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“O que é uma crítica da moral?”* * Tradução: Guilherme Serapicos

“What is a critique of morality?”

Resumo:

Esse artigo sustenta uma interpretação específica da “crítica da moral” nietzschiana a partir do exame de passagens em que Nietzsche utiliza variações dessa expressão, extraindo daí seis critérios que qualquer candidato a crítico deve atender. A partir disso, rejeito diversas interpretações alternativas em favor daquela segundo a qual Nietzsche critica a moral, entendida como um conjunto de práticas, mostrando o significado dessas práticas e as falhas em seu funcionamento.

Palavras-chave:
Nietzsche; crítica; moral; genealogia

Abstract:

This paper argues for a specific interpretation of Nietzsche’s “critique of morality” by examining the passages in which Nietzsche uses versions of that phrase, and extracting from them six criteria that any plausible candidate for critique must meet. On this basis, I reject several alternative interpretations in favor of one in which Nietzsche is criticizing morality, considered as a set of practices, by showing the meaning of these practices and their failures in functioning.

Keywords:
Nietzsche; critique; morality; genealogy

1. Introdução

A questão enfrentada nesse artigo é a seguinte: o que significa criticar a moral? Um projeto importante na obra nietzschiana é a crítica da moral ou, alternativamente, a crítica dos valores morais. Apesar disso, é bastante difícil especificar no que constitui exatamente esse projeto. Há diversos interesses históricos e filosóficos na abordagem de Nietzsche da moral, e não é nem um pouco claro se a “crítica” abrange todos esses interesses ou se é um projeto mais direcionado. Além disso, são poucas as ocasiões em que Nietzsche identifica expressamente essa crítica ou explica o que exatamente ela implica. Evidentemente, há muitas coisas que uma crítica da moral poderia ser, e seria fácil fazer suposições infundadas sobre o que essa crítica é para Nietzsche. Assim, o objetivo deste artigo é esclarecer o que é a crítica nietzschiana da moral. Trata-se de questão relevante não apenas em si mesma, mas, ainda, porque nosso modo de pensar o que poderia ser uma “crítica” em Nietzsche pode ter consequências também na forma como interpretamos sua abordagem filosófica como um todo.

Os termos utilizados por Nietzsche, “crítica” e “moral”, são bastante sugestivos filosoficamente, porém por si sós não possuem significado unívoco. Uma crítica - um século após Kant anunciar a “era da crítica”1 1 Kant, 1998, p. 100 (A xi). - poderia ser associada a um método transcendental de identificação das condições de possibilidade do real, como em Kant e Reinhold. É possível, também, associá-la à identificação de contradições dialéticas, como em Fichte e Marx. Talvez ainda mais próximo das influências intelectuais de Nietzsche estivessem os métodos históricos alto criticismo e o trabalho erudito do criticismo textual (afinal de contas, o termo usado por Nietzsche, “Kritik”, pode e costuma significar “crítica” ou “criticismo”). E embora o termo “crítica” muitas vezes assuma conotações negativas, é possível que se refira apenas a um julgamento atento, como em uma crítica artística ou literária. Enfim, o termo “crítica” por si só nos diz muito pouco a respeito do projeto nietzschiano. E o termo “moral”, penso eu, nos diz ainda menos, na medida em que exige ao menos a genealogia para que se possa começar a identificar o que é o objeto da crítica.

Quero enfatizar o leque de possibilidades aqui. Por um lado, há um sentido familiar de crítica, que significa apontar falhas ou identificar as coisas ruins como ruins. Por outro lado, em grande parte do século XIX a filosofia alemã foi marcada por uma sucessão de críticos criticando uns aos outros, almejando tornar-se, finalmente, o primeiro a efetivamente escapar do dogmatismo, identificando totalmente os pressupostos assumidos em suas posições (algumas vezes esses dois sentidos chegaram a se fundir, como na “crítica implacável de tudo que existe”2 2 Marx, K. /Engels, F. 1972, p. 12. em Marx, ou se voltaram contra si mesmos, como no chiste de Marx em A Ideologia Alemã, segundo o qual todos podemos sair para pescar à tarde e sermos críticos após o jantar).3 3 Marx, K. /Engels, F. 1972, p. 160. É tentador tomar emprestados esses sentidos, mas perigoso emprestar demais. O crítico gastronômico ou de cinema não escreve apenas “isso é ruim” ou “aquilo também é ruim”. Da mesma forma, talvez, a crítica nietzschiana da moral esclarece na mesma medida em que identifica falhas. E, embora esperássemos que a crítica de Nietzsche possuísse uma autoconsciência histórica que a própria moral não possui, Nietzsche não parece interessado em completude teórica. Negatividade e autoconsciência filosófica indicam algo que uma crítica poderia ser, mas também sugerem ideias não necessariamente pertinentes.

