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A filosofia de Nietzsche é um autorretrato?* * Tradução: Pedro Teixeira de Castro Pêpe.

Is Nietzsche’s Philosophy a Self-Portrait?

Resumo:

Segundo Lou Salomé, a filosofia de Nietzsche é essencialmente autobiográfica e é melhor compreendida como um tipo de confissão pessoal, memórias ou autorretrato. Na minha opinião, no entanto, essa abordagem está radicalmente equivocada, e a evidência textual mostra, na verdade, o contrário do que Salomé pensa. Nessas passagens, Nietzsche está na verdade criticando filósofos anteriores por cometeram um erro cognitivo falsificador, quando se projetaram, a si mesmos e seus preconceitos, na realidade como um todo.

Palavras-chave:
Autobiografia; filosofia; vontade de potência

Abstract:

According to Lou Salomé, Nietzsche’s philosophy is essentially autobiographical and is best understood as a kind of personal confession, memoir, or self-portrait. In my view, however, this approach is radically mistaken and the textual evidence actually shows the opposite of what Salomé thinks. In these passages, Nietzsche is actually criticizing past philosophers for committing a falsifying cognitive error when they projected themselves and their personal prejudices into all of reality.

Keywords:
autobiography; philosophy; will to power

Introdução

Em 1894, seis anos depois de Nietzsche ter escrito seus últimos textos, Lou Salomé publicou um comentário, da extensão de um livro, sobre sua filosofia. O título do seu livro é Friedrich Nietzsche: O homem em suas obras, e o mote desse livro é a seguinte citação de Humano, demasiado humano: “A vida como lucro da vida. - Por mais que o homem se estenda em seu conhecimento, por mais objetivo que pareça a si mesmo: enfim nada tirará disso, a não ser sua própria biografia” (MA/HH I, 513). Em seguida, e no lugar de um prefácio, Salomé cita uma carta de Nietzsche, escrita em 1882, na qual ele a elogia por uma ideia que diz ser, verdadeiramente, saída de uma cabeça irmanada - Isto é, sua ideia de reduzir sistemas filosóficos aos relatos pessoais de seus autores” [Ihr Gedanke einer Reduktion der philosophischen Systeme auf Personal-Akten ihrer Urheber] (KSB 6.259). Na mesma carta, Nietzsche chega a dizer que ele mesmo, quando na Basileia, tinha ensinado a história da filosofia antiga dessa forma. Na página seguinte, quando Salomé começa a escrever na própria pessoa, ela introduz a tese principal de seu livro da seguinte forma: “[Nietzsche] basicamente só pensou por si mesmo, só escreveu para si mesmo, porque ele estava apenas descrevendo a si mesmo, traduzindo seu próprio eu em pensamentos”. De acordo com Salomé, a tarefa do biógrafo de explicar o pensador através de sua pessoa se aplica em um grau incomum a Nietzsche porque “em ninguém mais o trabalho intelectual exterior e a imagem da vida interior fundiram-se tão completamente”: “Quanto mais profundamente ele entendia a si mesmo, mais toda a sua filosofia, de forma desinibida, se tronava um vasto reflexo de seu autorretrato [Selbstbild]” (Salomé 2001, 17). Assim, ela escreve, o que Nietzsche diz na carta do prefácio de seu livro se aplica à sua própria filosofia. De fato, ela afirma, essa ideia de reduzir sistemas filosóficos aos registros pessoais de seus autores é a mesma ideia que ele expressou posteriormente nesta famosa frase do início de Além do Bem e do Mal: “Gradualmente se revelou para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal [Selbstbekenntnis] de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas” (JGB/BM 6)1 1 O rascunho anterior de Nietzsche desta frase (KSA 14.348) não usa o pretérito perfeito ou o termo “bisher”, que indica que ele fez essas mudanças para tornar sua afirmação mais precisa. . Explicando essa frase, e assumindo que Nietzsche pretendia que isso se aplicasse também à sua própria filosofia, Salomé escreve que o valor do pensamento de Nietzsche não repousa em sua originalidade teórica, nem naquilo que se pode ser estabelecido ou refutado dialeticamente. Em vez disso, seu valor se situa na força intima que fala através de uma personalidade para outra personalidade. Portanto, ela escreve, a soma dos monólogos que constitui os muitos volumes de seus aforismos é, na realidade, uma única grande obra autobiográfica [Memoirenwerk] que é reflexo de sua intelectualidade, e seu próprio estudo é uma tentativa de criar uma imagem da confissão pessoal [Selbstbekenntnis] em sua filosofia (Salomé 2001, 87).

Desse modo, de acordo com a abordagem interpretativa inaugural e revolucionária de Salomé, a filosofia de Nietzsche é, segundo suas próprias indicações, essencialmente autobiográfica e é melhor compreendida como um tipo de confissão pessoal, memórias ou autorretrato.2 2 Ver também: Salomé 2001, 11-14, 29, 59, 75-76, 87, 93, 97-100, 104-105, 112-115, 123-124, 137-139, 148, 154-156. Mais de um século depois, essa abordagem, e especialmente sua interpretação daquela passagem inicial da seção 6 de Para além de bem e mal como se aplicando à própria filosofia de Nietzsche, permanece como um pano de fundo não examinado e inconteste, no campo dos estudos nietzschianos3 3 Veja especialmente os influentes escritos de Maudemarie Clark citados na bibliografia abaixo, e minha extensa discussão desses escritos em Loeb 2021b. Este presente ensaio é uma versão modificada e abreviada daquele mais longo e de redação mais detalhada. Ver também, por exemplo, Lampert 2001, 30, 36; Acampora e Ansell-Pearson 2011, 37, 46; Meyer 2014, 243-44; e Leiter 2018. Na minha opinião, no entanto, essa abordagem está radicalmente equivocada, e a evidência textual relevante, da passagem inicial de Para além de bem e mal, na verdade mostra o contrário do que Salomé acha que ela mostra. Nessa passagem, Nietzsche está na verdade criticando filósofos anteriores por cometeram um erro cognitivo falsificador, quando se projetaram, a si mesmos e seus preconceitos, na realidade como um todo. Esse é o erro que Aristóteles chamou de falácia da composição, isto é, atribuir a um todo as propriedades que pertencem a partes pequenas e atípicas desse todo. Com base no famoso manifesto “guardemo-nos!” (FW/GC 109), eu argumento que ele na verdade está aconselhando os filósofos do futuro a subtrair projeções antropomórficas prévias, para combater esse erro cognitivo falsificador e ajudar a revelar como o mundo como um todo realmente é. De fato, afirmo, Nietzsche emprega exatamente esse método interpretativo para derivar suas próprias teorias filosóficas acerca do mundo como um todo - por exemplo, suas teorias da unidade dos opostos, do fluxo radical, da vontade de potência e do eterno retorno. No entanto, esse novo método não deve ser confundido com a abordagem dos filósofos kantianos, que tinham como objetivo entender o que o mundo é “em si”, ou seja, independentemente de qualquer perspectiva ou interpretação humana. Nem deve ser entendido como a expressão desinteressada da vontade de verdade pela própria verdade. Em vez disso, enquanto os filósofos anteriores se esforçaram para aumentar seu sentimento de potência intelectual enganando a si mesmos sobre a natureza da realidade e seu lugar nela, Nietzsche pensa que ele, e os filósofos do futuro, seguindo seus passos, serão bem-sucedidos em obter muito mais poder intelectual se eles buscarem entender o universo como ele realmente é.

1. Filosofia do passado e do futuro

Um dos temas principais em Para além de bem e mal é a tentativa de Nietzsche de delimitar uma linha nítida entre, por um lado, a filosofia como ela foi praticada tipicamente no passado e, por outro, a filosofia como ele a prática e como espera que continuará sendo praticada no futuro. Esse tema é anunciado logo no subtítulo do livro: “Preludio a uma filosofia do futuro”. Embora haja um debate se Nietzsche quer dizer com isso uma filosofia do futuro ou uma filosofia sobre o futuro, existem inúmeras passagens mostrando que ele quer dizer, ao menos, uma filosofia do futuro - passagens nas quais ele anuncia, antecipa e clama por uma nova espécie de filósofos e um novo tipo de filosofia (cf. JGB/BM 2, 42-44, 203). Então, quando lemos o título da primeira parte, “Sobre os preconceitos dos filósofos”, é natural pensar que Nietzsche tem em mente apenas os preconceitos dos filósofos do passado, não seus próprios preconceitos ou os preconceitos dos filósofos do futuro os quais ele convoca.

