Acessibilidade / Reportar erro

A (re)configuração da linguagem nos mash ups literários de Machado de Assis

The (re)configuration of language in Machado de Assis’ literary mash ups

La (re)configuración del lenguaje en los mash ups literarios de Machado de Assis

Resumo

A literatura está em constante transformação, tanto no segmento estrutural quanto no panorama linguístico. Tendo isso em vista, o presente artigo apresenta uma breve análise da (re)configuração do segmento linguístico de três mash ups literários produzidos com obras clássicas de Machado de Assis, em relação às respectivas obras canônicas que são relidas: Dom Casmurro e os discos voadores (2010), a qual relê Dom Casmurro (1899); O Alienista caçador de mutantes (2010), que relê O Alienista (1882); e Memórias Desmortas de Brás Cubas (2010), a qual relê Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). A metodologia empregada no estudo possui caráter qualitativo, de natureza bibliográfica, tomando como base a fortuna crítica das produções em estudo, assim como as obras literárias analisadas. Foi possível observar, por meio da análise empregada, que as produções contemporâneas consolidadas nos mash ups acompanham as mudanças linguísticas e sociais da contemporaneidade, além de ter sido possível visualizar Machado de Assis enquanto precursor de inovações no segmento linguístico. Estudiosos como Henry Jenkins (2009JENKINS, Henry (2009). Cultura da convergência. Tradução de Susana Alexandria. São Paulo: Aleph.), Luiz Costa Lima (1979LIMA, Luiz Costa (1979). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra.) e Michel Foucault (2002FOUCAULT, Michel (2002). O que é um autor? Tradução de António Fernando Cascais. Lisboa: Vega.) contribuem para o desenvolvimento deste estudo.

Palavras-chave:
leitor; mash up; linguagem; Machado de Assis

Abstract

Literature is in constant transformation, both in the structural segment and in the linguistic panorama. With this in mind, this article presents a brief analysis of the (re)configuration of the linguistic segment of 3 (three) literary mash ups produced from classic works by Machado de Assis, in relation to the respective canonical works that are reread: Dom Casmurro and the Flying Saucers (2010), which re-reads Dom Casmurro (1899); The Alienist Hunter of Mutants (2010), which re-reads The Alienist (1882); and Memórias Desmortas de Brás Cubas (2010), which he rereads Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). The methodology used in the study has a qualitative character, of a bibliographic nature, based on the critical fortune of the productions under study, as well as the literary works analyzed. It was possible to observe, through the analysis used, that the contemporary productions consolidated in the mash ups accompany the linguistic and social changes of contemporaneity, in addition to having been possible to visualize Machado de Assis as a precursor of innovations in the linguistic segment. Scholars such as Henry Jenkins (2009JENKINS, Henry (2009). Cultura da convergência. Tradução de Susana Alexandria. São Paulo: Aleph.), Luiz Costa Lima (1979LIMA, Luiz Costa (1979). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra.), and Michel Foucault (2002FOUCAULT, Michel (2002). O que é um autor? Tradução de António Fernando Cascais. Lisboa: Vega.) contribute to the development of this study.

Keywords:
reader; mash up; language; Machado de Assis

Resumen

La literatura está en constante transformación, tanto en el segmento estructural como en el panorama lingüístico. En ese sentido, este artículo presenta un breve análisis sobre la (re)configuración del segmento lingüístico de 3 (tres) mash ups literarios producidos a partir de obras clásicas de Machado de Assis, en relación con las respectivas obras canónicas que se releen: Dom Casmurro y los platillos voladores (2010), que relee Dom Casmurro (1899); The Alienist Hunter of Mutants (2010), que relee The Alienist (1882); y Memórias Desmortas de Brás Cubas (2010), que relee Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). La metodología empleada en el estudio tiene un carácter cualitativo, de carácter bibliográfico, a partir de la fortuna crítica de las producciones objeto de estudio, así como de las obras literarias analizadas. Fue posible observar, a través del análisis utilizado, que las producciones contemporáneas consolidadas en los mash ups acompañan los cambios lingüísticos y sociales de la contemporaneidad, además de haber sido posible visualizar a Machado de Assis como precursor de innovaciones en el segmento lingüístico. Académicos como Henry Jenkins (2009JENKINS, Henry (2009). Cultura da convergência. Tradução de Susana Alexandria. São Paulo: Aleph.), Luiz Costa Lima (1979LIMA, Luiz Costa (1979). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra.) y Michel Foucault (2002FOUCAULT, Michel (2002). O que é um autor? Tradução de António Fernando Cascais. Lisboa: Vega.) contribuyen al desarrollo de este estudio.

Palabras clave:
lector; mash up; idioma; Machado de Assis

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A noção de autoria e a “função do autor” passaram por diversas transformações. Nos marcos literários que se sucederam, apesar de o autor ser apartado da alcunha da genialidade, a ele continuou reservado o lugar de “peça-chave” na Literatura, pois, durante muito tempo, essa figura foi intocada e o seu papel louvável mantido. Todavia, a função autoral, segundo Foucault (2002FOUCAULT, Michel (2002). O que é um autor? Tradução de António Fernando Cascais. Lisboa: Vega., p. 283), “não nasce e se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas”.

Na perspectiva de Mikhail Bakhtin (2003BAKHTIN, Mikhail (2003). O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes. p. 3-192.), é de fundamental importância que o então autor-criador, desprendendo-se do seu poderio autoral e reconhecendo-se enquanto autor-pessoa, estabeleça uma dependência entre o que comunica por meio dos seus escritos e aquele que depreende essa informação da linguagem estabelecida. O autor, então, depende de outrem para que o seu escrito e a sua linguagem - esta enquanto instrumento histórico em que se inscreve o poder (Barthes, 1977BARTHES, Roland (1977). Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. 14. ed. São Paulo: Cultrix.) - sejam reconhecidos, abalando o seu lugar outrora independente perante a obra.

