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A objetividade em Nietzsche* * Tradução de Thiago Kistenmacher Vieira

Objectivity in Nietzsche

Resumo:

Neste artigo, pretendo esclarecer o desenvolvimento da consideração a respeito da objetividade em Nietzsche em suas obras publicadas e autorizadas. Na presente pesquisa, notou-se que Nietzsche, de forma explícita, estabelece uma diferença entre dois tipos de objetividade. O que aqui chamarei de objetividade tipo 1 é aquela que o filósofo alemão frequentemente critica, a saber, a objetividade como pura contemplação desinteressada. A objetividade tipo 2 é o tipo ao qual Nietzsche se refere na Genealogia da Moral como “futura ‘objetividade’”. Tendo esclarecido quais são as objeções de Nietzsche à objetividade tipo 1, explicarei seu ponto de vista acerca da objetividade tipo 2, mostrando como o tipo 2, ou a “futura ‘objetividade’”, deve sua concepção ao projeto de espírito livre do filósofo.

Palavras-chave:
Nietzsche; objetividade; espírito livre; Genealogia da moral

Abstract:

In this paper, I aim to clarify the development of Nietzsche’s account of objectivity in his published and authorized works. In the available scholarship, it has been noted that Nietzsche explicitly differentiates between two types of objectivity. What I shall here call type 1 objectivity is the type that Nietzsche often criticizes, namely objectivity as pure disinterested. Type 2 objectivity is the type that Nietzsche refers to in On the Genealogy of Morality as “future ‘objectivity’”. Having clarified what Nietzsche’s objections to type 1 objectivity are, I will explain his view of type 2 objectivity, showing how type 2 or “future ‘objectivity’” is indebted in its conception to Nietzsche’s free spirit project.

Keywords:
Nietzsche; objectivity; free spirit; On the Genealogy of Morality

Neste artigo, pretendo esclarecer o desenvolvimento da consideração a respeito da objetividade em Nietzsche em suas obras publicadas e autorizadas. Na presente pesquisa, objetividade em seus escritos publicados e autorizados. Nietzsche é, com frequência, um crítico do conceito de objetividade, mas também trata da objetividade como parte da investigação e como uma virtude intelectual desejável. Na pesquisa disponível, notou-se que Nietzsche, de forma explícita, estabelece uma diferença entre dois tipos de objetividade no aforismo 12 da terceira dissertação da Genealogia da moral. O que aqui chamarei de objetividade tipo 1 é aquela que o filósofo alemão frequentemente critica, a saber, a objetividade como pura contemplação desinteressada, que é atemporal, isenta de vontade, incorpórea e livre de afetos. A objetividade tipo 2 é o tipo ao qual Nietzsche se refere no aforismo 12 da terceira dissertação da Genealogia da Moral como “futura ‘objetividade’” (GM/GM III 12, KSA 5.364, tradução de PCS)1 1 As versões em português dos escritos de Nietzsche utilizadas na presente tradução são de Rubens Rodrigues Torres Filho, Paulo César de Souza, André Luís Mota Itaparica e Jacob Guinsburg, as quais serão indicadas, respectivamente, pelas abreviações RRTF, PCS, ALMI e JG [N. do T.]. que, conforme Mark Alfano apontou recentemente, incorpora os afetos e, mais especificamente, a nossa capacidade de mudar as perspectivas emocionais a serviço do conhecimento e da investigação.2 2 ALFANO, Mark. Nietzsche’s Moral Psychology. Cambridge: Cambridge University Press, 2019b, p. 154. Tendo esclarecido quais são as objeções de Nietzsche à objetividade tipo 1, explicarei seu ponto de vista acerca da objetividade tipo 2, mostrando como o tipo 2, ou a “futura ‘objetividade’”, deve sua concepção ao projeto de espírito livre do filósofo. Portanto, chamo atenção para uma conexão pouco apreciada entre a Genealogia e o projeto para o espírito livre do pensador alemão, evidenciando como o próprio Nietzsche volta nossa atenção para as obras do espírito livre na Genealogia, a fim de nos ajudar a compreender seu argumento neste livro.

Começo examinando as observações mais amplas de Nietzsche concernentes à objetividade em seus escritos publicados e autorizados antes e depois da Genealogia. Deixarei de lado sua abordagem na Genealogia até a segunda seção deste artigo. Em ordem cronológica, os aforismos relevantes que caracterizam a discussão referente à “Objectivität” ou “Objektivität” são: GT/NT 5, KSA 1.42-48; Co. Ext. II 5, KSA 1.279-85; Co. Ext. II 6, KSA 1.285-95; M/A 111, KSA 3.99-100; JGB/BM 208, KSA 5.137-140; AC/AC 20, KSA 6.186; GD/CI, O que falta aos alemães, 6, KSA 6.108-09; GD/CI, Incursões de um extemporâneo, 3, KSA 6.112-13; EH/EH, O nascimento da tragédia 4, KSA 6.313-15; EH/EH, Para além de bem e mal 2, KSA 6.350-51.3 3 Em seus textos publicados e autorizados e em suas notas e cartas, Nietzsche usa ambas as grafias: Objectivität e Objektivität. A análise feita usando o nietzschesourge.org mostra que o último aforismo nos textos publicados e autorizados no qual Nietzsche usa Objectivität é no aforismo 111 de Aurora, originalmente publicado em 1881. A partir daí, enquanto seu uso nas notas é um tanto inconsistente, Nietzsche usa Objektivität consistentemente em textos publicados e autorizados. Uma possível explicação é que Nietzsche alterou a grafia deste termo, substituindo “c” por “k”, após a publicação da primeira edição do dicionário de alemão Duden em 1880, que seguia as reformas acordadas pela Primeira Conferência Ortográfica sobre a língua alemã em 1876, conferência esta que recomendou a substituição do “c” pelo “k” ou “z” em palavras estrangeiras e que contou com a presença de Konrad Duden. Ao fazer parte da primeira edição do Duden, as reformas recomendadas pela conferência geraram um acalorado debate público e uma intervenção pessoal contra a exigência estatal de reforma ortográfica feita por Bismarck (JOHNSON, Sally A. Spelling Trouble? Language, Ideology, and the Reform of German Orthography. Clevedon: Multilingual Matters Ltd, 2005. pp.19-22. Sou grata a Thomas Molloy, Matthew Meyer e Rachel Cristy pela preciosa discussão a respeito desta questão.

O primeiro comentário de Nietzsche a respeito da objetividade ocorre em O nascimento da tragédia. Conforme Babette E. Babich mostrou, suas preocupações críticas com o conceito de objetividade estão vinculadas ao seu envolvimento crítico mais amplo com a cultura.4 4 BABICH, Babette E. Nietzsche’s Critique of Scientific Reason and Scientific Culture: On ‘Science as a Problem’ and Nature as Chaos. In: Nietzsche and Science, edited by Thomas H. Brobjer and Gregory Moore, London: Routledge, 2004, pp. 133-153. Nietzsche discute de que forma o poeta lírico é possível como artista e contrasta o Homero apolíneo com o passional e guerreiro Arquíloco, observando que, para a estética moderna, este contraste é o ponto em que, “ao artista ‘objetivo’, se contrapõe o artista ‘subjetivo’” (GT/NT 5, KSA 1.42, tradução de JG). Nietzsche diz que o que queremos, na arte, não é o que o artista subjetivo nos oferece:

[...] só conhecemos o artista subjetivo como mau artista e exigimos em cada gênero e nível de arte, primeiro e acima de tudo, a submissão do subjetivo, a libertação das malhas do “eu” e o emudecimento de toda a apetência e vontade individuais, sim, uma vez que sem objetividade [Objectivität], sem pura contemplação desinteressada, jamais podemos crer na mais ligeira produção verdadeiramente artística (GT/NT 5, KSA 1.42-43, tradução de JG).