Voltemos agora aos detalhes textuais das seções 5 e 6 de Para além de bem e mal. É verdade que a seção 5 usa termos gerais para descrever os filósofos: alle, allesamt e sämmtlich. Mas Salomé não pode citar esses termos gerais como evidência para sua ideia de que Nietzsche está incluindo a si mesmo ou os filósofos do futuro. Isso porque essa linguagem diz respeito à desonestidade dos filósofos, e fica claro que Nietzsche não quer aplicar isto a si mesmo ou aos filósofos do futuro que o seguiram. Em vez disso, então, a forma mais natural e caritativa de interpretar os termos gerais da seção 5 é vê-los como restritos apenas aos filósofos do passado. Essa leitura é confirmada pelo uso que Nietzsche faz do pretérito perfeito na primeira frase da seção seguinte: “Gradualmente se revelou para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal [Selbstbekenntnis] de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas” (JGB/BM 6, meus próprios itálicos na primeira parte). Aqui Nietzsche estabelece um contraste deliberado entre, de um lado, a filosofia como foi praticada até o momento por autores como Kant e Spinoza e, por outro, a filosofia como ele a está praticando agora ou como ele espera que passará a ser praticada no futuro pela nova espécie de filósofos que ele vê surgindo.

Essa frase, com sua referência ao passado e sua menção à confissões pessoais [Selbstbekenntnis], também contém uma alusão direta que remete a esta observação, obviamente critica, do prefacio de Para além de bem e mal:4 4 A crítica de Nietzsche à infantilidade filosófica [Kinderei] e ao amadorismo [Anfängerie], neste comentário introdutório, também antecipa sua crítica em JGB/BM 5 sobre a inocência dos filósofos, ou seja, com que facilidade eles erram e são extraviados, em sua infantilidade [Kinderei] e sua puerilidade [Kindlichkeit].

Talvez esteja próximo o tempo em que se perceberá quão pouco bastava para constituir o alicerce das sublimes e absolutas construções filosofais que os dogmáticos ergueram até agora [bisher] - (...) uma temerária generalização de fatos muito estreitos, muito pessoais, demasiado humanos.

A conclusão clara de Nietzsche, então, é que sua própria filosofia não é uma confissão pessoal e não foi construída dessa forma generalizada. Além disso, e mais importante, que filosofia, quando praticada propriamente no futuro, deverá evitar ser reduzível a este tipo de confissão pessoal. Filósofos canônicos anteriores simplesmente desconheciam sua compulsão subconsciente a construir teorias do universo, generalizando seus próprios fatos muito estreitos, muito pessoais, muito humanos, demasiado humanos.

Assim, quando Nietzsche escreve sobre os preconceitos dos filósofos, ele tem em mente a situação altamente problemática, que deve ser superada, na qual a imersão dos filósofos em seus próprios fatos, muito estreitos, muito pessoais, muito humanos, demasiado humanos, obscurece e distorce sua visão quando eles tentam olhar o mundo fora de si mesmos.5 5 Essa leitura se encaixa bem com sua identificação do termo “preconceito” com erro cognitivo em lugares como M/A 116 e M/A 149 e o seu uso mais geral do termo em lugares que dizem respeito a classe, raça e preconceito de gênero (cf. M/A 186, JGB/BM 199, FW/GC 348, FW/GC 363). Também se encaixa bem com os outros usos do termo de Nietzsche no resto da JGB/BM - significando algo problemático que deve ser superado. Em JGB/BM 19 ele diz que os filósofos têm o hábito de adotar preconceitos populares e exagerá-los, alinhando assim sua ideia de preconceitos filosóficos com suas menções de velhas superstições populares e seduções gramaticais que ele diz derivar dos indivíduos (cf. também FW/GC 354). Falando do poder dos preconceitos morais no JGB/BM 23, ele diz que penetra até mesmo naqueles lugares que parecem mais desprovidos de pressupostos e opera de forma prejudicial, inibidora, ofuscante e distorcida. Em JGB/BM 32, ele diz que a moralidade das intenções é um preconceito que deve se superar; em JGB/BM 34 ele afirma que o preconceito de que a verdade vale mais do que a mera aparência é a suposição mais mal comprovada do mundo; no JGB/BM 44, ele caracteriza o preconceito como algo que precisa ser eliminado porque é estúpido, é um mal-entendido e bane os pensadores para um recanto (ver também JGB/BM 2); e em JGB/BM 22, ele escreve que o ser humano forte se beneficiará da ausência de preconceito em sua formação. O que eles veem é apenas a si mesmos e suas projeções, em vez da realidade independente. É por isso que Nietzsche descreve suas filosofias como confissões e como memórias que são involuntárias [ungewollter] e inadvertidos [unvermerkter]. Ele diz que eles querem esconder seus vieses e evitar serem vistos como advogados e porta-vozes de seus preconceitos pessoais. Ao projetarem subconscientemente esses preconceitos para a realidade como um todo, eles fazem de conta para si mesmos e para os outros que essas não são apenas suas preferências pessoais. E ao fingir subconscientemente que essas projeções são descrições precisas da realidade, eles se valem de um suporte ontológico e epistêmico fictício para essas preferencias meramente pessoais. Mas ele e a nova espécie de filósofos que ele vê surgindo estarão cientes dessa compulsão e evitarão ser influenciados por ela. A questão de Nietzsche aqui não é que sua autoconsciência irá permitir que ele alerte seus leitores, com honestidade, de que ele está sujeito a essa compulsão assim como todos os filósofos anteriores. Pelo contrário, sua questão é que essa autoconsciência, e sua compreensão dos filósofos equivocados do passado, o levará a resistir a essa compulsão e a trabalhar contra ela.

Nesse ponto, Salomé poderia citar o que Nietzsche continua a dizer no resto de da seção 6 sobre a intenção moral dos filósofos (Salomé 2001NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução: Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., 21, 100). Depois de iniciar com a afirmação de que toda grande filosofia é a confissão pessoal do seu autor, a seção 6 diz, então, que o que ela confessa são as intenções “morais (ou imorais)” do filosofo, isto é, a moral à qual sua filosofia busca - uma moralidade que “é um decidido testemunho de quem ele é”. Nessa leitura, pareceria óbvio que Nietzsche está afirmando que toda grande filosofia, incluindo a sua própria, é uma confissão pessoal e uma memória involuntária do filósofo que a escreve. Note, porém, que essa intepretação requer que excluamos a referência de Nietzsche ao passado na sentença de abertura da seção 6 e dessa forma mudemos sua primeira questão, de modo que ela se refira à confissão pessoal de toda grande filosofia, não apenas toda grande filosofia até agora. Uma vez que a segunda questão de Nietzsche é parte da mesma sentença de abertura, essa interpretação também requer que nós mudemos essa questão para que ela se refira às intenções morais (ou imorais) de toda grande filosofia, não apenas toda grande filosofia até agora. E uma vez que a sentença seguinte de Nietzsche se segue diretamente dessa sentença de abertura, essa interpretação requer que nós mudemos essa terceira questão para que ele se refira à moralidade que toda grande filosofia objetiva, não apenas de toda grande filosofia até agora. Finalmente, quando Nietzsche escreve no fim da seção 6 que, em contraste com os cientistas, não há absolutamente nada impessoal nos filósofos, e que a moralidade dos filósofos traz um testemunho decidido de quem eles são, essa interpretação requer que nós liguemos essas três questões, de modo que a quarta questão de Nietzsche passe a significar que toda grande filosofia é um testemunho de quem o filosofo é, não apenas a moral que é o objetivo de toda grande filosofia até o momento.

Mas vamos supor, em vez disso, que nós tenhamos em mente a referência de Nietzsche ao passado ao longo de sua discussão na seção 6. E vamos supor que nós também tenhamos em mente o contraste que ele insinua entre, de um lado, a filosofia como feita equivocadamente por filósofos como Kant e Spinoza, e, do outro, a filosofia como ele a está praticando agora corretamente ou como ele espera que será praticada no futuro. Nesse caso, e seguindo sua critica na seção 5, a verdadeira lição de Nietzsche nessas duas seções é a de que toda grande filosofia no passado cometeu o equívoco de ter intenções morais (ou imorais) e de almejar uma moralidade.6 6 O simples fato de Nietzsche escrever sobre filosofias passadas como “grandes” (grosse) não mostra que ele pensa nelas acriticamente ou que ele pensa que sua própria filosofia, que presumivelmente também é grande, está sujeita às mesmas críticas destas. E uma vez que a moral dos filósofos revela quem eles são (cf. também JGB/BM 187), ele está argumentando que toda grande filosofia do passado é inadequada, pois elas são redutíveis às confissões pessoais e memórias involuntárias de seus autores. Daí sua recomendação de uma nova metodologia que irá garantir que teorias filosóficas novas e superiores, como a sua própria, evitarão ter intenções morais (ou imorais), evitarão buscar uma moral e irão, portanto, evitar ser redutíveis à confissões pessoais e memórias involuntários.

Contra essa leitura da seção 6 pode ser objetado que Nietzsche deve estar falando de todos os filósofos e não apenas filósofos do passado porque ele contrasta os tipos do filósofo e do pesquisador da ciência. O impulso ao conhecimento, ele escreve, não é o pai da filosofia, mas, em vez disso, todos os impulsos humanos básicos apenas usaram o conhecimento (e juízos falsos) como instrumento. Todos eles já tentaram filosofar com o objetivo de se apresentarem como o propósito último da existência e como mestres legítimos de todos os demais impulsos. Por essa razão, os pontos de vista dos filósofos, mesmo suas afirmações metafisicas mais bizarras, os caracterizam, e não há absolutamente nada de impessoal neles. Em contrapartida, o verdadeiro interesse dos pesquisadores da ciência reside em outro lugar (por exemplo, na família, na política ou na aquisição de dinheiro), e eles podem realmente ter algo como um impulso ao conhecimento desinteressado, como um pequeno mecanismo de relógio, que funciona independentemente de seus outros impulsos.

