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As pinturas de Rafael Sanzio no ateliê filosófico de Nietzsche

Rafael Sanzio’s paintings within Nietzsche’s philosophical atelier

Resumo:

O artigo explora as considerações de Nietzsche sobre o pintor renascentista Rafael Sanzio, que são raras no conjunto da obra do filósofo, entretanto permeia todas as fases do seu processo de desenvolvimento intelectual. A abordagem, nos mais das vezes, é de cunho positivo, havendo resquícios de censura com relação à timidez do artista em promover uma transvaloração do Cristianismo, o que soa como certa ambiguidade. O momento mais fecundo da abordagem ocorre no período intermediário, no qual, Nietzsche valoriza o Humanismo renascentista e as obras de Rafael ilustram bem as características do Renascimento que ele valoriza.

Palavras-chave:
Renascimento; Transvaloração; Cristianismo; Rafael

Abstract:

The article explores the considerations of Nietzsche on the Renaissance painter Raphael Sanzio, who are rare in the set of the work of the philosopher, however permeates all the phases of his intellectual development process. The approach, more often than is positive, with remnants of censorship with respect to the artist’s timidity in promoting a transvaluation of Christianity, which sounds as a certain ambiguity. The most fruitful moment of the approach occurs in the intermediate period, in which Nietzsche values the Renaissance humanism and the works of Rafael illustrate the characteristics of the Renaissance he values.

Keywords:
Renaissance; Transvaluation; Christianity; Raphael

Introdução

Pretendemos neste estudo explorar as considerações que Nietzsche nutre sobre o pintor renascentista Rafael Sanzio, que são raras no conjunto da obra do filósofo, entretanto permeiam todas as fases do seu processo de desenvolvimento intelectual. A abordagem, nos mais das vezes, é de cunho positivo e criativo, havendo resquícios de censura com relação à timidez do artista em promover uma transvaloração do Cristianismo, o que soa como certa ambiguidade. O jovem filósofo já manifestava um interesse fecundo pelo pintor, mesmo não sendo, à época, simpático ao Renascimento, mas em seu ateliê criativo, ele o usava a favor de um novo renascimento (Wiedegeburt) promovido pela obra wagneriana. Contudo, o momento mais profícuo da abordagem ocorre no período intermediário, no qual, Nietzsche aprecia o Humanismo renascentista e vê as obras de Rafael - assim como a que tantos outros - como uma boa ilustração das características do Renascimento que ele valoriza.

Para Nietzsche os ideais do Renascimento perfilaram uma moralidade capaz de dar à luz a um novo tipo de cultura elevada que ele vislumbra, ou seja, uma cultura formadora de espíritos-livres, pois o movimento, tal como Burckhardt lhe ensinara, se caracteriza principalmente pela imposição da força da personalidade individual. A partir da sua fase intermediaria, o filósofo passa a ver o Renascimento, então, como sendo, na história da civilização humana, um momento de reabilitação de uma cultura elevada - tal como aquela laureada, quando ele se referia ao período trágico grego ou, posteriormente, ao Iluminismo. E para se estabelecer um parâmetro de elevação ou de decadência de certa cultura, Nietzsche, desde a juventude, recorre ao estado anímico como responsável pela formação de determinada estrutura cultural, constituído por processos fisiológicos. Em Humano, demasiado humano I, embora o termo instinto (Instikt)1 1 Nietzsche faz um farto uso do termo instinto em sua filosofia que permeia toda a sua obra, desde os primeiros aos últimos escritos. Entretanto, embora o termo não obedeça a padrões bem definidos, ele o emprega, pelo menos, de duas maneiras: uma associada à decadência, aos baixos instintos; a outra ligada à nobreza dos instintos. não seja propriamente empregado - contudo alguns dos seus similares sim, como, por ex., desejo (Wunsch, impulso (Trieb), anseio (Verlangen) -, este passará a ser o cerne a partir do qual determinadas culturas lidam com ele, que se manifesta através da fisiologia dos corpos, o elemento nuclear da instauração e formação dos estatutos culturais. Por isso, culturas que reprimem ou limitam os instintos no sentido de uma domesticação, ou melhor, de uma moralidade que os normatizam, se constituem como decadentes; por outro lado, as que os englobam em sua formação (Bildung), são consideradas elevadas ou plenas. Por isso, a plenitude do Renascimento - nietzschianamente falando - residiria, exatamente, em sua capacidade de ser uma cultura que engloba os instintos corporais, em seu processo de formação e produção, tanto artístico, científico e político, permitindo, assim, a manifestação da força da personalidade individual que é a marca indelével do seu humanismo.

É neste contexto, que o nosso filósofo reavaliará o Renascimento como uma civilização superior à alemã de sua época, animada por uma força instintiva mais ampliada e, consequentemente, mais elevada, centrada em valores superiores expressos em figuras históricas eminentes, tais como, por ex.: Petrarca, Boccaccio, Dante, Rabelais e Erasmo (na poesia e filologia); Rafael, Michelangelo, Da Vinci (nas artes plásticas); Luigi Cornaro (na dietética); Maquiavel, e Cesare Borgia (na política). Estes, entre outros, foram, para Nietzsche, capazes de englobar em suas ações e obras as suas potências instintivas, exaltando, deste modo, a força característica de suas personalidades individuais. O nosso filósofo, portanto, se apropriará do projeto humanista do Renascimento para ressignificar o que ele designou - já desde a primeira fase - como grandes homens (ou: homens elevados, homens superiores, homens plenos, homens supremos, tipo supremo, nobre) e, com base nisso, desenvolveu os seus próprios projetos, acerca do humano, como: gênio, espírito-Livre e super-homem2 2 Embora haja distinções sutis entre os termos envolvidos é razoável a tese da equivalência entre eles. Podemos dizer que o primeiro dos termos, o de gênio, foi, momentaneamente, deixado de lado, no período intermediário, devido, sobretudo, ao afastamento de Nietzsche de Schopenhauer e do Romantismo, quando predominou o de espírito-livre - que já aparecia também desde a primeira fase com identificações com o gênio; depois, com a elaboração da doutrina da vontade de poder, surge o termo super-homem que tem o seu clímax entre 1883 e 1885, arrefecendo posteriormente, quando os três termos passam ser tomados alternativamente como equivalentes. Cf. sobre a equivalência dos termos gênio, espírito livre e super-homem, em Nietzsche, como tentativas do filósofo elaborar teorias sobre o homem, (Magnus, 1983, p. 636); cf. também do mesmo autor (Magnus, 1996). Cf. sobre a doutrina do além do homem em Nietzsche (Haase, 1984). Cf. sobre o espírito-livre, (Stegmaier, 1994, p. 27-32) e (Brusotti, 1997). . Por isso, ao propor uma “doutrina” acerca do homem elevado, tendo como uma das referências o Humanismo renascentista, fundamentado na ideia de que, o homem adquire sua dignidade desenvolvendo - graças a uma formação apropriada - todas as disposições da sua força individual, Nietzsche que geralmente é considerado um anti-humanista, pode ser estimado também como um humanista.3 3 Cf. Esta tese é defendida por alguns intérpretes de Nietzsche, como por exemplo: (Magnus,1983); (Merlio, 2009); (Bouriau, 2015).

