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Carta branca: embates entre a voz emergente e a escrita circunscrita

Carte blanche: controversies between emergent voices and confined writing

Carta blanca: oposiciones entre la voz emergente y la escrita circunscrita

resumo

Neste artigo é traçado um panorama geral de um movimento literário contemporaneamente observado no Brasil, comumente identificado como literatura indígena. Inicialmente, levantam-se alguns questionamentos referentes a essa literatura a partir da leitura antropológica de Gell e Danto acerca das idiossincrasias da obra de arte indígena e das questões concernentes a sua recepção no Ocidente. Referencia-se, ainda, a aplicabilidade das considerações sobre a literatura indígena norte-americana empreendidas nos anos 1980 por Roemer. Por fim, a partir da análise de corpus composto por 13 obras indígenas brasileiras, apresentam-se suas principais características e realiza-se o levantamento de uma série de reflexões, ora pautadas nas teorias pregressas dos autores mencionados e, portanto, abrangentes, ora exclusivamente pertinentes à questão nacional.

Palavras-chave:
literatura indígena; literatura brasileira; literatura contemporânea; antropologia da escrita

abstract

The aim of this article is to present a general view about a new phenomenon observed in Brazilian literature, generally referred to as “Indigenous Literature”. Firstly, the article poses some questions about this type of writing using the anthropological concepts by Gell and Danto in their discussions about the idiosyncrasies of indigenous art, as well as the differences in its reception in the Western World. Moreover, the applicability of Roemer’s questions about North American Indigenous’ literature is also discussed. At last, a corpus composed by thirteen Brazilian indigenous books is analyzed in order to present its major characteristics and, finally, the essay proposes several reflections about the theme. Several of these reflections are based on the theories of the above cited authors, as applied to the Brazilian context.

Keywords:
Indigenous literature; native Brazilian literature; contemporary literature; anthropology

resumen

En este trabajo se dibuja un panorama general de un fenómeno literario contemporáneo en Brasil, generalmente identificado por la nomenclatura de literatura indígena. Primero, son presentados algunos cuestionamientos acerca de esta literatura a partir de la lectura antropológica emprendida por Gell y Danto acerca de las idiosincrasias de la obra de arte indígena y de las cuestiones referentes a su aceptación en Occidente. Se referencia, aún, la aplicación de las consideraciones hechas en los años 80 por Roemer cuando éste estudió la literatura de los indígenas estadunidenses. Por fin, a partir del análisis de corpus compuesto por trece libros escritos por indígenas brasileños, son presentadas sus principales características y son propuestas una serie de reflexiones, unas respaldadas en las teorías anteriormente exhibidas - y por tanto, generales - y otras pertinentes exclusivamente al caso brasileño.

Palabras-clave:
literatura indígena brasileña; literatura brasileña; literatura contemporánea; antropología de la escritura

Os poucos estudos ainda existentes sobre a recente literatura indígena brasileira parecem oscilar entre duas perspectivas antagônicas: ora enaltecem o processo de escrita dos povos ameríndios, escrita esta que supostamente conferiria uma possível autonomia a esses povos; ora se concentram nas problemáticas referentes à avaliação dessas obras por meio de critérios culturalmente deslocados de seu centro de produção. Acreditamos na importância de se adotar uma leitura parcimoniosa sobre o tema, jamais desmerecendo o papel afirmativo da literatura recentemente publicada pelos povos ameríndios, porém evitando-se, na mesma medida, recair em lapsos idílicos. As reflexões acerca das limitações impostas ao movimento literário indígena brasileiro não podem ser abandonadas e devem ser revistas com cautela.

Pretendemos então, neste artigo, apontar algumas das idiossincrasias existentes na produção literária ameríndia e correlacioná-las, quando for o caso, a possíveis problematizações que emergem quando essas obras são lidas à luz do contexto ocidental. Realizaremos, além disso, o estudo comparativo entre 13 obras de autoria indígena. Nesse levantamento, serão observados aspectos estéticos de cada livro pertinentes à escrita e à própria editoração. Objetiva-se, assim, propor reflexões ainda não devidamente empreendidas acerca desse nascente movimento literário.

Inicialmente, é preciso assumir que muitos dos dilemas levantados pelos estudiosos quanto às produções artísticas dos povos ameríndios esbarram em obstáculos epistemológicos inerentes à própria teorização ocidental, e não necessariamente insurgidos pela discussão referente à imanência de obras pertencentes a culturas distintas. Citamos a controvérsia que diz respeito à circunscrição ou não das narrativas orais indígenas sob a nomenclatura literatura. Ora, a impossibilidade de definir o que venha a ser a literatura para a nossa sociedade já fora posta por diversos teóricos, entre os quais citamos: Compagnon (1999COMPAGNON, Antoine (1999). O demônio da teoria: literatura e o senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: UFMG., p. 34), para quem “o termo literatura tem, pois, uma extensão mais ou menos vasta segundo os autores [...] e é difícil justificar sua ampliação contemporânea”; Eagleaton (2003EAGLEATON, Terry (2003). Teoria da literatura: uma introdução. 6. ed. Tradução de Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes., p. 15), segundo o qual “qualquer ideia de que o estudo da literatura é o estudo de uma entidade estável e bem definida [...] pode ser abandonada como uma quimera”; e Culler (1999CULLER, Jonathan (1999). Teoria literária: uma introdução. Tradução de Sandra G.T Vasconcelos. São Paulo: Becca. , p. 29), o qual entende que “assim que começamos a pensar nas culturas não europeias, a questão do que conta como literatura se torna cada vez mais difícil”.