Eis uma analogia para pensarmos a respeito do leque de possibilidades de uma crítica. Lyndon Johnson, ex-presidente dos Estados Unidos, em seu discurso sobre o estado da União de 1964, declarou uma “guerra à pobreza”. Deixando de lado o que isso significava naquele contexto, uma declaração tão polêmica poderia implicar uma série de coisas. Por exemplo, essa “guerra” poderia ter um sentido predicativo: indivíduos pobres deveriam ser transformados em indivíduos não-pobres, de forma que a pobreza deixasse de existir. Poderia ter um sentido existencial: matar aqueles que são pobres para que a pobreza não exista. Ou poderia haver um sentido antirrealista: mostrando que declarações sobre “pobreza” não são verdadeiras nem falsas porque a pobreza é um termo sem sentido.4 4 O economista Milton Friedman parece ter assumido essa posição antirrealista quando se referia a “assim chamada” pobreza. Cf. New River Media Interview with Milton Friedman, disponível em https://www.pbs.org/fmc/interviews/friedman.htm Também poderia haver um sentido individualista: a pobreza é ruim e os indivíduos pobres são os culpados por ela; ou um sentido beatífico, em que a pobreza é reavaliada como algo bom; ou um sentido estrutural, em que lutamos para reformar os mecanismos sociais que criam e reproduzem a pobreza, ou um sentido explicativo, pelo qual se argumenta que a pobreza não é uma categoria útil para a explicação da realidade social e deveria ser substituída por aquelas (raça, classe, gênero, geografia, educação, cultura?) que são. Entenderíamos o que uma guerra à pobreza implica pelo exame do que mais é dito e feito, e acredito que algo semelhante é válido no que diz respeito ao sentido de crítica em Nietzsche.

Assim, eis o meu plano para identificar o que é uma crítica da moral para Nietzsche. Há apenas algumas poucas passagens em que ele se refere explicitamente a uma “crítica da moral” (ou a “avaliações morais”, etc.). Por isso, vou primeiramente rever essas passagens. Elas não apontam diretamente para um projeto filosófico, mas, conforme argumentarei, oferecem critérios que qualquer candidata a crítica da moral deve atender; elas nos mostram que tipo de projeto se qualificaria como uma crítica da moral. Em seguida irei sugerir algumas possibilidades intuitivas do que poderia ser uma crítica da moral e confrontá-las com os critérios fornecidos por Nietzsche. Defenderei que a maioria dessas abordagens não atende um ou mais critérios. Por fim, discutirei uma opção que na minha opinião atende esses critérios e explicarei porque ela representa uma opção filosófica distinta e como ela se encontra assentada nas opiniões de Nietzsche.

2. As passagens em que se discute a “crítica da moral”

Existem apenas quatro passagens principais nas quais Nietzsche se refere a uma crítica da moral ou a uma crítica das valorações morais ou dos valores morais. Como já mencionei, essas passagens não são muito precisas no que diz respeito à definição de uma forma precisa de crítica. Tomadas em conjunto e com os aforismos em que aparecem, porém, estabelecem vários critérios para o que poderia contar como uma crítica da moral (ocasionalmente, farei referência a outras afirmações dos mesmos aforismos, e não apenas a esses trechos). Aqui estão as quatro passagens:

“Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão [...]”(GM/GM, Prefácio, 6. KSA 5.253).5 5 Trad. Paulo César de Souza. Doravante, o tradutor será indicado por PCS ou RRTF (Rubens Rodrigues Torres Filho) (NE).

“Não vejo ninguém que tivesse ousado uma crítica dos juízos morais de valor [...]” (FW/GC 345, KSA 3.578, RRTF)

“Não esteve ausente em nossa educação toda a reflexão sobre a moral, e mais ainda a sua única crítica possível, as severas e corajosas tentativas de viver conforme essa ou aquela moral?” (M/A 195, KSA 3.169, PCS)

“[...] e criticar logo a moral, tomar a moral como problema, como problemática [...]” (M/A, Prefácio, 3, KSA 3.12, RRTF).

