura de Lísias se passa exatamente isso: uma relação segura entre linguagem e objeto é sugerida apenas para que possa, com uma espécie de manipulação da posição do leitor, entrar em colapso no momento seguinte. Daí as repetições; as novas tentativas; os fracassos. Chega um momento em que seu texto passa a impressão de algo que, mesmo desligado, segue girando.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2011
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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