No que tange às querelas referentes à literatura indígena especificamente, estas são ainda embrionárias, devido à extrema contemporaneidade das publicações assinadas por seus autores. Buscamos, portanto, apoio reflexivo em discussão bem mais antiga, empreendida com vigor a partir da década de 1970, cujo questionamento refutava a pertinência da teoria ocidental como instrumento adequado para referenciar a obra de arte não ocidental. Entre inúmeros pesquisadores que se debruçaram sobre esse tema, ganharam destaque os nomes de Alfred Gell e Arthur Danto, que empreenderam o debate sobre as possíveis distinções entre arte e artefato.2 2 A esse respeito, recomendamos a leitura do capítulo “Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas”, de Els Lagrou (2009). Aparentemente, o florescimento dessa polêmica era inevitável, uma vez que, no campo das artes plásticas, são visíveis as discrepâncias culturais que delimitam os parâmetros sobre os quais edificamos nossos conceitos estéticos. No campo da literatura, no entanto, lidamos com um objeto menos palpável, de tal modo que a existência da escrita como instrumentalização dos relatos orais indígenas parece garantir um imediato status literário para essas produções, que passam a ser submetidas, então, a leituras que não as distinguem das obras ocidentais.

Em virtude desse fato, enterram-se reflexões possíveis sobre o tema e escamoteiam-se divergências que mereciam ser discutidas para além do âmbito das obviedades. Graças ao embate entre Danto e Gell, observamos que a produção artística dos ameríndios está intricada à visão de mundo desses povos, pondo em xeque nosso próprio conceito de arte, fazendo-nos assumir que as concepções que adotamos estão circunscritas a nossa cultura e que são, por isso, crenças limitadas. Nesse sentido, Lagrou (2009LAGROU, Els (2009). Arte indígena do Brasil: agência, alteridade e relação. Belo Horizonte: C/Arte.) inicia seu livro Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação lembrando o leitor de que os povos por ela estudados não compartilhavam de nenhuma noção de arte análoga à de nossa sociedade, não havendo em seus idiomas formação lexical que pudesse traduzir esse conceito.

De igual maneira, assumimos que a palavra literatura, para além de, conforme apontado anteriormente, encerrar uma ideia ocidental permeada por controvérsias teóricas, possui étimo recente que remonta ao século XVIII. A literatura, portanto, é um conceito novo e maleável, cujo sentido se transfigura ao longo da história, reconhecendo-se, atualmente, a inclusão das narrativas orais como um gênero literário específico. No caso da escrita empreendida por indígenas, não podemos ignorar a interseção contundente com a literatura oral, residindo aí uma primeira diferença que salta aos olhos quando comparamos esse tipo de produção com as obras ocidentais. As constantes marcas de oralidade e as referências aos contos mitológicos tradicionalmente passados entre gerações por meio da fala foram notadas por Kenneth M. Roemer (1983ROEMER, Kenneth, M (1983). Native American oral narratives: context and continuity. In: SWANN, Brian (Ed.). Smoothing the ground: essays on native American oral literature. Londres: University of California Press.) quanto ao estudo da literatura ameríndia norte-americana. Para o autor, os traços de oralidade registrariam uma particularidade cultural: nessas sociedades, o contador de histórias possui um papel relevante para a manutenção da coesão social.

As observações feitas por Roemer podem ser transpostas à realidade ameríndia brasileira, porque, à semelhança dos povos nativos norte-americanos, os indígenas de nosso território também têm nos contos orais um elemento cultural marcante. Na obra Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória, Daniel Munduruku relembra que, na aldeia de seu avô, o grupo se reunia ao findar da tarde para ouvir as histórias narradas por alguns anciãos:

A primeira lembrança que carrego comigo é da escuridão da noite. As noites eram muito escuras, e toda a iluminação era feita pelas fogueiras acesas em frente das casas e pelas poucas lamparinas a querosene, uma inovação para nós. A gente se sentava diante das casas dos parentes e ficava horas a ouvir histórias contadas pelos velhos e velhas da aldeia. Algumas histórias eram horripilantes e davam medo de ouvir. Elas falavam dos seres da floresta que gostavam de brincar com os humanos (Munduruku, 2009MUNDURUKU, Daniel (2009). Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória. 3. ed. São Paulo: Studio Nobel., p. 13).

Pelo relato de Munduruku, depreende-se que, em sua aldeia, o papel de contadores de histórias era desempenhado principalmente pelos idosos, que, devido a essa função, ganhavam status e notoriedade diante dos membros mais jovens. É certo que outros grupos possuem suas especificidades em relação aos contadores de história e seria preciso revisar a vasta literatura etnográfica disponível a fim de compreendermos o papel dos narradores orais em cada uma das muitas etnias existentes. De todo modo, é certo que as narrativas orais, aqui entendidas também como literatura, possuem papel diferente daquele desempenhado em nossa sociedade. Também é relevante frisar que, muito embora esses atos de fala estejam associados aos idosos por serem esses referenciados à memória e à sabedoria dos grupos aos quais pertencem, é notório que, nas sociedades ameríndias, os papéis sociais são praticados em maior ou menor frequência por vários de seus membros e, diferentemente do que ocorre no modo de produção capitalista, não há especialização do trabalho, o que se aplica com relação à confecção dos artefatos e, arriscamos afirmar, muito possivelmente também à narração de histórias:

Na maior parte das sociedades indígenas brasileiras o papel de artesão/artista não constitui uma especialização. Se a técnica em questão compete às pessoas de seu gênero, cada membro da sociedade pode se tornar um especialista na sua realização. Porém, sempre há os que se sobressaem, estes são considerados “mestres” (Lagrou, 2009LAGROU, Els (2009). Arte indígena do Brasil: agência, alteridade e relação. Belo Horizonte: C/Arte., p. 17).