Concordo que Nietzsche certamente pretendia se distinguir, assim como seus idealizados filósofos do futuro, dos pesquisadores da ciência. De fato, ele faz justamente isso na seção 211, quando ele distingue filósofos genuínos, que querem o conhecimento para fins de poder, daqueles trabalhadores filosóficos, que querem o conhecimento apenas como próprio fim.7 7 Ver também: NF/FP 26[407], KSA 11.258-260; NF/FP 38[13], KSA 11. 611-613. Nas seções 229 a 231, Nietzsche afirma que ambos os filósofos do passado e do futuro são inspirados a filosofar pela vontade de potência, não por um impulso ao conhecimento. Mas, considerando que os filósofos do passado foram levados a construir teorias do universo falsas, personificadas e antropomorfizadas, que os ajudaram a sobreviver, ele e os filósofos do futuro não estão mais limitados pelas mesmas pressões evolutivas e são levados a perceber o universo como ele realmente é, para adquirirem um poder ainda maior. Dessa forma, nas seções 5 e 6, Nietzsche está explicando um ponto de inflexão crucial no desenvolvimento dos tipos filosóficos, e não sugerindo que todos os filósofos estão destinados a projetar a si mesmos e seus valores no mundo como um todo. Quando ele diz que não há nada de impessoal nos filósofos (genuínos), isso quer dizer que eles não buscam conhecimento desinteressadamente pelo bem do conhecimento mesmo, não que eles não conseguem senão projetar seus fatos, muito pessoais, muito humanos, demasiado humanos, no mundo como um todo.

Note, finalmente, que Nietzsche nunca diz, nessas observações das seções 5 e 6, que o problema com os filósofos do passado é que eles foram guiados em suas teorizações pelos tipos errados de preconceitos ou pelos tipos errados de intenções morais. Em vez disso, sua crucial inserção entre parênteses das intenções “imorais”, juntamente com suas próprias menções simpáticas ao imoralismo (JGB/BM 23, 228), apontam para sua visão irrestrita e incondicional de que é um erro para os filósofos serem guiados em suas teorizações por qualquer tipo de preconceitos ou preferencias de valor.

2. Filosofia como a vontade de potência mais intelectual

Apesar de Salomé destacar as seções 5 e 6 como apresentando a evidência textual mais óbvia para sua abordagem interpretativa, penso que sua breve citação da seção 9 (Salomé 2001, 98) oferece um suporte mais forte aos seus argumentos. Isso ocorre porque aqui Nietzsche conclui sua crítica aos estoicos com observações sobre a filosofia e os filósofos que parecem completamente gerais:

Mas esta é uma antiga, eterna história: o que ocorreu então aos estoicos sucede ainda hoje, tão logo uma filosofia começa a acreditar em si mesma. Ela sempre cria o mundo à sua imagem, não consegue evitá-lo; filosofia é esse impulso tirânico mesmo, a mais espiritual vontade de potência, de “criação do mundo”, de causa prima.

Aqui, então, Nietzsche fala de uma antiga e eterna história a respeito da filosofia, que ainda acontece hoje, não apenas no passado - parecendo, assim, implicar que isto está acontecendo até mesmo com sua própria filosofia. De fato, Nietzsche parece acrescentar, os filósofos não conseguem evitar a criação de um mundo à sua própria imagem, pois essa é a natureza da filosofia - dessa forma parecendo implicar que ele mesmo não consegue evitar fazer isso.

Essa certamente parece ser uma interpretação e aplicação razoável dessa passagem importante. No entanto, o ponto central, nas observações finais de Nietzsche, é que o que aconteceu anteriormente com os estoicos ainda acontece hoje “tão logo uma filosofia começa a acreditar em si mesma” [sobald nur eine Philosophie anfängt, an sich selbst zu glauben]. O que Nietzsche quer dizer com isso? Aqui Nietzsche não está dizendo que o que aconteceu anteriormente com os estoicos tem de acontecer ainda hoje com toda filosofia, mas apenas que isso ainda acontecerá hoje, tão logo uma filosofia comece a acreditar em si mesma. Agora poderíamos supor que a filosofia de Nietzsche acredite em si mesma ou que Nietzsche possua uma filosofia na qual ele acredita, então teríamos o direito de considerar, a partir de sua conclusão, que isso ocorre também com sua filosofia.8 8 Cf. Clark 1983, 463 e 2000, 126; e Lampert 2001, 36. Na verdade, contudo, a leitura mais natural da frase de Nietzsche é a de que uma filosofia acredita em si mesma no sentido de que ela se orgulha especialmente de si. Essa leitura se sustenta pelo seu uso da frase relacionada “das Glaube an sich selbst,” posteriormente, na seção 260. Pois aqui Nietzsche descreve a moralidade dos nobres como incluindo a crença em si mesmos, um orgulho de si mesmos, [der Glaube an sich selbst, der Stolz auf sich selbst]. Essa associação é sustentada pela descrição de Nietzsche, na seção 9, dos estoicos como tendo um orgulho [Stolz] que quer prescrever e incorporar sua moralidade e seus ideais na natureza em si. Esse orgulho, ele acrescenta, subconscientemente os leva a demandar que a natureza seja a natureza segundo o estoicismo, e a querer tornar toda a existência conforme sua própria imagem - como uma eterna e colossal glorificação [Verherrlichung] do estoicismo.9 9 Aqui Nietzsche também alude à sua afirmação em JGB/BM 6 de que cada um dos impulsos humanos básicos visa governar todos os outros impulsos, e que tenta filosofar nesse sentido, querendo apresentar-se apenas como o propósito principal da existência. Uma vez que esta afirmação é obviamente crítica, devemos inferir que Nietzsche também está criticando esse mesmo desejo em JGB/BM 9. Os impulsos humanos e os estoicos estão cometendo o mesmo erro quando filosofam desta forma. Porém, a questão de Nietzsche parece agora muito mais crítica do que Salomé admite. Essa imprecisão se confirma quando ele estende esse mesmo ponto sobre o orgulho estoico numa óbvia afirmação crítica de que algum tipo de arrogância abismal [irgend ein abgründlicher Hochmuth] finalmente implanta neles a esperança insana [die Tollhäusler-Hoffnung] de que, pelo fato de eles saberem como se tiranizar, também deve ser o caso que a natureza também se deixa ser tiranizada.

A questão, então, é se Nietzsche diria que sua própria filosofia acredita em si mesma, tem orgulho de si mesma, no mesmo sentido específico atribuído aos estoicos. A resposta de Salomé para essa questão é obviamente sim. Porém, essa resposta parece erodir a observação crítica de Nietzsche, na seção 9, de que essa generalização e glorificação é o resultado de uma esperança insana implantada nos estoicos por sua arrogância abismal. Parece muito improvável que Nietzsche quisesse descrever sua própria filosofia com esses mesmos termos pejorativos. A resposta de Salomé também parece conflitar diretamente com a crítica preliminar de Nietzsche, no prefácio, da prática tradicional de erguer edifícios filosóficos sublimes sobre a pedra angular de alguma generalização audaciosa [verwegene Verallgemeinerung] de fatos muito estreitos, muito pessoais, muito humanos, demasiado humanos (JGB/BM, Prefácio). Certamente Nietzsche tem essa crítica prefacial em mente quando ele diz que os estoicos demandam que a natureza se conforme ao estoicismo e que toda a existência exista apenas à sua própria imagem - como uma generalização colossal e eterna [ungeheure ewige Verallgemeinerung] do estoicismo. Portanto, é justo perguntar, em retorno à resposta de Salomé, se a qualificação de Nietzsche não supõe justamente o oposto - que uma filosofia como a dele não cria uma grande imagem auto-glorificante, não é de uma arrogância abismal e não é inspirada por qualquer esperança insana de que toda a natureza seja igual a ele e seus valores. Em vez disso, seu ponto parece ser que a filosofia do futuro deve evitar essas tendencias equivocadas o máximo possível.

Salomé poderia querer nos lembrar, nesse ponto, que Nietzsche conclui a seção 9 com a seguinte frase: “Ela sempre cria o mundo à sua imagem, não consegue evitá-lo; filosofia é esse impulso tirânico mesmo, a mais espiritual vontade de potência, de ‘criação do mundo’, de causa prima” [Sie schafft immer die Welt nach ihrem Bilde, sie kann nicht anders; Philosophie ist dieser tyrannische Trieb selbst, der geistigste Wille zur Macht, zur „Schaffung der Welt“, zur causa prima].10 10 Embora todos os tradutores convencionais de JGB/BM tenham escolhido traduzir “geistigste” como “espiritual”, o contexto sugere claramente que Nietzsche tem em mente a ideia mais precisa e concreta, a atividade intelectual de um filósofo. Nietzsche não estaria dizendo aqui que toda filosofia sempre cria o mundo à sua própria imagem e não consegue fazer de outra forma? De fato, que a filosofia simplesmente é o impulso tirânico de criar o mundo à sua imagem?