Os Grandes Mestres Pintores e Escultores

Será, portanto, no contexto de restabelecimento do corpo e consequentemente dos seus poderes instintivos que exaltam a plenitude da personalidade individual, opondo-se à cultura cristã baseada na consagração do espírito que sacrifica, por sua vez, no homem, a sua dimensão corpórea, que o filósofo irá se aproximar de alguns grandes mestres pintores e escultores do humanismo renascentista, principalmente, Da Vinci, Michelangelo e Rafael. Nietzsche considera, antes de tudo, em sua abordagem sobre a arte em geral, que o sonho e a embriaguez são precondições fisiológicas indispensáveis para haver criação artística4 4 GD/CI, Streifzüge eines Unzeitgemässen 8. KSA 6, 116. - A embriaguez é uma pré-condição fisiológica da arte, em geral, ela não se reduz ao Renascimento. É interessante, entretanto, ressaltar que em o NT, § 1, a embriaguez já é apresentada como uma pré-condição fisiológica da arte, entretanto associada ao princípio dionisíaco em contraste reconciliável com a outra pré-condição da arte, o sonho, associado ao princípio apolíneo, a arte trágica grega seria o momento da reconciliação destas duas pré-condições. Portanto, há uma nítida mudança na posição de Nietzsche, em CI, ao tomar a embriaguez sozinha - contudo, não anulando o sonho - como a pré-condição fisiológica da arte, este deslocamento se dá no bojo da resignificação que ele faz dos seus conceitos de trágico e dionisíaco. Em o NT, seu autor fala do trágico como um emparelhamento (Paarung) entre os princípios apolíneo e dionisíaco, porém em várias passagens, Nietzsche toma os dois termos - o dionisíaco e trágico - como equivalentes. O que concluímos que no conceito de dionisíaco ressignificado está acoplado o princípio apolíneo dando uma espécie de equilíbrio. , e no caso desses artistas renascentistas especificamente tem de se considerar ainda, certas características, tais como: 1) o uso que eles faziam das cores, da luz e das proporções em seus quadros e afrescos que resgatavam o significado cósmico dos objetos artístico e também o caráter metafísico da arte5 5 Cf. MA I/HH I, 220. KSA 2, 180. ; 2) o mérito de terem valorizado os gestos, as emoções e expressões corpóreas, em suas pinturas e esculturas e, consequentemente, a dimensão do humano, se posicionando em antagonismo às tendências cristãs. Para o nosso filósofo, esses mestres pintores e escultores valorizavam a existência, transformando, deste modo, o corpo em um veículo fundamental para as suas criações. Disso decorre, uma estetização carnal do cristianismo como uma chancela para sua superação ou transvaloração, ilustrada nas obras desses grandes mestres renascentistas. Será neste contexto, mas não exclusivamente - como veremos -, que Nietzsche irá abordar de forma mais profícua algumas pinturas de Rafael Sanzio.

Muito embora Nietzsche considere Rafael inferior a Da Vinci e a Michelangelo, tal como anotou em um fragmento póstumo de abril-junho de 18856 6 Eis o fragmento na integra: “Homens dogmáticos como Dante e Platão são os mais distantes e. talvez, por isso, sejam os mais atraentes: aqueles que acreditam viver em uma casa do conhecimento feita sob medida e segura. O primeiro em seu próprio, o outro na patrística cristã. Requer uma grande variedade de força e flexibilidade para se manter em um sistema incompleto com perspectivas livres e inacabadas: do que em um mundo dogmático. Leonardo da Vinci é superior a Michelangelo, Michelangelo é superior a Rafael”. (Nachlass/FP KSA 1885, 34 [25]. KSA 11. 429). , o pintor de Urbino é muito mais presente e tem as obras apreciadas mais explicitamente definidas do que as de Michelangelo ou as de Da Vinci no conjunto da obra nietzschiana. As pinturas de Rafael apreciadas pelo filósofo são: O Êxtase de Santa Cecília (1516-1517), a Transfiguração (1517-1520) e a Madona Sistina. (1512). As alusões feitas a Rafael aparecem em todas as fases do processo de desenvolvimento intelectual de Nietzsche. E, por isso, não há uma posição simétrica ao longo da obra em relação ao pintor, variando de acordo com o contexto em que o texto está inserido no ateliê criativo do filósofo, parecendo, assim, proporcionar certa ambiguidade na abordagem quando consideramos a totalidade das alusões. Deste modo, apesar de enfatizarmos mais as características renascentistas de Rafael, Nietzsche também lhe abordou dentro do cenário das suas discussões filológicas sobre o nascimento e o renascimento (Wiedergeburt) das tragédias gregas.