Muito embora existam livros indígenas produzidos nas línguas nativas para uso didático dentro das escolas indígenas, os livros de autoria indígena vendidos para não indígenas são, em muitos casos, registros impressos em língua portuguesa da literatura oral desses povos. Neste tipo de situação, estamos diante de uma adaptação ou tradução cultural que, como tal, estará sujeita às contradições inerentes a esse processo. O conceito de tradução cultural foi inicialmente cunhado por Burke (2009BURKE, Peter; HSIA, Ronnie Pochia (Org.) (2009). A tradução cultural nos primórdios da Europa moderna. Tradução de Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Unesp. , p. 152), ao notar que as traduções empreendidas ao longo da história europeia atendiam “às necessidades, aos interesses, aos preconceitos e às maneiras de ler da cultura-alvo, ou pelo menos de alguns grupos dentro dela”. No entanto, foram outros autores que melhor trabalharam as controvérsias pertinentes a esse tema. Citamos Venutti e seu livro Escândalos da tradução, no qual o autor demonstra que as obras selecionadas para serem traduzidas seguem estratégias de construção de cânones estrangeiros muitas vezes adaptados às necessidades e valores estéticos da cultura dominante. As escolhas acerca de quais obras traduzir, dentro de uma opção infindável de possibilidades, não podem ser, como era de se esperar, aleatórias ou “ingênuas”.

Outra questão levantada pelo referido pesquisador é o fato de que os textos de línguas estrangeiras são não apenas traduzidos, mas geralmente reescritos em conformidade com os desejos da cultura que irá consumi-los, surgindo, assim, uma série de estereótipos culturais e estigmas referentes aos grupos étnicos minoritários ou estrangeiros. Estudando o caso dos livros japoneses traduzidos nos Estados Unidos durante a Guerra Fria, por exemplo, Venutti afirma que “O cânone da língua inglesa referente à ficção japonesa funcionou como um apoio cultural doméstico para as relações diplomáticas americanas no Japão, que também se destinava a conter o expansionismo soviético no Leste” (Venutti, 2002VENUTTI, Lawrence (2002). Escândalos da tradução. Tradução de Laureano Pelegrin, Lucineia Villela, Marileide Esqueda e Valéria Biondo. Bauru: Edusc., p. 140).

Em reflexão sobre a tradução na escrita indígena brasileira, Antônio Risério contesta, inicialmente, a suposta “fidelidade” proclamada pela escrita etnológica por muitos anos quanto à tradução das culturas ameríndias: “não devemos abolir a diferença específica das formas textuais indígenas, transformando-as sistematicamente em contos de fadas ou no que quer que seja” (Risério, 1993RISÉRIO, Antônio (1993). Textos e tribos: poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros. Rio de Janeiro: Imago., p. 115). Risério defende que essa tradução fiel dos textos indígenas é uma impossibilidade diante das discrepâncias culturais e chama atenção para o fato de que o próprio conceito narrativo de outros povos não condiz com nossas expectativas literárias. No caso dos caiapó, por exemplo, estes apenas esboçariam os textos, não havendo necessidade de finalizar a narrativa em todos os casos. Para o autor, a própria transposição do registro oral para o escrito cria um obstáculo similar ao da tradução entre línguas que, no entanto, “não destrói simplesmente o texto”, pois “as diferenças entre composições verbais letradas e iletradas são diferenças reais, mas menores do que geralmente se costuma supor” (Risério, 1993RISÉRIO, Antônio (1993). Textos e tribos: poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros. Rio de Janeiro: Imago., p. 118).

Embora não utilize o termo “tradução” para se referir às adaptações realizadas sobre as narrativas ameríndias norte-americanas, Roemer se mostra cético a respeito da transposição da estética oral ameríndia para um tipo de suporte alienígena - o papel: “As histórias dos nativos norte-americanos não foram criadas para serem lidas em antologias. Elas foram e continuam sendo interpretadas por respeitados contadores de histórias” (Roemer, 1983ROEMER, Kenneth, M (1983). Native American oral narratives: context and continuity. In: SWANN, Brian (Ed.). Smoothing the ground: essays on native American oral literature. Londres: University of California Press., p. 45, tradução nossa).

Seguindo esse raciocínio, o autor propõe que novos recursos sejam utilizados, a fim de se aproximar a textualidade dos aspectos performáticos e teatrais da interpretação oral, a exemplo do antropólogo norte-americano Dennis Tedlock, que fez uso de inovações estéticas nas publicações que coordenou, tais como a repetição de letras e sílabas e a inserção de fontes tipográficas distintas para marcar na escrita o que corresponderia a mudanças tonais na fala. Roemer conclui que essas adaptações se aproximam de uma representação cultural mais apropriada, embora não substituam a importância da manutenção dos contadores de histórias indígenas quanto à preservação de suas próprias culturas.

De maneira semelhante a Roemer, mas tomando rumo pertinente ao contexto nacional, encetamos aqui uma reflexão que julgamos necessária para todos aqueles que se propõem a pesquisar o fenômeno literário de produções assinadas por autores indígenas: pensar o quanto estas obras subjazem às necessidades mercadológicas contemporâneas, pois, muito embora se afirme que hoje o indígena pode falar, é preciso não fechar os olhos para o fato de que essa fala ainda se encontra subscrita pela vontade dos donos do poder. O indígena, aliás, jamais deixou de falar. Ao longo de mais de 500 anos de opressão, cada indivíduo manteve dentro de suas comunidades sua comunicação e sua expressão mais ou menos acessível aos demais povos, a depender de cada caso. A mudança, portanto, não está na fala do indígena e sim na recente abertura de escuta da sociedade ocidental - hoje mais interessada em conhecer os povos ameríndios e aceitá-los desnudos dos estereótipos com os quais foram vestidos, estereótipos estes que contribuíram para o processo de dizimação colonial maculadora da história das Américas. De igual modo, a literatura indígena sempre existiu através da transmissão oral e somente agora, com certo atraso, os brancos3 3 Adotamos esse termo eventualmente ao longo do texto, mas sempre em tom de licença poética e em significância análoga à empregada pelos povos indígenas, isto é, “branco” na acepção desse contexto deve ser lido como sinônimo de “não indígena”. “descobrem-na”.