O autor, de forma processual, passa a ser deslocado do seu grau de importância perante o(s) seu(s) escrito(s) para que outros aspectos e personagens sejam considerados nesse contexto, possibilitando a aparição de funções livres na obra, em função do distanciamento da figura autoral. Uma vez que o autor (canônico) é destronado - ou morto, segundo Roland Barthes (2004BARTHES, Roland (2004). A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes. Disponível em: Disponível em: http://www2.eca.usp.br/Ciencias.Linguagem/L3BarthesAutor.pdf . Acesso em: 30 abr. 2018.
http://www2.eca.usp.br/Ciencias.Linguage...
) -, atribuindo-se a ele somente o papel de unificador de ideias preexistentes ao texto, cabe ao leitor - o destinatário da mensagem -, por intermédio da compreensão da linguagem, deter o “poder”, dar significado ao escrito. Dessa forma, pode-se analisar a figura do autor canônico destituída da sua hegemonia, tanto no contexto literário em geral quanto no ato da escrita.

A crítica literária raramente se debruçou ou realizou estudos aprofundados vislumbrando o perfil do leitor de uma perspectiva de maior atividade ou participação perante a escrita; quando era o caso, dedicava ao ledor um lugar muito instável num paradigma de nível intelectual, condicionando-o ou sujeitando-o à semantização do escrito conferida ao escritor.

Nesse contexto de empoderamento do público leitor, surge o conceito de cultura da convergência, que pode ser definido por um conjunto de transformações na esfera da cultura midiática a ser consumida, impulsionado pelo desejo do público de buscar o que é novo e, posteriormente, participar diretamente dessas modificações. Consumidores vêm realizando intervenções no que consumiam costumeiramente, fazendo colidir as novas e velhas mídias (Jenkins, 2009JENKINS, Henry (2009). Cultura da convergência. Tradução de Susana Alexandria. São Paulo: Aleph.), a fim de suprir as próprias expectativas e as de outrem, repaginando produtos e serviços. Essa prática propicia a procura - por parte dos indivíduos, num contexto de inteligência coletiva (Lévy, 2003 apudBembem; Costa, 2013BEMBEM, Angela Halen Claro; SANTOS, Plácida Leopoldina V. Amorim da Costa (2013). Inteligência coletiva: um olhar sobre a produção de Pierre Lévy. Perspectivas em Ciência da Informação, v. 18, n. 4, p. 139-151. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pci/v18n4/10.pdf . Acesso em: 25 maio 2018. https://doi.org/10.1590/S1413-99362013000400010
http://www.scielo.br/pdf/pci/v18n4/10.pd...
) - de informações já dispostas em meios diversos, por meio de acessos facilitados a elas.

Imbricado com o conceito da convergência está o de cultura participativa, a qual é fomentada pela iniciativa de participação popular dos receptores de outrora. Nas últimas décadas, indivíduos fora de zonas de privilégios - sociais, financeiros, epistemológicos - estão reivindicando e compondo espaços intelectuais, outrora ocupados tão somente por camadas sociais privilegiadas, requerendo, assim, a participação na cultura a ser consumida. Desse modo, a cultura da participação coaduna para que consumidores tomem parte de forma ativa do contexto cultural, incluindo o segmento literário.

OS MASH UPS MACHADIANOS

O mash up literário agrega-se à destituição do autor (canônico) e ao abalo das noções de leitura e autoria; é caracterizado pela junção de uma ou mais obras/produções em um mesmo trabalho. O termo mash up é originário da área da informática; traduzindo para o português, a expressão significa misturar, mesclar. Ele surge, na área da computação, como uma técnica que propicia o recorte de elementos de fontes diversas para que se agrupem com outro objetivo.

A prática ganhou destaque pela participação dos usuários, que realizavam bricolagens com o material ao qual tinham acesso, e não por parte das grandes empresas de comunicação. Por conta disso, as operações de (re)mixagem permitiram que não só usuários amadores das informações disponíveis em rede como também profissionais se utilizassem da colagem ou união de elementos textuais para compor os seus projetos. A técnica voltada para a publicação de obras possui o alcance de demandas de empresas do mercado editorial.

O mash up literário consiste na junção de obras/produções textuais (clássicas) já existentes a elementos da cultura contemporânea, para que, dessa forma, se constitua uma nova obra. Além da mescla entre obras, também são inseridos elementos da cultura de massa no enredo da obra oriunda da miscelânea, a exemplo de vampiros, fantasmas, bruxas, alienígenas, mutantes - elementos fantásticos que atraem o olhar do público leitor na contemporaneidade. Essa técnica não é feita de forma gratuita, mas sim passa por um processo criterioso de adaptação de passagens e aspectos relevantes da obra primeira, configurando-se como prática de intertextualidade entre a obra clássica e a obra contemporânea. A obra mixada, ainda que desenvolva perspectivas novas acerca da leitura do enredo, deve preservar elementos que possam identificar a presença do enredo primeiro, o qual é apropriado, “adaptado” ou, ainda, sequenciado. De acordo com Leonardo Villa-Forte (2016VILLA-FORTE, Leonardo (2016). A escrita de apropriação no contexto da pós-produção. FronteiraZ, São Paulo, n. 17, p. 281-295. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/fronteiraz/article/view/26942 . Acesso em: 1º maio 2018.
https://revistas.pucsp.br/index.php/fron...
, p. 291):

Escrever tornou-se uma ação não-específica quanto ao seu modo de fazer. A literatura de apropriação questiona o que é escrever e, portanto, ser autor de um discurso. Ela se insere nesse que é um dos debates mais acalorados da nossa época. [...] a literatura de apropriação opera como uma reação ao excesso de textos - e de tantos outros elementos - no mundo. A quantidade enorme de informação joga no nosso colo a questão sobre como lidar e como produzir a partir dela.

