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Apontamentos sobre um excerto demasiado lido

Notes About an Excerpt Too Much Readed

Resumo

Lida sem atenção, a avaliação do Poema de Parmênides por Nietzsche corre o risco de frustrar, mais do que estimular, os leitores não-iniciados em Filosofia. Pois, nela o filósofo não só ignora a pesquisa sua contemporânea sobre o Eleata, como insere o seu pensamento numa polêmica antiracionalista, recheada de equívocos e intuições infundadas. É nosso objetivo aqui tentar restituir credibilidade a esta avaliação, apontando as linhas que orientam o diálogo do crítico com o seu objeto tanto para o senso-comum, como para o seu próprio pensamento.

Palavras-chave:
Parmênides; Ontologia; antinaturalismo; “o ser”

Abstract

Carelessly read, Nietzsche’s evaluation of Parmenides frustrates rather than stimulates non-initiate readers in Philosophy. For the German philosopher ignores any current research on the Eleatic thinker, inserting his arguments in an anti-rationalist polemic, mostly based on unfounded intuitions. We aim at establishing the credibility of Nietzsche’s criticism on the grounds of common sense and of his own heraclitean influenced philosophy.

Keywords:
Parmenides; Ontology; anti-naturalism; “being”

Na pequena obra que a coleção OS PENSADORES dedica aos Pré-socráticos (Nova Cultural, 1996), adverte José Cavalcante de Souza (1973) da intenção de incluir textos modernos” (p. 37), visando a “fazer ver”… “a projeção do que à primeira vista parece insignificante”… “em páginas densas de reflexão sobre o que mais de perto nos concerne” (p. 38). Entre eles, escolhemos o excerto que Nietzsche dedica a Parmênides, em A Filosofia na Época Trágica dos Gregos (PHG/FT, KSA. 1.835-851, §§ IX-XIII, p. 127-1381 1 Comentamos a partir da tradução assinada por Carlos A. R. de Moura. ).

Pensamos que este texto merece atenção pelas dificuldades que levanta a um leitor atual. No meio da agressiva polêmica contra o racionalismo, Nietzsche semeia intuições preciosas - por vezes de uma atualidade flagrante -, a par de equívocos que deverão ser avaliados pelas perspectivas da Crítica mais recente do pensamento do Eleata. O nosso objetivo é tornar clara a relevância filosófica e histórica do escrito que a seguir resumimos e comentamos.

*

Cotejando Parmênides com Heráclito e Anaximandro, no § IX, o filósofo esboça uma introdução à análise do Poema. Abordando a Opinião como se antecedesse a Verdade, sugere ser aquela que representa o pensamento do Eleata, quando jovem (PHG/FT, KSA. 1.835, p. 127).

Tratada sumariamente no § X, a Verdade é apresentada como justificação das críticas do Eleata ao uso dos sentidos, das quais resulta o desprezo pela investigação da natureza. Os §§ XI-XII concentram-se na análise dos conceitos de ‘ser’ e ‘não-ser’ como prelúdio à ontologia, enquadrando-os por referências a Aristóteles, Kant e Hegel, até, após uma digressão por Zenão, o § XIII recuperar o “vir-a-ser”, reconfigurado no contexto do “movimento eterno”.

Dividimos este texto em quatro partes. Enquanto, nas primeira e terceira, resumimos o excerto publicado nos Pré-socráticos, na segunda, propomos uma interpretação sumária do Da natureza, nos debruçando, na quarta, a partir do § XIII, sobre o sentido da crítica do filósofo ao poeta de Eleia.