Se o indígena pode “falar” ou, como dissemos, se o não indígena começou a autorizar tal fala, o que teria proporcionado essa ruptura e o surgimento de uma nova consciência? Atrelamos a emergência da literatura indígena à evolução das ciências antropológicas e ao fortalecimento dos movimentos sociais ligados à causa ameríndia, sendo, nesse sentido, politicamente correlata à literatura marginal brasileira, embora cada um dos movimentos tenha especificidades sobre as quais não nos cabe realizar digressões neste trabalho. Não defendemos que o espaço hoje ocupado pelo indígena tenha sido uma mera concessão. Muito pelo contrário, acreditamos na relevância do movimento político indígena como instrumento de conquistas decisivas. No entanto, enxergamos que as negociações do Estado brasileiro com relação às demandas propostas pelos ameríndios ainda se dão por meio de políticas impositivas que relegam a esses povos verdadeiras “migalhas jurídicas”.4 4 Calcamos nossa opinião por meio da leitura de documentos públicos a esse respeito bem como nas declarações dos próprios indígenas. Citamos editorial publicado na internet pelo advogado Luiz Henrique Eloy, da etnia Terena, na qual expõe que “mesmo no governo dito de esquerda, o pouco que se avançou neste particular nos últimos anos se restringiu a ações pontuais, limitadas demais para impactar de verdade as grandes demandas reprimidas dos povos indígenas”. Citamos ainda relatório feito pela ONU em 2009, segundo o qual os índios no Brasil continuavam a encarar “múltiplos impedimentos para desfrutar de seus direitos humanos. Esses obstáculos seriam ampliados diante do paternalismo entrincheirado, da falta de entendimento do público e da mídia em relação aos temas indígenas e de forças políticas” (Chade, 2009).

Apesar do cenário político caótico no qual as questões indígenas atualmente se encerram e da aparente ineficiência das lutas políticas empreendidas até o presente momento, é preciso reconhecer a relevância do movimento indígena nacional iniciado nos anos 1970, responsável por conquistas constitucionais no tocante aos direitos dos povos nativos. Sem dúvida, a pressão social exercida a partir daquele momento engendrou uma série de mudanças quanto às práticas políticas até então empreendidas. Daniel Munduruku (2012aMUNDURUKU, Daniel (2012a). O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970 -1990). São Paulo: Paulinas.), em sua tese de doutorado intitulada O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970- 1990), postula, como se aufere pela leitura do próprio título, que o movimento em questão, para além de seu caráter político, esteve permeado também de roupagem pedagógica objetivando não somente a construção de uma nova visão de mundo para os ameríndios, mas para a sociedade brasileira como um todo:

Talvez a maior contribuição que o movimento indígena ofereceu à sociedade brasileira foi a de revelar - e, portanto, denunciar a existência da diversidade cultural e linguística. O que antes era visto somente como uma presença genérica passou a ser encarado como um fato real, obrigando a política oficial a reconhecer os diversos povos como experiências coletivas e como frontalmente diferentes da concepção de unidade nacional (Munduruku, 2012MUNDURUKU, Daniel (2012b). Coisas de índio. 2. ed. São Paulo: Callis., p. 222).

Conforme bem observa Munduruku, a sociedade civil organizada conquistou uma série de direitos a partir da abertura política iniciada nos anos 1990. No que diz respeito aos direitos indígenas, especificamente, sabe-se, porém, que muitas das promessas não saíram do plano das conjecturas, assunto este sobre o qual não nos debruçaremos por fugir da nossa competência. Chamamos a atenção somente para a proposição da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394), publicada em 1996, que, no parágrafo 4o de seu artigo 26, previa a inserção das contribuições de matrizes africanas e indígenas no ensino da história. Essa lei, que à primeira vista aparentava ser uma conquista para os povos oprimidos, sofreu modificações posteriores em decorrência das críticas que suscitou. Mais uma vez, ressaltamos que os meandros jurídicos não são o foco deste trabalho; contudo, importa notar que a criação dessa lei, ao impor o estudo formal de um assunto até então relegado, abriu as portas para um novo mercado editorial, visto que, a partir de então, passou a existir, nas escolas de todo o país, a necessidade de adoção de livros paradidáticos que trabalhassem os aspectos inclusivos exigidos pela nova legislação.

Essa talvez seja uma explicação plausível para o fato de que hoje a grande parte das produções indígenas mais conhecidas pelo público estejam circunscritas ao mercado da literatura infantojuvenil. Ou seja, é possível que a abertura de um nicho editorial específico tenha moldado as produções indígenas recém-empreendidas naquele momento, enquadrando-as nessa demanda e motivando a publicação de novas obras adequadas às exigências mercadológicas. Por outro lado, deve-se perguntar se não se põe à nossa frente um problema referente à possível leitura descontextualizada dessas obras, o que poderia estar gerando novos estereótipos dos povos ameríndios. Como narradores especializados ao público infantil, distantes de um público supostamente mais exigente e mais letrado, a imagem construída se aproxima à caracterização do silvícola “relativamente incapaz” conforme perdurou em nossa legislação até a promulgação de nossa Constituição em 1988, deixando até 2003 seus vestígios no antigo Código Civil. Citamos novamente Roemer (1983ROEMER, Kenneth, M (1983). Native American oral narratives: context and continuity. In: SWANN, Brian (Ed.). Smoothing the ground: essays on native American oral literature. Londres: University of California Press., p. 47, tradução nossa) para quem: “Se os não indígenas estivessem conscientes dos vários contextos das narrativas orais dos povos nativos norte-americanos, estariam menos propensos a entendê-los como contos infantis ou superstições”.