Como ele menciona, a aparente necessidade de objetividade entendida como pura contemplação desinteressada torna interessante e intrigante que Arquíloco, o poeta subjetivo, seja levado a sério pelo oráculo de Delfos, o qual Nietzsche chama de “lar da arte ‘objetiva’” (GT/NT 5, KSA 1.42, tradução de JG).5 5 O uso da pura contemplação desinteressada por Nietzsche para definir a objetividade na quinta parte de O Nascimento da tragédia ilustra seu envolvimento com Kant e com o envolvimento de Schopenhauer com a estética kantiana, com a qual ele se ocupa em grande parte deste texto. Segundo o filósofo, a ênfase de Schiller na disposição musical precedendo o pensamento, o objeto, e a ideia poética como a pedra angular de seu processo de criação artística explica por que o poeta lírico é possível como artista: em suma, para Schiller, os afetos são realmente importantes para a criatividade artística (GT/NT 5, KSA 1.43-44). Nietzsche entende, assim, que a identificação do poeta lírico com o músico, a interconexão de pensamento, vontade e afeto, e sua separação por meio do processo criativo do poeta, é essencial para compreender por que o poeta lírico importa: o poeta lírico representa a dor e a contradição do “Uno-primordial”, ainda que através da representação estética, e torna isso discernível a apreciável para nós (GT/NT 5, KSA 1.43-44, tradução de JG). Mesmo neste aforismo inicial, podemos notar como Nietzsche enfatiza o significado do afetivo para conhecer e entender. Ao fazê-lo, ele levanta uma questão sobre a objetividade entendida como pura contemplação desinteressada e a vê respondida pela primazia dos afetos no processo criativo.6 6 BABICH, Babette E. op. cit. 2004.

A visão no que diz respeito à objetividade em Nietzsche em dois aforismos de Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida está igualmente ligada aos afetos, ainda que seja, mais diretamente, crítica da objetividade entendida como pura contemplação desinteressada. Ele zomba da “pura objetividade [reine Objectivität]” descrevendo-a como sendo causa de uma “geração de eunucos” e vinculando-a à inação e à passividade (HL/Co. Ext. II 5, KSA 1.284, tradução de ALMI). Nietzsche interroga a “conhecida ‘objetividade’ [Objectivität] histórica” do homem moderno, perguntando se essa forma de objetividade pode fundamentar a justiça (HL/Co. Ext. II 6, KSA 1.285, tradução de ALMI). Ele se queixa de que a objetividade tem sido utilizada para se remeter à interpretação anacrônica - medição das “opiniões e os fatos passados a partir das opiniões difundidas no momento” - por historiadores “ingênuos”, e também se opõe à definição de objetividade como a observação passiva, pelos historiadores, de “todos seus motivos e consequências, de forma tão pura que não afeta sua subjetividade” (HL/Co. Ext. II 6, KSA 1.289, tradução de ALMI). De acordo com Nietzsche, em Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida, de forma similar à sua questão na quinta parte de O nascimento da tragédia, esse ponto de vista da objetividade supostamente pura e desinteressada evoca o fenômeno estético de desprendimento do interesse pessoal e a “imersão completa nas coisas” - mas, como sustenta, “é contudo uma superstição dizer que a imagem com que as coisas se apresentam a esse homem, assim forjado, reproduzisse a existência empírica das coisas” e nos obrigaria a supor essas coisas “desenhadas, retratadas, fotografadas em uma passividade pura” (HL/Co. Ext. II 6, 1.290, tradução de ALMI). Como quer Nietzsche, “Seria possível pensar em uma historiografia que não tivesse em si nenhuma gota de verdade empírica comum e, contudo, pretendesse receber o predicado de objetividade [Objectivität] em seu mais alto grau” (HL/Co. Ext. II 6, KSA 1.290, tradução de ALMI). Ele sugere que conceber “a história objetivamente é o trabalho silencioso do dramaturgo” (HL/Co. Ext. II 6, KSA 1.290, tradução de ALMI), uma vez que tais historiadores impõem unidade e ordem à história criativamente; para corroborar sua visão, ele apela à consideração de Schiller a respeito da imaginação criativa do historiador como fonte do “todo coerente” dos fenômenos (HL/Co. Ext. II 6, KSA 1.291, tradução de ALMI).

No aforismo 111 de Aurora, Nietzsche continua na mesma linha de análise desenvolvendo o argumento de que o que chamamos de “objetividade” é frequentemente mal interpretado como estando completamente livre de afeto por pessoas que foram criadas entre membros da família que exibem julgamentos baseados em afetos especialmente fortes:

Aos admiradores da objetividade [Objectivität]. - Quem, quando criança, percebeu sentimentos variados e fortes, mas pouca fineza de julgamento e prazer na retidão intelectual, nos familiares e conhecidos entre os quais cresceu, e, portanto, consumiu o melhor de seu tempo e energia na reconstrução de sentimentos, este notará, quando adulto, que cada nova coisa, cada nova pessoa lhe desperta imediata inclinação, aversão, inveja ou desprezo; sob a impressão desta experiência, contra a qual se sente impotente, ele admira a neutralidade da percepção, ou a “objetividade”, como um prodígio, como coisa de gênio ou da mais singular moralidade, e não quer acreditar que também ela não é mais que filha da disciplina e do hábito (M/A 111, KSA 3.99-100, tradução de PCS).7 7 Nos textos publicados, esta parece ser a última vez em que Nietzsche utiliza Objectivität em vez de Objektivität.

Como suas observações em O nascimento da tragédia e em Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida, Nietzsche defende que a visão de que a objetividade é completamente distinta da experiência afetiva humana é ilusória. Dois importantes aspectos deste aforismo são úteis aqui. Primeiro, Nietzsche dá uma atenção muito positiva à disciplina e ao hábito, que, segundo ele, são de fato produtores da objetividade comumente entendida como “neutralidade da percepção” - e, além disso, defende que, para alcançar esta neutralidade da percepção, é necessário cultivar nossos afetos e experiências (M/A 111, KSA 3.99-100). Conforme indica, pensamos erroneamente na objetividade como se ela estivesse baseada na ausência de afeto, em vez de baseada na presença do afeto disciplinado e habituado (M/A 111, KSA 3.99-100). Este ponto contrasta com a visão de Daston e Galison de que Nietzsche é cético em relação a todas as formas de askesis (2007). Em segundo lugar, e muito mais claramente de acordo com a opinião de Daston e Galison no que se refere à objetividade como uma virtude epistêmica, Nietzsche, novamente, assume a perspectiva de que a objetividade está sendo mal compreendida se for imaginada como completamente independente do observador (M/A 111, KSA 3.99-100). Para reconstruir a linha de argumentação que o filósofo alemão segue aqui: se a objetividade é fundamentalmente uma questão de sentimentos e hábitos disciplinados, então não pode ser plausível que a objetividade seja uma questão de completa ausência de qualquer sentimento ou comportamento humano (M/A 111, KSA 3.99-100). Como na quinta parte de O nascimento da tragédia, os afetos são de vital importância para conhecer e entender, mesmo que os afetos precisem ser disciplinados.