I

IX. Tal como Heráclito, Parmênides é identificado como “um profeta da verdade”, porém, um “formado de gelo, não de fogo, vertendo em torno de si uma luz fria e penetrante” (PHG/FT, KSA. 1.835, p. 127). Estas metáforas, entre as muitas recorrentes no texto, refletem a intenção polêmica de Nietzsche contra o Eleata. A “teoria do ser” que lhe atribui representa “um momento não grego da mais pura abstração”, “separando o pensamento pre-socrático nas suas metades “anaximândrica” e “parmenídica”. Se a primeira produziu “um sistema físico-filosófico efetivo”, “formulando a mais simples proposição sobre o ser e o não ser”, a segunda “reduziu [a outra] a nada”. Talvez o objetivo de Parmênides fosse dizer que “verdadeiramente existe apenas um caminho correto; mas, querendo dirigir-se por outro caminho, o único correto é o da minha antiga opinião, por seus bens e sua consequência” (PHG/FT, KSA. 1.835, p. 127; para uma revalorização da Opinião, ver L. Rossetti, 2017ROSSETTI, L. (2017). Un altro Parmenide. I: Il sapere peri physeos; II: Luna, antipodi, sessualità, logica. Diogene, Bologna., p. 9-22,; S. Tor, 2015TOR, S. (2015). Parmenides’ Epistemology and the Two Parts of His Poem. Phronesis 60.1, 3-39. , p. 30-34).

A frase - entre aspas no original - propõe nada menos que a inversão da visão tradicional do Poema. Assumindo uma imaginária leitura evolutiva do Da natureza, sem mencionar a Verdade, Nietzsche observa que Parmênides “parece não ter perdido toda a piedade paternal pela criança forte e bem formada da sua juventude”, sendo por isso levado a dar “ao seu antigo sistema físico importante e extenso espaço no Poema”. E considera essa atitude ”um resto de sensibilidade humana numa natureza quase transformada em uma máquina de pensar, inteiramente petrificada pela intransigência lógica”2 2 Parmênides defende que, entre dois caminhos - “é” e “não-é” -, só o primeiro (B2.3) pode ser conhecido. Nietzsche corrige-o: “no entanto, se buscarmos um outro caminho (B6.4-9), o “único correto” é o da [“minha antiga”] Opinião” (B8.50-B19). (PHG/FT, KSA. 1.836, p.128).

Alega a possibilidade de o Eleata (515-445 a. C.) ter mantido “relações pessoais com Anaximandro” (610-546 a. C.), por “suspeitar da perfeita separação entre um mundo que apenas é e um mundo que apenas vem a ser” (Simplício, Phys. 39, 10; In cael. 558.3-11; nesta mesma linha, J. Palmer, 2016PALMER, J. (2016). Parmenides. Stanford Encyclopedia of Philosophy. https://plato.stanford.edu
https://plato.stanford.edu...
, 3.1-3-5; 2009), se apoiando na explicação do Milésio para o fato de “o lugar do crime ser simultaneamente o da expiação para a injustiça do vir-a-ser”3 3 Remetendo para o “fragmento de Anaximandro” (DK12B1), o filósofo se refere à necessária corrupção dos seres gerados a partir do apeiron, “pela injustiça que cometem uns sobre os outros, segundo a ordem do tempo”. Mas é bem claro que implicitamente contrapõe um cosmos governado pela Necessidade a outro, onde a contingência impera. .

Reagindo ao “vir-a-ser” de Heráclito - eleito como seu interlocutor -, o Eleata contrasta “as qualidades umas com as outras”, comparando luz e obscuridade. Vê uma e outra como qualidades opostas, cada uma como a “negação da outra”: positiva ou negativa (PHG/FT, KSA. 1.836, p. 128). Mas, ao preferir lhes chamar “ser” e “não-ser”, defende que, “em todo vir-a-ser está contido algo de ser e em atividade” (PHG/FT, KSA. 1.837, p. 129).

O problema do Eleata era “o que é o vir-a-ser”? Pois, nem o ser, nem o não-ser têm a culpa do perecer, nem, sem os dois, haverá nascer. Ambos, embora “produzidos por qualidades negativas”, “pressupõem qualidades positivas”, da ação conjunta dos dois “resultando um vir-a-ser” (PHG/FT, KSA. 1.837, p. 129).

Se pensaria que, como contraditórios, se repelissem constantemente. Todavia, a sua tendência a se aproximar e se atrair é simbolizada por Afrodite, “pela conhecida relação mútua e empírica entre masculino e feminino”. É por ela que o desejo une os elementos conflitantes, produzindo o “vir-a-ser”; ou, uma vez satisfeito o desejo, o ódio separa ser e não-ser e “a coisa perece” (PHG/FT, KSA. 1.837, p. 129-130).

