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Amara Moira - E se eu fosse puta

Moira, Amara. -E se eu fosse puta.São Paulo: Hoo, 2016

Em um texto escrito em 2012, José Castello indagava sobre o poder da literatura na contemporaneidade. Para o crítico, a literatura pode parecer inútil, parece não servir para nada. Mas é o que se pensa, é o que quer fazer pensar. O poder da literatura vai muito além das livrarias de aeroportos, do entretenimento cotidiano ou da vaidade cristalizada com a qual a universidade lhe reveste. Longe de toda a loucura egocêntrica e por muitas vezes banalizada, a literatura carrega consigo o poder de desassossegar nossa a existência, o poder de interrogar a vida. Nas palavras de Castello (2012CASTELLO, José (2012). O poder da literatura. Blog de José Castello. O Globo, Rio de Janeiro, 30 maio. On-line. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/6ef6Tk >. Acesso em: 10 abr. 2017.
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, s.p.), a literatura se infiltra, como um veneno, “nas pequenas frestas de seu espírito. Mas, nele instalada pelo ato da leitura, que escândalos, que estragos, mas também que descobertas e que surpresas ela pode deflagrar!”. A maior delícia que a literatura nos oferece é, sem dúvida, o esforço para a coragem: é necessário ter muita coragem para enfrentar a precariedade do mundo, é preciso ter muita coragem para ler literatura e, ainda mais, para escrever literatura.

Em E se eu fosse puta, livro lançado em 2016 pela Hoo Editora, a travesti-escritora-puta-feminista, Amara Moira, promove um verdadeiro estrago no “reino” da literatura. Composto por 44 textos, entre crônicas e poemas, publicados originalmente em blog e escritos a partir das experiências da autora com a prostituição e seu processo de transição, a obra é uma proposta de (des)construção linguística, literária, moral, social, e até religiosa da nossa maneira de entender o mundo: há algo de Jesus Cristo em toda prostituta, Amara constata. Além disso, é possível observar o esforço da autora em entender a vida, em entender as palavras, “travesti que se descobre escritora ao tentar ser puta e puta ao bancar a escritora”.3 3 Como define a autora em seu blog: <http://www.eseeufosseputa.com.br/>.

É um livro sobre porquês. É um livro sobre decisões, sobre começos e fins. Os capítulos e as histórias vão se alternando entre a profissão de prostituta e o desejo de escrever, tudo, absolutamente tudo, no escurinho dos becos, sem o olhar do mundo. Ao narrar seu relacionamento com os “lixos” (é assim que ela se refere aos homens que a procuram), Amara grita sua condição, escreve sobre a rua ao mesmo tempo em que a vive, denuncia os abusos e as violências que sofre - e que são muitas.

Entre o “motoqueiro babando de tesão” e o “rapaz bem-apessoado”, Amara vai se entendendo meio-personagem, meio-escritora, mas puta desde sempre. Em dias doídos, sofreguidão com o gelo das ruas, o medo e o ódio, a escrita do livro parece confundir-se com a prostituição do corpo, como se Amara visse na palavra a possibilidade de existência e de luta.

Porém contudo todavia a travesti tá aí, puta também e a gente tá um tanto cansada de ser jogada para debaixo do tapete: vão querer continuar fingindo que a gente não existe, que isso aí não é a vida que existe pra nós? Sento, lamento e choro, não deu, não vai dar. O pai de família respeitável que atendo na zona acha um barato papar a mim por dimdim poquim, o fim da picada eu contar a historinha pra deus e o mundo (Moira, 2016MOIRA, Amara (2016). E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo., p. 113).

Com a escrita corajosa e pulsante, Amara vai tecendo e bordando os fios da memória, criando meios de proteção e existência, tal como Penélope à espera da volta de seu Ulisses da Guerra de Troia, em Odisseia, de Homero. Tece durante o dia e desmancha secretamente na escuridão da noite. Esse processo cíclico revela as novas possibilidades de construção da tapeçaria memorialística, reflete sobre os nós e sobre os laços, busca o entendimento e o cuidado de si e do outro.