A discussão de Nietzsche a respeito da objetividade em Para além de bem e mal ocorre de passagem, como parte de um conhecido aforismo no qual ele faz uma diferenciação entre a pequena e a grande política, e onde ele escreve que a grande política será essencial para a Europa adquirir “uma vontade única mediante uma nova casta” (JGB/BM 208, KSA 5.140, tradução de PCS). Na primeira parte do aforismo, Nietzsche considera o ceticismo como um sedativo para uma doença ou para uma “complexa constituição fisiológica” (JGB/BM 208, KSA 5.138) que ele define como uma “doença da vontade” (JGB/BM 208, KSA 5.139). O filósofo oferece o exemplo dos céticos como tipos pessimistas que sofrem de uma vontade doente, a qual ele afirma se manifestar em nervos fracos, em saúdes debilitadas e em uma paralisia da vontade que se expressa mediante compromissos com a “‘objetividade’ [Objektivität], ‘cientificidade’, ‘l’art pour l’art’, ‘conhecimento puro, livre da vontade’” (JGB/BM 208, KSA 5.139, tradução de PCS).8 8 No aforismo 208 de Para além de bem e mal, Nietzsche atribui o aparecimento da vontade doente à perda da “energia de querer” ou à persistência do “querer uma vontade” (JGB/BM 208, KSA 5.139) por meio do que ele chama de “mistura de classes e, em consequência, de raças” na Europa (JGB/BM 208, KSA 5.138). Jacqueline Scott defendeu que, por mistura de classes, Nietzsche se refere aqui à adoção de valores democráticos; ela propõe que, em Para além de bem e mal, Nietzsche contrasta uma possível concepção reavaliada de determinada criação de uma nova e revigorada casta dominante com o tipo da decadência fraca simbolizada pelo nacionalismo. SCOTT, Jacqueline. On the Use and Abuse of Race in Philosophy: Nietzsche, Jews, and Race. In: Race and Racism in Continental Philosophy, edited by Robert Bernasconi with Sybol Cook, pp. 53-73. Bloomington: Indiana University Press, 2003. p. 67. Scott também sugere que Nietzsche tenta reavaliar o conceito de raça como parte do enfrentamento ao problema da decadência criando a possibilidade de desenvolver valores novos e mais saudáveis, em parte criando uma nova raça mestiça de europeus (2003, p. 67-68).

Creasy assinalou recentemente que a doença à qual Nietzsche se refere nesse aforismo é “a negação da vida como um fenômeno psicofisiológico”, em que o instinto niilista deseja o nada em vez da vida.9 9 CREASY, Kaitlyn. The Problem of Affective Nihilism in Nietzsche: Thinking Differently, Feeling Differently. London: Palgrave Macmillan, 2020, p. 58. Logo, o compromisso com a objetividade pura, nesta altura do desenvolvimento do pensamento de Nietzsche, é tratado como uma expressão do niilismo, enquanto que, em seus textos anteriores, ele vincula sua crítica da objetividade pura à falta de vontade em vez de vinculá-la ao afastamento e à negação dos afetos de questões cognitivas.10 10 CREASY, 2020. Todavia, aqui, Nietzsche ainda observa que um componente afetivo está envolvido: “tudo é inquietude, perturbação, tentativa, dúvida [ist Alles Unruhe, Störung, Zweifel, Versuch]” (JGB/BM 208, KSA 5.138).

O pensador alemão volta a enfatizar a dimensão afetiva de sua crítica à objetividade pura em O anticristo, onde discute as medidas higiênicas de Buda contra a depressão resultante de condições fisiológicas causadas pelo cristianismo (AC/AC 20, KSA 6.186). Buda, diz Nietzsche, recomenda que assim respondamos à “fadiga espiritual” (AC/AC 20, KSA 6.187, tradução de PCS) que ele descobriu, e que “se manifesta numa excessiva ‘objetividade’ (ou seja, debilitamento do interesse individual, perda do centro de gravidade, de ‘egoísmo’)” (AC/AC 20, KSA 6.187, tradução de PCS). Esta explicação, presente no aforismo 20 de O anticristo, é mais consistente com as declarações dos escritos de juventude e intermediários de Nietzsche, nos quais se aponta a objetividade como um produto da perceptível negação dos afetos, o que se mantém separado do contexto político em que encontramos sua discussão sobre a objetividade no aforismo 208 de Para além de bem e mal.

Nietzsche continua sua análise da objetividade no Crepúsculo dos ídolos em dois aforismos. O primeiro discute três tarefas essenciais do educador para produzir uma “cultura nobre”: aprender a ver, aprender a pensar e aprender a falar e escrever (GD/CI, O que falta aos alemães 6, KSA 6.108). Similar a seu ponto no aforismo 20 de O anticristo, trecho em que frisa a importância de uma vontade forte para uma cultura nobre, da qual ele diz que a coisa mais importante é “não ‘querer’, ser capaz de prorrogar a decisão”, de modo que, como aprendiz, possa se tornar “lenta, desconfiada, recalcitrante” e, assim, poderá deixar aproximar coisas desconhecidas e novas com “hostil tranquilidade”, deixando-as se aproximar, mas recuando as mãos diante delas (GD/CI, O que falta aos alemães 6, KSA 6.109, tradução de PCS). Em contrapartida, ele critica “a célebre ‘objetividade’ [Objektivität] moderna” apresentando-a como “mau gosto” e “ignóbil por excelência” (GD/CI, O que falta aos alemães, 6, KSA 6.109, tradução de PCS), visto que ela resulta de uma inabilidade de resistir a estímulos. Essa forma de objetividade faz com que nos prostremos “servilmente [...] ante cada pequenino fato, sempre estar disposto a lançar-se no lugar de, a mergulhar nos outros e em outras coisas” (GD/CI, O que falta aos alemães 6, KSA 6.109, tradução de PCS). Em outras palavras, tal forma de objetividade carece de disciplina afetiva. Nietzsche prossegue nessa análise da objetividade em uma discussão sobre Charles-Augustin de Sainte-Beuve, que o filósofo alemão descreve aqui como um “historiador sem filosofia” e sem “o poder do olhar filosófico”. Para Nietzsche, isso significa que Sainte-Beuve recusou a tarefa de “julgar em todas as questões principais, exibindo a ‘objetividade’ [Objektivität] como máscara” (GD/CI, Incursões de um extemporâneo 3, KSA 6.113, tradução de PCS).

Em Ecce homo, Nietzsche retoma o conceito de objetividade conforme discutido em dois aforismos de O nascimento da tragédia e de Para além de bem e mal. Embora nesses aforismos nenhuma de suas observações quanto à objetividade seja detalhada, elas continuam e afirmam suas preocupações e linha de discussão anteriores. Primeiramente, ele informa que a “estranha ‘objetividade’ [Objektivität]” tem a ver com o fato de que “a absoluta certeza sobre o que eu sou projetou-se sobre uma realidade eventual qualquer” e também destaca que a verdade a respeito de si mesmo “fez-se ouvir de uma terrível profundeza” neste texto (EH/EH, O nascimento da tragédia 4, KSA 6.314-15, tradução de PCS). Ele declara isso porque, olhando retrospectivamente para O nascimento da tragédia, pensa que o livro provou ser “premonitório” e ter uma “entonação histórico-universal” (EH/EH, O nascimento da tragédia 4, KSA 6.314, tradução de PCS) no que tange ao conceito de disposição trágica; além disso, diz que continua a afirmar o futuro dionisíaco da música (EH/EH, O nascimento da tragédia 4, KSA 6.313). Em segundo lugar, Nietzsche ressalta que Para além de bem e mal é uma crítica da modernidade, incluindo aí as ciências modernas, as artes modernas e (notadamente em virtude do contexto político mais amplo do aforismo 208 de Para além de bem e mal) a política moderna, e que o livro visa fornecer indicações para um tipo de pessoa antitética à modernidade: “um tipo nobre, que diz Sim” (EH/EH, Para além de bem e mal 2, KSA 6.350). Ele assevera que, como outras coisas das quais a modernidade se orgulha, a “famosa ‘objetividade’ [Objektivität]” da modernidade é uma contradição desse tipo (EH/EH, Para além de bem e mal 2, KSA 6.350-51, tradução de PCS).

De forma geral, em suas obras publicadas e autorizadas, com exceção da Genealogia da moral, Nietzsche é consistentemente crítico da objetividade entendida como pura contemplação desinteressada. Ele tem três principais razões para isso: primeiro, pensa que o afastamento da experiência afetiva é problemático para o conhecimento, para o entendimento e para o envolvimento na investigação ativa; segundo, pensa que essa forma de objetividade é um sinal de fraqueza ou ausência de vontade; terceiro, desconfia de apelos a tal forma de objetividade como a de Sainte-Beuve, porque pensa que isso serve de máscara para as intenções. Ele também é consistente ao tratar esse tipo de objetividade como proporcional ao surgimento de um problema cultural, para o qual vê sua obra como resposta.