Estes trechos anunciam um projeto arrojado e diferenciado, porém não esclarecem no que exatamente ele consiste.

3. Os critérios

Apesar das poucas palavras, os trechos acima contêm muitas ideias. Minha sugestão é que, a despeito de não especificarem os detalhes de um projeto, eles fornecem os critérios para que se reconheça algo que poderia ser uma crítica adequada. Pelas minhas contas, são seis critérios de qualificação apresentados nessas passagens. Eu os discutirei e analisarei nesta ordem, revendo suas bases textuais e as qualificações que eles estabelecem.

  1. Independentemente do que seja uma crítica da moral, é algo novo, jamais tentado

  2. A crítica da moral é necessária

  3. A crítica é de caráter pessoal, não epistêmica (truth-functional)

  4. É algo distinto da crítica a uma determinada moral em particular

  5. Está ligada ao empreendimento histórico de compreensão da moral

  6. Considera a moral como problemática ou questionável

A. Nunca antes realizada

Independentemente do que seja uma crítica da moral, Nietzsche a considera algo totalmente original. Destaquei algumas evidências textuais disso mais abaixo. A crítica da moral ocorre assumindo uma perspectiva que é por si só inovadora; ninguém até então articulou o que ela exige; nada do tipo jamais existiu; não se podem encontrar outros exemplos; ninguém sequer cogitou tentar algo do gênero. Nietzsche talvez soe exagerado nesse ponto, mas pelo menos serve como alerta para não atribuirmos a ele qualquer espécie já conhecida de suspeita ou oposição à moral. Historicamente houve muitas formas de oposição à moral: diferentes versões de egoísmo, ceticismo, relativismo e niilismo, por exemplo. Mas Nietzsche insiste que seu projeto é completamente diferente de tudo o que veio antes.

“[...] uma nova perspectiva formidável se abre [...]” (GM/GM, Prefácio, 6. KSA 5.253, grifos do autor)

“Enunciemo-la, esta nova exigência [...]” (GM/GM, Prefácio, 6. KSA 5.253, PCS, itálico no original e grifo do autor)

“[...] de um tipo que jamais existiu [...]” (GM/GM, Prefácio, 6. KSA 5.253, grifos do autor)

“[...] nunca encontrei ninguém [...] (FW/GC 345, KSA 3.578, RRTF, grifos do autor)

“Não vejo ninguém que tivesse ousado uma crítica [...]” (FW/GC 345, KSA 3.578, RRTF, itálico no original e grifos do autor)

B. Necessária

Nietzsche sustenta que uma crítica da moral é algo de que precisamos. Ele não diz o porquê ou para quê; dá a entender que essa necessidade é uma consequência da nossa crença hesitante na moral. Mas nós precisamos dela. É uma exigência. Isso ajuda a excluir interpretações de crítica segundo as quais ela não é necessária: a crítica deve, supostamente, ou servir a um fim que é especialmente urgente para nós ou, no mínimo, a um fim que não pode ser prontamente atingido por outros meios. Se a nossa abordagem filosófica enseja uma conclusão sobre a moral que poderíamos alcançar de outra forma ou se não temos uma razão convincente para adotarmos essa abordagem, então não temos uma crítica da moral.

“Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais [...]” (GM/GM, Prefácio, 6. KSA 5.253, PCS, itálico no original e grifos do autor)

C. Pessoal, não epistêmica

A crítica da moral não é que ela seja falsa ou qualquer outra consideração a respeito de seu status epistêmico. Alguém poderia cogitar a moral como uma espécie de teoria que sistematiza a verdade a respeito de certo conjunto de fatos valorativos e normativos; nesse caso, o sucesso da teoria depende de sua capacidade de acerto sobre a verdade dos fatos e de mostrar possuir a chave correta para o acesso epistêmico a esses fatos. Nietzsche, contudo, parece completamente indiferente a isso. Ele não tem qualquer interesse em considerar a moral dessa forma e, portanto, a base avaliadora de sua crítica encontra-se em outro lugar. Crítica deve, pelo contrário, ser “pessoal” e de algum modo tomar a forma de uma tentativa de “viver na” moral. Assim, pode-se deduzir que uma crítica da moral revela algo sobre a possibilidade, as implicações ou o significado da experiência prática da moral, mas nada a respeito de sua confiabilidade epistêmica.