X. É então que Parmênides recebe a influência de Xenófanes, de quem lhe terá vindo “o impulso místico ao Uno e inteiramente imóvel” (130; ver o paralelo em: J. De Long, 2016, 10-24; A. Lebedev, 2109, 641-650). Levado pela “firme e terrível mão da verdade tautológica sobre o ser, Parmênides desce agora ao abismo das coisas”. E encontra-o nos “homens que nada sabem”, para quem, com “duas cabeças”, “surdos e cegos”, “ser e não-ser são e não são os mesmos” e “tudo está em fluxo” (131: ver Da natureza B6-4-9).

É contra eles que produz a série de interditos coletada ao logo de B8.1-49. O “presente é eterno”, “o ser não pode vir-a-ser”, “não perece”, “é indivisível e imóvel”, “limitado”, “acabado”, “perfeito como uma esfera” “paira sem espaço”, “existindo apenas a Unidade eterna” (PHG/FT, KSA. 1.839, p. 132).

Por isso, olhando o mundo do vir-a-ser, zanga-se com olhos e ouvidos (ver Da natureza B6.6-7, B7.1-4), aconselhando a “tudo examinar somente com a força do pensamento” (ver Da natureza B7.5), deste modo “operando a primeira crítica ao aparelho do conhecimento”. Separada dos sentidos, a razão, “desintegrou o próprio intelecto”, animando essa “divisão entre corpo e espírito, que desde Platão pesa sobre a filosofia como uma maldição” (PHG/FT, KSA. 1.843, p. 132).

Com ela é suprimida a possibilidade de alguém vir a investigar a natureza, porque o “interesse pelo fenômeno” … “se forma em ódio, em não poder livrar-se desta eterna fraude dos sentidos”, obrigado a habitar “nas caixas vazias das mais indeterminadas palavras” (PHG/FT, KSA. 1.844, p. 133).

II

Introdução

Pensamos que a maior dificuldade do intérprete do Da natureza será a de conceber a unidade de um texto perdido, do qual nos chegaram 19 fragmentos, numerados arbitrariamente e reunidos em três seções - Proémio (B1), Verdade (B2-B8.49), Opinião (B8.50-B19) -, cujas dimensões originais só podemos conjecturar. Por isso, para conferir unidade ao Poema bom número de intérpretes se dedicou à definição do argumento que percorre, senão a sua totalidade, ao menos cada uma das suas partes. É a via que ensaiaremos aqui.

No entanto, parece-nos impossível interpretar o Poema sem partir de pressupostos que dois séculos de crítica repetidamente mostraram ser arbitrários, avançando hipóteses nunca consensualmente aceitas. É nosso objetivo mostrar que, dada essa falta de consenso, agravada pela ausência de uma “teoria do ser” (que só encontramos a partir de Melisso), faltam apoios para sustentar com segurança qualquer interpretação definitiva do Poema de Parmênides.

Não se pode, porém, esquecer que a influência do argumento de Parmênides se estende à quase totalidade dos pensadores gregos posteriores (embora cada um - ao aprová-lo ou rejeitá-lo - o adapte à “sua concepção” própria), passando deles a toda a tradição. Por exemplo, só nos diálogos de Platão encontramos quatro leituras distintas do Eleata (da influência, nos primeiros diálogos, até à presença, na República V, Parmênides, Teeteto-Sofista). Por seu turno, em Aristóteles, passamos da crítica, na Física I2-3 (refutando as teses da unidade e imobilidade de “o que é”), às referências, na Metafísica I4-5, que alinham reflexões esparsas sobre o Parmênides metafísico e o cosmologista.