Permitam-me, agora, voltar às observações de Nietzsche sobre a objetividade na Genealogia. Neste texto, Nietzsche discute o conceito de objetividade [Objektivität] de forma um tanto detalhada em quatro aforismos centrais: GM/GM II 8, KSA 5.305-07, GM/GM II 11, KSA 5.309-13, GM/GM III 9, KSA 5.356-69 e GM/GM III 12, KSA 5.363-65. Levarei em conta cada um deles por vez, juntamente a outras evidências do texto, a fim de esclarecer a posição de Nietzsche acerca dos tipos de objetividade nessa obra.

A discussão inicial de Nietzsche com relação à objetividade na Segunda Dissertação da Genealogia é desenvolvida como parte de seu pensamento sobre a relação credor-devedor. No primeiro desses quatro aforismos, ele, inicialmente, mira nas implicações da relação de credor-devedor para a justiça (GM/GM II 8, KSA 5.305-07). Ele sublinha que a “grande generalização” de que tudo tem um preço e de que tudo pode ser pago é a origem do conceito de “objetividade [Objektivität] sobre a terra”, em companhia de outros conceitos como equidade e boa vontade (GM/GM II 8, KSA 5.306, tradução de RRTF). Nietzsche ainda escreve que, neste nível interpessoal primeiro, a justiça é a boa vontade, em que aqueles que possuem poder aproximadamente igual chegam a um entendimento ou acordo uns com os outros e obrigam os que são menos poderosos a chegarem a um acordo entre si (GM/GM II 8, KSA 5.306-07).

Ele mantém o foco sobre a justiça no segundo desses aforismos e discute tentativas de buscar a origem da justiça no ressentimento (GM/GM II 11, KSA 5.309-13). Nietzsche se opõe aos esforços para sacralizar a vingança chamando-a de justiça, como se a justiça fosse um desenvolvimento de um sentimento de ter sido prejudicado e como se as reações emocionais pudessem ser legitimadas com a vingança (GM/GM II 11, KSA 5.309-13). Ele contrasta um conjunto de afetos [Affekten] decorrentes do espírito do ressentimento, a saber, “do ódio, do despeito, da inveja, da suspeita, do rancor, da vingança”, com outro conjunto de afetos que considera ser de “valor biológico bem mais elevado” e que pensa que deveriam “ser cientificamente avaliados e muito estimados”, quais sejam: “os afetos propriamente ativos, como a ânsia de domínio, a sede de posse, e outros assim” (GM/GM II 11, KSA 5.310, tradução de PCS). Nietzsche explica que baseia esses conjuntos contrastantes de emoções ou afetos no texto de Dühring intitulado O valor da vida: curso de filosofia, e faz notar sua discordância com a visão de Dühring de que a justiça está fundamentada “no terreno do sentimento reativo” (GM/GM II 11, KSA 5.310, tradução de PCS). Nietzsche assinala que, diferentemente disso, é nos afetos ativos que a justiça realmente pode ser encontrada (GM/GM II 11, KSA 5.311). Para sustentar essa opinião, ele enuncia que

Quando realmente acontece de o homem justo ser justo até mesmo com os que o prejudicam (e não apenas frio, comedido, distante, indiferente: ser justo é sempre uma atividade positiva), quando a elevada, clara, branda e também profunda objetividade [Objektivität] do olho justo, do olho que julga, não se turva sequer sob o assalto da injúria pessoal, da derrisão e da calúnia, isto é sinal de perfeição e suprema maestria - algo, inclusive, que prudentemente não se deve esperar, em que não se deve facilmente acreditar. De ordinário, mesmo para as mais íntegras pessoas basta uma pequena dose de agressão, malícia, insinuação, para lhes fazer o sangue subir aos olhos e a imparcialidade sair dos olhos (GM/GM II 11, KSA 5.310-11, tradução de PCS).

Aqui Nietzsche se apresenta de modo intensamente cético com relação à probabilidade de encontrar essa forma de objetividade em situações sociais reais. É importante observar o contraste entre os afetos reativos e ativos nas citações anteriores para apreciar adequadamente por que, para Nietzsche, a objetividade livre de afetos é tão improvável e implausível. Ele continua a afirmar que o sujeito agressivo - o “homem agressivo, como o mais forte, nobre, corajoso” (GM/GM II 11, KSA 5.311, tradução de PCS) - tem um olho mais livre e uma consciência melhor do que o sujeito que alega a “branda e também profunda objetividade” (GM/GM II 11, KSA 5.310, tradução de PCS) e que a verdadeira justiça implica pôr fim ao “insensato fluxo do ressentimento” (GM/GM II 11, KSA 5.312, tradução de PCS).

Esses aforismos da segunda dissertação da Genealogia abrem caminho para a análise da objetividade que Nietzsche faz na terceira dissertação. Nela, o pensador alemão volta sua atenção para o ascetismo e diz que os filósofos sempre foram parciais para com o ideal ascético, o que não surpreende, uma vez que há uma estreita ligação entre a filosofia e o ideal ascético (GM/GM III 9, KSA 5.356). Nietzsche lista os impulsos e virtudes dos filósofos: duvidar, negar, aguardar, analisar, pesquisar, buscar e ousar; de comparar, compensar; a vontade de neutralidade e objetividade [Objektivität], a vontade de “tudo ‘sine ira et studio” (GM/GM III 9, KSA 5.357, tradução de PCS). Ele ressalta que todos esses impulsos vão contra a moralidade, a consciência e a razão, sugere que um filósofo que tivesse atingido uma consciência de si mesmo se sentiria inclinado àquilo que, para tais padrões, é proibido - “o nitimur in vetitum encarnado” - e insinua que tal filósofo, dessa forma, se guardaria de “‘sentir-se’, de chegar à consciência” de si mesmo (GM/GM III 9, KSA 5.357, tradução de PCS). Nietzsche oferece uma consideração mais dedicada sobre o problema desse tipo de objetividade como negadora da vida tratando da figura do sacerdote ascético enquanto filósofo em outro aforismo da terceira dissertação da Genealogia. Ele diz que a própria vida deve ter interesse em preservar um tipo contraditório tal como o sacerdote ascético, que cresce e prospera continuamente em todas as épocas e entre todas as classes sociais, mas que é “hostil à vida”. Uma vida ascética, atesta, é uma “contradição” (GM/GM III 9, KSA 5.363, tradução de PCS).

Tendo exposto o que Nietzsche tem a dizer sobre objetividade nesse texto, desejo esclarecer a distinção que há entre duas diferentes versões de objetividade em sua Genealogia. A primeira é a objetividade tipo 1, da qual Nietzsche é continuamente crítico em sua filosofia mais ampla.11 11 Cf. CREASY, Kaitlyn (2020). Este é o tipo de objetividade pura, desinteressada, que finge ser elevada e clara, dissociada dos afetos, e possuída por um “‘sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo’”, isto é, por uma “‘observação [Anschauung] desinteressada’”, a qual Nietzsche classifica como “absurdo sem sentido” (GM/GM III 12, KSA 5.364, tradução de PCS). A segunda é a objetividade tipo 2, e esta é a versão afirmadora da objetividade, que Nietzsche considera como uma possibilidade alternativa plausível ao primeiro tipo de objetividade.

No conhecido aforismo 12 da Terceira Dissertação da Genealogia da moral, Nietzsche faz uma importante observação sobre como devemos compreender essa segunda concepção de objetividade - que ele chama de objetividade “futura” - a partir de um contraste específico com o primeiro tipo de objetividade. Para ele,

Devemos afinal, como homens do conhecimento, ser gratos a tais resolutas inversões das perspectivas e valorações costumeiras, com que o espírito, de modo aparentemente sacrílego e inútil, enfureceu-se consigo mesmo por tanto tempo: ver assim diferente, querer ver assim diferente, é uma grande disciplina e preparação do intelecto para a sua futura “objetividade” [Objektivität] - a qual não é entendida como “observação desinteressada” (um absurdo sem sentido), mas como a faculdade de ter seu pró e contra sob controle e deles poder dispor: de modo a saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e interpretações afetivas [so dass man sich gerade die Verschiedenheit der Perspektiven und der Affekt-Interpretationen für die Erkenntniss nutzbar zu machen weiss] (GM/GM III 12, KSA 5.364-65, tradução de PCS).