“[...] a única crítica da moral possível, a tentativa corajosa e severa de viver conforme essa ou aquela moral” (M/A, § 195, KSA 3.169; cf. também SE/Co. Ext III 8, KSA 1.416, grifos do autor)

“E como é que ainda não encontrei ninguém [...] que tivesse diante da moral essa posição pessoal, que conhecesse a moral como problema e esse problema como sua pessoa desgraça, tormento, volúpia, paixão?” (FW/GC, 345, KSA 3.578, RRTF grifos do autor)

“Uma moral poderia mesmo ter crescido a partir de um erro: mesmo com essa noção, o problema de seu valor ainda não teria sido sequer tocado” (FW/GC, 345, KSA 3.579, RRTF, grifos do autor)

D. Distinto de criticar uma moral em particular

Nietzsche estabelece uma diferença entre morais particulares e valores morais “só isto”. De forma geral, moral engloba um grande leque de variedades: existem, é claro, morais utilitárias, perfeccionistas e deontológicas, além de inúmeras formas de crenças populares. Nietzsche não deseja, nem mesmo por acidente, tomar partido contra determinadas variedades de valoração moral, deixando outras incólumes. Ao invés disso, deseja considerar a moral em si. O objeto da crítica não são as morais particulares, como se o resultado dessa crítica pudesse ser a escolha de uma moral predileta. Pelo contrário, a crítica se dirige à moral como um todo. Todos os valores morais, qualquer que seja a forma em que aparecem, devem ser colocados em questão.

“Eles próprios, de hábito, estão ainda, sem suspeitar de nada, sob o comando de uma determinada moral e, sem o saber, lhe servem de escudeiros e de séquito” (FW/GC 345, KSA 3.578, RRTF grifos do autor)

“[...] o valor desses valores por si sós devem primeiramente ser colocados em questão [...]” (GM/GM, Prefácio, § 6. KSA 5.253).

E. Ligada ao empreendimento histórico

O que quer que seja a crítica da moral, sua relação com o empreendimento histórico nietzschiano não é acidental. Nietzsche parece utilizar a expressão “crítica da moral” para se referir a seu balanço histórico do declínio ou surgimento dos valores morais; esses balanços históricos parecem ser, pelo menos parcialmente, parte constitutiva da crítica. Isso significa que as considerações históricas não servem apenas para confirmar ou ilustrar uma conclusão normativa que poderia ter sido alcançada de outra forma. Alguém poderia sugerir, em sentido diverso, que Nietzsche chegou a conclusões filosóficas acerca da moral e então utilizou as narrativas históricas apenas como instrumento retórico, para ilustrar suas conclusões. Acontece que Nietzsche insiste que as considerações históricas são parte integral da elaboração da crítica (ao mesmo tempo, entretanto, Nietzsche enfatiza que a crítica não se limita a uma história das origens).

“[...] para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e modificaram [...]” (GM/GM, Prefácio, § 6, KSA 5.253, PCS).

“a história das origens... é algo bastante diferente de uma crítica” (FW/GC 345, KSA 3.578).

F. Moral como problemática

A crítica poderia tomar seu objeto de forma clara, simples. Isto é, poderia tratar seu objeto por seu valor de face, como algo com sentido determinado e com um fundamento próprio ao qual temos acesso e respondemos de forma crítica ou em oposição. No caso da moral, essa oposição poderia tomar a forma de uma refutação ou de uma determinação para agirmos em sentido contrário, por exemplo. Mas Nietzsche sustenta de forma consistente que sua crítica coloca a moral “em questão” ou a toma como “problemática”. Em minha opinião, isso exige um desafio ao sentido ou à posição da moral que precede até mesmo poder tomá-la como um objeto determinado - questionar se seu sentido e autoridade são coerentes. Nietzsche não está afirmando que a moral é algo coerente e com características definidas para depois criticar essas mesmas características, mas está questionando até que ponto a moral é realmente algo passível de compreensão.

“Moral como um problema” (FW/GC, § 345, KSA 3.577, RRTF, grifos do autor).