Muito além da “tela de Penélope”, Homero mostra que o fim começa quando se acabam as palavras, quando a indiferença se apodera do corpo e da alma. Amara assume seu papel de protagonista, é a rainha Scheherazade, que conta e reconta suas mil e uma noites. Inteligente e perspicaz, ela sabe que precisa sobreviver até o raiar do dia, ela sabe que as mãos robustas da morte podem estrangulá-la a qualquer momento. Mas algo importante difere Amara Moira da rainha Scheherazade: ela não deseja ganhar o amor eterno do sultão Shariar, embora o fascine muito com sua beleza. As histórias de Amara são produtos de sobrevivência, uma sobrevivência contínua e resistente. Amara peita a morte com seus peitinhos de hormônio.

Seja em dias de carnaval, quaresma, com o espírito pascal ou não, Amara vai conhecendo a dor e a delícia de ser o que é. Aprendeu a ligar o “foda-se” para não pirar no cotidiano da prostituição e nessa vida cheia de exclusões, cansou de ter medo dos “caminhos que ninguém escolhe”. A palavra “puta” rondava sua vida e seu destino, tal como uma tatuagem na testa, “é como se a palavra puta estivesse tatuada na minha testa, e muito antes de eu fazer rua a primeira vez. Me veem como travesti e já me imaginam puta, e qual seu preço, se sou ativa, assédio como nunca vi antes, coisa de enlouquecer” (Moira, 2016MOIRA, Amara (2016). E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo., p. 102). E é nessa loucura diária que vem o tesão de Amara pela escrita.

Em uma palestra proferida em Paris, em 17 de maio de 1987, Gilles Deleuze propõe uma reflexão sobre o ato de criação no cinema e a construção das ideias. Segundo o filósofo, é preciso que haja a necessidade para a criação, do contrário não há nada. A obra de arte, seja ela filosófica ou cultural, está estreitamente ligada ao que Deleuze chama de ato de resistência, como uma ligação à informação e à comunicação que se estabelece. Citando o escritor francês André Malraux, o filósofo acredita na afirmação de que “a arte é a única coisa que resiste à morte” (Deleuze, 1999DELEUZE, Gilles (1999). O ato de criação. Folha de S. Paulo, São Paulo, Caderno Mais!, p. 5-4, 5-5, 27 jun. Tradução de José Marcos Macedo. Transcrição de conferência realizada em 1987., p. 5), e que o ato de fala é também um ato de resistência. Nesse sentido, a escrita de Amara Moira é um ato de resistência, artístico e humano, no qual se estabelece a possibilidade de formas não hierárquicas de arte e novas formas de luta, resistindo ao movimento retilíneo da história, que tende a omitir as vivências de travestis e transexuais.

A cada capítulo, Amara vai se (des)construindo na/pela linguagem, demonstrando o poder das palavras e as relações que ela estabelece. Ao mesmo tempo, é um exercício de alteridade, uma provocação às normas e à linguagem canônica, higienizada e bem comportada. De acordo com a pesquisa da jornalista e professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB), a literatura contemporânea brasileira, com seus personagens, autores e espaços, constituem e/ou reproduzem o perfil do homem branco, heterossexual, católico e de classe média em suas produções literárias. Dalcastagnè (2012)DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Horizonte. reconhece que há um mapa de ausências nas representações e configurações de personagens “silenciados pela história”, além de não haver também um processo de legitimação nem de reconhecimento de outras identidades na construção, o que acarreta a invisibilidade de determinados grupos sociais e de suas perspectivas, desejos e subjetividades.

A questão da representação está ligada a fatores de legitimação. O que se observa “não é simplesmente o fato de que a literatura fornece determinadas representações da realidade, mas, sim, que essas representações não são representativas do conjunto das perspectivas sociais” (Dalcastagnè, 2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Horizonte., p. 12). Ou seja, há uma preocupação em observar a forma como se dá essas representações, se há um reforço nos estereótipos ou propõem-se debates acerca da construção de identidades e da problematização de discursos dominantes.

Um fato preponderante em relação à importância do E se eu fosse puta no campo literário é a forma como as vidas e subjetividades de travestis e transexuais vêm sendo tratadas no Brasil. Segundo uma pesquisa realizada pela Transgender Europe (TGEU), rede europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgênero, o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas mais de 604 mortes no país (Cazarré, 2015CAZARRÉ, Marieta (2015). Com 600 mortes em seis anos, Brasil é o que mais mata travestis e transexuais. Agência Brasil, Brasília, 13 nov. On-line. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/CH06vH >. Acesso em: 16 abr. 2017.
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). Esses dados, de certa forma, refletem a realidade que as travestis brasileiras enfrentam historicamente, revelam a presença do ódio e da violência às minorias na sociedade e no imaginário brasileiro.