Verdade

Passando à análise da Verdade (B2-B8.49), partimos do argumento que comanda B2. Parmênides começa por apontar “os dois únicos caminhos para pensar”: “é” e “não é” (B2.3-5). Mas, como o segundo “não pode ser conhecido” (B2.7), resta o primeiro (B2.3) como o único de que haverá conhecimento. Para alguns intérpretes, a esta conclusão se associa a “mesmidade de pensar e ser”4 4 B3 recebeu duas traduções, determinantes da interpretação global do Poema: “Pensar é o mesmo que existir (ser)”, de Diels, e “A mesma [coisa] pode ser pensada e ser”, de Zeller (1892, 558, n.1). A primeira sustenta a identidade de “ser e pensar” e suporta uma leitura idealista, subentendendo “o que é” como incorpóreo (Melisso, DK29B9). A segunda implica que algo uno (o todo, ou uma coisa “que é”) pode ser (existir) e ser pensada (viabilizando, sem a forçar, uma leitura materialista: Burnet, 1970, 200-210; Gomperz, 273-274). Este é o problema do tipo de monismo sustentado por Parmênides (Sisko, 2015, 42-57; Palmer, 2016, 2009; Mourelatos, 2008; Curd, 1998, 1992). Para ultrapassar esta crux alguns defendem a separação de B3 de B2, desligando a identidade do argumento sobre os caminhos (Altman, 2015, 210-225). (B3; B8.34). Replicada em B6.1-2a, esta “identidade” acrescenta ao “ser e pensar” “o dizer”, e, contraposta a nada “que não é”, reforça a disjunção entre as alternativas contrárias: “é/não-é”.

Todavia, “os mortais, que nada sabem”, arrastados pelo costume de “ver, ouvir e falar” (B6.6-7; B7.3-5a), confundem esta oposição, cedendo ao hábito que os força à conjunção de “é e não é” (B6.8-9). É contra ele - “não imporás que não-entes são” (B7.1) - que a deusa exorta o jovem a defender o caminho “é” pelo discurso (ou argumento: B7.5).

Para exemplificar essa prática, expõe um longo argumento (B8.1-49), apontado as quatro teses que a oposição de “é” a “não é” torna inaceitáveis: “o que é” nasce e se corrompe (B8.3-24), é divisível (25-28), muda e se move (29-32a, 42-48), e acha-se em processo (32b-34). Aqui chegada - após um breve interlúdio, no qual compara “o [nome] que é” (34-38a) aos nomes cunhados pelos mortais, “convencidos de que são verdadeiros” (38b-41) -, a deusa abandona a Verdade para iniciar o seu “relato enganador”, sobre as “opiniões dos mortais” (50-61).

Opinião

Estes instituíram duas formas - Fogo e Noite - às quais atribuíram potências contrárias: leveza/peso, suavidade/densidade, luz/escuridão (B8.53-59). Significa isso que postularam duas formas distintas, quando só deviam ter postulado uma, pois assim se condenaram a “errar” entre uma e outra (54b; talvez por terem sustentado que, se uma “é”, a outra “não é”; mas o verso suporta leituras contraditórias). Para isso, não só distinguiram “corpos contrários” - "fogo e noite" -, como lhes atribuíram “potências”; ou seja, predicados separados uns dos outros: de um lado, a “chama branda e leve” (56-57); do outro, a “noite sem luz, espessa e pesada” (58-59). Por analogia com as cosmologias dos Milésios, cada um destes deve ser entendido como um dos dois “contrários” (para Aristóteles, “ser e não-ser”) registrados pela tradição, cada um caracterizado pelas suas respectivas potências.

O fragmento termina com uma justificação oferecida pela deusa. Este ensinamento, por ela mesma considerado “enganador” - apesar de descrever uma “ordem cósmica plausível” -, foi prestado com a finalidade de preservar o jovem de ser “transviado” pelo “saber dos mortais” (60-61). Parece ser lícito interpretar positivamente esta justificação, aceitando que este “saber” possa ser interpretado como modelo de qualquer outra cosmologia.

Deste modo, “tudo foi denominado luz ou noite e o conforme a estas potências foi dado a “um e a outro” (B9.1-2). No entanto, “tudo é igualmente cheio de luz e de noite obscura”, porque “ambas [são] iguais, uma vez que nenhuma delas “tem parte de nada" (B9.3-4). Portanto, tudo é luz e sombra (misturadas).