“[...] é preciso, primeiro e tudo, alguma vez... pô-lo [o valor da moral] em questão” (FW/GC, 345, KSA 3.579, RRTF, grifos do autor)

“[...] o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão” (GM/GM, Prefácio, 6. KSA 5.253, PCS, itálico no original e grifos do autor).

“[...] e criticar logo a moral, tomar a moral como problema, como problemática [...]” (M/A, Prefácio, 3, KSA 3.12, RRTF, grifos do autor).

4. Algumas possibilidades teóricas e por que estão na sua maior parte equivocadas

Meu objetivo agora é detalhar algumas possíveis candidatas ao que poderia ser uma crítica da moral. Não estou sugerindo que sejam opções especialmente dignas de confiança ou arraigadas no texto nietzschiano. Desejo apenas apresentar uma gama completa de possibilidades, para depois examiná-las individualmente. Abaixo estão as opções que irei examinar, na ordem em que irei discuti-las. Essas opções são baseadas em diferentes concepções de moral. Isto é, tentei oferecer diferentes maneiras de se conceber o alvo da crítica; assim, a crítica em si depende da maneira como entendemos a natureza do seu alvo. Apresento aqui uma lista de pares, formados pelas concepções do que a moral é e pelos tipos de crítica a elas relacionadas.

  1. Moral como teoria / crítica como desafio epistêmico

  2. Moral como crenças prescritivas / crítica como dúvida metaética

  3. Moral como contágio social / crítica como “?”

  4. Moral como valores preferidos / crítica como outros valores

    1. Esferas de valor

    2. Valores inversos

    3. Saúde/poder/grandeza/nobreza/cultura/etc. como alternativas

  5. Moral como prática social / crítica como avaliação prática

A. Moral como teoria

Uma forma de pensar a respeito da moral é tomá-la como uma teoria. Alguém poderia supor que existem fatos morais independentes, sobre o bem e o justo, e que a tarefa da moral é alinhar nossas crenças a esses fatos. É dizer, moral seria uma forma de representar uma variedade de verdades avaliadoras e normativas. Independentemente de alguém viver de acordo com tais ditames ou não, ela seria bem sucedida quando fosse capaz de representar esses fatos corretamente.

Se pensarmos sobre a moral dessa forma, então a crítica da moral também assumirá uma forma teórica. Uma possibilidade é que Nietzsche, em sua crítica, esteja oferecendo uma explicação causal de como as nossas crenças morais são de fato formadas; sua intenção, então, seria argumentar que adquirimos nossas crenças morais de uma forma que não é epistemicamente confiável, e, portanto, nosso domínio sobre elas não é garantido. Outra possibilidade é que Nietzsche quer sustentar que o traço distintivo da moral é que ela assume a forma de uma teoria geral sobre o bom e o justo por meio de uma explicação sistemática de seus fundamentos. A crítica, então, seria a de que não há fundamento, ou ao menos nenhum fundamento acessível, caso em que o projeto teórico fracassaria.

A crítica da moral enquanto teoria opera invocando considerações sobre como são de fato constituídas as crenças morais, para a partir disso sustentar que nenhum de nós possui uma boa posição epistêmica para examiná-las. Podemos pensar que temos algumas crenças morais confiáveis, mas uma consideração mais geral a respeito da forma como as crenças morais são produzidas revela que a natureza do nosso acesso está a léguas de distância de qualquer coisa em que poderíamos confiar.

Este tipo de interpretação atende alguns dos critérios que apresentei na Parte 3; talvez isto explique seu apelo. Nessas abordagens, a crítica possivelmente está ligada às considerações históricas: essas considerações são entendidas como capazes de fornecer uma explicação de como as crenças foram formadas dessa forma pouco confiável. A crítica da moral também é diferente da crítica a uma moral em particular: ela se aplica a todas as crenças morais (na verdade, provavelmente se aplicaria também a diversas crenças de outras naturezas também). A crítica também seria necessária: se estivermos interessados na confiabilidade de nossas crenças temos razão para buscar esse tipo de crítica e a crítica seria necessária como única forma de entender os processos pelos quais nossas crenças são constituídas.