Essa fala de Roemer nos remete a um evento no mínimo curioso, ocorrido durante o 17º Salão FNLIJ do Livro para Crianças e Jovens, realizado no Rio de Janeiro em 2015, quando perguntaram a Ailton Krenak por que os indígenas só escreviam mitologias ou histórias para crianças. O autor respondeu então que muitas das obras não eram de fato infantis quando lidas pelas culturas às quais pertenciam, e esse tipo de diferenciação estaria atrelado muito mais ao ponto de vista ocidental, uma vez que nas aldeias os contadores de histórias não apresentavam letreiros indicadores de classificação etária antes de iniciarem suas performances. Essa resposta dada por um indígena respeitado pela sua história e liderança política causou constrangimento para alguns dos presentes, afinal, tratava-se de um evento promovido por entidades ligadas ao mercado editorial especializado. A mesa foi imediatamente encerrada, não havendo qualquer oportunidade para debates posteriores a essa fala.

Apesar da polêmica, o questionamento levantado por Krenak fora empreendido na academia em 1988, quando da publicação do artigo “The case of Peter Pan”, de Jacqueline S. Rose. A autora diz que a literatura infantojuvenil é, por si só, uma impossibilidade, já que “A literatura infantil constrói um mundo no qual o adulto vem primeiro (escritor, produtor, concessor) e a criança depois (leitor, produto, receptor)” (Rose, 1998ROSE, Jacqueline S (1998). The case of Peter Pan. In: JENKINS, Henry (Ed.). The children’s culture reader. Nova Iorque: NYPress., p. 58). Assim, o indígena assumiria uma relação que somente agora começa a ser pensada no Ocidente: a denominação “literatura infantil” é paradoxal, uma vez que as crianças menos produzem histórias do que as ouvem. Por outro lado, o termo atende aos anseios das sociedades capitalistas que veem a literatura como um produto já pré-fabricado para o consumo de um público específico.

A esse respeito, no corpus selecionado para este trabalho, composto por 13 obras,5 5 Os títulos e respectivos autores pesquisados estão listados ao final deste artigo. seis livros estão classificados como infantis ou infantojuvenis. Se colocados lado a lado os livros Lua menina e menino onça, de Lia Minápoty e A mulher que virou urutau, de Olívio Jekupe e Maria Kerexu, surge um conflito, afinal o primeiro foi classificado como literatura infantil enquanto o segundo possui ISBN correspondente à ficção brasileira. Ambos, no entanto, contêm somente uma fábula conectada à cultura indígena dos povos aos quais os narradores pertencem. Assemelham-se ainda por apresentarem desenhos marcantes e estrutura gráfica característica das edições infantis nacionais, tais como papel couchê e formato diferenciado (25cm X 21 cm). Os critérios utilizados para diferenciar as obras, portanto, não parecem claros.

É possível que a existência preeminente de iconografia nas obras indígenas aliada ao desconhecimento vigente acerca das culturas que as produziram, tenham colaborado para interpretá-las como destinadas ao público infantil. Do corpus utilizado, onze títulos, ou seja, a grande maioria arrolada, possuía textos acompanhados de grafismos, ilustrações elaboradas, desenhos simples ou fotos. Segundo nossa interpretação, esse tipo de apresentação estética se coaduna com uma necessidade expressiva dos povos ameríndios de falar não apenas através de palavras, mas fluir o discurso como extensão do corpo. O uso de elementos estéticos para adornar a escrita possivelmente a aproxima da quadridimensionalidade6 6 O contador de histórias utiliza, além da expressividade corporal, a expressividade vocal, estando marcada, aí, uma quarta dimensão em sua arte. existente no ato de contar uma história em contraposição à unidimensionalidade das palavras grafadas.

Roemer, ao falar dos contadores de histórias da tribo Cheyenne, lembra que estes sempre antecedem seus atos de fala com um breve ritual no qual tocam a terra com as palmas das mãos, recolhendo-a em punhados que em seguida jogam sobre seus próprios corpos em um gesto que não comporta teatralidade, mas revela uma crença mística e ritualística. Essa expressividade corporal se perde na escrita, conforme alerta o autor. Assim, entendemos que a presença de gravuras, fotos e ilustrações nos livros assinados por autores indígenas constitui um dado cultural importante a ser investigado com maior precisão, podendo hipoteticamente representar uma tentativa de compensar a estaticidade da escrita, sendo essa vista como uma espécie de arremedo das narrativas orais. Aliás, essa perspectiva de que a palavra escrita era considerada pelos antigos indígenas uma espécie de prisão ou morte da língua viva permanece no imaginário ameríndio conforme nos mostra passagem do livro Todas as vezes que dissemos adeus, de Kaka Werá Jecupé, quando narra a controvérsia entre a cultura indígena letrada e a iletrada:

Ali para mim começava a única coisa mágica: os riscos, os traços, as sílabas, os sons correndo os riscos, as orações. Quando a mãe se deu conta, tinham roubado a minha alma. Ficara presa num pedaço de papel, dividida, preta e branca e sem sol, em um documento chamado caderneta escolar (Jecupé, 2002JECUPÉ, Kaka Werá (2002). Oré awé roiru’a ma: todas as vezes que dissemos adeus. São Paulo: Triom., p. 32).