Essa nova e futura concepção de objetividade envolve criticamente nosso poder de obter ganhos epistêmicos a partir de perspectivas e interpretações de afetos, e para disciplinar nossos afetos para esse fim, como Alfano discutiu de forma detalhada.12 12 ALFANO, Mark. The most agreeable of all vices: Nietzsche as virtue epistemologist. British Journal for the History of Philosophy, 2013, n 21(4): pp. 767-90. ALFANO, Mark. Nietzsche’s Affective Perspectivism as a Philosophical Methodology. In: Nietzsche’s Metaphilosophy: The Nature, Method, and Aims of Philosophy, edited by Paul S. Loeb and Matthew Meyer, pp. 127-145. Cambridge: Cambridge University Press, 2019a. ALFANO, Mark. Nietzsche’s Moral Psychology. Cambridge: Cambridge University Press, 2019b. É importante sublinhar que, de acordo com Nietzsche, no aforismo 12 da terceira dissertação da Genealogia, precisamos de um conjunto variado de perspectivas e interpretações afetivas para que a objetividade futura seja possível, e precisamos também levar em conta as diferenças entre essas perspectivas e interpretações afetivas. Vale a pena destacar que, aqui, Nietzsche parece assumir uma distinção entre uma perspectiva e uma interpretação afetiva. Essa distinção, todavia, é feita mais adiante e de forma menos clara no mesmo aforismo, no qual o autor sublinha a importância de uma diversidade de perspectivas e interpretações afetivas que contribuem para uma objetividade futura. Segundo o que escreve,

Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer perspectivo”: e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade” [Es giebt nur ein perspektivisches Sehen, nur ein perspektivisches „Erkennen“; und je mehr Affekte wir über eine Sache zu Worte kommen lassen, je mehr Augen, verschiedne Augen wir uns für dieselbe Sache einzusetzen wissen, um so vollständiger wird unser „Begriff“ dieser Sache, unsre „Objektivität“ sein] (GM/GM III 12, KSA 5.365, tradução de PCS).13 13 Comparar com o aforismo 143 de A Gaia Ciência (FW/GC 143, KSA 3.490-91), no qual Nietzsche faz notar o tipo de politeísmo em que novos “olhos” ou “perspectivas” são criados.

Note-se que, neste aforismo, Nietzsche está caracterizando a objetividade futura como um produto de nossas perspectivas acumuladas e interpretações afetivas. Dessa forma, ele conecta os afetos diretamente ao processo bem como ao produto do conhecimento. Vemos também que, nessa parte do aforismo, Nietzsche está identificando a objetividade futura como algo que pode ser continuamente cultivado, nos assegurando que vivenciamos uma série de afetos e que vivenciamos e interpretamos novos afetos ainda não experimentados. Ele segue afirmando esse ponto de vista sobre do tipo 2, ou objetividade “futura”, imediatamente após esse ponto, sustentando o seguinte: “Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? - não seria castrar o intelecto?... (GM/GM III 12, KSA 5.365, tradução de PCS).

A reflexão de Nietzsche acerca da objetividade tipo 1 na Genealogia - pura objetividade desinteressada e livre de afetos - realça uma suposição incorporada ao sentimento cultural moderno tardio a respeito da objetividade: que progredimos intelectualmente por meio da eliminação da consciência, da vontade, da emoção ou do afeto. Em contrapartida, sua concepção relativa ao tipo 2, ou à objetividade “futura”, inclui nitidamente diversas experiências afetivas como um componente-chave para se realizar o progresso intelectual. Sem vontade e emoções, como quer Nietzsche, o que o intelecto pode realizar é muito limitado. Para realizar um progresso mais significativo em nosso conhecer e aprender, não podemos prescindir dos afetos.

A distinção entre esses dois tipos de objetividade na obra de Nietzsche não é nova e, de fato, foi várias vezes frisada na literatura disponível, embora de formas um pouco diferentes. Permitam-me mencionar brevemente os principais pontos que essas considerações oferecem no que tange às observações respeitantes à objetividade em Nietzsche antes de acrescentar uma observação adicional sobre a importância do contexto intertextual do aforismo 12 da terceira dissertação da Genealogia da moral, que penso ser útil para a nossa adequada apreciação do pensamento de Nietzsche no que se refere à objetividade e ao conhecimento na Genealogia.

Mark Alfano14 14 ALFANO, 2013, 2019a, 2019b. desenvolveu um argumento no tocante a Nietzsche, qualificando-o como um investigador responsabilista [inquiry responsibilist]. Para Alfano, um investigador responsabilista está mais interessado no processo de investigação: quer dizer, ele está mais interessado no valor que a justificação tem, na relação entre conhecimento e virtude intelectual, e de que maneira a virtude contribui para o florescimento humano.15 15 ALFANO, 2013. Para Alfano, Nietzsche deveria ser melhor compreendido como um investigador responsabilista, uma vez que, para ele, “o florescimento humano depende do cultivo e da ação baseadas na virtude, e que (para algumas pessoas, pelo menos) as virtudes mais adequadas são as virtudes intelectuais inspiradoras.16 16 Idem. op. cit., p. 772. Fundamentado em sua observação sobre o investigador responsabilista, que ele vê em Nietzsche, Alfano salienta que, no aforismo 12 da terceira dissertação da Genealogia, o filósofo alemão faz uma distinção entre dois tipos de objetividade, que chamei de tipo 1 e tipo 2: primeiro, a objetividade como “contemplação sem interesse” e, segundo, a objetividade como “a habilidade para ‘empregar uma variedade de perspectivas e interpretações afetivas em serviço do conhecimento’”.17 17 Idem. op. cit., p. 787. Como expõe Alfano, para Nietzsche, nesse caso, a cognição e a investigação estão “profundamente conectadas com os desejos, motivos e valores do conhecedor e investigador”, em vez de contar como mero processo de informação.18 18 Ibidem. Em seu mais recente livro, Alfano também salientou que o “processo temporalmente dilatado, emocionalmente complexo, socialmente engajado” descrito no aforismo 12 da terceira dissertação da Genealogia, especialmente no que concerne à disciplina de si mesmo para alterar perspectivas emocionais, é o que Nietzsche compreendia por perspectivismo.19 19 ALFANO, 2019a; 2019b, p. 154.

Com base na informação de Christopher Janaway20 20 JANAWAY, Christopher. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford University Press, 2007. p. 210. , para a qual o perspectivismo de Nietzsche incorpora a “exigência da pluralidade afetiva” de que experimentar múltiplas e plurais perspectivas afetivas sobre algo torna nossa perspectiva sobre essa coisa “mais perspicaz”, João Constâncio complementa a posição de Alfano, acentuando que nossas perspectivas afetivas podem ser tanto mais ricas quanto mais pobres, e que juízos de valor são, para Nietzsche, sempre afetivos.21 21 CONSTÂNCIO, 2019, p. 199-200. 22 22 O reconhecimento da importância dos afetos para o conhecimento também é discutido por Poellner (1995). Constâncio destaca a dimensão kantiana do perspectivismo de Nietzsche, exprimindo que, para o filósofo alemão, o uso do esforço reflexivo para aumentar o número de “olhos” ou perspectivas afetivas não transforma a apreciação positiva de objetividade de Nietzsche em mera preferência subjetiva, visto que a distinção de Kant entre o gosto sensorial e reflexivo permite que o tipo de juízo reflexivo que ele pensa que Nietzsche tem em mente no aforismo 12 da terceira dissertação da Genealogia permanece intersubjetivamente significativo.23 23 CONSTÂNCIO, 2019, p. 200-201.