Ocorre que, por outro lado, o apelo desse tipo de interpretação é misterioso. Não há nada de particularmente novo a respeito dessa espécie de consideração: apenas recapitula uma certa forma de ceticismo moral típica de David Hume e outros. Também não problematiza a moral: supõe que as crenças morais podem ser prontamente identificadas e explicadas. Mas a principal dificuldade aqui está no critério do “pessoal, mas não epistêmico”. Nietzsche escreve que não está interessado no valor de verdade ou no status epistêmico das crenças morais e que também não lhe interessa a origem das crenças morais. Segundo essa interpretação, contudo, Nietzsche está nos dizendo a origem de nossas crenças a fim de minar nossa confiança epistêmica nelas. Por conta disso, não vejo como esta possa ser uma candidata plausível ao que Nietzsche quer dizer com uma crítica da moral.

B. Moral como crenças prescritivas

De acordo com essa interpretação, moral consiste em crenças que contém dois elementos distintos: um elemento que representa como o mundo é e, portanto, se sujeita a exigências de exatidão; e outro elemento, não-racional, que não se sujeita a essas exigências e, ao invés disso, expressa algo relativo aos desejos do indivíduo. A crítica da moral, então, constituiria em fazer essa análise de forma clara e a partir dela deduzir que todo julgamento moral deve ou ser falso ou totalmente incapaz de sustentar qualquer valor de verdade.

Esta interpretação, comparada com a anterior, foca mais no que são os valores morais do que no modo como são adquiridos, mas acaba em um lugar parecido. A crítica nos diz que as crenças morais não são o tipo de coisa que pode ser dirigida à verdade, então nenhuma delas é propriamente verdadeira. Isso acaba incorrendo nos mesmos problemas da interpretação anterior e, portanto, deve ser rejeitada pelas mesmas razões. É provável também que relegue todos os valores e reivindicações prescritivas - e não apenas as morais - a um status não-cognitivo. Isto nos dá outra razão para rejeitá-la como uma interpretação nietzschiana: converte a crítica da moral em uma difamação de todos os valores.

C. Moral como contágio social

Poderíamos tentar visualizar a moral não como algo com conteúdo objetivo, porém como se fôssemos, digamos, um antropólogo vindo de outro planeta. Neste caso não estaríamos olhando para ela como algo em que alguém espere que acreditemos, mas como algo que podemos examinar a partir de um ponto de vista mais imparcial ou distanciado. Poderíamos descrevê-la como algo que aconteceu a uma população - como um evento público desastroso. Tentamos compreendê-la, então, para compreender algo a respeito dessa população. Não fica claro qual é o sentido de crítica correspondente a essa concepção, mas é possível que seja algo relacionado à dinâmica de transmissão. Uma crítica da moral talvez tente explicar como a moral se difundiu tão amplamente, com o propósito final de erradicá-la de uma forma ou de outra.

Isso evita uma das principais armadilhas na qual caíram as alternativas anteriores. Isso quer dizer que as alternativas anteriores, ao contrário de Nietzsche, tinham como preocupação principal a posição epistêmica da moral, enquanto esta não. A alternava da moral como contágio social, entretanto, mesmo assim reprova em todos os critérios que as demais e ainda em mais um. Não é inovadora; não problematiza a moral; e, além disso, a crítica não é necessária para nada nem ninguém.

O critério que eu quero focar, contudo, é aquele segundo o qual a crítica deve ser pessoal e não uma questão epistêmica. Essa versão da crítica falha nesse critério. Interpreta Nietzsche como se ele tratasse a moral como algo sobre o qual ele tem um ponto de vista objetivo - lateralmente, por assim dizer - e que assim ele estaria em uma posição conveniente para manipulá-la. Moral, nesse contexto, não é algo em que ele esteja envolvido ou em que tenha interesse pessoal. Assim, a crítica poderia acabar se convertendo em mera ferramenta auxiliar às técnicas de controle social.

D. Moral como valores preferidos

Também poderíamos imaginar que a “moral” identifica um conjunto de valores preferidos - talvez aqueles associados ao altruísmo, ao ascetismo ou à história da religião. Crítica, então, consistiria em dizer algo negativo a respeito desses valores: expressaria desaprovação e retrataria favoravelmente os valores contrários. A dinâmica crítica envolveria articular os valores da moral e então contrastá-los com os valores que Nietzsche prefere.