O mash up literário foi impulsionado no mercado editorial pela produção e posterior popularidade da obra estadunidense Orgulho e preconceito e zumbis (2009), de Seth Grahame-Smith, em coautoria com a romancista inglesa Jane Austen, produzindo um mash up da obra desta Orgulho e preconceito (1813). O romance primeiro retrata questões vividas pela personagem principal, Elizabeth, em meio à aristocracia inglesa do século XIX. O segundo surgiu impulsionado pela demanda da editora Quirk books, a qual se interessava em alavancar as vendas da obra clássica com a reescrita de um roteiro no cerne da literatura fantástica e da cultura massiva (Austen; Grahame-Smith, 2010 apudJesus; Pereira, 2015JESUS, Ivoneide; PEREIRA, Vinícius (2015). Instância autoral morta-viva em Orgulho e Preconceito e Zumbis. Desenredo, Passo Fundo, v. 11, n. 1, p. 155-169. Disponível em: Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rd/article/view/5035 . Acesso em: 27 maio 2018.
http://seer.upf.br/index.php/rd/article/...
). Sem perder a coerência em relação à trama anterior, Grahame-Smith insere o elemento zumbi no contexto da sociedade inglesa da época retratada no escrito primeiro.

Essa prática de releitura, o mash up, propicia o questionamento das noções convencionais de autor, autoria e originalidade; com recurso à técnica, um autor na contemporaneidade pode apropriar-se de obras consagradas da literatura e, baseado nelas, construir um novo enredo tomando como base preferências pessoais ou demandas de mercado. Essas produções são responsáveis por fomentar reflexões, ainda, no que diz respeito à reorganização de lugares outrora marcados e ocupados por indivíduos detentores de poderes - intelectuais, financeiros, sociais -, levantando diversas propostas que atendem a uma nova esfera criativa no contexto literário, respaldada pela pós-produção, conforme os ditames de Nicolas Bourriaud (2009BOURRIAUD, Nicolas (2009). Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fontes.). O teórico observa uma tendência cultural que incita o reaproveitamento de produtos outrora vistos como “acabados”, abrindo espaço para a circulação de outras produções. Dessa maneira, enquadrando, na proposta deste estudo, as obras literárias oriundas do contexto tradicional, elas são vistas como “geradoras de atividades”, pois servem como influência para o desenvolvimento de outras produções.

O tipo de apropriação textual configurado no mash up suscita reflexões acerca da reprodução de obras já disponíveis em domínio público. Sempre foi costume dos indivíduos, mediante intenções diversas, utilizarem-se de escritas anteriores nos mais variados contextos para difundir uma obra - fosse por admiração, fosse por demanda de mercado ou de público. Em geral, os textos paródia são os que realizam o papel de imitar ou reproduzir um escrito de forma pejorativa e sádica, sem nenhum outro objetivo além de promover uma crítica destrutiva. Essas produções apresentam-se prezando a diferença em relação a outro material do qual deriva; de uma perspectiva etimológica, o prefixo para, que compõe a palavra paródia, já corrobora e induz uma ideia de oposição. Desse modo, essa proposta opera com o sentido final de corromper o convencionalismo - nesse caso, literário (Hutcheon, 1985HUTCHEON, Linda (1985). Uma teoria da paródia. Tradução de Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70.).

O mash up literário isenta-se de qualquer enquadramento de plágio ou bricolagem pelo fato de as releituras serem embasadas em obras já disponíveis em domínio público, após 70 anos de falecimento do seu autor, em território nacional (Rodrigues, 2013RODRIGUES, Sheila Darcy Antonio (2013). Mash up brasileiro, a coleção Clássicos Fantásticos: a literatura como produto do mercado editorial. 90f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. Disponível em Disponível em http://tede.mackenzie.br/jspui/handle/tede/2181#preview-link0 . Acesso em: 1º maio 2018.
http://tede.mackenzie.br/jspui/handle/te...
). Para além disso, a prática funciona como espécie de “‘autoria derivada’, marcada [...] pela capacidade de retomar a trajetória de retextualização revitalizando o texto fonte na memória coletiva” (Buzato et al., 2013BUZATO, Marcelo El Khouri; SILVA, Dáfnie Paulino da; COSER, Débora Secolim; BARROS, Nayara Natalia de; SACHS, Rafael Salmazi (2013). Remix, mashup, paródia e companhia: por uma taxonomia multidimensional da transtextualidade na cultura digital. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 13, n. 4, p. 1191-1221. https://doi.org/10.1590/S1984-63982013000400011
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
, p. 1209).

O PROSPECTO DA LINGUAGEM

A cultura do mash up literário no Brasil ganhou destaque a partir do lançamento da coleção Clássicos Fantásticos1 1 As obras da coleção cujos aspectos linguísticos são analisados neste estudo - O alienista caçador de mutantes (2010) e Dom Casmurro e os discos voadores (2010) - são publicadas e referenciadas em coautoria com o escritor clássico em questão - Machado de Assis -, ao contrário da produção de Pedro Vieira, lançada em moldes de produção independente. em 2010, da Editora LeYa, sob o selo editorial Lua de Papel. Nessa coleção, foram lançadas quatro obras que mesclam elementos da cultura de massa aos enredos das obras canônicas, produzindo, assim, novas obras. Sob demanda editorial, escritores contemporâneos ainda pouco conhecidos e aclamados pela crítica “repaginaram” obras de escritores com papéis historicamente basilares na tradição literária brasileira, como Machado de Assis, José de Alencar e Bernardo Guimarães. A coleção hoje conta com a publicação de quatro obras apropriadoras, as quais releem as respectivas obras clássicas: A Escrava Isaura e o Vampiro (A Escrava Isaura, de 1875), Senhora, a Bruxa (Senhora, de 1875), O Alienista Caçador de Mutantes (O Alienista, de 1882) e Dom Casmurro e os discos voadores (Dom Casmurro, de 1899). Os textos apropriadores, sobretudo, têm o intuito de provocar uma revisão dos textos já consagrados, além de fazer com que o público leitor possa imaginar de que forma esses clássicos poderiam se apresentar sendo escritos no contexto da sociedade atual.