Kaitlyn Creasy discute o aforismo 12 da terceira dissertação da Genealogia em seu recente livro sobre o niilismo afetivo.24 24 CREASY, 2020. Segundo ela, Nietzsche vê o problema da objetividade como negadora da vida e, portanto, como característica de concepções niilistas de conhecimento e de conhecer.25 25 Idem. op. cit. p. 39. Ela indica que encontramos Nietzsche criticando concepções de objetividade como “conhecimento enquanto tal” ou como “conhecimento desinteressado, extra-perspectivo em grande parte de suas obras, inclusive em O nascimento da tragédia (GT/NT 15, 16, KSA 1.97-108), em A gaia ciência (FW/GC, KSA 3.574-77) e em Para além de bem e mal (JGB/BM 204, KSA 5.129-32). Creasy também assinala que o que é peculiar na consideração de Nietzsche na Genealogia é que é nela que o filósofo finalmente deixa claro que uma concepção de verdade “como objetiva, desinteressada e não-perspectivista - é totalmente negadora da vida”.26 26 CREASY, 2020, p. 41. A explicação de Creasy reforça a profunda conexão, em Nietzsche, entre uma concepção positiva de objetividade e os afetos bem como ressalta a importante atenção crítica que ele dá às concepções atemporais, sem vontade e desinteressadas de objetividade ao longo de seus escritos.

Contudo, embora úteis para estabelecer a diferença entre os tipos de objetividade e para demonstrar que o tipo 2 não sucumbe à mera preferência subjetiva, nenhuma dessas considerações anteriores se relaciona com a dimensão temporal da distinção, em Nietzsche, entre a objetividade tipo 1 e a tipo 2, isto é, em sua ênfase na objetividade tipo 2 como objetividade “futura”. O filósofo alemão descreve a objetividade tipo 2 como objetividade “futura” no aforismo 12 da terceira dissertação da Genealogia da moral, visto que, a meu ver, ele está fundamentando sua análise em seus trabalhos anteriores a respeito do espírito livre. Ao propor uma forma de objetividade que não é afetada pelo declínio cultural que ele percebe na objetividade tipo 1, Nietzsche se baseia na perspectiva de seu próprio trabalho anterior sobre o futuro e, mais especificamente, sobre a filosofia futura, que é possível por meio do seu desenvolvimento prévio do espírito livre. A ênfase dele no significado dos afetos para uma explicação do conhecimento orientada para o futuro é por ele esclarecida em Aurora, entendido como o texto do espírito livre no qual Nietzsche inicia sua campanha contra os pressupostos morais, como Keith Ansell-Pearson e eu discutimos em nosso recente livro sobre esse texto.27 27 ANSELL-PEARSON, Keith; BAMFORD, Rebecca. Nietzsche’s Dawn: Philosophy, Ethics, and the Passion of Knowledge. Oxford: Wiley-Blackwell, 2020. No quinto livro de Aurora, conforme Keith Ansell-Pearson e eu demonstramos, Nietzsche explora e reconstrói performaticamente como se pode fazer com que seja possível à humanidade tornar-se autocultivadora [self-cultivating] e orientada para o futuro, e inclui a discussão sobre o conhecimento futuro e sobre a filosofia futura como parte desse processo (M/A 423, KSA 3.259-60).28 28 Ibid. op. cit., pp. 226-229.

Nietzsche nos remete diretamente aos seus chamados textos da trilogia do espírito livre e às suas observações relativamente ao espírito livre em vários trechos da Genealogia, por exemplo, no prólogo 2 (GM/GM, Prólogo 2, KSA 5.248-249), no 4 (GM/GM, Prólogo 4, KSA 5.250-251), no 7 (GM/GM, Prólogo 7, KSA 5.254-255), no aforismo 2 (GM/GM II 2, KSA 5.293-294) e no 6 (GM/GM II 6, KSA 5.300-302) da segunda dissertação e no aforismo 24 (GM/GM III 24, KSA 5.398) e 27 (GM/GM III 27, KSA 5.408-411) da terceira dissertação.29 29 Se fôssemos incluir formalmente Para além de bem e mal como uma parte do projeto do espírito livre de Nietzsche, então poderíamos adicionar também o aforismo 7 (GM/GM I 7, KSA 5.266-268) e o 17 (GM/GM I 17, KSA 5.288-289) da primeira dissertação e o aforismo 6 (GM/GM II 6, KSA 5.300-302) da segunda dissertação da Genealogia da moral, onde Nietzsche se refere a Para além de bem e mal ao lado de Aurora e do aforismo 9 (GM/GM III 9, KSA 5.356) da terceira dissertação da Genealogia. Ele realça de modo patente que seu trabalho dedicado ao espírito livre esclarece seu pensamento na Genealogia. Por exemplo, aponta que seu pensamento sobre os “nossos preconceitos morais” foi inicialmente desenvolvido em Humano, demasiado humano, e garante que a Genealogia da moral é, da mesma forma, dedicada aos preconceitos morais. Como também registra, no momento ele se apega a esses mesmos pensamentos, e diz que eles, crescendo, “entrelaçaram-se” (GM/GM, Prólogo 2, KSA 5.248, tradução de RRTF). Nietzsche faz uma observação semelhante no que se refere à sua concepção acerca da verdade e da investigação, que está diretamente unida à sua diferenciação dos tipos de objetividade, no aforismo 24 da terceira dissertação da Genealogia, quando observa que “há uma lacuna em cada filosofia” no que diz respeito à “consciência sobre em que medida a vontade de verdade mesma precisa antes de uma justificação” (GM/GM III 24, KSA 5.401, tradução de RRTF). Ele pergunta como essa lacuna se dá, e responde dizendo que ela se dá porque “o ideal ascético foi até agora senhor sobre toda filosofia, é que a verdade foi posta como ser, como Deus, como instância mais alta mesmo, é que a verdade não podia de modo nenhum ser problema” (GM/GM III 24, KSA 5.401, tradução de RRTF). Ele insiste que a verdade não pode ser um problema, porque se a fé no “Deus do ideal ascético” é negada, então o problema do valor da verdade é imediatamente colocado em questão (GM/GM III 24, KSA 5.401). Em resposta a isso, propõe que a vontade de verdade precisa de uma crítica, e que o valor da verdade precisa ser questionado. Então, ele observa, entre parênteses, que

(A quem isto parece dito com demasiada concisão, seja recomendado reler aquele capítulo de A gaia ciência que leva o título: “Em que medida nós também somos devotos ainda”, aforismo 344, ou, melhor ainda, todo o livro V da obra citada, assim como o Prefácio da Aurora.)” (GM/GM III 24, KSA 5.401, tradução de RRTF).

Nessas três obras do espírito livre, Nietzsche deixou claro que está criticando a crença inquestionável no valor da verdade e que essa crença é moral - de fato, como um tipo de preconceito moral, ao qual ele também se remete no Prólogo 2 da Genealogia (GM/GM, Prólogo 2, KSA 5.248-49). No mesmo aforismo da Genealogia, Nietzsche volta nosso olhar para o seu projeto do espírito livre, tido como profundamente importante para seu argumento sobre verdade, ciência e objetividade nessa terceira dissertação da Genealogia.

acreditam-se, de fato, tão livrados quanto possível do ideal ascético, esses “espíritos livres, muito livres”: e no entanto que eu lhes denuncie o que eles mesmos não podem ver - pois estão perto demais -: esse ideal é precisamente também seu ideal, eles mesmos o representam hoje, e mais ninguém talvez, eles mesmos são seu rebento espiritualizado, seu mais avançado carro guerreiro e anunciador, sua mais cativante, mais delicada, mais impalpável forma de sedução: - se em algum ponto sou decifrador de enigmas, quero sê-lo com essa proposição! ... Esses ainda estão longe de serem espíritos livres: pois acreditam ainda na verdade... (GM/GM III 24, KSA 5.399, tradução de RRTF).30 30 Conforme Babette E. Babich salientou, a discussão de Nietzsche a respeito da “ciência” [Wissenschaft] neste e em outros textos é mais ampla do que permite o referente em inglês, que se limita às ciências naturais. Babich observa que, “Para Nietzsche (e em geral), o termo alemão Wissenschaft refere-se não apenas às ciências naturais, mas também às ciências sociais (incluindo a economia, mas também a teologia, tão importante para, dentre outras coisas, o desenvolvimento das ciências da vida, bem como das ciências culturais, incluindo o estudo da arte em particular)” e observa que Nietzsche também considerava a filologia como uma “ciência” (2009, p. 164-165).