Há muitas maneiras de refletir a respeito disso. Uma delas é pensar sobre os valores morais como uma esfera distinta de valor, em competição com outras esferas de valor, como valores estéticos, valores de interesse pessoal ou de apego íntimo, por exemplo. O objetivo da crítica, assim, é o de diminuir a importância dos valores morais e aumentar a importância das outras esferas, de forma que adquiram prioridade sobre os valores morais. Outra possibilidade é pensar os valores morais como caracterizados por um conteúdo específico, talvez em termos de imperativos a que se deve obedecer; crítica, aí, tomaria a forma de defesa daquilo que se opõe a esses imperativos. Isso poderia redundar em uma questão de trabalhar para violar todas as normas da moral apenas pelo prazer de violá-las, tal como o Satã de Milton faz o mal apenas pelo mal. Uma outra possibilidade é assumir que Nietzsche defende que os valores genuínos, ou seja, valores verdadeiramente valiosos, são aqueles baseados em algum padrão máximo ou fundamental a partir do qual poderíamos compreender a importância deles. Os prováveis candidatos a assumir o lugar desse padrão fundamental seriam saúde, poder, grandeza ou nobreza. De qualquer forma, porém, as considerações nietzschianas sobre a moral tomariam a forma de uma exposição de como os valores morais estão arraigados nesse padrão fundamental - isto é, como eles são expressões do poder ou manifestações da saúde, por exemplo. A crítica, nesses termos, revelaria que os valores morais são falhos ou insuficientes em comparação com o padrão fundamental. Eles são, por exemplo, expressões imperfeitas do poder, e alguma alternativa seria preferível.

O que se deve observar a respeito desses tipos de interpretações, se os considerarmos como compreensões sobre a crítica da moral, é que eles provavelmente violam todos os critérios. Alguns dos critérios poderiam ser contestados; não penso que se trata de algo particularmente novo como forma de crítica, ainda que se possa argumentar o contrário. Mesmo assim, os critérios nos quais quero me concentrar são a crítica como necessidade e a crítica como algo diferente da crítica a uma determinada moral em particular. Essas interpretações tornam a crítica dispensável. De acordo com elas, Nietzsche já sabe quais são os valores corretos ou importantes e as considerações histórico-críticas somente ilustram quão ruim são os ruins ou deriva deles alguns de seus resultados esperados. A filosofia prática está basicamente completa sem a crítica da moral; a única tarefa que resta à crítica é a de assinalar que a moral de alguma forma não se ajusta à filosofia prática.

Nesse sentido, essas interpretações também desrespeitam o critério de fazer da crítica da moral algo diferente da crítica de uma determinada moral em particular. É claro que, nominalmente, todas elas oferecem interpretações das formas pelas quais Nietzsche rejeita a moral como um todo ou ao menos atenua sua importância. Mas eu penso que isso é apenas nominal: todas essas leituras reinstituem a moral. Elas acabam privilegiando sistemas de valor nos quais há imperativos com autoridade incondicional, não sujeitos à crítica histórica e desconectados dos pontos de vista dos agentes. O conteúdo substantivo é apresentado em termos incomuns, tais como arte e poder. Mas isso apenas altera o conteúdo particular da moral, sem alterar sua estrutura. Ainda que o conteúdo seja incomum, nossas vidas ainda são imaginadas como se reguladas por exigências poderosas e definitivas. Moral já é algo infinitamente maleável no conteúdo - pode significar tantas coisas que acaba não significando absolutamente nada, ao ponto de que qualquer coisa pode ser uma exigência moral urgente em potencial, a depender das circunstâncias favoráveis e da teoria conveniente. Por esse motivo, o inusitado do conteúdo não altera nada. A moral invertida, deslocada para uma esfera diferente ou construída sob outras bases não deixa de ser apenas moral mais uma vez.

E. Moral como prática social

Eis uma última possibilidade sobre como Nietzsche pensa a moral e, consequentemente, a crítica. Nietzsche trata a moral não como uma teoria sobre o valor, mas como um conjunto de práticas históricas em curso, dotadas de um vocabulário particular de autodescrição, incluindo, especialmente, caracterizações psicológicas dos participantes. Essa prática, como todas as práticas, está em constante reformulação com vistas a se adaptar e sustentar novos objetivos. O objetivo elementar que ela sustenta, entretanto, é o de nos ajudar a conferir sentido à nossa experiência vivida. A crítica identifica falhas que comprometem seu funcionamento e até a tornam destrutiva: como pode nos levar a interpretar nossa vida de forma equivocada, nos afastar de nossos próprios desejos, tornar a vida social um terreno hostil e repleto de ansiedade ou nos fazer adotar atitudes confusas e prejudiciais em relação a nós mesmos6 6 Desenvolvi essa interpretação no meu comentário em Nietzsche’s On the Genealogy of Morality: A Critical Guide and Introduction, Edinburgh: Edinburgh University Press, 2022. .