Em destaque neste estudo, as obras a serem analisadas numa perspectiva de enredo e linguagem são os mash ups: Dom Casmurro e os discos voadores (2010), adaptado pelo escritor e pesquisador Lucio Manfredi; O Alienista caçador de mutantes (2010), da escritora, atriz e roteirista Natalia Klein; e Memórias Desmortas de Brás Cubas (2010), do escritor Pedro Vieira, única obra pertencente à Tarja Editorial, situando-se na fronteira entre o mash up e a paródia - esta última sendo o enquadramento dado pelo próprio autor (Alicerce Literário, 2022ALICERCE LITERÁRIO (2022). Entrevista com Lucio Manfredi e Pedro Vieira, autores dos mash ups literários Dom Casmurro e os discos voadores (2010) e Memórias Desmortas de Brás Cubas (2010). Disponível em: Disponível em: https://alicerceliterario94.blogspot.com/2022/07/entrevistas-com-lucio-manfredi-e-pedro.html . Acesso em: 9 jul. 2022.
https://alicerceliterario94.blogspot.com...
) -, a qual relê Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis.

Em O Alienista caçador de mutantes (2010), Natalia Klein direciona a trama para um contexto de ficção científica, atrelado à inserção de elementos do segmento contemporâneo, a exemplo das redes sociais, como Facebook, serviços como disque-pizza e séries televisivas, como Dr. House. Os elementos concatenam-se ainda na cidade de Itaguaí, local onde se passa a ação protagonizada pelo Dr. Simão Bacamarte, que é ainda mais desmedido com relação aos critérios de internação dos habitantes itaguaienses na Casa Verde (os quais possuem superpoderes), e o seu melhor amigo, Crispim Soares, que, nesse enredo, mantém uma relação amorosa com o alienista. Segundo Natalia Klein, “para compor ‘O Alienista Caçador de Mutantes’, além do original do Machado de Assis, eu também usei algumas reportagens sobre o E.T. de Varginha e personagens do ‘X-Men’” (Dume, 2010DUME, Paula (2010). Não tive nenhum pesadelo com Machado, diz autora de O Alienista caçador de mutantes. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/806478-nao-tive-pesadelo-com-machado-diz-autora-de-o-alienista-cacador-de-mutantes.shtml . Acesso em: 25 set. 2019.
https://www1.folha.uol.com.br/folha/livr...
). Também em entrevista, ela admite que preservou cerca de 60 a 70% do enredo machadiano. Dessa forma, é notório que alguns trechos e/ou expressões do livro clássico foram transcritos (Dume, 2010DUME, Paula (2010). Não tive nenhum pesadelo com Machado, diz autora de O Alienista caçador de mutantes. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/806478-nao-tive-pesadelo-com-machado-diz-autora-de-o-alienista-cacador-de-mutantes.shtml . Acesso em: 25 set. 2019.
https://www1.folha.uol.com.br/folha/livr...
).

No livro do mash up, a respeito da mudança da linguagem e do contexto, o Dr. Simão Bacamarte “recebeu do povo a alcunha de alienista - que vinha a ser uma combinação de alien com especialista” (Assis; Klein, 2010ASSIS, Joaquim Maria Machado de; KLEIN, Natalia (2010). O Alienista caçador de mutantes. São Paulo: Lua de Papel., p. 8). Percebe-se que a autora brinca com a linguagem ao também inserir elementos que produzem sentido no novo enredo, a exemplo da figura do alienígena.

Conforme entrevista concedida por Natalia Klein ao site O Globo (Brandão, 2010BRANDÃO, Lívia (2010). Grandes nomes da literatura brasileira ganham versões de suas obras mixadas com elementos pop. O Globo. Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/grandes-nomes-da-literatura-brasileira-ganham-versoes-de-suas-obras-mixadas-com-elementos-pop-2953743 . Acesso em: 24 set. 2019.
https://oglobo.globo.com/cultura/grandes...
), a autora teve dificuldade em compreender algumas palavras da obra primeira; dessa forma, alterou a linguagem do enredo, em benefício, sobretudo, do público mais jovem. Essas mudanças na linguagem, acompanhadas, consequentemente, de mudanças contextuais, são perceptíveis em vários momentos da segunda obra. O molde escriturístico de Machado de Assis é remodelado mediante a realidade da sociedade contemporânea e o que ela pode (ou poderia) esperar de uma releitura machadiana com toques de humor.

Ao início da obra, fica nítido o fato de o título mencionar os seres mutantes, os quais geralmente passam por modificações genéticas e possuem superpoderes. É o que se vê neste fragmento: “Simão Bacamarte entendeu desde logo que era necessário reformar aquele costume e pediu uma licença à Câmara para construir um edifício onde internaria e trataria todos os mutantes de Itaguaí” (Assis; Klein, 2010ASSIS, Joaquim Maria Machado de; MANFREDI, Lucio (2010). Dom Casmurro e os discos voadores. São Paulo: Lua de Papel., p. 12). De forma inusitada, fazendo referência a outro elemento fantástico - a figura do marciano, do extraterrestre -, o mash up tenta explicar, por meio de uma passagem, o porquê de o centro de internamento comum ao enredo das duas obras se chamar Casa Verde: “A Casa Verde foi o nome dado à instituição, por alusão à cor das janelas e também ao que se acreditava ser a cor dos marcianos” (Assis; Klein, 2010ASSIS, Joaquim Maria Machado de; KLEIN, Natalia (2010). O Alienista caçador de mutantes. São Paulo: Lua de Papel., p. 15).