É importante ter em mente que o ponto de Nietzsche aqui não é uma negação do espírito livre, mas, em vez disso, uma observação sobre onde nossa sociedade está atualmente em relação à trajetória do desenvolvimento do espírito livre. Ainda não alcançamos o status de espíritos livres ou muito livres; como o filósofo assevera, “nós, conhecedores de hoje, nós os sem-Deus e os antimetafísicos” enfrentamos o mesmo problema que o espírito livre: o esforço para nos tornarmos livres da crença na verdade como divina (GM/GM III 24, KSA 5.401, tradução de RRTF). Como já discuti anteriormente,31 31 BAMFORD, Rebecca. 2019. Amy Mullin mostrou que os filósofos do futuro de Nietzsche podem ser diferenciados dos espíritos livres maduros por meio de sua capacidade para integrar diversas perspectivas e empregar “em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e interpretações afetivas” (GM/GM III 12, KSA 5.364-65, tradução de PCS) junto do gosto adquirido pelo que é bom para eles e que os separa da decadência dos espíritos meramente livres e de sua capacidade de comandar e criar valores (JGB/BM VI 211, KSA 5.144) e de organizarem a si mesmos e a sociedade.32 32 Idem, 2000, p. 401-403. Em O Anticristo, Nietzsche admite que espíritos muito livres se tornam espíritos livres ao restabelecer o contraste entre os valores cristãos e nobres, como mostrou Andreas Urs Sommer.33 33 SOMMER, Andreas-Urs. Is There a Free Spirit in Nietzsche’s Late Writings? In: Nietzsche’s Free Spirit Philosophy, edited by Rebecca Bamford, pp. 253-65. London: Rowman & Littlefield International, 2015. pp. 253-265. 34 34 Cf. também minha discussão a respeito em BAMFORD, 2019, p. 15-16.

Neste ensaio, esclareci como Nietzsche distingue duas concepções de objetividade: tipo 1 (pura, atemporal, isenta de vontade, desinteressada) e tipo 2 (afetiva, plural, inserida em contextos históricos, culturais e corporais). O primeiro exclui ativamente os afetos, ao passo que o último explicitamente os inclui. Além de observar onde essa distinção foi enfatizada em estudos relevantes, também mostrei como o envolvimento crítico de Nietzsche com a objetividade tipo 1 como um problema é consistente em seus textos publicados e autorizados. Ele se opõe a uma suposição impensada, mas problemática no interior da investigação, de que a objetividade entendida como pura e desinteressada é a única maneira possível de definir plausivelmente a objetividade. Nietzsche nos ajuda a compreender por que essa suposição surgiu, e mostra que a falta de inclusão e a passividade dentro da objetividade tipo 1 representam um problema para a investigação: sua explicação é a de que o conhecer e o aprender fundamentados na objetividade tipo 1 não nos dizem tanto a respeito de nós mesmos e sobre o mundo quanto supomos, e podemos perder coisas de muito interesse e úteis ao deixar de tratar das perspectivas afetivas e das dimensões afetivas do saber. A novidade da presente discussão é a associação que estabeleci entre a objetividade tipo 2 conforme definida no aforismo 12 da terceira dissertação da Genealogia da Moral e o direcionamento futuro desse tipo de objetividade. Um possível futuro no qual talvez estejamos preparados para atingir a objetividade tipo 2 é antecipado no projeto para o espírito livre de Nietzsche, ao qual ele explicitamente nos dirige em vários pontos de sua discussão sobre a objetividade e a verdade na Genealogia.35 35 Agradeço aos participantes do workshop IV Trends in Nietzsche Research, realizado com o GEN -Grupo de Estudos Nietzsche e com o Nietzsche in the Northeast em fevereiro de 2022, pelos relevantes comentários feitos à versão inicial deste artigo.