Minha resposta para essa lembrança é que precisamos ler essas últimas linhas com mais cuidado. O que Nietzsche realmente escreve na primeira oração, remetendo à última sentença, é que tão logo uma filosofia começa a acreditar em si mesma ela sempre cria um mundo à sua própria imagem e não consegue fazer de outra forma. Depois do ponto e vírgula, ele introduz uma nova ideia, de que a filosofia em geral é ela mesma um impulso tirânico, a forma mais intelectual de vontade de potência, para a “criação do mundo”, para a causa prima.11 11 Salomé (2001, 98) parece ler o pronome “Sie” na cláusula “Sie schafft immer die Welt nach ihrem Bilde, sie kann nicht anders” como referindo-se ao termo “Philosophie” após o ponto e vírgula, inferindo assim que Nietzsche pensa que a filosofia em geral sempre cria o mundo à sua própria imagem e não pode fazer de outra forma. Mas na verdade, “Sie” refere-se a “eine Philosophie” na última frase, o que significa que isso é algo que é feito por uma filosofia (como a dos estoicos) assim que começa a acreditar em si mesma. Ele não diz que a filosofia em geral é um impulso tirânico de criar o mundo à sua própria imagem.12 12 Pode parecer que Zaratustra esteja dizendo isso em seu discurso sobre a autossuperação (Za/ZA, Da autosuperação,12) quando afirma que a vontade de verdade daqueles que são os mais sábios é na verdade uma vontade de potência. O que ele quer dizer com isso, diz ele, é que aqueles que são os mais sábios querem fazer com que toda a existência se dobre e se submeta ao seu intelecto. Precisamente porque duvidam, com suspeita apropriada, se a existência é mesmo intelectualmente concebível, eles querem torná-la tal - isto é, eles querem criar um mundo à imagem de seu próprio intelecto que seja suave e esteja sujeito ao seu intelecto, sendo seu espelho e reflexo. Mas a interjeição de Nietzsche sobre a dúvida e a suspeita adequada dos filósofos mostra que ele está criticando essa tendência filosófica, não a encorajando. Veja também FW/GC 373, onde Nietzsche insiste que a existência não está sujeita ao intelecto humano. Assim, quando Zaratustra fala dos mais sábios, está contrastando sua própria maior sabedoria com a deles,iimplicando que sua própria vontade de verdade e maior vontade de potência não quer fazer tudo da existência curvar-se e submeter-se ao seu intelecto. Como sugere o título de uma seção próxima (“Dos sábios famosos”) Nietzsche está aqui se referindo à sabedoria como foi definida até agora, não à sabedoria como ele a define em nome de um novo tipo de filosofia no futuro. Mas, quando pareado junto com uma filosofia abissalmente arrogante que glorifica a si mesma, esse impulso tirânico de criar o mundo se torna um impulso tirânico de criar uma imagem autorrefletida do mundo. Assim, Nietzsche de fato endossa a vontade de potência intelectual dos filósofos que os conduz tiranicamente a criar teorias sobre o mundo como um todo, mesmo em casos como o dos estoicos. Mas ele critica as tendências autoglorificadoras e autoprojetivas que os levam a criar falsas imagens do mundo - tendencias que Salomé considera que ele exemplifica e encoraja aos filósofos do futuro. É por isso que ele insiste, contra os estoicos: “Com todo o seu amor à verdade, vocês se obrigaram por tanto tempo, tão obstinadamente, tão rigidamente, a ver a natureza de modo falso, ou seja, estoico, que afinal não a conseguem ver de maneira diversa”.

Na seção 9, então, encontramos Nietzsche aplicando à filosofia estoica o que eu identifiquei como a lição da seção 6 no que diz respeito às grandes filosofias até agora. Essa filosofia, como todas as filosofias antigas que ele ensinava na Basileia, é falha, por ser meramente uma confissão pessoal e uma memória involuntária. Mas especificamente, na seção 9 Nietzsche concentra-se no valor predileto dos estoicos, a tirania sobre si. Sua descrição mostra que ele considera que esse é um valor muito idiossincrático, que incute neles um preconceito ou viés pessoal. Em seguida, ele mostra que os estoicos, subconscientemente, prescrevem e incorporam essa moral e esse ideal na natureza. Eles alegam que, por eles serem bons em tiranizar a si mesmos, e por ser o estoico parte da natureza, então a natureza também permite ser tiranizada. Eles demandam que a natureza seja a natureza “de acordo com o estoicismo” e querem fazer toda a existência se conformar apenas à sua própria imagem - como uma eterna glorificação e generalização do estoicismo, isto é, da tirania sobre si. É claro que Nietzsche considera que essa demanda envolve desonestidade e auto-ilusão, porque ele exclama, incrédulo, “na natureza, até na natureza” [der Natur, sogar der Natur] e porque ele diz que essa demanda é inspirada por uma arrogância abismal e uma esperança insana. Depois disso, Nietzsche explica como os estoicos alegremente fingem ler o cânone de sua lei a partir da natureza. Aqui sua insinuação de desonestidade e autoilusão é transmitida por sua alegação de que os estoicos fingem [vorgeben] fazer isso e por sua descrição associada deles como agentes estranhos e auto-enganadores [wünderlichen Schauspieler und Selbst-Betrüger]. Dessa forma, os estoicos se encontram, agora, em posição de declarar que sua própria preferência de valor pessoal e idiossincrática é validada pela natureza: eles dizem que querem e proclamam como seu princípio ético central “viver de acordo com a natureza”. É assim que Nietzsche coloca esse raciocínio circular no seu primeiro rascunho da seção 9: “Na verdade, vocês primeiro moldam a natureza à imagem de seu homem sábio! E depois vocês gostariam de formar a si mesmos à imagem de sua imagem!” (KSA, 14.349). Mas, nesse ponto, e em oposição direta à leitura de Salomé das seções 6 e 9, Nietzsche introduz a linguagem de verdade e falsidade, a fim de minar a validação conclusiva do estoico a respeito de sua valoração pessoal da tirania sobre si. Uma vez que os estoicos declararam que sua projeção desse preconceito na natureza é a verdadeira descrição do mundo, ele pode refutá-los da seguinte forma: “Com todo o seu amor à verdade, vocês se obrigaram por tanto tempo, tão obstinadamente, tão rigidamente, a ver a natureza de modo falso, ou seja, estoico, que afinal não a conseguem ver de maneira diversa”. Dessa forma, ele retorna à sua constatação introdutória da natureza fraudulenta e enganadora [Betrügerei der Worte] da afirmação estoica de querer viver “de acordo com a natureza”. A questão de Nietzsche aqui é o que ele objetiva ser uma lição metafilosófica geral, isto é, a de que a teorização filosófica auto-enganadora dos estoicos os leva a construir uma imagem falsificadora do mundo. Eles veem a natureza falsamente, isto é, estoicamente, porque a lei estoica, a moralidade e o ideal estoicos, que eles alegam encontrar na natureza, não existem lá de fato.

Na sua glosa da seção 6, Salomé escreve que o valor da imagem de Nietzsche do mundo - a qual ela vê como um grande reflexo de seu autorretrato - não se encontra naquilo que pode ser estabelecido ou refutado dialeticamente. Mas, em todas essas passagens iniciais de Para além de bem e mal, Nietzsche não está dizendo que os filósofos anteriores tenham se furtado à toda forma de racionalidade quando concebiam suas teorias. Em vez disso, sua questão é que eles fingiram conduzir um raciocínio imparcial e não enviesado para esconder até de si mesmos seu próprio uso de um raciocínio indutivo na sua missão, motivada por poder, de glorificar e universalizar a si mesmos e seus próprios preconceitos. Assim, quando ele escreve, no prefácio de Para além de bem e mal, que filósofos anteriores construíram suas teorias do universo de forma auto-enganadora, com base em generalizações audaciosas de fatos muito estreitos, muito pessoais, muito humanos, demasiado humanos, sua questão é que o número infinitamente pequeno e o caráter radicalmente idiossincrático desses fatos obviamente enfraquecem esse raciocínio indutivo e não conseguem sustentar essas teorias. Quando ele alega na seção 6 que os impulsos pessoais dos filósofos gostariam de usar o conhecimento e o desconhecimento dos filósofos para se retratarem como o propósito final de toda a existência, sua ênfase em desconhecimento [der Erkenntniss (und der Verkenntniss!)] é uma obvia crítica dessa ambição absurda. De forma similar, quando Nietzsche explica na seção 9 como os estoicos, auto-iludidos, constroem uma generalização colossal do estoicismo e como os estoicos inferem que, pelo fato de a tirania sobre si estoica ser parte [Stück] da natureza, toda a natureza se deixaria tiranizar, ele está obviamente criticando o raciocínio indutivo grandioso dos estoicos como ultrajante e completamente injustificável. De forma similar, quando ele descreve na seção 22 a inferência auto-enganadora dos físicos democráticos modernos, de que a igualdade perante a lei em todo lugar é conclusão do fato de que eles veem a si mesmos como iguais perante a lei, sua questão é que essa é uma inferência indutiva falha e ridícula. A falácia, em todos esses casos, é a mesma e, apesar de Nietzsche não a nomear, ela corresponde ao que Aristóteles primeiro chamou de falácia da composição - isto é, o tipo de raciocínio indutivo falho que atribui ao todo propriedades que pertencem a uma parte pequena e atípica do todo (Refutações sofísticas 165b-166b). Em todos esses casos, o raciocínio falacioso invariavelmente leva a uma visão falsificada e a uma interpretação distorcida do todo - isto é, uma visão do todo e uma interpretação do todo como tendo propriedades que pertencem apenas a uma parte infinitamente pequena e radicalmente atípica do todo.13 13 Tendo em vista que Nietzsche é um antirrealista quanto a valores (FW/GC 301; Za/ZA, “Dos mil e do único alvo”), ele nega a visão metaética de que uma valoração humana de X se torna uma propriedade ontológica de X. Ver Loeb 2021a.