Em Oralidade e cultura escrita, Walter Ong nota que “o fato de os povos orais comumente [...] julgarem as palavras dotadas de uma potencialidade mágica está ligada [...] à sua percepção da palavra como necessariamente falada, proferida e, portanto, dotada de um poder” (Ong, 1998ONG, Walter (1998). Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus., p. 43). Na mesma obra, o autor afirma que a associação da escrita à morte persiste na cultura ocidental e não somente nas culturas orais. Explica-se a ideia como sendo uma herança platônica, já que, em Fedro, Sócrates afirma que a escrita é inumana, “pois pretende estabelecer fora da mente o que na realidade só existe na mente” (Ong, 1998ONG, Walter (1998). Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus., p.94). Ong trabalha a partir da hipótese de que a escrita modifica a forma de pensar do homo sapiens, porque: “Sem a escrita, a mente letrada não pensaria e não poderia pensar como pensa, não apenas quando se ocupa da escrita, mas normalmente, até mesmo quando está compondo seus pensamentos de forma oral” (Ong, 1998ONG, Walter (1998). Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus., p. 93).

A hipótese de que o pensamento ocidental é modulado pela escrita - ressalte-se, ainda não esmiuçada pela psicolinguística - justifica a concepção perpetrada pelas sociedades letradas de que os conhecimentos atrelados à oralidade são cientificamente inferiores. Celso Lara Figueroa, que estudou a oralidade na literatura guatemalteca, nota este fato: “na sociedades letradas, a tradição oral passa a ser vista como meio de expressão atrelado às culturas subordinadas, diferentemente de como é vista pelos povos ágrafos para os quais a tradição oral é, com suas especificidades, um patrimônio coletivo” (Figueroa, 1993FIGUEROA, Celso Lara (1993) Algunos problemas teóricos de la literatura oral. Oralidad: anuario para el rescate de la tradición oral de América Latina y el Caribe, La Habana, n. 5. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/qrDjfa >. Acesso em: 14 abr. 2017.
https://goo.gl/qrDjfa...
, p. 28, tradução nossa). Esse paradoxo do pensamento moldado pela escrita é exemplificado pela teoria de Ong: o autor reconhece a riqueza existente na oralidade, no entanto, preso à sua forma de ver o mundo, acaba por defender uma certa “superioridade” da escrita frente às culturas orais, que estariam todas destinadas a se tornarem registros formais, em uma espécie de “evolução natural”. Cita-se o trecho:

Na realidade, as culturas orais produzem realizações verbais impressionantes e belas, de alto valor artístico e humano, que já não são sequer possíveis quando a escrita se apodera da psique. Contudo, sem a escrita, a consciência humana não pode atingir o ápice de suas potencialidades, não é capaz de outras criações belas e impressionantes. Nesse sentido, a oralidade precisa e está destinada a produzir a escrita. A cultura escrita, como veremos, é imprescindível ao desenvolvimento não apenas da ciência, mas também da história, da filosofia, ao entendimento analítico da literatura e de qualquer arte e, na verdade, à explicação da própria linguagem (incluindo a falada) (Ong, 1998ONG, Walter (1998). Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus., p. 23).

Outro problema da análise de Walter Ong sobre a oralidade se refere à concepção propalada pelo senso comum de que a transição das culturas orais para as culturas escritas teria feito com que o mundo se tornasse mais visual do que auditivo: “Finalmente, contudo, a impressão substituiu a prolongada predominância da audição no mundo do pensamento e da expressão pelo predomínio da visão” (Ong, 1998ONG, Walter (1998). Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus., p. 139). Essa ideia, embora possa ser parcialmente verdadeira, está incompleta. Em pesquisa empreendida durante seu doutorado, a ortoptista Viviam Secin comparou um grupo de adultos saudáveis analfabetos de aldeias Guarany Mbya com pacientes letrados em iguais condições. A cientista concluiu que os olhares provenientes dos dois grupos estudados eram literalmente divergentes e impactariam os processos de aprendizagem dos indígenas quando inseridos em escolas tradicionais:

As avaliações visuais realizadas na aldeia guarani revelaram no perfil binocular de seus membros, uma tendência gradual de perda do controle da convergência proximal com a idade, situação que impacta negativamente o desempenho em atividades escolares, condição não observada no grupo universitário predominantemente letrado (Secin, 2016SECIN, Viviam Kazue Andó Vianna (2016). A visão binocular dos Guarani Mbya: ortóptica, oralidade e letramento. Curitiba: Appris., p. 159).

Ao pesquisar sobre a produção textual nas escolas indígenas, Lynn Mario de Souza também se deparou com algumas contradições referentes à transposição de métodos ocidentais de ensino aplicados a culturas tão díspares. O autor defende, inicialmente, que as fronteiras entre ficção e realidade são lidas sob outra ótica por esses povos:

Qual deveria ser a diferença entre narrativas num livro didático para o ensino da língua (seja ela materna ou português) e outras em livros para o ensino de história e de ciências? Surge novamente o espectro da “indistinguibilidade” entre ficção e realidade ou entre história e estória (Souza, 2003SOUZA, Lynn Mario T. Menezes (2003). Que história é essa? A escrita indígena no Brasil. In: SANTOS, Eloína Prati dos (Org.). Perspectivas da literatura ameríndia no Brasil, Estados Unidos e Canadá. Feira de Santana: UEFS, 2003, p. 125-137., p. 131).