Referências

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  • 1
    As versões em português dos escritos de Nietzsche utilizadas na presente tradução são de Rubens Rodrigues Torres Filho, Paulo César de Souza, André Luís Mota Itaparica e Jacob Guinsburg, as quais serão indicadas, respectivamente, pelas abreviações RRTF, PCS, ALMI e JG [N. do T.].
  • 2
    ALFANO, Mark. Nietzsche’s Moral Psychology. Cambridge: Cambridge University Press, 2019b, p. 154.
  • 3
    Em seus textos publicados e autorizados e em suas notas e cartas, Nietzsche usa ambas as grafias: Objectivität e Objektivität. A análise feita usando o nietzschesourge.org mostra que o último aforismo nos textos publicados e autorizados no qual Nietzsche usa Objectivität é no aforismo 111 de Aurora, originalmente publicado em 1881. A partir daí, enquanto seu uso nas notas é um tanto inconsistente, Nietzsche usa Objektivität consistentemente em textos publicados e autorizados. Uma possível explicação é que Nietzsche alterou a grafia deste termo, substituindo “c” por “k”, após a publicação da primeira edição do dicionário de alemão Duden em 1880, que seguia as reformas acordadas pela Primeira Conferência Ortográfica sobre a língua alemã em 1876, conferência esta que recomendou a substituição do “c” pelo “k” ou “z” em palavras estrangeiras e que contou com a presença de Konrad Duden. Ao fazer parte da primeira edição do Duden, as reformas recomendadas pela conferência geraram um acalorado debate público e uma intervenção pessoal contra a exigência estatal de reforma ortográfica feita por Bismarck (JOHNSON, Sally A. Spelling Trouble? Language, Ideology, and the Reform of German Orthography. Clevedon: Multilingual Matters Ltd, 2005. pp.19-22. Sou grata a Thomas Molloy, Matthew Meyer e Rachel Cristy pela preciosa discussão a respeito desta questão.
  • 4
    BABICH, Babette E. Nietzsche’s Critique of Scientific Reason and Scientific Culture: On ‘Science as a Problem’ and Nature as Chaos. In: Nietzsche and Science, edited by Thomas H. Brobjer and Gregory Moore, London: Routledge, 2004, pp. 133-153.
  • 5
    O uso da pura contemplação desinteressada por Nietzsche para definir a objetividade na quinta parte de O Nascimento da tragédia ilustra seu envolvimento com Kant e com o envolvimento de Schopenhauer com a estética kantiana, com a qual ele se ocupa em grande parte deste texto.
  • 6
    BABICH, Babette E. op. cit. 2004BABICH, Babette E. Nietzsche’s Critique of Scientific Reason and Scientific Culture: On ‘Science as a Problem’ and Nature as Chaos. In: Nietzsche and Science, edited by Thomas H. Brobjer and Gregory Moore, pp. 133-153. London: Routledge, 2004..
  • 7
    Nos textos publicados, esta parece ser a última vez em que Nietzsche utiliza Objectivität em vez de Objektivität.
  • 8
    No aforismo 208 de Para além de bem e mal, Nietzsche atribui o aparecimento da vontade doente à perda da “energia de querer” ou à persistência do “querer uma vontade” (JGB/BM 208, KSA 5.139) por meio do que ele chama de “mistura de classes e, em consequência, de raças” na Europa (JGB/BM 208, KSA 5.138). Jacqueline Scott defendeu que, por mistura de classes, Nietzsche se refere aqui à adoção de valores democráticos; ela propõe que, em Para além de bem e mal, Nietzsche contrasta uma possível concepção reavaliada de determinada criação de uma nova e revigorada casta dominante com o tipo da decadência fraca simbolizada pelo nacionalismo. SCOTT, Jacqueline. On the Use and Abuse of Race in Philosophy: Nietzsche, Jews, and Race. In: Race and Racism in Continental Philosophy, edited by Robert Bernasconi with Sybol Cook, pp. 53-73. Bloomington: Indiana University Press, 2003. p. 67. Scott também sugere que Nietzsche tenta reavaliar o conceito de raça como parte do enfrentamento ao problema da decadência criando a possibilidade de desenvolver valores novos e mais saudáveis, em parte criando uma nova raça mestiça de europeus (2003, p. 67-68).
  • 9
    CREASY, Kaitlyn. The Problem of Affective Nihilism in Nietzsche: Thinking Differently, Feeling Differently. London: Palgrave Macmillan, 2020, p. 58.
  • 10
    CREASY, 2020CREASY, Kaitlyn. The Problem of Affective Nihilism in Nietzsche: Thinking Differently, Feeling Differently. London: Palgrave Macmillan, 2020..
  • 11
    Cf. CREASY, Kaitlyn (2020)CREASY, Kaitlyn. The Problem of Affective Nihilism in Nietzsche: Thinking Differently, Feeling Differently. London: Palgrave Macmillan, 2020..
  • 12
    ALFANO, Mark. The most agreeable of all vices: Nietzsche as virtue epistemologist. British Journal for the History of Philosophy, 2013, n 21(4): pp. 767-90. ALFANO, Mark. Nietzsche’s Affective Perspectivism as a Philosophical Methodology. In: Nietzsche’s Metaphilosophy: The Nature, Method, and Aims of Philosophy, edited by Paul S. Loeb and Matthew Meyer, pp. 127-145. Cambridge: Cambridge University Press, 2019a. ALFANO, Mark. Nietzsche’s Moral Psychology. Cambridge: Cambridge University Press, 2019b.
  • 13
    Comparar com o aforismo 143 de A Gaia Ciência (FW/GC 143, KSA 3.490-91), no qual Nietzsche faz notar o tipo de politeísmo em que novos “olhos” ou “perspectivas” são criados.
  • 14
    ALFANO, 2013ALFANO, Mark. The most agreeable of all vices: Nietzsche as virtue epistemologist. British Journal for the History of Philosophy, 2013, n 21(4): pp. 767-90., 2019a______. Nietzsche’s Affective Perspectivism as a Philosophical Methodology. In: Nietzsche’s Metaphilosophy: The Nature, Method, and Aims of Philosophy, edited by Paul S. Loeb and Matthew Meyer, pp. 127-145. Cambridge: Cambridge University Press, 2019a., 2019b______. Nietzsche’s Moral Psychology. Cambridge: Cambridge University Press, 2019b..
  • 15
    ALFANO, 2013ALFANO, Mark. The most agreeable of all vices: Nietzsche as virtue epistemologist. British Journal for the History of Philosophy, 2013, n 21(4): pp. 767-90..
  • 16
    Idem. op. cit., p. 772.
  • 17
    Idem. op. cit., p. 787.
  • 18
    Ibidem.
  • 19
    ALFANO, 2019a______. Nietzsche’s Affective Perspectivism as a Philosophical Methodology. In: Nietzsche’s Metaphilosophy: The Nature, Method, and Aims of Philosophy, edited by Paul S. Loeb and Matthew Meyer, pp. 127-145. Cambridge: Cambridge University Press, 2019a.; 2019b______. Nietzsche’s Moral Psychology. Cambridge: Cambridge University Press, 2019b., p. 154.
  • 20
    JANAWAY, Christopher. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford University Press, 2007. p. 210.
  • 21
    CONSTÂNCIO, 2019CONSTÂNCIO, João. Nietzsche’s Aesthetic Conception of Philosophy: A (Post-Kantian) Interpretation of The Gay Science §373. In: Nietzsche’s Metaphilosophy: The Nature, Method, and Aims of Philosophy, edited by Paul S. Loeb and Matthew Meyer, pp. 187-206. Cambridge: Cambridge University Press, 2019., p. 199-200.
  • 22
    O reconhecimento da importância dos afetos para o conhecimento também é discutido por Poellner (1995)POELLNER, Peter. Nietzsche and Metaphysics. Oxford: Oxford University Press, 1995..
  • 23
    CONSTÂNCIO, 2019CONSTÂNCIO, João. Nietzsche’s Aesthetic Conception of Philosophy: A (Post-Kantian) Interpretation of The Gay Science §373. In: Nietzsche’s Metaphilosophy: The Nature, Method, and Aims of Philosophy, edited by Paul S. Loeb and Matthew Meyer, pp. 187-206. Cambridge: Cambridge University Press, 2019., p. 200-201.
  • 24
    CREASY, 2020CREASY, Kaitlyn. The Problem of Affective Nihilism in Nietzsche: Thinking Differently, Feeling Differently. London: Palgrave Macmillan, 2020..
  • 25
    Idem. op. cit. p. 39.
  • 26
    CREASY, 2020CREASY, Kaitlyn. The Problem of Affective Nihilism in Nietzsche: Thinking Differently, Feeling Differently. London: Palgrave Macmillan, 2020., p. 41.
  • 27
    ANSELL-PEARSON, Keith; BAMFORD, Rebecca. Nietzsche’s Dawn: Philosophy, Ethics, and the Passion of Knowledge. Oxford: Wiley-Blackwell, 2020.
  • 28
    Ibid. op. cit., pp. 226-229.
  • 29
    Se fôssemos incluir formalmente Para além de bem e mal como uma parte do projeto do espírito livre de Nietzsche, então poderíamos adicionar também o aforismo 7 (GM/GM I 7, KSA 5.266-268) e o 17 (GM/GM I 17, KSA 5.288-289) da primeira dissertação e o aforismo 6 (GM/GM II 6, KSA 5.300-302) da segunda dissertação da Genealogia da moral, onde Nietzsche se refere a Para além de bem e mal ao lado de Aurora e do aforismo 9 (GM/GM III 9, KSA 5.356) da terceira dissertação da Genealogia.
  • 30
    Conforme Babette E. Babich salientou, a discussão de Nietzsche a respeito da “ciência” [Wissenschaft] neste e em outros textos é mais ampla do que permite o referente em inglês, que se limita às ciências naturais. Babich observa que, “Para Nietzsche (e em geral), o termo alemão Wissenschaft refere-se não apenas às ciências naturais, mas também às ciências sociais (incluindo a economia, mas também a teologia, tão importante para, dentre outras coisas, o desenvolvimento das ciências da vida, bem como das ciências culturais, incluindo o estudo da arte em particular)” e observa que Nietzsche também considerava a filologia como uma “ciência” (2009, p. 164-165).
  • 31
    BAMFORD, Rebecca. 2019BAMFORD, Rebecca. Experimentation, Curiosity, and Forgetting. Journal of Nietzsche Studies 50.1: 11-32, 2019..
  • 32
    Idem, 2000, p. 401-403.
  • 33
    SOMMER, Andreas-Urs. Is There a Free Spirit in Nietzsche’s Late Writings? In: Nietzsche’s Free Spirit Philosophy, edited by Rebecca Bamford, pp. 253-65. London: Rowman & Littlefield International, 2015. pp. 253-265.
  • 34
    Cf. também minha discussão a respeito em BAMFORD, 2019BAMFORD, Rebecca. Experimentation, Curiosity, and Forgetting. Journal of Nietzsche Studies 50.1: 11-32, 2019., p. 15-16.
  • 35
    Agradeço aos participantes do workshop IV Trends in Nietzsche Research, realizado com o GEN -Grupo de Estudos Nietzsche e com o Nietzsche in the Northeast em fevereiro de 2022, pelos relevantes comentários feitos à versão inicial deste artigo.
  • *
    Tradução de Thiago Kistenmacher Vieira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2022
  • Aceito
    16 Maio 2022
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