Uma última questão que poderíamos levantar é por que Nietzsche, que claramente valoriza a vontade de potência, iria querer que filósofos de futuro resistissem à vontade de potência intelectual - Mesmo quando ela tiranicamente conduz filósofos autoglorificadores a criar imagens autorrefletidas do mundo. Uma vez que Nietzsche coloca em questão o valor da verdade desde o início de Para além de bem e mal, não deveria ter importância que ele achasse que essas imagens são falsas. Na verdade, apenas algumas seções antes da seção 9, ele escreve que, para ele, a falsidade de um juízo não é por si uma objeção ao juízo e que a questão é até que ponto esse juízo promove a vida (JGB/BM 4). Portanto, ele não pode estar objetando a falsidade da imagem estoica por valorizar a verdade incondicionalmente, por ela mesma. Além disso, levando em consideração que ele diz que a imagem autorrefletida dos estoicos os ajuda a aumentar seu sentimento de potência intelectual, e considerando que ele afirma que a vida é vontade de potência (JGB/BM 13), fica claro que ele acha que essa imagem é promotora de vida para eles. Então por que enfatizar a falsidade da imagem autorrefletida dos estoicos para insinuar que existe algo questionável quanto à essa falsidade?

Minha resposta a essa questão é que nós precisamos levar a sério a formulação criteriosa de Nietzsche na seção 4, quanto à questão ser não se um julgamento é promotor da vida, mas, antes de tudo, em que medida um julgamento é promotor de vida (wie weit es lebenfördernd). Nesse caso, Nietzsche pode estar objetando a falsidade da imagem estoica simplesmente porque ela não é promotora de vida o suficiente - não o suficiente ao ser comparada com sua própria imagem mais acurada da realidade ou as imagens mais acuradas dele e dos filósofos do futuro que seguirão seus passos. A partir dessa leitura, o motivo pelo qual ele e os filósofos do futuro deveriam resistir à vontade de potência intelectual quando ela conduz os filósofos anteriores, como os estoicos, a falsificar o mundo, é que eles veem uma oportunidade para uma descarga muito maior de sua própria vontade de poder intelectual através de suas próprias teorias mais acuradas.

Apesar de Nietzsche não explicar esses pontos adicionais na seção 9, considero que ele se preocupa em delineá-los quando retorna para discutir esses mesmos temas nas importantes seções posteriores, 229 e 230. Pois, nessas seções, ele esboça com mais detalhe os processos pelos quais os filósofos anteriores como os estoicos foram capazes de descarregar sua vontade de potência intelectual ao criar um mundo à sua própria imagem. Retraduzidas para a natureza, afirma ele, suas necessidades e capacidades eram as mesmas que os fisiólogos postulam para tudo o que vive, cresce e se multiplica. O que eles necessitavam, escreve ele, era serem mestres em e ao redor de si mesmos e se sentirem como mestres; seu objetivo final era o sentimento de crescimento, o sentimento de aumento de potência. Nietzsche, então, delineia quatro tipos diferentes de capacidades que os ajudaram a chegar a esse objetivo: 1) apropriação do estrangeiro assimilando o novo e o velho: 2) fazer vista grossa ou repudiar o que não pode ser assimilado, isso é, tudo aquilo que for em última instancia contraditório no “mundo exterior”; 3) permitir auto-engano referente ao tipo de falsificação que foi realizada pelas primeiras duas capacidades; e 4) prontidão para enganar os outros quanto à falsificação como uma forma de ocultação e autodefesa. Existem muitos detalhes na descrição que Nietzsche faz dessas capacidades que se aplicam ao que ele disse nas passagens iniciais de Para além de bem e mal sobre os filósofos anteriores que construíram o mundo à sua própria imagem. Por exemplo, 1) diz respeito a uma vontade de simplicidade e de retocar e falsificar o todo para adequar-se a si; 2) envolve um tipo de estado de defesa contra muito do que é possível se conhecer, uma decisão em favor da ignorância; 3) inclui um prazer na estreiteza arbitrária e no sigilo de algum recanto, naquilo que está em primeiro plano, naquilo que está ao fundo, naquilo que é aumentado; e 4) inclui um prazer do sentimento de segurança por trás de máscaras argutas. Todos esses elementos ajudam a explicar o que Nietzsche quer dizer quando ele discute os preconceitos dos filósofos. Em conexão com a projeção dos estoicos de seus valores preferidos, a questão de Nietzsche é que esses filósofos enganaram a si mesmos e aos outros a acreditar que qualquer aspecto do universo que não fosse como uma lei ou como tirania sobre si tivesse que ser ou assimilado a esses valores estoicos ou simplesmente ignorados.

Tendo delineado as motivações e estratégias por trás das teorias autorreflexivas dos filósofos anteriores, Nietzsche volta-se para explicar como todos eles podem ser combatidos por “aquele sublime pendor do homem de conhecimento, ao tomar e querer tomar as coisas de modo profundo, plural, radical: como uma espécie de crueldade da consciência e do gosto intelectuais” (JGB/BM 230). Fazendo alusão à linguagem das seções 5 e 9, ele escreve que “o homem do conhecimento, ao obrigar seu espírito a conhecer, contra o pendor do espírito e também, com frequência, os desejos de seu coração - isto é, a dizer Não, onde ele gostaria de aprovar, amar, adorar” (JGB/BM 229).14 14 Ou, como Nietzsche coloca em seu livro anterior, dizer Não para sua derradeira esperança e intoxicação, para sua criação de um mundo perante o qual eles pudessem se ajoelhar (Za/ZA, “Da autossuperação”). Em vez de construir teorias filosóficas sobre o mundo como eles gostariam que fosse de acordo com os desejos de seus corações, aqueles que buscam o conhecimento como ele mesmo forçam seus intelectos a ver cruelmente o mundo como ele realmente é. Em vez de projetar a si mesmos e seus valores preferidos no mundo para que pudessem glorificar a si mesmos e esses valores, aqueles que buscam o conhecimento como ele mesmo insistem na profundidade e na meticulosidade como meios de machucar e violar essa mesma vontade dentro de si. Eles voltam essa vontade contra ela mesma como uma forma de aumentar seu sentimento de potência muito além do que eles poderiam criando suas próprias teorias autorreflexivas do universo.

Ainda há muito que precisa ser dito aqui, especialmente com referência ao desenvolvimento posterior dessas ideias na segunda parte de seu livro subsequente (GM/GM II 16-18). Por exemplo, existem bons motivos para pensar que Nietzsche acredita que a escalada do aumento da vontade de potência intelectual internalizada nos filósofos do futuro acabará por levar a algum tipo de redirecionamento explosivo para o exterior.15 15 Ver Loeb, 2010, 233, 240. Nietzsche também escreve em suas notas não publicadas sobre a consequência de os humanos verem através de falsificações anteriores da natureza e a reconhecerem como vontade de potência. Quando eles se retraduzem ao interior dessa natureza redimida, haverá um aumento no sentimento de potência entre todos os humanos mais poderosos, aprimorando, assim, a espécie humana como um todo (cf. NF/FP 5[71], KSA 12.211-217). Nesse caso, os filósofos do futuro não mais se contentarão com uma apropriação em grande parte ilusória do que é desconhecido, o que significa que seu sentimento de potência será muito maior do que era antes.16 16 Apesar de ele ainda não ter formulado oficialmente sua teoria da vontade de potência para substituir a teoria de Darwin da seleção natural. Nietzsche oferece o mesmo tipo de argumento em FW/GC 110, logo depois de ter criticado o erro fundamental da projeção de valores antropomórficos em FW/GC 109: “O conhecimento se tornou então parte da vida mesma e, enquanto vida, um poder em contínuo crescimento: até que os conhecimentos e os antiquíssimos erros fundamentais acabaram por se chocar: os dois sendo vida, os dois sendo poder, os dois no mesmo homem. O pensador: eis agora o ser no qual o impulso para a verdade e os erros conservadores da vida travam sua primeira luta, depois que também o impulso à verdade provou ser um poder conservador da vida. Ante a importância dessa luta, todo o resto é indiferente”. Em todo o caso, considero que esta elaboração adicional é suficiente para mostrar que Nietzsche certamente se opôs à falsificação envolvida nas projeções de valor de filósofos anteriores, como dos estoicos. Do mesmo modo, penso que a fonte de sua objeção, assim como seu desejo de resistir, ou de voltar-se contra si mesmo, a vontade de potência intelectual que compele tais falsificações de projeção de valor, é na verdade a valorização dessa sua mesma vontade de potência. Embora essas falsificações certamente tenham aumentado a vontade de potência intelectual dos filósofos anteriores, Nietzsche pensa que sua crítica a essas falsificações, levando-o a um conhecimento mais acurado da realidade, pode aprimorar sua própria vontade de potência intelectual em um grau muito maior.