Síntese

O fato de o Poema ter chegado à Modernidade num estado fragmentário torna difícil construir a unidade da mensagem do Eleata. Por esse motivo, apenas sugerimos que a chave da lição da deusa aos homens se acha no modo como Verdade e Opinião se conjugam (B1.29-32). Inserindo a estrutura da oposição (“é/não é”: B2, B3, B6.1-2a) na da complementaridade (“algo é e não é”) da "ordem cósmica” instituída pelo “saber dos mortais” (B8.60-61), são definidos dois domínios ontoepistemológicos paralelos (Santos, 2015SANTOS, J. T. (2015). Parmênides e a antepredicatividade. Filosofia. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto 32, 9-33., p. 9-33).

Reconhecendo que o argumento de B2, B3, B6, B7 impõe "que é" como o único caminho que proporciona conhecimento (B3, B8.18b, 34-37a), parece ainda assim ser possível admitir a aceitabilidade do recurso dos humanos às “coisas que parecem" (B1.28b-32, B8-60-61), que B6 e B7 associarão ao exercício da sensibilidade. Com este movimento, a deusa propõe uma plataforma crítica, associada à linguagem (B2.7-8a, B6.1a), no que respeita à problemática dos nomes. Os "nomes cunhados pelos mortais" (B8.39-40) não passam de não-nomes ("gerar-se e destruir-se”, “ser e não-ser”, “mudar de lugar”, “mudar a cor brilhante”: B8.41-42), porque todos nomeiam o único nome “que é” (B8.39).

Admitindo este princípio, o devir acha-se formalmente excluído da Verdade. Todavia, uma ordem cósmica como aquela a que os homens têm acesso pelo pensamento que lhes chega pela mistura (B16.1-4) explicará a regressividade da opinião (B6.9).

Produzida pela mistura dos órgãos dos sentidos, esta é corrigida pelo predomínio do pensamento, o mesmo em todos os homens (B16). Análogo movimento é registrado em B8.53-61 e B9, onde o estabelecimento das "duas formas" é primeiro censurado (B8.54), depois, em B9, corrigido pela conclusão de que as duas formas nomeadas convergem numa única, já que, "noite e luz" enchem tudo igualmente (mas esta interpretação é extremamente controversa, dada a ausência de consenso entre os intérpretes: P. Curd 1992CURD, P. (1992). Deception and Belief in Parmenides’ “Doxa”. Apeiron 25, nº 2, 109-133., p. 117-133; S. Tor 2015TOR, S. (2015). Parmenides’ Epistemology and the Two Parts of His Poem. Phronesis 60.1, 3-39. , p. 9-22).

Por fim, B19 sintetiza o processo pelo qual a Opinião é constituída a partir de ‘não-nomes’: "os homens deram [às coisas] um nome que distingue cada uma" (B19.1-3). O final do fragmento - e plausivelmente do Poema -, patenteia a operação pela qual cada uma das coisas é distinta mediante os nomes que os mortais cunharam, inserindo-a numa realidade dominada pelo devir.

Devemos considerar a Opinião completamente enganadora (Mourelatos, 1970; Barnes, 1979BARNES, J. (1979). The Presocratic Philosophers, II. Routledge, London., 157; De Long, 2016DE LONG, J. (2016). Parmenides’ Theistic Metaphysics, 10-24 (Unpublished Dissertation, University of Kansas).)? Ou constituirá uma mera tentativa - talvez a melhor possível - de explicar os erros dos mortais (Chalmers, 1960, p. 5-22; A. Long, 1963; P. Curd, 1992CURD, P. (1992). Deception and Belief in Parmenides’ “Doxa”. Apeiron 25, nº 2, 109-133., p. 109-111; J. Lesher, 1999LESHER, J. (1999), Early Interest in Knowledge. In Early Greek Philosophy, 225-249., p. 236-241; S. Tor, 2015TOR, S. (2015). Parmenides’ Epistemology and the Two Parts of His Poem. Phronesis 60.1, 3-39. , 6-33)? Creio que esta última posição, admitidas as muitas diferenças que separam os que por ela optam, merece a nossa atenção.