No enredo do mash up de Natalia Klein, é comum encontrar referências a elementos pertencentes ao contexto cultural das últimas décadas, a exemplo de personagens de produções cinematográficas e até mesmo menções aos nomes dessas produções, de forma implícita ou explícita, como a menção da série de TV Alf, o Eteimoso, lançada em 1986: “Na Casa Verde, os mutantes eram muitos e os amigáveis bastante raros - sendo os últimos ainda mais espantosos pelo curioso da mutação. Um deles, um rapaz chamado Alfredo, ou Alf, como lhe chamavam os mais chegados, dizia-se bastante teimoso” (Assis; Klein, 2010ASSIS, Joaquim Maria Machado de; KLEIN, Natalia (2010). O Alienista caçador de mutantes. São Paulo: Lua de Papel., p. 21, grifo do original).

Mais adiante, a autora elenca outra alusão ao conhecimento da cultura pop, tratando-se, desta vez, de um jogo de palavras com a banda norte-americana Village People, a qual ficou mundialmente conhecida a partir do fim da década de 1970: “Todo tempo que lhe sobrava [a Simão Bacamarte] dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando com as pessoas da vila - ou Village People, como ele preferia chamá-las” (Assis; Klein, 2010ASSIS, Joaquim Maria Machado de; KLEIN, Natalia (2010). O Alienista caçador de mutantes. São Paulo: Lua de Papel., p. 31).

Sem abrir mão do humor e de elementos do senso comum de determinada cultura ou sociedade, Klein mescla aspectos conhecidos do público à união matrimonial entre Simão Bacamarte e D. Evarista, já conhecida pelos leitores do clássico machadiano:

Ao ver o marido, que se dirigia sóbrio e inabalado em sua direção, D. Evarista soltou um grito histérico e atirou-se a seu amado. Balbuciou algo incompreensível, que só podia se assemelhar a algum discurso satânico de palavras ao contrário, como no disco da Xuxa, depois teve uma leve convulsão que a fez babar um pouco sobre o paletó do alienista (Assis; Klein, 2010ASSIS, Joaquim Maria Machado de; KLEIN, Natalia (2010). O Alienista caçador de mutantes. São Paulo: Lua de Papel., p. 52).

Ao comentar Dom Casmurro e os discos voadores (2010) em entrevista publicada no blogAlicerce Literário (2022ALICERCE LITERÁRIO (2022). Entrevista com Lucio Manfredi e Pedro Vieira, autores dos mash ups literários Dom Casmurro e os discos voadores (2010) e Memórias Desmortas de Brás Cubas (2010). Disponível em: Disponível em: https://alicerceliterario94.blogspot.com/2022/07/entrevistas-com-lucio-manfredi-e-pedro.html . Acesso em: 9 jul. 2022.
https://alicerceliterario94.blogspot.com...
), Lucio Manfredi afirma que aproximadamente 30 a 40% do texto do mash up é reprodução textual do romance de Machado de Assis. Contudo, mesmo nos outros 60 a 70% escritos por ele, ele tentou preservar ao máximo a voz narrativa de Bentinho.

Nas primeiras páginas da obra, é possível identificar um dos principais elementos desenvolvidos nesse novo enredo - a menção sutil de que a personagem de José Dias é um androide, por possuir características típicas desse ser. De imediato, a situação não é mais bem descrita, pois o narrador-personagem, Bentinho, ainda não sabe das nuances da tentativa de dominação mundial por seres intergalácticos e androides - e que as pessoas que viviam à sua volta pertenciam a esses grupos:

Prima Justina, que como toda viúva não conseguia resistir a um mexerico, especulava que alguma coisa muito séria deveria ter acontecido ao agregado nesse meio tempo, alguma coisa que lhe abalara profundamente a saúde. A favor dessa teoria, apresentava um argumento que considerava irrefutável. É que, da primeira vez em que aparecera na fazenda, José Dias ainda não tinha aquele jeito mecânico de andar. Nem a voz metálica (Assis; Manfredi, 2010ASSIS, Joaquim Maria Machado de; MANFREDI, Lucio (2010). Dom Casmurro e os discos voadores. São Paulo: Lua de Papel., p. 21).

Mais adiante, o protagonista, Bentinho, vai sendo confrontado com uma realidade distinta daquela a que imaginava pertencer. Elementos que fugiam do seu conhecimento, principalmente por estarem num mesmo contexto de época apresentado na obra machadiana, vão sendo apresentados até mesmo pelo seu tio, que tenta convencê-lo, entusiasticamente, de que o que ele vê no céu não é um meteoro: “- Tipo raro de meteoro era o colete do Padre Inácio! - retrucou meu tio, jogando longe a manta que cobria suas pernas de entrevado e se inclinando para a frente, com os olhos saltando faíscas. - Era um navio! Um navio voador!” (Assis; Manfredi, 2010ASSIS, Joaquim Maria Machado de; MANFREDI, Lucio (2010). Dom Casmurro e os discos voadores. São Paulo: Lua de Papel., p. 26).

A protagonista Capitu também não escapa da inserção de novos elementos na sua personalidade, origem e estrutura física. Por ela, Bentinho pôde saber da existência dos aquepalos, seres não humanos que disputavam o controle mundial com os anunaques: “Capitu era o contrário disso, um anjo ávido por aprender tudo o que pudesse sobre este novo mundo no qual caíra. Bem que ela poderia saber que diabo era um aquepalo” (Assis; Manfredi, 2010ASSIS, Joaquim Maria Machado de; MANFREDI, Lucio (2010). Dom Casmurro e os discos voadores. São Paulo: Lua de Papel., p. 69). No que tange à estranheza do seu perfil físico, Bentinho observa: “Havia alguma coisa nos ombros de Capitu, mais exatamente nas omoplatas. Roçando a ponta dos dedos, eu sentia sob o tecido uma depressão, como um buraco, de onde escapava um sopro semelhante ao que nos sai pelas narinas. Ao tocá-los, Capitu se enrijeceu toda” (Assis; Manfredi, 2010ASSIS, Joaquim Maria Machado de; MANFREDI, Lucio (2010). Dom Casmurro e os discos voadores. São Paulo: Lua de Papel., p. 74).