As palavras e as frases de Amara Moira vão sendo colocadas com cuidado, toda a calma do mundo, como o preservativo na hora do sexo, como um tubo de ensaio para experiências no laboratório das violências da vida. Longe dos olhos, mas perto do estigma, a escrita de Amara é como vingança. Uma travesti escritora puta feminista e doutora em crítica literária que escreve e se vinga do mundo e das formas estereotipadas e negativas de representação:

Há algo de Jesus Cristo em toda prostituta, esse desprendimento do “se quer ser perfeito, vai, venda tudo o que tem e dê pros pobres” (Mateus, 19:21)... não à toa ele próprio afirmou que “as prostitutas vos precederão no Reino de Deus” (Mateus, 21:31). Mas aguardem, o ataque às normas vai se intensificar por aqui: essa língua travesti puta escritora vai ser libertária ou não será (Moira, 2016MOIRA, Amara (2016). E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo., p. 131).

Narrado em primeira pessoa, o livro traz, entre carinhos, gozos, promessas e cuspes, uma proposta política de resistência. Resistência à metralhadora de olhares que cercam as travestis, aos assédios cotidianos, ao jogo de exclusões e negações. Entre o primeiro e o último cliente da noite, há o desejo de manter-se viva até o dia seguinte, o desejo de manter-se viva na vida, no texto.

O processo de escrita de si é algo essencial no processo de empoderamento do corpo transgênero e na destruição de ideias conservadoras e preconceituosas. Quando se pensa na literatura brasileira isso é ainda mais necessário: historicamente, as travestis vêm sendo representadas na literatura apenas como corpos mortos e/ou assassinas perigosas, seres não identificáveis, como corpos estranhos que rondam as ruas, que atiçam os olhares, como personagens dignas do desprezo e do nojo. O livro traz perguntas que parecem ressoar cochichadas ao pé do ouvido, como se não devessem ser perguntadas ou fossem perguntas perigosas demais: quantas travestis escritoras você conhece? Alguém ainda se lembra de Cláudia Wonder? E Cláudia Celeste? Todas as pessoas conhecem Bianca Lafroy? É preciso historicizar a vida dessas mulheres, (re)pensar os espaços e as hierarquias contidas nesses espaços. O destino “amargo” de Amara é justamente fazer o que ninguém deseja fazer, perguntar o que ninguém quer perguntar. E quando nos voltamos para as constatações do crítico José Castello e as afirmações do filósofo Gilles Deleuze, vemos que a literatura pode ser ainda mais do que um veneno que infiltra as veias e nos desassossega do mundo: ela tem a capacidade de criar modos de existência, novas maneiras de entender e (re)afirmar o outro e nós mesmos, operando como uma máquina de guerra na luta contra as perspectivas absolutas, que engessam os corpos e as (trans)vivências.

Referências

  • CASTELLO, José (2012). O poder da literatura. Blog de José Castello. O Globo, Rio de Janeiro, 30 maio. On-line. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/6ef6Tk >. Acesso em: 10 abr. 2017.
    » https://goo.gl/6ef6Tk
  • CAZARRÉ, Marieta (2015). Com 600 mortes em seis anos, Brasil é o que mais mata travestis e transexuais. Agência Brasil, Brasília, 13 nov. On-line. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/CH06vH >. Acesso em: 16 abr. 2017.
    » https://goo.gl/CH06vH
  • DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Horizonte.
  • DELEUZE, Gilles (1999). O ato de criação. Folha de S. Paulo, São Paulo, Caderno Mais!, p. 5-4, 5-5, 27 jun. Tradução de José Marcos Macedo. Transcrição de conferência realizada em 1987.
  • MOIRA, Amara (2016). E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo.
  • VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de (s.d.). (Org.). As mil e uma noites: contos selecionados São Paulo: Objetivo.
  • 3
    Como define a autora em seu blog: <http://www.eseeufosseputa.com.br/>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2017
  • Aceito
    20 Jun 2017
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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