Nietzsche e a Opinião

Nada nesta descrição se conforma com as “qualidades positivas e negativas” que Nietzsche menciona, cada uma constituindo a mera “negação da outra” (PHG/FT, KSA. 1.836, p.128), pois nenhuma delas pode se manifestar sem que a outra se faça presente (B9.1-4). De resto, a conjunção de cada uma das qualidades opostas com o seu par - num esquema que lembra a tabela de opostos pitagórica (ver Gomperz, 1932GOMPERZ, T. (1932; 1896). Pensatori Greci I. Firenze, La nuova Italia., 278; originalmente, 1896) - poderá se inspirar em dados colhidos da doxografia (por exemplo, Teofrasto, de sensu: DK28A46; ou Aécio: A53), mas não é referida nos fragmentos (128-129).

Surpreendentemente, apesar de a renomeação das expressões ‘positivo’ e ‘negativo’ como “ser” e “não-ser” não ter qualquer justificação, a conclusão atingida, de que “em todo vir-a-ser está contido algo de ser e atividade” (PHG/FT, KSA. 1.837, p. 129) não contraria a ontologia de B8.53-61, B9). A despeito de a terminologia usada parecer inadequada, a teoria do “vir-a-ser” exposta (PHG/FT, KSA. 1.837, p.129) não entra em conflito nem com a ontologia, nem com a cosmologia descritas na Opinião. Cuidado, porém, com a conjectura apoiada apenas na referência pontual de B13, segundo a qual o “poder da Afrodite é ligar os contraditórios” (PHG/FT, KSA. 1.838, p. 130); a observação aponta mais para Empédocles (B17, 35) do que para Parmênides.

Nietzsche e a Verdade

Tínhamos visto que B2 encaminhava o pensar para “é” e “não é” só para, após ter negado alcance cognitivo a “não é”, condensar “ser e verdade” no seu contrário excludente, “é” (B8.15-18). Isto sabemos! Mas nada nos é dito sobre a leitura de “é”. Trata-se de uma forma verbal (mesmo que possa ser lido como um nome: Santos, 2015SANTOS, J. T. (2015). Parmênides e a antepredicatividade. Filosofia. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto 32, 9-33., p. 18-20), lida como uma cópula nua, ligando um sujeito implícito a um predicado elidido (“_é_”: Mourelatos, 2008MOURELATOS, A. (2008). The Route of Parmenides: Revised and Expanded Edition. Las Vegas, Parmenides Publishing., p. 47-61, 269-276)? Ou admitirá um sujeito impessoal, representando “o” que é?

É surpreendente que nada nos seja dito de “o que é” (to eon), além do que já sabemos sobre “o que não é” e a relação que opõe um ao outro. Se negarmos um sujeito a “é/não é”, sabemos apenas que são contrários excludentes. Contudo, se conjecturarmos que “algo” é ou não é, a unidade a que chegamos “puramente através de uma consequência lógica, retirada dos conceitos de ser e não-ser” (PHG/FT, KSA. 1.840, p. 130), agride-nos, tal como agrediu a Nietzsche. Pois, “o que é” tanto pode ser “qualquer coisa “que é””, como a totalidade das “coisas que são”: o Todo, o Uno, o Ser.

Acometido pelo Idealismo - contra o qual se rebela -, o filósofo lê B2.3, 5 como se lá só pudesse estar: “O que é, é! O que não é, não é!” (PHG/FT, KSA. 1.841, p.131). Defende assim a leitura, ainda hoje difundida, de que a mensagem do Poema reside na proposta de uma Ontologia que nos oferece como “única forma do conhecimento”… “a tautologia A=A” (PHG/FT, KSA. 1.841, p. 131).

É, portanto, em guerra aberta contra “os homens que nada sabem”, que, “olhando o mundo do vir-a-ser”, o Eleata passa a odiar os sentidos, renegando a natureza (PHG/FT, KSA. 1.843, p. 133). E toma tal decisão apenas apoiado no pressuposto de os homens possuírem um órgão do conhecimento capaz de “captar a essência das coisas” (PHG/FT, KSA. 1.844, p. 134); como se essa evidência se apoiasse em mais do que palavras, meros “símbolos das relações das coisas entre si e conosco”, que não fundam “a verdade absoluta”, e as palavras “ser” e “não-ser” indicassem mais do que “a relação mais geral que liga todas as coisas” (PHG/FT, KSA. 1.844, p. 134).