Memórias Desmortas de Brás Cubas é uma “continuação” das Memórias Póstumas de Brás Cubas, tomando literalmente a condição do defunto autor como defunto: Brás Cubas narra o que lhe aconteceu depois da morte, quando escapou do seu caixão transformado em um morto-vivo, espalhando caos e carnificina pelo Rio Antigo. Pelo próprio texto, o personagem defunto explica o novo enredo, quando o seu antigo criado, Prudêncio, viola o seu túmulo com o objetivo de roubar o seu emplasto anti-hipocondria, já mencionado em Memórias Póstumas de Brás Cubas:

Prudêncio voltou sorrateiramente ao cemitério, munido de pá e picareta, com um objetivo claro: profanar o meu túmulo e roubar o meu cadáver. [...] Há! Qual foi a surpresa quando abriu o caixão e eu saltei, faminto como nunca, agarrei-lhe pelo pescoço e devorei seu cérebro até que a última gota de massa cinzenta respingasse em minha bem aparada barba (Vieira, 2010VIEIRA, Pedro (2010). Memórias Desmortas de Brás Cubas. São Paulo: Tarja Editorial., p. 17).

Em algumas passagens da obra, o autor contemporâneo procura se aproximar da abordagem direta que Machado de Assis costumava fazer ao leitor, estabelecendo também uma menor estranheza em relação ao enredo clássico, uma vez que Brás Cubas, ao narrar a própria história, já estava morto, como Vieira (2010VIEIRA, Pedro (2010). Memórias Desmortas de Brás Cubas. São Paulo: Tarja Editorial., p. 19) satiriza: “Se você é do tipo que não pode se conter enquanto espera um festim sanguinolento [...] pule os próximos três ou quatro capítulos. Mas eu faço um apelo para que você leia meus interlúdios, um defunto não escreve nada por acaso!”.

Outro aspecto que merece destaque nesse mash up é o fato de Pedro Vieira fazer uma crítica/sátira da enorme fortuna crítica do clássico machadiano que ele relê - a qual atormenta os jovens com tanta informação -, numa tentativa, assim, de tornar o novo enredo mais deleitoso para o público em questão, além de também citar produtos culturais da contemporaneidade:

Quantos jovens alunos de ensino médio aprenderam caldeirões de excrementos inúteis despejados sobre minhas queridas Memórias Póstumas sem sequer serem informados que aquelas foram apenas mal traçadas linhas de um morto-vivo atormentado pela falta de miolos? Então não estranhe quando eu citar A Madrugada dos Mortos ou Blade Runner. Foi-se o tempo em que eu me importava em citar Virgílio ou Sêneca (Vieira, 2010VIEIRA, Pedro (2010). Memórias Desmortas de Brás Cubas. São Paulo: Tarja Editorial., p. 20).

Em outra passagem, além de elencar elementos do segmento tecnológico, o autor ainda mescla a trama com a inserção de personagens e elementos oriundos de outras tramas de Machado de Assis, como “A Cartomante”: “É imperdoável pautar-se pelas mesmas - como era Lobo Neves com sua triscaidecafobia (sim, Leitor, a fobia ao número treze, e é evidente que eu procurei esse palavrão no Google)” (Vieira, 2010VIEIRA, Pedro (2010). Memórias Desmortas de Brás Cubas. São Paulo: Tarja Editorial., p. 27).