3. A nova metodologia interpretativa de Nietzsche

Deixe-me agora resumir os resultados de minha análise crítica da evidência textual que pode até parecer apoiar a abordagem interpretativa de Salomé à filosofia de Nietzsche. Acho que Salomé tem razão em sugerir que Nietzsche está preocupado em iniciar as passagens introdutórias de Para além de bem e mal com lições metafilosóficas que tenham consequências importantes de como devemos interpretar sua própria teoria filosófica. Também concordo com ela que o tema dessas lições é a tendência do filósofo de subconscientemente projetar a si mesmo e seus valores em toda a realidade. Porém, enquanto ela afirma que Nietzsche considera que esta tendência é inevitável e benéfica, argumento que ele considera que são completamente evitáveis e devem ser resistidas. Esta tendência deve ser combatida porque reduz teorias filosóficas a meras afirmações pessoais e porque envolve um raciocínio falho que leva a falsificar teorias da realidade. O raciocínio falho atribui a todo o universo características orientadas para os valores de um conjunto infinitesimalmente pequeno de seres humanos radicalmente atípicos, e as teorias resultantes são falsas porque afirmam que essas características pertencem a todo o universo. Por exemplo, Nietzsche explica, na seção 9, que os estoicos projetam em todos a natureza seu próprio ideal de tirania sobre si. Mas isso significava projetar o desejo de ser diferente, característico do organismo vivo, em um toda a realidade que é em verdade completamente indiferente. Da mesma forma, ele explica, na seção 22, que os físicos modernos projetaram sua própria preferência moral por leis igualitárias na realidade ao todo, onde as leis são absolutamente inexistentes e onde até a palavra “tirania” é uma metáfora inadequada porque é muito humana. Discordando da afirmação de Salomé de que as teorias filosóficas de Nietzsche são projeções de si mesmo e seus valores na realidade ao todo, argumentei que eles são, na verdade, o resultado de sua nova metodologia interpretativa de detectar, criticar e subtrair todo esse valor anterior das projeções para descobrir como é de fato toda a realidade. Nas passagens Para além de bem e mal que examinei acima, Nietzsche alude a essa nova metodologia e a coloca em prática ao examinar teorias de filósofos anteriores, como os estoicos. Em contraste com os estoicos, que projetam a si mesmos e seus valores na natureza para validá-los, Nietzsche deriva sua concepção de si e seus valores da visão de natureza que ele descobre subtraindo todas essas projeções anteriores. Ainda assim, pode-se perguntar: se essa metodologia é tão importante quanto eu digo, por que ele não a fórmula mais explicitamente e programaticamente? Minha resposta é que ele está contando com seus leitores para saber que ele já fez isso na seção crucial 109 de seu livro anterior, A gaia ciência. Como demostrado por Paolo D’Iorio (2011, p. 61-89)D’IORIO, Paolo.“The Eternal Return: Genesis and Interpretation.” Lexicon Philosophicum: International Journal for the History of Texts and Ideas 20 (2014): 41-96., as notas preparatórias de Nietzsche e as anotações de livros contemporâneos revelam que ele compôs esta seção em resposta direta aos debates cosmológicos contemporâneos entre filósofos e físicos proeminentes como Otto Caspari, Eugen Dühring, Eduard von Hartmann, William Thomson, Johannes Gustav Vogt e Johann Karl Friedrich Zöllner. Nessa seção, Nietzsche revisa suas cosmologias organicistas, mecanicistas, materialistas e pampsiquistas, criticando essas teorias por projetar atributos antropomórficos e julgamentos de valor no universo ao todo. O erro cognitivo nesse tipo de projeção, explica ele, é que atributos que pertencem ao que é meramente um caso especial, inexprimivelmente raro, que é a exceção das exceções, foram reinterpretados como universais, como regra, como pertencentes ao caráter do mundo como um todo, e como existentes em geral e em todos os lugares. Ou, nos termos de Aristóteles, todas essas teorias cometeram uma falácia de composição que os levou a construir falsas teorias do cosmos. Vogt, por exemplo, afirma que o mundo inclui, em todos os lugares e por toda eternidade, a elegante movimentação de nossas estrelas vizinhas, quando na verdade a ordem astral em que vivemos é uma exceção e até mesmo um olhar sobre a Via Láctea levanta dúvidas se não existem mais movimentos contraditórios ali, assim como estrelas com trajetórias eternamente lineares, e assim por diante. Caspari afirma que o mundo inclui, em todos os lugares e por toda a eternidade, o tipo de matéria orgânica viva que percebemos apenas na crosta terrestre, e que é um desenvolvimento muito tardio, que foi possível, apenas de forma derivada e acidental, pela considerável duração possibilitada por nossa própria ordem astral atípica.17 17 Na anotação preparatória, Nietzsche escreve sobre a ideia de Caspari sobre “o universo como um organismo”: “Isso é sempre uma antropomorfização da natureza!” (NF/FP 11[201], KSA 9.522).

Ao final da seção 109, Nietzsche sugere uma nova metodologia interpretativa que irá combater esse tipo de erro cognitivo e falsificação da realidade - ou seja, o desdivinizar da natureza. Aludindo à alegoria fundacional da caverna de Platão, a metáfora que Nietzsche emprega aqui é o de dissipar as sombras obscuras de Deus (FW/GC 108). Uma vez que ele identifica essas sombras como projeções humanas de si mesmos e de seus valores, é claro que ele tem em mente a detecção, crítica e subtração de todos esses erros projetivos. O resultado, escreve ele, será uma natureza pura, recém-descoberta e redimida. Os estudiosos hoje concordam que Nietzsche está perseguindo um projeto naturalista no qual nós humanos somos retraduzidos para a natureza (JGB/BM 230). Mas o que eles geralmente não percebem é que na seção 109 de A gaia ciência Nietzsche explica que o que ele quer dizer com “natureza” é uma natureza que foi purificada de toda mistura antropomórfica. Numa importante nota contemporânea, ele esboça as duas etapas sucessivas de seu projeto naturalista: “Minha tarefa: a desantropomorfização (Entmenschung) da natureza e depois a naturalização (Vernatürlichung) dos humanos, depois de terem recuperado o conceito puro de ‘natureza’” (NF/FP 11[211], KSA 9.525).18 18 Em Loeb 2021a, eu argumento contra Leiter que essa metodologia replicável é realmente o coração do naturalismo filosófico de Nietzsche e a base de seu antirrealismo acerca dos valores (incluindo os seus próprios). Com isso ele quer dizer que sua nova metodologia nos permitirá descobrir pela primeira vez o que o mundo, como um todo, realmente é, já que, quando não é mais obscurecido por todas as nossas próprias sombras e nossos valores. Este final marcante da seção 109 é importante como uma transição para a próxima seção (FW/GC 110), porque sugere que esta metodologia é precisamente o meio pelo qual os pensadores do futuro finalmente serão capazes de libertar os humanos dos erros cognitivos herdados que preservam a espécie, que foram incorporados por eles desde tempos imemoriais. Essa metodologia, sugere Nietzsche, permitirá que esses pensadores defendam a busca oposta pela verdade e pelo conhecimento que eles apenas recentemente incoporaram a si mesmos como um novo tipo de poder de preservação da vida.19 19 Essa transição é reforçada pela menção que Nietzsche faz em ambas as seções sobre os eleatas e o erro projetivo acerca de substâncias duradouras.