Rafael Sanzio no contexto de GT/NT

As alusões positivas que o jovem filósofo faz inicialmente às obras de Rafael tanto ao O Êxtase de Santa Cecília quanto à Transfiguração, que são as primeiras mencionadas, não estão dentro do contexto de valorização do Renaissance, pelo contrário, o movimento cultural, à época, foi combatido, pois era visto ainda como uma cultura eminentemente cristã, contudo estavam a serviço da Wiedergeburt que representava o drama wagneriano. Essas primeiras alusões devem ser analisadas no contexto da elaboração do GT/NT, obra na qual, o seu autor se posicionou dentro do projeto nostálgico romântico alemão de resgate da Grécia antiga, e com a qual pretendeu mostrar - pelo menos na primeira parte do tratado - o nascimento da tragédia ática, a partir do emparelhamento (Paarung) entre dois princípios impulsionadores, completamente opostos, o dionisíaco e o apolíneo. Estes são dois universos artísticos distintos entre si, representados na música por Dioniso e nas artes plásticas e na poesia épica por Apolo, cujas precondições fisiológicas indispensáveis são respectivamente a embriaguez e o sonho. Grosso modo, a arte apolínea é uma maneira de reagir ao pensamento pessimista dionisíaco, expresso na sabedoria aniquiladora do Sileno, segundo a qual, o melhor de tudo para o homem, devido à sua efemeridade, é não ter nascido, não ser, nada ser, diante de tal dilema, porém, o melhor seria morrer o quanto antes7 7 Cf. GT/NT 3. KSA 1. 35, s./f. . A grande importância, portanto, da maravilhosa arte apolínea é servir como um antídoto a esta insuportável e aniquiladora sabedoria, revertendo-a em algo mais suportável, ou seja: “a pior coisa de todas para os homens é morrer logo e a segunda pior é ter de morrer um dia”.8 8 GT/NT 3. KSA 1. 35. A arte apolínea, para Nietzsche, é a representação divina da beleza, que os gregos compreendiam como medida, proporção, ordem, harmonia, que conduzem o cosmo e o ethos - no âmbito da polis -, mas, também, como a expressão da serenidade e liberdade em relação às emoções no indivíduo. Os gregos forjaram, desta maneira, a beleza apolínea como um sonho, uma ilusão, um antídoto à dor e ao sofrimento ébrio dionisíaco, divinizando o mundo, que em-si, em seu estado natural é desprovido de beleza. Sendo, consequentemente, o mundo grego da beleza, um mundo de aparência, ou melhor, da bela aparência. Será nesta conjunção mais específica, que o jovem filósofo se apropria de Rafael, que, enquanto artista plástico, já está de imediato associado ao princípio apolíneo com todas as consequências aí implicadas. Nietzsche desloca, deste modo, Rafael de um ambiente cristão - tal como era visto o Renascimento à época - para uma cultura pagã.

É neste contexto, portanto, que Nietzsche analisará O Êxtase de Santa Cecília, pintura a óleo de Rafael concluída em seus últimos anos, por volta de 1516-15179 9 Faz parte do acervo da Pinacoteca Nacional de Bolonha. , que retrata Santa Cecília - a padroeira dos músicos e da música sacra - ouvindo, em êxtase ou deleite (Wonne) - como prefere o filósofo -, as harmonias de um coro angelical, na companhia de São Paulo, São João Evangelista, Santo Agostinho e Maria Madalena. Tanto Percy Bysshe Shelley - um dos poetas prediletos de Nietzsche -, em suas Cartas da Itália, quanto Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação, já haviam feito alusões à pintura, o que provavelmente, despertou o interesse do nosso filósofo - sem, contudo, podermos nos certificar desta hipótese10 10 Nietzsche faz menções a Shelley: em cartas para Elisabeth Nietzsche, do final de Novembro 1861 (KSB 1. 187) e em 22/10/1884 (KSB 6. 548), a Carl von Gersdorff: 28/09/1869 (KSB 3. 57 s./f.); em obra SE/ Co.Ext. III 3 KSA 1 . 352, JGB/BM 245. KSA 5. 187; em um póstumo Nachlass/FP 1887-1888. 11 [228]. KSA 13. 90); e ainda há evidências de leituras de dois volumes - o 28 e o 30 - Ausgewählt Dichtungen. Deutsch von Aldod Strodtmann. Hildburghausen: Verlag des Bibliographichen Instituts, 1866 - Cf. (Campioni; D’Iorio; Fornari; Orsucci; Fronterotta 2003, p. 557). Contudo não há vestígio de leitura das Cartas de Shelley na Itália. Contudo não há vestígio de leitura das Cartas de Shelley na Itália. . Percy Schelley sobre a pintura disse o seguinte:

[...] A figura central, Santa Cecília, parece em êxtase (seems rapt) com a inspiração que produziu sua imagem na mente do pintor; seus olhos profundos, escuros e eloquentes se erguem; os cabelos castanhos jogados para trás - ela segura um órgão nas mãos - seu semblante, por assim dizer, acalmado pela profundidade de sua paixão e êxtase, e penetrado por toda parte com a luz quente e radiante da vida. Ela ouve a música do céu e, imagino que tenha acabado de cantar, pois as quatro figuras que a cercam apontam evidentemente, por suas atitudes, para ela; particularmente São João, que, com um gesto terno, mas apaixonado, inclina lhe o rosto, lânguido pela profundidade da emoção [...]. (Shelley, 1964SHELLEY, Percy Bysshe. Letters: Shelley in Italy. Clarendon Press, 1964., p. 66-67)

Para Schopenhauer11 11 Cf. Schoppenhauer MVR I, § 52, cf. também o § 46. , a obra é um símbolo de consolo momentâneo que a arte acarreta para vida, mas que ainda não é a resignação ou a salvação definitiva, proporcionada pelo santo. O jovem filósofo, fortemente influenciado pelo mestre neste momento, mas também, talvez por Schelley, se refere, em textos, a esta pintura, pelo menos, três vezes entre 1871 a 1876, sem nenhuma alusão ao Renascimento. A primeira dessas passagens é a mais significativa e reverbera sobre as outras duas12 12 Trata-se de duas passagens ilustrativas e comparativas com o sentimento que a música de Wagner proporciona ao ouvinte: “como a Caecília de Rafael longe dos ouvintes que exigem prazer ou erudição dela” WB/Co.Ext. IV, 9. KSA 1. 490; “aquela linguagem que sempre ouvimos na música de Wagner: raros momentos de esquecimento que a invadem, por assim dizer, onde a música fala consigo mesma e olha para cima, como A Caecilia de Rafael, longe dos ouvintes que exigem dela prazer ou erudição”. (Nachlass/FP 1875, 11 [42]). KSA 8, 235) - que de forma idêntica se referem à expressão de deleite pintada no rosto de Santa Cecília ouvindo o canto dos anjos -, trata-se de uma longa anotação da primavera de 1871, preparatória ao GT/NT - a qual, nós reproduzimos parte aqui:

[...] Quem nos seguiu de boa vontade nesta difícil reflexão, com atenção e com alguma fantasia - também com benevolência onde a expressão é muito curta ou muito incondicional -, terá agora conosco a oportunidade de se levantar algumas questões polêmicas instigantes da estética atual e ainda mais dos artistas contemporâneos, para serem capazes de apresentar com mais seriedade respostas mais profundas do que normalmente sucedem. Imaginemos, depois de todas as suposições, em que circunstância pode ser transformada a música em um poema, ou seja, querer ilustrar um poema com música para ajudar a música a usar uma linguagem conceitual: que mundo pervertido! Um empreendimento que me parece como se um filho quisesse ser pai de seu pai! A música pode gerar imagens a partir de si mesma, que então serão sempre apenas esquemas, por assim dizer, exemplos de seu real conteúdo geral. Mas como deve a imagem, a imaginação, ser capaz de gerar música por si mesma! Sem falar que isso é o que o conceito ou, como já foi dito, “a ideia poética” poderia fazer. Tão certo quanto uma ponte leva do misterioso castelo do músico para a terra livre das imagens - e o poeta avança sobre ela -, é igualmente impossível seguir o caminho oposto, embora supostamente haja alguns que pensam que já o percorreram. Dê margens à imaginação com a fantasia de um Rafael, veja como a sua Santa Caecília se delicia (entzückt) ao ouvir as harmonias dos coros angelicais - nenhum som sai deste mundo, que parece se perder na música, imaginemos, portanto, que essa harmonia realmente, por um milagre, começasse a soar música, para onde iriam de repente Caecilia, Paulus e Magdalena, até mesmo o coro angelical cantante teria desaparecido! Nós Imediatamente deixaríamos Rafael ser: e assim como os instrumentos mundanos jazem espatifados sob o chão naquele quadro, assim também nossa visão da pintura, dominada (besiegt) pelo superior, desvanecer-se-ia cada vez mais como sombras - Mas como deve acontecer tal milagre! Como deve o mundo apolíneo do olhar, completamente imerso no olhar, ser capaz de gerar o som que simboliza outra esfera aparentemente excluída e superada pela perda do apolíneo! O prazer das aparências não pode excitar o prazer de não aparecer por si mesmo: o deleite (Wonne) do olhar é deleite apenas porque nada nos lembra duma esfera em que a individuação é quebrada e abolida. Se, de alguma forma, caracterizamos corretamente o apolíneo em oposição ao dionisíaco, o pensamento agora só deve nos parecer aventurosamente errado, o que de alguma forma atribui o poder à imagem, ao conceito, à aparência de produzir o som de si mesmo. [...] (Nachlass/FP 1871, 12 [1]. KSA 7, 363)

A análise que Nietzsche faz da pintura O Êxtase de Santa Cecília está inserida, além das discussões sobre os pressupostos filológicos em torno do nascimento da tragédia - dos quais falamos acima -, também se encontra em um contexto mais abrangente das contendas acerca da sua compreensão estética da música, fortemente entusiasmada por Wagner que representava o verdadeiro renascimento (Wiedergeburt) da tragédia preconizado no terceiro capitulo da obra inaugural. É nesse contexto, que o filósofo - na anotação supracitada - criticará certos contemporâneos por insistirem em ilustrar a harmonia através de uma linguagem conceitual poética e acabavam não percebendo que ela própria (a música) pode gerar imagens mentais a partir de si. E da mesma forma, dando margens à imaginação, compara o quadro de Rafael com o caso, ou seja, o de querer ilustrar o sentimento que a música proporciona ao ouvinte através da emoção representada na pintura, o que imageticamente seria impossível, pois estaria invadindo outra esfera - a dionisíaca - que não é da sua competência, ficando, portanto o êxtase de Santa Cecília restrito aos limites da representação da imagem ótica apolínea da bela aparência - como vimos acima.

A primeira referência à Transfiguração aparece na quarta seção do GT/NT, e também está fora do contexto apologético da Renaissance, embora esteja a serviço da Wiedergeburt da cultura alemã. A obra é a última pintura do artista de Urbino13 13 Faz parte do acervo do Museu do Vaticano. , que retrata duas passagens emblemáticas do Novo Testamento, a “Transfiguração”14 14 Cf. Mateus 17:1-9; Marcos 9:2-8; Lucas 9:28-36. A transfiguração é considerada junto com o batismo, a morte, a ressurreição e a assunção, como os acontecimentos mais importante de Jesus. representada na parte superior da tela e “O milagre da cura de um jovem possuído”15 15 Cf. Mateus 17:14-21; Marcos 9:14-29; Lucas 9:37-49. representado na parte inferior. Essas duas passagens foram narradas na sequência dos acontecimentos pelos três evangelistas sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas)16 16 Os três são considerados Evangelistas Sinópticos, devido os seus Evangelhos conterem uma grande quantidade de histórias em comum, na mesma sequência e, algumas vezes, utilizando exatamente as mesmas palavras e estruturas das frases em suas narrativas. Esses compartilham, portanto, do mesmo ponto de vista e estão claramente ligados entre si. Cf. The Oxford Dictionary of the Christian Church. 1989. p. 1333. e de acordo com eles, Jesus realizou o milagre da cura, logo após ter descido da montanha, onde experimentou a transfiguração. Além de ser um dos primeiros textos, em que o filósofo trata de um tema que lhe é caro, o da transfiguração17 17 O tema da transfiguração, em Nietzsche, por si só já é bastante complexo e permeia toda a sua obra desde os seus escritos de juventude até os últimos, nos quais, o filósofo usa alternadamente os termos Transfiguration ou Verklärung. No § 8 de M/A, o tema ocupa um lugar de destaque, inclusive dando título ao aforismo, como veremos mais adiante. No § 3 do prólogo de FW/GC, Nietzsche diz que a arte da transfiguração é filosofia, ou seja - em sua perspectiva -, a criação estética está desde sempre vinculada à experiência espiritual, ela parece estar ligada de forma direta aos estados místicos que são considerados, por ele, como processos transfiguradores da consciência, ou seja, uma transformação espiritual, uma espécie de metanoia, sem o arrependimento cristão da conversão. Para Nietzsche, o sentimento estético potencializa a vontade de vida, o êxtase místico aumenta o desejo de viver, por isso, diz em um póstumo do período genealógico: “Imagens da vida elevada e triunfante e a sua força transfiguradora: de modo que certa perfeição seja colocada nas coisas” (Cf. Nachlass/FP 1887, 9 [6], KSA 12, 341). Nas últimas obras, sobretudo, depois da terceira dissertação de a GM/GM, o tema vem relacionado à questão dos ideais ascéticos e das asceses que são analisados respectivamente: na filosofia, em GD/CI; na arte, em WA/CW e NW/NW; na religião, em AC/AC. , a passagem ainda se encontra em uma relação estreita com a anotação póstuma supracitada, entretanto de forma melhor articulada com o princípio apolíneo da arte. Vejamos:

Rafael, ele mesmo um desses imortais “ingênuo” („Naiven“), representou em sua pintura simbólica a despontenciação (Depotenziren) da aparência na aparência que é o processo primordial do artista ingênuo e, ao mesmo tempo, da cultura apolínea. Em sua Transfiguração, do meio para baixo, ele nos mostra, um jovem possesso, os seus condutores desesperados, os discípulos desamparados, aterrorizados, com o reflexo (die Wiederspiegelung) da eterna dor primordial, o único fundamento do mundo: a “aparência” é aqui o reaparecimento (Wiederschein) do eterno contraditório, pai de todas as coisas. Dessa aparência eleva-se, tal como o aroma de uma ambrosia, um novo mundo visionário de aparências, o qual, os que se encontram atrelados à primeira aparência não conseguem enxergar - um luminoso pairar no mais puro deleite (reinster Wonne) e um indolor contemplar radiante de olhos arregalados. Aqui temos diante dos nossos olhos, no mais elevado simbolismo da arte, aquele mundo apolíneo da beleza e o seu substrato, a terrível sabedoria do Sileno, e percebemos, pela intuição [intuition], sua recíproca necessidade. Apolo, mas, novamente, se nos apresenta como endeusamento do principium individuationis, no qual se realiza, e somente nele, o alvo eternamente visado pelo Uno-primordial, sua libertação através da aparência: ele nos mostra com gestos sublimes, quão necessário é o inteiro mundo do tormento, a fim de que, por seu intermédio, seja o individual forçado a engendrar a visão redentora e então, submerso em sua contemplação, permaneça tranquilamente sentado em sua canoa balouçante, em pleno mar. (GT/NT 4. KSA 1, 39)

Em o GT/NT, além de Rafael, enquanto artista plástico já está de imediato associado ao princípio apolíneo dirigido pela ilusão idílica da aparência, a ele é acrescentado como consequência, ser um artista ingênuo, termo que Nietzsche toma emprestado de Schiller18 18 Nietzsche liga ao apolíneo àquilo que Schiller, em sua obra A Poesia Ingênua e Sentimental (1796), definiu como ingênuo, na distinção que estabelece entre poesia ingênua e poesia sentimental, caracterizando, deste modo, respectivamente o Classicismo e o Romantismo. A poesia ingênua, grosso modo, vê o homem em intima integração com a natureza, imerso nela, a mesma forma como Nietzsche a caracteriza em o NT, “a unidade do ser humano com a natureza” (GT/NT 3. KSA 1, 37). A noção de natureza é o que sustenta essa distinção e é sempre pensada como algo que está presente no poeta ingênuo ou clássico, como se ele estivesse totalmente lançado de imediato nela; por outro lado, no poeta sentimental ou romântico, a natureza é algo que se perdeu. Na poesia sentimental, portanto, ocorre a autoconsciência da perda de algo - que é a natureza. Por isso, é definida pela nostalgia (Sehnsucht), defrontando-se com a natureza como algo perdido, como um objeto nostálgico. De modo geral, a natureza é vista pelo poeta sentimental como algo que não lhe é imediato, mas como algo que ele considera perdido, alheio e que ele quer reencontrar. , e que ele caracteriza como sendo “a despontenciação (Depotenziren) da aparência na aparência que é o processo criador do artista ingênuo e, ao mesmo tempo, da cultura apolínea”, ou seja, a capacidade de gerar uma suportabilidade diante da eterna dor primordial. Assim como Homero, por exemplo, que em a Ilíada, apresenta Aquiles, que apesar de uma vida breve, arrefece a dor com seus atos heroicos, da mesma forma, Rafael, em sua Transfiguração, oferece ao espectador a imagem de um mundo transfigurado, da dor em glória, representado na luz e nas expressões corporais das personagens pintadas. Rafael, portanto reproduziria uma arte ingênua, na medida, em que a beleza se consagra na aparência, ou seja, as emoções e expressões representadas em sua pintura ostentam a beleza na aparência.

Rafael no período intermediário e de amadurecimento intelectual de Nietzsche

As outras referências à Transfiguração e a apreciação à Madona Sistina aparecem dentro do contexto apologético que Nietzsche faz da Renassaince a partir da fase intermediária. Embora não precise mais deslocar Rafael para o mundo grego arcaico - como fazia na juventude - para reconhecer a grandiosidade da sua criação artística, pois agora, o Renascimento se tornou uma cultura elevada, no entanto, nem sempre a alusão ao artista está relacionada ao movimento e ainda aparece, às vezes, associado à Grécia Antiga.A pintura Madona Sistina19 19 A pintura foi encomendada pelo Papa Júlio II em homenagem póstuma ao seu tio, Papa Sisto IV, como uma peça de altar da basílica do Monastério Beneditino de São Sisto em Placência. Cf. (Henning, 2010). tem uma longa história na Alemanha20 20 Cf. (Belting, 200, p. 50); (Carrier,. 2006, p. 106) , para onde foi transferida em 1754, depois que Augusto III a comprou por uma vultosa quantia, ficando exposta, a partir de então, na Pinacoteca dos Mestres Antigos (Gemäldegalerie Alte Meister) no Palácio Zwinger, em Dresden. A pintura influenciou entre outros: Winckelmann, Goethe, Friedrich Schlegel, Schoppenhauer, Wagner, Hermann Grimm, Nietzsche, Marc Bloch etc. Winckelmann parece ter sido o primeiro a manifestar interesse intelectual pela Madona Sistina, em 1755 - menos de um ano depois da aquisição alemã da pintura -, em seu escrito as Reflexões sobre a imitação de obras gregas na pintura e na escultura (Gedanken über die Nachahmung der griechischen Werke in der Malerei und Bildhauerkunst), ele tece as seguintes considerações sobre obra de Rafael:

A Galeria Real de Zwinger (Die Königliche Galerie der Schildereien), em Dresden, tem em seu acervo agora entre seus tesouros uma valiosa obra das mãos de Rafael, do seu auge, como Vasari e outros testemunharam. A Madonna com o menino, São Sixto e Sta. Bárbara ajoelhada, ladeando-a, com dois anjos em primeiro plano. Esta imagem era o retábulo-mor do mosteiro de São Sixto, em Piacenza. Amantes e conhecedores de arte peregrinavam até lá para verem este Rafael, assim como se peregrinava para Thespia para contemplar o belo Cupido das mãos de Praxiteles. Vê a Madonna, com um rosto repleto de inocência e ao mesmo tempo em uma dimensão mais do que feminina, em uma posição de gloriosa serenidade, naquele silêncio que os antigos consentiam dominar nas imagens de suas divindades. Quão grande e nobre é todo o seu em torno! O menino em seus braços foi criado acima das crianças comuns, tem um rosto de onde um raio de divindade parece brilhar através da inocência da infância. A santa abaixo dela se ajoelha a seu lado em um silêncio adorador de sua alma, porém muito aquém da majestosa personagem principal, na qual a humilhação foi substituída, pelo grande mestre, por um encanto gentil em seu rosto. O santo em frente a esta imagem é o velhinho mais venerável, com feições que parecem indicar a sua juventude consagrada. O espanto de Sta. Bárbara na direção da Madona, que se torna mais sensual e tocante por suas belas mãos pressionadas contra o peito, ajuda o santo a expressar o movimento de uma das mãos. É precisamente esta ação que nos pinta o deleite (die Entzückung) do sagrado, que o artista queria dar a uma série de variedades, mais sábias sobre a força masculina do que a castidade feminina. No entanto, o tempo roubou muito do brilho aparente desta pintura, e o poder das cores foi parcialmente desgastado, apenas a alma, que o criador injetou na obra de suas mãos, ainda a anima. (Guth, 2014, p.19-20).

Winckelmann reconheceu que Rafael, de modo geral, e, especialmente, em sua Madonna Sistina, mantinha certo parentesco com a antiguidade clássica pré-cristã e prestava testemunho exemplar de como os artistas modernos deveriam se comportar caso quisessem se tornar inimitáveis, imitando a arte da antiguidade grega. Ele encontrou nas categorias estéticas da serenidade e do equilíbrio expressas nas estátuas antigas um modelo para as pinturas de Rafael. A Madonna tocou, deste modo, os sentimentos filelênicos nostálgico dos alemães e foi considerada, por isso, mais uma deusa grega, uma espécie de Juno, do que Maria, mãe do menino Jesus propriamente dita.

Será no processo de desenvolvimento deste contexto fértil em torno da obra de Rafael, em solo alemão, que Nietzsche tecerá suas considerações sobre a Madona Sistina. Primeiramente, de modo mais geral, no parágrafo 131 de MA I/HH I, ele faz menção à Madona de Rafael - sem identificar qual delas -, se apropriando de Schopenhauer (Mundo como vontade e representação I, § 71)21 21 Embora haja menção à capacidade de Rafael, e também Correggio, de expressarem em suas pinturas toda força dos Evangelhos, não há menção direta a nenhuma Madona, nessa passagem de o Mundo como vontade e representação. , para falar da força da imagem da Madona de Rafael que traz em seu olhar todo Evangelho:

Por mais que alguém creia ter se desabituado da religião, isso não sucedeu a ponto de não ter alegria em experimentar sentimentos e disposições religiosas sem conteúdo intelectual, como na música, por exemplo; e quando uma filosofia procura justificar as esperanças metafísicas e a profunda paz de espírito que delas se pode obter, e quando nos fala, por exemplo, de “todo o Evangelho seguro que há no olhar das Madonas de Rafael”, acolhemos tais sentenças e explicações com uma disposição particularmente efusiva: aqui é mais fácil para o filósofo demonstrar; o que ele quer dar encontra um coração que tem prazer em aceitar. (MA I/HH I, 131. KSA 2, 124)

Depois, emWS/AS, no parágrafo 73, Nietzsche de forma mais detalhada analisa a pintura e alcunha Rafael como um “pintor honesto” (Ehrliches Malerthum) que:

[...] conservou sua honestidade mesmo naquela pintura de exceção que se destinava originalmente a um estandarte de procissão, a Madona Sistina. Ali ele desejou pintar uma visão: mas uma tal como também têm e terão jovens nobres sem “fé”, a visão da futura noiva, de uma mulher inteligente, de alma nobre, taciturna e muito bela, que carrega nos braços o seu primogênito. Os velhos, habituados à oração e adoração, podem aí venerar algo sobre-humano [...] nós, mais jovens, parece exclamar Rafael, preferimos ficar com a bela garota à direita, que com seu olhar convidativo, nada devoto, diz aos espectadores do quadro: “Não é verdade? Essa mãe e seu filho - não é uma visão agradável e estimulante?”. Esse rosto e esse olhar refletem a alegria no rosto dos espectadores; o artista que criou tudo isso frui desse modo a si mesmo e acrescenta sua própria alegria à alegria dos receptores da arte. - Quanto à expressão “salvadora” no rosto do menino, Rafael, o honesto, que não quis pintar um estado de alma em cuja existência não acreditava, iludiu de maneira delicada seus espectadores crentes; ele pintou esse capricho da natureza que não é tão raro, olhos de homem em rosto de menino, e, aliás, olhos de homem corajoso e prestativo, que percebe uma urgência. (WS/AS 73. KSA 2, 585 s./f.)

Para Nietzsche, Rafael não estava muito interessado na fé daqueles que lhe encomendavam as suas pinturas, sua preocupação era mais de ordem estética. Por Isso, pintou uma virgem como o protótipo de uma mulher ideal para se contrair matrimônio22 22 Rafael, como é amplamente propalado, é o autor de inúmeras Madonas, e reza a lenda de que com a pintura O Casamento de Maria (ou O Casamento da Virgem - o Sposalizio), considerada a primeira obra-prima do artista, então com 21 anos, ele teria selado o seu compromisso com a Sta. Virgem. Trata-se de um compromisso espiritual com a virgem, que a partir de então passa a ter um lugar especial em seu trabalho. Inclusive, quando Nietzsche menciona “a visão da futura noiva”, ele está se referindo provavelmente a esta pintura. Cf. (Thoenes. 2005). , arrefecendo, deste modo, a fé. E, mais importante ainda, a expressão no rosto, juntamente, com a do Menino Jesus, capaz de propagar na força do seu olhar todo o Evangelho23 23 A pintura foi encomendada pelo Papa Júlio II, em honra do seu falecido tio, Papa Sisto IV, como uma peça-de-altar da basílica do Monastério Beneditino de São Sisto, em Placência (Cidade do norte da Itália). Na encomenda, foi exigido que o quadro devesse conter as imagens de São Sisto e Santa Bárbara (cf. Henning, 2010). O que não se sabia até recentemente - logo, na época de Nietzsche não se sabia - que a obra de Rafael fazia parte de uma instalação que incluía um crucifixo que hoje não há mais na basílica. Portanto, a reação expressa nos rostos do menino Jesus e da Santa Virgem era de sofrimento e de terror que se explicam pelo fato de ambos preverem a morte na cruz como um destino futuro. (cf. Prater, 1991. p. 117-136). .