De acordo com a entrevista concedida por Pedro Vieira publicada no blog Alicerce Literário (2022ALICERCE LITERÁRIO (2022). Entrevista com Lucio Manfredi e Pedro Vieira, autores dos mash ups literários Dom Casmurro e os discos voadores (2010) e Memórias Desmortas de Brás Cubas (2010). Disponível em: Disponível em: https://alicerceliterario94.blogspot.com/2022/07/entrevistas-com-lucio-manfredi-e-pedro.html . Acesso em: 9 jul. 2022.
https://alicerceliterario94.blogspot.com...
), a sua preocupação inicial era enquadrar a releitura como um mash up para agregar valor no mercado editorial2 2 À época do boom do mash up literário no âmbito estadunidense, a Editora LeYa, sob o selo Lua de Papel, lançou mão da coleção Clássicos Fantásticos no Brasil, em 2010. A extinta Tarja Editorial visualizou o contexto como proveitoso para, também, fazer o lançamento independente da obra do Pedro Vieira. Enquadrando Memórias Desmortas de Brás Cubas - a qual foi lançada no mesmo ano em que o foram as produções dos outros escritores - como um mash up, a produção contaria com o possível fervor de um mercado editorial que buscasse leitores cientes e curiosos acerca da transformação literária que estava ocorrendo em outro território, alavancando as suas vendas. Alguns escritores que adotam a técnica, assim como admiradores e estudiosos da apropriação textual em questão, entram em consenso e apontam para o fato de que, apesar da ousada iniciativa, o lançamento dessas produções, em um espectro mercadológico, não foi bem-sucedido. , por ser uma demanda constante à época do seu lançamento. Como o personagem do Brás Cubas, nessa obra, tem a consciência de estar “vivendo” numa época moderna, ele procura atualizar a sua linguagem e vocabulário no cerne do enredo. Segundo o autor, “tem um capítulo em que o Brás entra em um chat pra conversar com ‘jovens’ e fica perdido (daí decide que também não precisa se atualizar demais)” (Alicerce Literário, 2022ALICERCE LITERÁRIO (2022). Entrevista com Lucio Manfredi e Pedro Vieira, autores dos mash ups literários Dom Casmurro e os discos voadores (2010) e Memórias Desmortas de Brás Cubas (2010). Disponível em: Disponível em: https://alicerceliterario94.blogspot.com/2022/07/entrevistas-com-lucio-manfredi-e-pedro.html . Acesso em: 9 jul. 2022.
https://alicerceliterario94.blogspot.com...
). A pretensão do escritor era fazer com que o texto derivado fosse mais limpo e moderno, mas ainda mantendo algumas expressões antiquadas3 3 Atendendo ao formato da produção deste estudo, elencamos como pertinente a análise do arcabouço linguístico das produções apropriadoras em relação às produções apropriadas. Enquadradas como obras que repaginam textos clássicos de Machado de Assis, as produções de Lucio Manfredi, Natalia Klein e Pedro Vieira oferecem-nos um amplo campo para análise bibliográfica, presente em estudos desenvolvidos pelos autores da presente pesquisa, bem como possibilitam a apuração de aspectos condizentes com conceitos e teorias no âmbito da cultura de massa e da literatura comparada. para não perder totalmente a ambiência narrativa do clássico, minimizando um possível estranhamento causado ao leitor contemporâneo “que, bem ou mal, quer ler uma paródia de zumbis” (Alicerce Literário, 2022ALICERCE LITERÁRIO (2022). Entrevista com Lucio Manfredi e Pedro Vieira, autores dos mash ups literários Dom Casmurro e os discos voadores (2010) e Memórias Desmortas de Brás Cubas (2010). Disponível em: Disponível em: https://alicerceliterario94.blogspot.com/2022/07/entrevistas-com-lucio-manfredi-e-pedro.html . Acesso em: 9 jul. 2022.
https://alicerceliterario94.blogspot.com...
).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os mash ups que releem os clássicos machadianos em estudo abrem espaço para um novo olhar perante a linguagem, que sofre modificações no âmbito da literatura, uma vez que acompanha o ritmo de mudanças em meio social. Esse tipo de produção ainda está em processo de reconhecimento e “legitimidade” por parte do público leitor e também da crítica literária, que, de certa forma, ainda se preocupa em preservar a hierarquia do autor canônico e da sua obra. Ainda há uma cobrança, oriunda dos lugares em questão, quanto à pertinência e ao aval para que textos apropriativos sejam produzidos, como se estes fossem responsáveis por depreciar os textos-fonte. Além disso, partem do pressuposto de que a apropriação não acompanha o princípio da criatividade; que quem reescreve, ainda que em outros moldes ou outros enredos, não está sendo “original” - termo este responsável por abrir espaço para reflexões sobre as mudanças que estão acontecendo no fazer literário contemporâneo, nas quais é possível reconhecer que o conceito de originalidade sofre mutação a todo momento. Dessa forma, o escrito clássico, o texto-fonte, não é intocável.

Um aspecto que merece destaque é que Machado de Assis, embora ocupando a figura de escritor clássico, é responsável, de certa forma, por tentar minimizar a noção de estranhamento do leitor contemporâneo com relação à linguagem e ao enredo dessas releituras. Em se tratando das obras clássicas relidas, pode-se citar quão desconfortável era acompanhar a personagem de Bentinho, em Dom Casmurro, de forma obcecada a tentar adivinhar os interstícios de uma relação de adultério que nunca se confirmou, pois toda a obra foi conduzida para provocar dúvidas e despertar criticidade por parte do leitor.

Simão Bacamarte, protagonista da obra O Alienista, estendia o diagnóstico da loucura sem precedentes e critérios maiores para quem resolvesse se “internar” na Casa Verde, o que suscitava, por fim, a dúvida de que ele provavelmente fosse o único cuja sanidade pudesse ser questionada. E, sem sombra de dúvidas, o aspecto de estranhamento maior, por parte do leitor - principalmente o da época de lançamento do livro -, é causado pelo caráter de normalidade com o qual o narrador do clássico Memórias Póstumas de Brás Cubas conduz a apresentação do livro, mesmo sabendo que o indivíduo em questão já está morto. Além disso, Brás Cubas preza pelo tempo psicológico para narrar a história da sua vida - o que abre espaço, certamente, para que o leitor contemporâneo se familiarize um pouco mais com a saga de Brás Cubas no enredo segundo.

Machado de Assis já abria espaço para o novo. A linguagem utilizada nos mash ups não alcança o absurdo, mas sim acompanha mudanças nas demandas culturais e sociais. A inovação trazida pela releitura, em nível de produção textual, pode se alicerçar no que defende o teórico J. Stückrath ao afirmar que “a qualidade de uma obra é função do seu grau de inovação” (Lima, 1979LIMA, Luiz Costa (1979). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 48).