Eu acho que este famoso manifesto é a evidência mais clara que se poderia querer contra a abordagem interpretativa de Salomé. Mas alguns estudiosos podem querer argumentar que a ideia metodológica de Nietzsche, proposta na seção 109 de A gaia ciência e depois reiterada nas seções 9 e 22 de Para além de bem e mal, de subtrair, de nossa concepção de natureza, a ideia humana projetada de leis igualitárias, de alguma forma o compromete à existência da “coisa em si.” Ou que, por exemplo, se pararmos de pensar na natureza como um organismo vivo, ou racional, ou belo, estamos de alguma forma comprometidos com a ideia de que é assim que o mundo é em si mesmo, isto é, à parte ou independente de qualquer uma de suas interpretações. Mas isso não procede. Na visão de Nietzsche, é perfeitamente coerente acreditar simultaneamente tanto no caráter inescapável da verdade perspectiva, quanto na natureza falsificadora das projeções de valor antropomórficas. Na seção 109, Nietzsche diz explicitamente que nossos julgamentos estéticos e morais não se aplicam de forma geral e em todos os lugares, ou se aplicam ao caráter total do mundo, ou ao que é essencial, universal e eterno no mundo.20 20 Em sua nota preparatória, Nietzsche escreve “Devemos representá-lo de forma inteiramente mecânico-irracional, que nele não se pode encontrar nenhum predicado de valores estéticos e morais” (KSA 14.254). Nenhum desses termos universalistas tem a intenção de ser descrições kantianas do mundo como ele realmente é em si mesmo, isto é, independente de todas as perspectivas ou interpretações dele. Para Nietzsche, o projeto de busca da verdade de ver o mundo como ele é separado de nossas projeções de valor antropomórficas - o que ele chama de natureza completamente desdivinizada, ou a natureza pura, recém-descoberta, recém-redimida - não é de forma alguma a mesma coisa que a ideia autocontraditória de ver o mundo como ele é separado de quaisquer perspectivas ou interpretações humanas.21 21 Nem esse projeto deve ser interpretado como parte do ideal ascético pelo qual a humanidade menospreza a si mesma e se desloca do centro (GM/GM III 25). Pelo contrário: ensinando a humanidade como reaver o poder criador de valores que ela projetou erroneamente no interior de divindades antropomórficas, ou no interior do mundo como um todo, esse método na verdade aumenta o orgulho e autoestima da humanidade (FW/GC 301) e é, portanto, uma arma poderosa contra o ideal ascético.

Conclusão

Quando os estudiosos de Nietzsche se referem ao aspecto autobiográfico de seus escritos filosóficos, eles muitas vezes têm várias coisas diferentes em mente. Eles podem, por exemplo, estar se referindo ao fato de que Nietzsche usa um estilo muito pessoal para comunicar sua filosofia (EH/EH, “Por que escrevo livros tão bons”, 4), ou de que ele relaciona os contextos pessoais e culturais particulares (como saúde, clima ou geografia, ou a influência de Wagner) em que descobriu sua filosofia (FW/GC, Prefácio), ou de que ele reivindica a propriedade pessoal de sua filosofia (JGB/BM 23, 36, 43), ou de que ele descreve os estados emocionais que ele experimentou ao descobrir ou contemplar suas ideias filosóficas (EH/EH, Assim falava Zaratustra). Eles também podem estar se referindo ao fato de que, no final de sua carreira, Nietzsche realmente se preparou para publicação um livro de memórias, Ecce Homo, no qual ele revista, resume e explica as ideias filosóficas que ele havia formulado em seus trabalhos anteriores. Ou eles podem estar se referindo a figuras filosóficas que ele inventou (como “o espírito livre” ou o “Zaratustra”), que de muitas maneiras refletem sua própria personalidade e experiências de vida. Todas essas são observações óbvias e incontroversas, e não estou contestando nenhuma delas aqui.

O que estou contestando é a afirmação muito mais forte, como proposta inicialmente por Lou Salomé, de que sua filosofia é um autorretrato, no sentido de que ele projeta a si mesmo e seus ideais em toda a realidade. De acordo com sua interpretação, o próprio Nietzsche nos diz que é isso que ele está fazendo no passagens de abertura de Para além de bem e mal - especificamente quando ele escreve na seção 6 que toda grande filosofia até agora tem sido confissão pessoal e memórias não intencionais, e também quando ele escreve em na seção 9 que uma filosofia que acredita em si mesma não pode evitar de ver o mundo à sua própria imagem. É por isso que ela diz que o valor do pensamento de Nietzsche não está em sua originalidade ou naquilo que pode ser estabelecido ou refutado dialeticamente. Minha resposta é que essas passagens estão realmente dizendo exatamente o oposto do que Salomé pensa que estão dizendo. A seção 6 está na verdade dizendo que todas as grandes filosofias até agora (como Spinoza ou Kant) foram falhas precisamente porque foram vastas generalizações de fatos muito pessoais dos filósofos; enquanto a seção 9 está na verdade dizendo que filósofos auto-glorificados (como o estoicos) que projetaram a si mesmos e seus valores em toda a realidade construíram falsas imagens do mundo. Todos esses filósofos, afirma Nietzsche, são culpados de formar um argumento indutivo incrivelmente fraco, no qual algumas características excepcionais do mundo são amplamente generalizadas como pertencente ao mundo como um todo. Na seção 109 de A gaia ciência, Nietzsche estabelece uma nova metodologia filosófica que se supõe contrariar esta tendência tradicional, retirando sistematicamente todas essas projeções personificadas e antropomórficas de concepções anteriores de realidade. Assim, ele afirma, é como ele chega às suas próprias teorias filosóficas, que são, assim, o próprio oposto de um autorretrato. Dessa forma, Nietzsche está acima de tudo preocupado em evitar o tipo de filosofar autobiográfico que ele acha que prejudicou o trabalho de todos os pensadores anteriores. Dado o alcance do legado interpretativo de Salomé, muitos estudiosos hoje considerarão esta conclusão como uma divergência nova e radical. Mas espero que os argumentos descritos acima os convençam que esta perspectiva divergente ajudará a orientar pesquisas futuras de forma mais precisa e em ricas direções.22 22 Agradeço a Paul Katsafanas, Scott Jenkins, Matthew Meyer e Mark Migotti pelo retorno construtivo em versões anteriores deste trabalho. Eu também sou grato ao Departamento de Filosofia da Universidade de Calgary por suas questões e comentários sobre algumas questões deste trabalho.