As outras referências à pintura Transfiguração aparecem em um póstumo do verão-outono de 1884 e no aforismo 8 de Aurora, obra circunscrita no contexto de exaltação e ressignificação da ideia nietzschiana de espírito-livre. Nietzsche sobre ela diz, em seu prefácio tardio de 1886, ter começado nela a minar as certezas fundadas na moralidade e em EH/EH, mais tarde, em continuidade, diz ter iniciado com ela a sua campanha contra a moral. O aforismo 8 tem como título “Transfiguração (Transfiguration)” e ocupa um lugar importante tanto na dinâmica de reelaboração da ideia de espírito-livre quanto na economia do texto, pois ilustra, de certa maneira, a passagem de um saber fundamentado pela convicção, tal como a moral, mas também a metafísica e a religião, expresso nos sete primeiros aforismos da obra, para uma nova paixão, “a paixão pelo conhecimento”24 24 Cf. sobre a importância do tema da “paixão pelo conhecimento” na filosofia de Nietzsche, (Brusotti, 1997). , que será apresentada no aforismo 429, intitulado “A nova paixão” (Die neue Leidenschaft). O conceito de “paixão pelo conhecimento”, por sua vez, marca uma mudança na concepção de espírito-livre como foi formulada em MA/HH, onde, o seu autor se esforçou para uma ampla superação das paixões e o espírito-livre, deste modo, foi apresentado como uma suspensão das paixões. Em Aurora, Nietzsche percebe que para se levar uma vida livre dos afetos tem de se dissolver antes a metafísica, a religião e, principalmente, a moral, mas ao mesmo tempo, descobre o vazio da vida frente a esta suspensão e, por isso, apresenta como alternativa uma nova paixão, “a paixão pelo conhecimento”, um impulso (Trieb) para o conhecimento, que mais tarde, somado à alegria que a FW/GC proporciona à vida, será ressignificada como:

Não, a vida não me desiludiu! A cada ano que passa, eu a sinto mais verdadeira, mais desejável e misteriosa - desde aquele dia em que me veio o grande libertador, o pensamento de que a vida poderia ser uma experiência de quem busca conhecer - e não um dever, uma fatalidade, uma trapaça! - É conhecimento mesmo: [...] “A vida como meio de conhecimento” - ( FW/GC 324. KSA 3, 552 s./f.)

Portanto, a vida deve ser um experimento, ou melhor, uma busca pelo conhecimento. E por este aspecto, a vida como “meio de conhecimento” imprime sua marca na existência dando lhe finalmente um sentido, libertado-a de vez das convicções e das trapaças decorrentes delas, principalmente, da moral. Será neste contexto, que Nietzsche interpreta a Transfiguração de Rafael, procedendo tal como já havia descrito em o GT/NT, dividindo-a em três níveis que representam os planos pintados na obra pelo artista: o dos desesperados ou desorientados diante do imenso sofrimento do Jovem possuído (expresso na multidão); os discípulos desamparados e aterrorizados com o reflexo da luz eterna (expresso em Pedro, Tiago e João); e o daqueles que se encantam com o brilho da eternidade, o fundamento primordial do mundo (Moisés, Elias e o próprio Cristo transmutado)25 25 M/A, Transfiguration. KSA 3, 21- Os que sofrem desorientados, os que sonham confusos, os que se encantam com o sobrenatural - estes são os três níveis (Grade) em que Rafael divide a humanidade... . No entanto, como afirma o filósofo: “Não enxergamos mais o mundo assim - e tampouco Rafael poderia vê-lo mais assim hoje: ele contemplaria uma nova transfiguração”26 26 M/A, Transfiguration. KSA 3, 2. . A nova transfiguração seria, portanto, livre das convicções metafísicas, religiosas, em última instância, morais, graça às ciências que são responsáveis por este desatamento, lançando, assim, a vida no experimento de um novo conhecimento alegre que acaba por desembocar consequentemente no parágrafo 341 de a FW/CG, no qual o eterno retorno é apresentado como a nova forma de transfiguração. A obra Transfiguração, de Rafael, para Nietzsche, tal como apresenta em Aurora, estaria atrelada ainda, às antigas convicções que regem a representação da pintura, neste caso, o cristianismo, precisando ser superada por “uma nova transfiguração”. Contudo, M/A § 8 se torna mais completo e esclarecido à luz do conjunto dos últimos aforismos do quarto capítulo de MA I/HH I - Da alma dos artistas e pintores -, que vão do § 220 ao § 223, os quais são intitulados respectivamente de O Além na arte, A revolução na poesia27 27 Sendo o § 221, “A revolução na poesia”, especificamente, dedicado à poesia e os demais dedicados à arte em geral. , O que resta da arte e Crepúsculo da arte. No mais importante deles para nossa compreensão da consideração de Nietzsche sobre a transfiguração em Rafael, o § 220, é dito:

Não é sem profundo pesar que admitiremos que os artistas de todos os tempos, em seus mais altos voos, levaram a uma transfiguração celestial (einer himmilischen Verklärung) exatamente as concepções que hoje reconhecemos como falsas: eles glorificaram os erros religiosos e filosóficos da humanidade, e não poderiam fazê-lo sem acreditar na verdade absoluta desses erros. Se a crença em tal verdade diminui, empalidecem as cores do arco-íris nos extremos do conhecer e do imaginar humanos: então nunca mais poderá florescer o gênero de arte que, como a Divina comédia, os quadros de Rafael, os afrescos de Michelangelo, as catedrais góticas, pressupõem um significado não apenas cósmico, mas também metafísico nos objetos da arte. Um dia, uma lenda comovente contará que existiu certa vez tal arte, tal crença de artista. (MA I/HH I. KSA 2, 180)

No póstumo do verão-outono de 1884, ainda, no contexto de apresentar a insuficiência da transfiguração de Rafael, ou melhor, a sua incapacidade de promover a transvaloração dos valores cristãos (die Umwerthung der christlichen Werthe), Nietzsche lhe envolverá em um mesmo esquema interpretativo com Pascal e Mestre Eckhart, demonstrando, deste modo, a sua apreciação ambígua sobre o artista, que embora seja reconhecida a sua grandiosidade e seja visto como um herdeiro da cultura grega arcaica para além dos limites do cristianismo, mesmo assim, ainda não conseguiu se libertar totalmente da sua influência, incidindo sobre ele uma “hipocrisia tímida”. Diz ele:

[...] O cristianismo tem sido responsável pela deterioração (verdorben) da plenitude de diversos homens, por exemplo, Pascal e anteriormente Mestre Eckhart. Ele deteriora até mesmo o conceito dos artistas: ele lançou uma hipocrisia tímida (schüchterne Hypocrisie) sobre Rafael, por fim, está também o seu Cristo Transfigurado envolto em um esvoaçante e fantasioso hábito, ele não ousou mostrá-lo nu [...]. (Nachlass/FP 1884, 26 [3], KSA 11, 151).