III

XI. Comparado com os filósofos hindus, Parmênides se limita à “única, pobre e vazia certeza” de que, “contra tudo o que vem-a-ser”, “temos um órgão que vai à essência das coisas e é independente da experiência!” (PHG/FT, KSA. 1.844, p. 133-134). Contra esta tese, já Aristóteles negou a possibilidade de, “a partir do conceito “ser” - cuja essentia é apenas o ser -, concluir a existentia do ser”.

Depois dele, Kant “ensina” que “a concordância de um conhecimento das leis formais e gerais do entendimento e da razão é apenas condição negativa da verdade”, pois, “o erro não se refere à forma mas ao conteúdo”. Por isso,“a palavra “ser” indica apenas a relação mais geral que liga todas as coisas, tal como a palavra “não-ser” (PHG/FT, KSA. 1.844, 134).

De modo que não há, depois de Kant, como “chegar a um ser-em-si a partir de um conceito eternamente subjectivo”, apreendendo o absoluto com a consciência, por exemplo, ao supor que “o absoluto já está presente, senão, como ele poderia ser procurado?”; como se exprimiu Hegel (PHG/FT, KSA. 1.846, p.134-135).

XII. Acerca do Infinito, contra os paradoxos de Zenão, pergunta Nietzsche: “seria a soma dos infinitos lugares de repouso idêntica ao movimento?” Como se este fosse o seu próprio oposto? Pois, “se o movimento fosse realmente verdadeiro, não haveria repouso, nem lugar para a flecha”. E, “se o tempo fosse real, não poderia ser infinitamente divisível” (PHG/FT, KSA. 1.847, p.136).

Portanto, se os conteúdos extraídos do mundo intuitivo são verdades eternas, caímos na contradição. Se há movimento absoluto, não existe espaço. Se o espaço é absoluto, não há multiplicidade. Se há muitos, não existe unidade. Todos estes apoiam naquela faculdade de conceitos o critério decisivo sobre o ser e o não-ser (PHG/FT, KSA. 1.848, p. 136). Assim se tornou necessária a ideia de que pensamento e ser são idênticos (ver Da natureza B3), podendo mesmo essa ideia ser irrepresentável, como se nesta impossibilidade de representação se achasse “o seu maior triunfo sobre o mundo e os sentidos”, a garantia de que, “ao contradizê-los, prova que deles nada toma emprestado!” (PHG/FT, KSA. 1.849, p. 137).

IV

XIII. Pois, “se é real o pensamento da razão por conceitos”, então também a multiplicidade e o movimento são reais, “pois o pensamento é móvel”, consistindo em “um movimento entre conceitos”. É por isso impossível qualificá-lo como um rígido permanecer, “como um eterno e imóvel pensar-se-a-si-mesmo da unidade” (PHG/FT, KSA. 1.850, p. 137).

Mas então, se existe apenas a identidade real, que serão os sentidos? Não são pensamento, nem o seu produto, que coincidem com o ser (ver Da natureza B8.34). Por outro lado, se são aparência, “para quem o são?” De onde vem a ilusão, que assim permanece um enigma, uma contradição? Uma vez que, sendo aparência, de algum modo é e, não sendo, não é possível que seja (PHG/FT, KSA. 1.850, p. 137).

Contra estas duas objeções, diz a teoria que somente o ser tem um ser e que o não-ser não é. Mas, se o movimento é um tal ser, vale para um o que vale para o outro, ficando o movimento fora do vir-a-ser, eterno e indestrutível (PHG/FT, KSA. 1.850, p. 137). E, se a aparência é negada pela pergunta sobre a sua origem, então este mundo será uma soma de seres verdadeiros. E estas essencialidades existem sem aumento, nem diminuição, pois, “se o mundo parece uma vez completamente diferente de outra, isso não é ilusão, mas consequência do movimento eterno” (PHG/FT, KSA. 1.851, p.138).

Contra Parmênides, Nietzsche argumenta como Górgias. Primeira objeção. Se o que não é não é, então, é nada. Consequentemente, de algum modo, o que não é é e também o nada é (DK82B3a, 25-33). Por outro lado, se o movimento não é, então ele não é pensável (porque só o que é é pensável). Todavia, se pensar é um movimento (entre conceitos), então ou o pensamento não é (por ser movimento), ou o movimento é ele próprio pensável.