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  • LOEB, Paul S. The Death of Nietzsche’s Zarathustra Cambridge University Press, 2010. ______. “Review of Brian Leiter, Moral Psychology with Nietzsche,” Journal of the History of Philosophy 59:1 (2021a): 160-161.
  • LOEB, Paul S. . “Review of Brian Leiter, Moral Psychology with Nietzsche,” Journal of the History of Philosophy 59:1 (2021a): 160-161.
  • ______. “The Role of Values in Nietzsche’s Metaphilosophy,” The Agonist: A Nietzsche Circle Journal 15:3 (2021b): https://journals.tplondon.com/agonist/article/view/1903
    » https://journals.tplondon.com/agonist/article/view/1903
  • MEYER, Matthew. Reading Nietzsche through the Ancients Walter de Gruyter, 2014.
  • NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. G. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter, 1999. 15 Bd. (KSA).
  • NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe. G. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter, 2003. 8 Bd. (KSB).
  • NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal Tradução: Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência Tradução: Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  • SALOMÉ, Lou. Nietzsche Translated and edited by Siegfried Mandel. University of Illinois Press, 2001.
  • *
    Tradução: Pedro Teixeira de Castro Pêpe.
  • 1
    O rascunho anterior de Nietzsche desta frase (KSA 14.348) não usa o pretérito perfeito ou o termo “bisher”, que indica que ele fez essas mudanças para tornar sua afirmação mais precisa.
  • 2
    Ver também: Salomé 2001, 11-14, 29, 59, 75-76, 87, 93, 97-100, 104-105, 112-115, 123-124, 137-139, 148, 154-156.
  • 3
    Veja especialmente os influentes escritos de Maudemarie Clark citados na bibliografia abaixo, e minha extensa discussão desses escritos em Loeb 2021b ______. “The Role of Values in Nietzsche’s Metaphilosophy,” The Agonist: A Nietzsche Circle Journal 15:3 (2021b): https://journals.tplondon.com/agonist/article/view/1903.
    https://journals.tplondon.com/agonist/ar...
    . Este presente ensaio é uma versão modificada e abreviada daquele mais longo e de redação mais detalhada. Ver também, por exemplo, Lampert 2001LAMPERT, Laurence. Nietzsche’s Task: An Interpretation of Beyond Good and Evil. Yale University Press, 2001. , 30, 36; Acampora e Ansell-Pearson 2011ACAMPORA, Christa Davis and Keith Ansell Pearson. Nietzsche’s Beyond Good and Evil: A Reader’s Guide. Continuum, 2011. , 37, 46; Meyer 2014MEYER, Matthew. Reading Nietzsche through the Ancients. Walter de Gruyter, 2014., 243-44; e Leiter 2018LEITER, Brian. “The History of Philosophy Reveals that ‘Great’ Philosophy is Disguised Moral Advocacy: A Nietzschean Case against the Socratic Canon in Philosophy”. In: Philosophy and the Historical Perspective, eds. Marcel Van Ackeren and Lee Klein, 185-199. Oxford University Press, 2018..
  • 4
    A crítica de Nietzsche à infantilidade filosófica [Kinderei] e ao amadorismo [Anfängerie], neste comentário introdutório, também antecipa sua crítica em JGB/BM 5 sobre a inocência dos filósofos, ou seja, com que facilidade eles erram e são extraviados, em sua infantilidade [Kinderei] e sua puerilidade [Kindlichkeit].
  • 5
    Essa leitura se encaixa bem com sua identificação do termo “preconceito” com erro cognitivo em lugares como M/A 116 e M/A 149 e o seu uso mais geral do termo em lugares que dizem respeito a classe, raça e preconceito de gênero (cf. M/A 186, JGB/BM 199, FW/GC 348, FW/GC 363). Também se encaixa bem com os outros usos do termo de Nietzsche no resto da JGB/BM - significando algo problemático que deve ser superado. Em JGB/BM 19 ele diz que os filósofos têm o hábito de adotar preconceitos populares e exagerá-los, alinhando assim sua ideia de preconceitos filosóficos com suas menções de velhas superstições populares e seduções gramaticais que ele diz derivar dos indivíduos (cf. também FW/GC 354). Falando do poder dos preconceitos morais no JGB/BM 23, ele diz que penetra até mesmo naqueles lugares que parecem mais desprovidos de pressupostos e opera de forma prejudicial, inibidora, ofuscante e distorcida. Em JGB/BM 32, ele diz que a moralidade das intenções é um preconceito que deve se superar; em JGB/BM 34 ele afirma que o preconceito de que a verdade vale mais do que a mera aparência é a suposição mais mal comprovada do mundo; no JGB/BM 44, ele caracteriza o preconceito como algo que precisa ser eliminado porque é estúpido, é um mal-entendido e bane os pensadores para um recanto (ver também JGB/BM 2); e em JGB/BM 22, ele escreve que o ser humano forte se beneficiará da ausência de preconceito em sua formação.
  • 6
    O simples fato de Nietzsche escrever sobre filosofias passadas como “grandes” (grosse) não mostra que ele pensa nelas acriticamente ou que ele pensa que sua própria filosofia, que presumivelmente também é grande, está sujeita às mesmas críticas destas.
  • 7
    Ver também: NF/FP 26[407], KSA 11.258-260; NF/FP 38[13], KSA 11. 611-613.
  • 8
    Cf. Clark 1983CLARK, Maudemarie.“Nietzsche’s Doctrines of the Will to Power.” Nietzsche-Studien 12 (1983): 458-468. , 463 e 2000______. “Nietzsche’s Doctrine of the Will to Power: Neither Ontological nor Biological”. International Studies in Philosophy 32:3 (2000): 119-135. , 126; e Lampert 2001LAMPERT, Laurence. Nietzsche’s Task: An Interpretation of Beyond Good and Evil. Yale University Press, 2001. , 36.
  • 9
    Aqui Nietzsche também alude à sua afirmação em JGB/BM 6 de que cada um dos impulsos humanos básicos visa governar todos os outros impulsos, e que tenta filosofar nesse sentido, querendo apresentar-se apenas como o propósito principal da existência. Uma vez que esta afirmação é obviamente crítica, devemos inferir que Nietzsche também está criticando esse mesmo desejo em JGB/BM 9. Os impulsos humanos e os estoicos estão cometendo o mesmo erro quando filosofam desta forma.
  • 10
    Embora todos os tradutores convencionais de JGB/BM tenham escolhido traduzir “geistigste” como “espiritual”, o contexto sugere claramente que Nietzsche tem em mente a ideia mais precisa e concreta, a atividade intelectual de um filósofo.
  • 11
    Salomé (2001, 98) parece ler o pronome “Sie” na cláusula “Sie schafft immer die Welt nach ihrem Bilde, sie kann nicht anders” como referindo-se ao termo “Philosophie” após o ponto e vírgula, inferindo assim que Nietzsche pensa que a filosofia em geral sempre cria o mundo à sua própria imagem e não pode fazer de outra forma. Mas na verdade, “Sie” refere-se a “eine Philosophie” na última frase, o que significa que isso é algo que é feito por uma filosofia (como a dos estoicos) assim que começa a acreditar em si mesma.
  • 12
    Pode parecer que Zaratustra esteja dizendo isso em seu discurso sobre a autossuperação (Za/ZA, Da autosuperação,12) quando afirma que a vontade de verdade daqueles que são os mais sábios é na verdade uma vontade de potência. O que ele quer dizer com isso, diz ele, é que aqueles que são os mais sábios querem fazer com que toda a existência se dobre e se submeta ao seu intelecto. Precisamente porque duvidam, com suspeita apropriada, se a existência é mesmo intelectualmente concebível, eles querem torná-la tal - isto é, eles querem criar um mundo à imagem de seu próprio intelecto que seja suave e esteja sujeito ao seu intelecto, sendo seu espelho e reflexo. Mas a interjeição de Nietzsche sobre a dúvida e a suspeita adequada dos filósofos mostra que ele está criticando essa tendência filosófica, não a encorajando. Veja também FW/GC 373, onde Nietzsche insiste que a existência não está sujeita ao intelecto humano. Assim, quando Zaratustra fala dos mais sábios, está contrastando sua própria maior sabedoria com a deles,iimplicando que sua própria vontade de verdade e maior vontade de potência não quer fazer tudo da existência curvar-se e submeter-se ao seu intelecto. Como sugere o título de uma seção próxima (“Dos sábios famosos”) Nietzsche está aqui se referindo à sabedoria como foi definida até agora, não à sabedoria como ele a define em nome de um novo tipo de filosofia no futuro.
  • 13
    Tendo em vista que Nietzsche é um antirrealista quanto a valores (FW/GC 301; Za/ZA, “Dos mil e do único alvo”), ele nega a visão metaética de que uma valoração humana de X se torna uma propriedade ontológica de X. Ver Loeb 2021a LOEB, Paul S. . “Review of Brian Leiter, Moral Psychology with Nietzsche,” Journal of the History of Philosophy 59:1 (2021a): 160-161..
  • 14
    Ou, como Nietzsche coloca em seu livro anterior, dizer Não para sua derradeira esperança e intoxicação, para sua criação de um mundo perante o qual eles pudessem se ajoelhar (Za/ZA, “Da autossuperação”).
  • 15
    Ver Loeb, 2010LOEB, Paul S. The Death of Nietzsche’s Zarathustra. Cambridge University Press, 2010. ______. “Review of Brian Leiter, Moral Psychology with Nietzsche,” Journal of the History of Philosophy 59:1 (2021a): 160-161., 233, 240. Nietzsche também escreve em suas notas não publicadas sobre a consequência de os humanos verem através de falsificações anteriores da natureza e a reconhecerem como vontade de potência. Quando eles se retraduzem ao interior dessa natureza redimida, haverá um aumento no sentimento de potência entre todos os humanos mais poderosos, aprimorando, assim, a espécie humana como um todo (cf. NF/FP 5[71], KSA 12.211-217).
  • 16
    Apesar de ele ainda não ter formulado oficialmente sua teoria da vontade de potência para substituir a teoria de Darwin da seleção natural. Nietzsche oferece o mesmo tipo de argumento em FW/GC 110, logo depois de ter criticado o erro fundamental da projeção de valores antropomórficos em FW/GC 109: “O conhecimento se tornou então parte da vida mesma e, enquanto vida, um poder em contínuo crescimento: até que os conhecimentos e os antiquíssimos erros fundamentais acabaram por se chocar: os dois sendo vida, os dois sendo poder, os dois no mesmo homem. O pensador: eis agora o ser no qual o impulso para a verdade e os erros conservadores da vida travam sua primeira luta, depois que também o impulso à verdade provou ser um poder conservador da vida. Ante a importância dessa luta, todo o resto é indiferente”.
  • 17
    Na anotação preparatória, Nietzsche escreve sobre a ideia de Caspari sobre “o universo como um organismo”: “Isso é sempre uma antropomorfização da natureza!” (NF/FP 11[201], KSA 9.522).
  • 18
    Em Loeb 2021a LOEB, Paul S. . “Review of Brian Leiter, Moral Psychology with Nietzsche,” Journal of the History of Philosophy 59:1 (2021a): 160-161., eu argumento contra Leiter que essa metodologia replicável é realmente o coração do naturalismo filosófico de Nietzsche e a base de seu antirrealismo acerca dos valores (incluindo os seus próprios).
  • 19
    Essa transição é reforçada pela menção que Nietzsche faz em ambas as seções sobre os eleatas e o erro projetivo acerca de substâncias duradouras.
  • 20
    Em sua nota preparatória, Nietzsche escreve “Devemos representá-lo de forma inteiramente mecânico-irracional, que nele não se pode encontrar nenhum predicado de valores estéticos e morais” (KSA 14.254).
  • 21
    Nem esse projeto deve ser interpretado como parte do ideal ascético pelo qual a humanidade menospreza a si mesma e se desloca do centro (GM/GM III 25). Pelo contrário: ensinando a humanidade como reaver o poder criador de valores que ela projetou erroneamente no interior de divindades antropomórficas, ou no interior do mundo como um todo, esse método na verdade aumenta o orgulho e autoestima da humanidade (FW/GC 301) e é, portanto, uma arma poderosa contra o ideal ascético.
  • 22
    Agradeço a Paul Katsafanas, Scott Jenkins, Matthew Meyer e Mark Migotti pelo retorno construtivo em versões anteriores deste trabalho. Eu também sou grato ao Departamento de Filosofia da Universidade de Calgary por suas questões e comentários sobre algumas questões deste trabalho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2022
  • Aceito
    26 Maio 2022
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