Para Souza, a escrita indígena é na maioria das vezes “recriações de narrativas orais com graus variados de consciência por parte dos autores” (Souza, 2003SOUZA, Lynn Mario T. Menezes (2003). Que história é essa? A escrita indígena no Brasil. In: SANTOS, Eloína Prati dos (Org.). Perspectivas da literatura ameríndia no Brasil, Estados Unidos e Canadá. Feira de Santana: UEFS, 2003, p. 125-137., p.125). Algumas questões são levantadas pelo autor como sendo decorrências desta adaptação da oralidade para a escrita. Entre estas, para além da já destacada visão de mundo que não considera a mitologia uma irrealidade, Souza também menciona a questão da autoria e da perfomatividade. No que tange à performance, o autor parece concordar com Roemer ao afirmar que “a performatividade da tradição oral que permeia a narrativa oral original se perde totalmente, fazendo com que aquilo que nasceu como processo oral ou performance se torne um mero produto escrito” (Souza, 2003SOUZA, Lynn Mario T. Menezes (2003). Que história é essa? A escrita indígena no Brasil. In: SANTOS, Eloína Prati dos (Org.). Perspectivas da literatura ameríndia no Brasil, Estados Unidos e Canadá. Feira de Santana: UEFS, 2003, p. 125-137., p. 126).

Quanto à autoria, ao analisar a escrita dos Waiãpi, em oposição às performances orais dos contadores de história, Souza conclui que:

Essas atualizações ou variações [das narrativas orais], porém, não são percebidas nessas comunidades como mudanças ou deturpações da narrativa mítica original e o contador, consequentemente, não é visto como autor de seu texto (modificado ou atualizado) e sim como repetidor. Porém, quando uma “transcrição” de uma narrativa oral é publicada por escrito, dando crédito ao contador como “autor” dela, conforme regem as regras da cultura escrita, as normas da tradição oral de autoria coletiva são imediatamente violadas (Souza, 2003SOUZA, Lynn Mario T. Menezes (2003). Que história é essa? A escrita indígena no Brasil. In: SANTOS, Eloína Prati dos (Org.). Perspectivas da literatura ameríndia no Brasil, Estados Unidos e Canadá. Feira de Santana: UEFS, 2003, p. 125-137., p. 128).

Essa especificidade quanto à autoria coletiva referida por Souza, foi detectada em três obras analisadas em nosso corpus. Entre estas, chama bastante atenção a obra O livro das árvores, que, escrito a múltiplas mãos7 7 Duzentos e sessenta autores assinam a obra, para sermos mais precisos. pelos Ticuna, conta com uma profusão de mitos e pensamentos decorrentes do sistema filosófico daquele povo. Considerada um legado para os jovens estudantes daquela etnia, a obra registra o nome de todas as árvores (daí seu título) consideradas relevantes para o grupo, explicando esses elementos sob o ponto de vista da ancestralidade e ilustrando-as com desenhos que as representam.

O livro das árvores não pertence a um gênero literário específico correspondente à tradição ocidental. Poderia ser lido, pelos nossos olhos, como uma espécie de pastiche, pois encerra explicações que em alguns momentos são quase técnicas, para em seguida apresentar trechos mitológicos mesclados a narrativas fantásticas. Esse estilo literário se aproxima bastante das observações feitas por Susan Feldmann sobre a escrita dos indígenas norte-americanos: “Os estilos dos contos fluem entre si livremente e a diferença entre narrativas folclóricas e mitos marcante na cultura ocidental é rompida quase que completamente pelos indígenas norte-americanos” (Feldmann apud Roemer, 1983ROEMER, Kenneth, M (1983). Native American oral narratives: context and continuity. In: SWANN, Brian (Ed.). Smoothing the ground: essays on native American oral literature. Londres: University of California Press., p. 41, tradução nossa). Observação similar é feita por Souza quanto aos livros indígenas brasileiros por ele pesquisados:

Dada a complexidade da situação do surgimento dessas narrativas no espaço intersticial entre a oralidade e a escrita, é de se esperar que os gêneros textuais das narrativas indiquem tal complexidade, dificultando a sua identificação em termos dos gêneros da cultura escrita, tais como “poesia”, “conto” ou “crônica” (Souza, 2003SOUZA, Lynn Mario T. Menezes (2003). Que história é essa? A escrita indígena no Brasil. In: SANTOS, Eloína Prati dos (Org.). Perspectivas da literatura ameríndia no Brasil, Estados Unidos e Canadá. Feira de Santana: UEFS, 2003, p. 125-137., p. 132).

O livro das árvores, por ser um empreendimento de múltiplos autores, revela uma conexão com a própria cultura que a engendrou, já que carrega a noção de obra coletiva e de não especialização do trabalho nas sociedades ameríndias conforme descrito por Lagrou. No entanto, não são todos os livros indígenas brasileiros que apresentam autoria compartilhada. Entre o corpus selecionado, apontamos, além do já citado livro dos Ticuna, A mulher que virou urutau, de Olívio Jekupe e Maria Kexeru, e Antes o mundo não existia, de Umusĩ Pãrõkumu e Tõrãmũ Kẽhíri, ambos assinados por dois autores. Todavia, a grande maioria dos livros indígenas hoje publicados possui autoria única, havendo um sujeito indígena que fala em prol da comunidade que representa. Essas obras, nesse sentido, seguem moldes mais ocidentalizados, uma vez que incorporam o conceito de autoria predominante no mercado editorial, no entanto, lembramos as especificidades iconográficas já detectadas e sobre as quais nos referimos anteriormente como diferencial marcante da escrita cultural desses povos, além da adoção de temáticas que se referem ao universo cultural de seus grupos.