Segunda objeção. Se só o que é é pensável, dos sentidos só vem engano. No entanto, se é engano, não é nem pensamento, nem pensado, nem é. Como então é possível, se não é pensamento, nem é? Pois, se a aparência não é, dela nada pode vir.

Criticando Parmênides, Nietzsche chega à conclusão da qual Platão parte, no Sofista: “o movimento é” (249b ss.). Resta então a aparência. Se esta “é ou não é”, tria non datur, a não ser que, como na República V (477 ss.), “seja e não seja”. Segue-se então a consequência a que se chega no Parmênides:

“Quer [o] um seja, quer não seja, ele próprio e os outros tanto em relação a si próprios, como em relação uns aos outros, ambos são e não são e tanto aparecem, como não aparecem, todas as coisas de todos os modos” (166c).

Referências

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  • ZELLER, E. (1898). Die Philosophie der Griechen. Erste Teil. Fünfte Auflage. Leipzig, 1892.
  • 1
    Comentamos a partir da tradução assinada por Carlos A. R. de Moura.
  • 2
    Parmênides defende que, entre dois caminhos - “é” e “não-é” -, só o primeiro (B2.3) pode ser conhecido. Nietzsche corrige-o: “no entanto, se buscarmos um outro caminho (B6.4-9), o “único correto” é o da [“minha antiga”] Opinião” (B8.50-B19).
  • 3
    Remetendo para o “fragmento de Anaximandro” (DK12B1), o filósofo se refere à necessária corrupção dos seres gerados a partir do apeiron, “pela injustiça que cometem uns sobre os outros, segundo a ordem do tempo”. Mas é bem claro que implicitamente contrapõe um cosmos governado pela Necessidade a outro, onde a contingência impera.
  • 4
    B3 recebeu duas traduções, determinantes da interpretação global do Poema: “Pensar é o mesmo que existir (ser)”, de Diels, e “A mesma [coisa] pode ser pensada e ser”, de Zeller (1892ZELLER, E. (1898). Die Philosophie der Griechen. Erste Teil. Fünfte Auflage. Leipzig, 1892., 558, n.1). A primeira sustenta a identidade de “ser e pensar” e suporta uma leitura idealista, subentendendo “o que é” como incorpóreo (Melisso, DK29B9). A segunda implica que algo uno (o todo, ou uma coisa “que é”) pode ser (existir) e ser pensada (viabilizando, sem a forçar, uma leitura materialista: Burnet, 1970BURNET, J. (1970; 1915). L’aurore de la Philosophie Grecque. Paris, Payot. , 200-210; Gomperz, 273-274). Este é o problema do tipo de monismo sustentado por Parmênides (Sisko, 2015SISKO, J., Weiss, Y. (2015) A Fourth Alternative in Interpreting Parmenides. Phronesis 60.1, 40-59., 42-57; Palmer, 2016PALMER, J. (2016). Parmenides. Stanford Encyclopedia of Philosophy. https://plato.stanford.edu
    https://plato.stanford.edu...
    , 2009PALMER, J. (2009). Parmenides and Presocratic Philosophy (Oxford, New York; Oxford University Press).; Mourelatos, 2008MOURELATOS, A. (2008). The Route of Parmenides: Revised and Expanded Edition. Las Vegas, Parmenides Publishing.; Curd, 1998CURD, P. (1998). The Legacy of Parmenides: Eleatic Monism and Later Presocratic Thought. Princeton University Press., 1992CURD, P. (1992). Deception and Belief in Parmenides’ “Doxa”. Apeiron 25, nº 2, 109-133.). Para ultrapassar esta crux alguns defendem a separação de B3 de B2, desligando a identidade do argumento sobre os caminhos (Altman, 2015ALTMAN, W. (2015). Parmenides’ fragment 3 Revisited. Hypnos 35, S. Paulo, 197-230., 210-225).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    05 Nov 2019
  • Aceito
    15 Dez 2019
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