REFERÊNCIAS

  • ALICERCE LITERÁRIO (2022). Entrevista com Lucio Manfredi e Pedro Vieira, autores dos mash ups literários Dom Casmurro e os discos voadores (2010) e Memórias Desmortas de Brás Cubas (2010) Disponível em: Disponível em: https://alicerceliterario94.blogspot.com/2022/07/entrevistas-com-lucio-manfredi-e-pedro.html Acesso em: 9 jul. 2022.
    » https://alicerceliterario94.blogspot.com/2022/07/entrevistas-com-lucio-manfredi-e-pedro.html
  • ASSIS, Joaquim Maria Machado de; KLEIN, Natalia (2010). O Alienista caçador de mutantes São Paulo: Lua de Papel.
  • ASSIS, Joaquim Maria Machado de; MANFREDI, Lucio (2010). Dom Casmurro e os discos voadores São Paulo: Lua de Papel.
  • BAKHTIN, Mikhail (2003). O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes. p. 3-192.
  • BARTHES, Roland (1977). Aula Tradução de Leyla Perrone-Moisés. 14. ed. São Paulo: Cultrix.
  • BARTHES, Roland (2004). A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua São Paulo: Martins Fontes. Disponível em: Disponível em: http://www2.eca.usp.br/Ciencias.Linguagem/L3BarthesAutor.pdf Acesso em: 30 abr. 2018.
    » http://www2.eca.usp.br/Ciencias.Linguagem/L3BarthesAutor.pdf
  • BEMBEM, Angela Halen Claro; SANTOS, Plácida Leopoldina V. Amorim da Costa (2013). Inteligência coletiva: um olhar sobre a produção de Pierre Lévy. Perspectivas em Ciência da Informação, v. 18, n. 4, p. 139-151. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pci/v18n4/10.pdf Acesso em: 25 maio 2018. https://doi.org/10.1590/S1413-99362013000400010
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/S1413-99362013000400010» http://www.scielo.br/pdf/pci/v18n4/10.pdf
  • BOURRIAUD, Nicolas (2009). Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fontes.
  • BRANDÃO, Lívia (2010). Grandes nomes da literatura brasileira ganham versões de suas obras mixadas com elementos pop. O Globo Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/grandes-nomes-da-literatura-brasileira-ganham-versoes-de-suas-obras-mixadas-com-elementos-pop-2953743 Acesso em: 24 set. 2019.
    » https://oglobo.globo.com/cultura/grandes-nomes-da-literatura-brasileira-ganham-versoes-de-suas-obras-mixadas-com-elementos-pop-2953743
  • BUZATO, Marcelo El Khouri; SILVA, Dáfnie Paulino da; COSER, Débora Secolim; BARROS, Nayara Natalia de; SACHS, Rafael Salmazi (2013). Remix, mashup, paródia e companhia: por uma taxonomia multidimensional da transtextualidade na cultura digital. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 13, n. 4, p. 1191-1221. https://doi.org/10.1590/S1984-63982013000400011
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/S1984-63982013000400011
  • DUME, Paula (2010). Não tive nenhum pesadelo com Machado, diz autora de O Alienista caçador de mutantes Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/806478-nao-tive-pesadelo-com-machado-diz-autora-de-o-alienista-cacador-de-mutantes.shtml Acesso em: 25 set. 2019.
    » https://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/806478-nao-tive-pesadelo-com-machado-diz-autora-de-o-alienista-cacador-de-mutantes.shtml
  • FOUCAULT, Michel (2002). O que é um autor? Tradução de António Fernando Cascais. Lisboa: Vega.
  • HUTCHEON, Linda (1985). Uma teoria da paródia Tradução de Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70.
  • JENKINS, Henry (2009). Cultura da convergência Tradução de Susana Alexandria. São Paulo: Aleph.
  • JESUS, Ivoneide; PEREIRA, Vinícius (2015). Instância autoral morta-viva em Orgulho e Preconceito e Zumbis. Desenredo, Passo Fundo, v. 11, n. 1, p. 155-169. Disponível em: Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rd/article/view/5035 Acesso em: 27 maio 2018.
    » http://seer.upf.br/index.php/rd/article/view/5035
  • LIMA, Luiz Costa (1979). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • RODRIGUES, Sheila Darcy Antonio (2013). Mash up brasileiro, a coleção Clássicos Fantásticos: a literatura como produto do mercado editorial. 90f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. Disponível em Disponível em http://tede.mackenzie.br/jspui/handle/tede/2181#preview-link0 Acesso em: 1º maio 2018.
    » http://tede.mackenzie.br/jspui/handle/tede/2181#preview-link0
  • VIEIRA, Pedro (2010). Memórias Desmortas de Brás Cubas São Paulo: Tarja Editorial.
  • VILLA-FORTE, Leonardo (2016). A escrita de apropriação no contexto da pós-produção. FronteiraZ, São Paulo, n. 17, p. 281-295. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/fronteiraz/article/view/26942 Acesso em: 1º maio 2018.
    » https://revistas.pucsp.br/index.php/fronteiraz/article/view/26942
  • 1
    As obras da coleção cujos aspectos linguísticos são analisados neste estudo - O alienista caçador de mutantes (2010) e Dom Casmurro e os discos voadores (2010) - são publicadas e referenciadas em coautoria com o escritor clássico em questão - Machado de Assis -, ao contrário da produção de Pedro Vieira, lançada em moldes de produção independente.
  • 2
    À época do boom do mash up literário no âmbito estadunidense, a Editora LeYa, sob o selo Lua de Papel, lançou mão da coleção Clássicos Fantásticos no Brasil, em 2010. A extinta Tarja Editorial visualizou o contexto como proveitoso para, também, fazer o lançamento independente da obra do Pedro Vieira. Enquadrando Memórias Desmortas de Brás Cubas - a qual foi lançada no mesmo ano em que o foram as produções dos outros escritores - como um mash up, a produção contaria com o possível fervor de um mercado editorial que buscasse leitores cientes e curiosos acerca da transformação literária que estava ocorrendo em outro território, alavancando as suas vendas. Alguns escritores que adotam a técnica, assim como admiradores e estudiosos da apropriação textual em questão, entram em consenso e apontam para o fato de que, apesar da ousada iniciativa, o lançamento dessas produções, em um espectro mercadológico, não foi bem-sucedido.
  • 3
    Atendendo ao formato da produção deste estudo, elencamos como pertinente a análise do arcabouço linguístico das produções apropriadoras em relação às produções apropriadas. Enquadradas como obras que repaginam textos clássicos de Machado de Assis, as produções de Lucio Manfredi, Natalia Klein e Pedro Vieira oferecem-nos um amplo campo para análise bibliográfica, presente em estudos desenvolvidos pelos autores da presente pesquisa, bem como possibilitam a apuração de aspectos condizentes com conceitos e teorias no âmbito da cultura de massa e da literatura comparada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2022
  • Aceito
    18 Abr 2022
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistaestudos@gmail.com