Isto atende todos os critérios que estabeleci na Parte 3. Trata-se de uma abordagem nova, que trata a moral como algo que nós fazemos, ao invés de uma visão (possivelmente desesperançada) sobre a verdade avaliadora. Esta abordagem faz a crítica algo necessário. Não reproduz uma conclusão estabelecida, mas identifica as práticas sociais em que nos envolvemos por causa da confusão de palavras e ações a partir das quais são construídas e explica algumas formas que não funcionam direito para nós. Crítica é a tarefa pessoal e prática de articular como a moral molda o que somos. O empreendimento histórico é necessário para rastrear as práticas morais e seus propósitos cambiantes. E esta abordagem toma a moral como problemática: questiona a integridade das práticas morais e se é realmente possível sustentá-las a despeito de, como toda prática, estarem suscetíveis a desmoronar e morrer.

5. Considerações adicionais sobre a versão final

Eis uma passagem mais sobre o ideal ascético do que sobre a moral per se, mas que ajuda a elaborar aquilo que venho dizendo a respeito dessa última abordagem: “Não é o que esse ideal efetuou que deve aqui ser posto à luz por mim; mas única e exclusivamente o que ele significa, o que ele deixa adivinhar, o que, por trás dele, sob ele, nele, está escondido, aquilo que ele é a provisória, indistinta expressão, carregada de pontos de interrogação e mal-entendidos” (GM/GM III 23, KSA 5.395, RRTF). Podemos aplicar essa passagem à moral como exemplo do ideal ascético e então ler o propósito citado por Nietzsche como especificando o objetivo da crítica. Esse objetivo, afirma Nietzsche, não é o de refutar, identificar efeitos ruins ou propor novos ideais, mas “apenas” dizer o que a moral significa. E o que ela significa é, em última análise, algo a respeito de nós mesmos e de como a utilizamos para nos construirmos e moldarmos nossas vidas afetivas e práticas. Trazer à luz esse significado se presta a uma função crítica na medida em que esses significados obstaculizam nossa capacidade de compreender nossos próprios interesses, desejos ou nós mesmos.

A crítica da moral não representa todo o pensamento de Nietzsche; ele sem dúvida tem muitas considerações que escapam a esse escopo. Mas acredito que a crítica tem que tomar esta forma de explicação do sentido da prática e que isso pode se refletir em muitas outras áreas da reflexão nietzschiana.

Referências

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  • _______. Aurora, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, In: Obras Incompletas, 1ª Edição, São Paulo: Abril Cultural, 1974 (Coleção ‘Os Pensadores’).
  • _______. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe Berlin: Walter de Gruyter, 1999. 15 Bd. (KSA).
  • _______. Genealogia da Moral Trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 12.
  • 1
    Kant, 1998KANT, I. Critique of Pure Reason, trans. Paul Guyer and Allen Wood. New York: Cambridge University Press, 1998., p. 100 (A xi).
  • 2
    Marx, K. /Engels, F. 1972MARX, K. AND ENGELS, F., The Marx-Engels Reader, ed. Robert C. Tucker. New York: Norton, 1972., p. 12.
  • 3
    Marx, K. /Engels, F. 1972MARX, K. AND ENGELS, F., The Marx-Engels Reader, ed. Robert C. Tucker. New York: Norton, 1972., p. 160.
  • 4
    O economista Milton Friedman parece ter assumido essa posição antirrealista quando se referia a “assim chamada” pobreza. Cf. New River Media Interview with Milton Friedman, disponível em https://www.pbs.org/fmc/interviews/friedman.htm
  • 5
    Trad. Paulo César de Souza. Doravante, o tradutor será indicado por PCS ou RRTF (Rubens Rodrigues Torres Filho) (NE).
  • 6
    Desenvolvi essa interpretação no meu comentário em Nietzsche’s On the Genealogy of Morality: A Critical Guide and Introduction, Edinburgh: Edinburgh University Press, 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2022
  • Aceito
    24 Abr 2022
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