Quanto ao desenvolvimento estilístico das narrativas, parece relevante que em alguns casos o narrador se comporte não como autor da história, mas como interlocutor de uma narrativa tradicional, deslocando a fala para algum parente ou ancestral de sua aldeia. Esse recurso também pode ser lido como uma tentativa de aproximar a escrita às narrativas orais tradicionais, conforme trechos transcritos a seguir:

Certa vez minha tia me contou uma história muito antiga. Ela disse que a tal história havia acontecido mesmo, e que sua mãe sempre a contava para os outros moradores da aldeia (Jekupe e Kerexu, 2011JEKUPE, Olívio; KEREXU, Maria (2011). A mulher que virou urutau: Kunha urutau reojepota. São Paulo: Panda Books., s.p.).

Os velhos contam que as árvores do Eware são diferentes. A mata é baixa, nunca cresce, nunca morre (Ticuna, 2008TICUNA (2008). O livro das árvores. 6. ed. São Paulo: Benjamin Constant., p. 22).

Assim os velhos do povo Terena contam o aparecimento do fumo: havia uma mulher que não gostava muito de seu marido, e por isso fez um feitiço contra ele. Fez o feitiço usando o caraguatá. Ela pegou e o arrancou do chão e pôs dentro da árvore seu próprio sangue. É por isso que esta árvore tem o centro da cor vermelha (Munduruku, 2005MUNDURUKU, Daniel (2005). Contos indígenas brasileiros. 2. ed. São Paulo: Global., p. 39).

O último aspecto analisado nas obras refere-se ao idioma de publicação. Constatamos que somente a já citada A mulher que virou urutau, de Olívio Jekupe e Maria Kexeru, é uma obra de edição bilíngue, trazendo em guarani o mesmo conteúdo disponível em português. Todas as demais obras correspondiam a publicações exclusivamente em língua portuguesa, à exceção de Todas as vezes que dissemos adeus, que apresenta texto em português e em inglês. Esse fato nos interpõe uma questão ética relevante: como é possível que o indígena esteja produzindo majoritariamente obras na língua europeia dominante, língua, portanto, do colonizador? Essa constatação nos leva a questionar a existência de uma suposta condicionalidade da literatura indígena, ainda aparentemente destinada a suprir os anseios de uma sociedade branca letrada. Por outro lado, há que se apontar os riscos subjacentes a uma produção literária existente em prol dos mandos e desmandos de uma força estatal que, através de diretrizes educacionais criticáveis, injeta em seus currículos a exigência de um ensino superficial sobre os povos ameríndios.

Acreditamos ter demonstrado que a classificação dessas obras sob o gênero infantojuvenil é resvaladiça. Na medida em que tal classificação não existe nas culturas de origem, parece razoável empregar preferencialmente os termos literatura indígena ou literatura nativa, ainda que algumas das obras pareçam mais aprazíveis para as crianças não indígenas do que para seus pais. É preciso ter em conta os riscos existentes na associação precípua da escrita ameríndia com a escrita para crianças, pois aparenta-nos que a cultura ocidental deu ao índio uma espécie de “carta branca”, sendo-lhe finalmente permitido escrever, escrita essa recebida com láurea e júbilo desde que restrita ao lugar que lhe foi demarcado. Curiosamente, esse papel foi aceito pelos indígenas, e como muitas vezes ocorreu ao longo da história da colonização, sob uma aparente passividade o que resiste de fato é uma militância latente. Muitos escritores indígenas se veem como agentes cuja missão é pacificar as próximas gerações de homens brancos, sensibilizar os filhos destes para que futuramente haja o encontro que tanto se almeja, a tão sonhada igualdade entre os povos. Nenhum de nós deve duvidar dessa utopia nem deixar de persegui-la. O grande problema, no entanto, é que se trata de esperança aguardada há mais de meio milênio. A literatura indígena foi conquistada pelos próprios indígenas e não poderá ser apagada. Por isso, também, não deve frutificar a exclusivo serviço de quem não a semeou.

Referências

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  • 2
    A esse respeito, recomendamos a leitura do capítulo “Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas”, de Els Lagrou (2009LAGROU, Els (2009). Arte indígena do Brasil: agência, alteridade e relação. Belo Horizonte: C/Arte.).
  • 3
    Adotamos esse termo eventualmente ao longo do texto, mas sempre em tom de licença poética e em significância análoga à empregada pelos povos indígenas, isto é, “branco” na acepção desse contexto deve ser lido como sinônimo de “não indígena”.
  • 4
    Calcamos nossa opinião por meio da leitura de documentos públicos a esse respeito bem como nas declarações dos próprios indígenas. Citamos editorial publicado na internet pelo advogado Luiz Henrique Eloy, da etnia Terena, na qual expõe que “mesmo no governo dito de esquerda, o pouco que se avançou neste particular nos últimos anos se restringiu a ações pontuais, limitadas demais para impactar de verdade as grandes demandas reprimidas dos povos indígenas”. Citamos ainda relatório feito pela ONU em 2009, segundo o qual os índios no Brasil continuavam a encarar “múltiplos impedimentos para desfrutar de seus direitos humanos. Esses obstáculos seriam ampliados diante do paternalismo entrincheirado, da falta de entendimento do público e da mídia em relação aos temas indígenas e de forças políticas” (Chade, 2009CHADE, Jamil (2009). Relatório da ONU critica políticas indigenistas do Brasil. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 ago. On-line. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/gWosSF >. Acesso em: 12 nov. 2016.
    https://goo.gl/gWosSF...
    ).
  • 5
    Os títulos e respectivos autores pesquisados estão listados ao final deste artigo.
  • 6
    O contador de histórias utiliza, além da expressividade corporal, a expressividade vocal, estando marcada, aí, uma quarta dimensão em sua arte.
  • 7
    Duzentos e sessenta autores assinam a obra, para sermos mais precisos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2017
  • Aceito
    19 Ago 2017
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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