Malgrado a deterioração que o cristianismo promoveu sobre alguns homens elevados, a força singular de Rafael - para além de sua tímida hipocrisia cristã -, parece refratária a esta ação, mantendo a sua plenitude. Nas considerações que Nietzsche faz sobre o artista, em suas últimas obras, ele ressignifica os seus conceitos de trágico, apolíneo e dionisíaco, que não são mais vistos em um esquema dialético, no qual, o trágico era o equilíbrio reconciliatório entre o dionisíaco e o apolíneo. Em sua “ultíssima” fase, Nietzsche retoma de forma intensa, ressignificando o seu conceito de dionisíaco que passa a ocupar a unidade sintética da tríade antes imputada ao trágico, sem, contudo, suprimir a força apolínea que vem acoplada. Será neste contexto, em o GD/CI, em “Incursões de um extemporâneo”, que o filósofo ao se referir ao artista de Urbino, se posicionará quanto a sua superação do cristianismo, resgatando, assim, o tema da embriagues que na obra inaugural estava associado ao dionisíaco, à arte do ditirambo e à música, em contraposição à ilusão (ou ao sonho) apolínea, manifesta nas artes plásticas e no poema épico, como uma precondição fisiológica indispensável para o artista, sendo, pois, “em sua essência o sentimento de plenitude e intensificação das forças”28 28 GD/CI, Streifzüge eines Unzeitgemässen, § 8. KSA 6, 116. . Desta forma, o Rafael da arte naïf apolínea do GT/NT parece dá lugar à embriagues da sabedoria dionisíaca que surge como uma força transfiguradora, afirmando a realidade da vida com toda a sua dor e sofrimento, superando assim, o cristianismo, como assevera o filósofo na sequência de o GD/CI:

Nesse estado, enriquecemos todas as coisas com nossa própria plenitude: o que enxergamos, o que queremos, enxergamos avolumado, comprimido, forte, sobrecarregado de força. Nesse estado, o ser humano transforma as coisas até espelharem seu poder - até serem reflexos de sua perfeição. Esse dever de transformar no que é perfeito é - arte. Mesmo tudo o que ele não é se torna para ele, no entanto, prazer em si; na arte, o ser humano frui a si mesmo enquanto perfeição. - Seria licito imaginar um estado oposto, urna específica natureza antiartística do instinto - um modo de ser que empobrecesse, diluísse, debilitasse todas as coisas. E, de fato, a história é pródiga em antiartistas assim, em tais famintos da vida: que necessariamente tem de tomar as coisas, consumi-las, torná-las mais magras. Este é, por exemplo, o caso de um genuíno cristão, de Pascal, por exemplo: um cristão, que, ao mesmo tempo, fosse artista não existe ... Que ninguém seja pueril e mencione Rafael ou algum cristão homeopático do século, XIX: Rafael dizia Sim, Rafael fazia Sim; portanto, Rafael não era um cristão... (GD/CI, Streifzüge eines Unzeitgemässen 9. KSA 6, 117).

Referências

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  • WOTLING, Patrick Nietzsche et le Problème de la Civilization Paris: Presses Universitaires de France, 1995.
  • 1
    Nietzsche faz um farto uso do termo instinto em sua filosofia que permeia toda a sua obra, desde os primeiros aos últimos escritos. Entretanto, embora o termo não obedeça a padrões bem definidos, ele o emprega, pelo menos, de duas maneiras: uma associada à decadência, aos baixos instintos; a outra ligada à nobreza dos instintos.
  • 2
    Embora haja distinções sutis entre os termos envolvidos é razoável a tese da equivalência entre eles. Podemos dizer que o primeiro dos termos, o de gênio, foi, momentaneamente, deixado de lado, no período intermediário, devido, sobretudo, ao afastamento de Nietzsche de Schopenhauer e do Romantismo, quando predominou o de espírito-livre - que já aparecia também desde a primeira fase com identificações com o gênio; depois, com a elaboração da doutrina da vontade de poder, surge o termo super-homem que tem o seu clímax entre 1883 e 1885, arrefecendo posteriormente, quando os três termos passam ser tomados alternativamente como equivalentes. Cf. sobre a equivalência dos termos gênio, espírito livre e super-homem, em Nietzsche, como tentativas do filósofo elaborar teorias sobre o homem, (Magnus, 1983MAGNUS, Bernd. Perfectibility and attitude in Nietzsche’s Übermensh. In: Review of Metaphysics, 36, 1983., p. 636); cf. também do mesmo autor (Magnus, 1996___________. Nietzsche’s Philosophy in 1888: The will to power and Übermensch. In Journal of Hisrory of Philosophy; 24 : 1, 1996.). Cf. sobre a doutrina do além do homem em Nietzsche (Haase, 1984HAASE, Marie-Luise. “Der Übermensch in Also sprach Zarathustra und in Zarathustra-Nachlass 1882-1885” , Nietzsche-Studien13. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1984.). Cf. sobre o espírito-livre, (Stegmaier, 1994______________ . Nietzsches `Genealogie der Moral`. Darmstatt: Wissenschaftliche Buchgellschaft, 1994., p. 27-32) e (Brusotti, 1997BRUSOTTI, Marco. Die Leidenschaft der Erkenntnis. Philosophie und ästhetische ebensgestaltung bei Nietzsche von Morgenröthe bis Also sprach Zarathustra. Berlin/NY: Walter de Gruyter, 1997.).
  • 3
    Cf. Esta tese é defendida por alguns intérpretes de Nietzsche, como por exemplo: (Magnus,1983MAGNUS, Bernd. Perfectibility and attitude in Nietzsche’s Übermensh. In: Review of Metaphysics, 36, 1983.); (Merlio, 2009MERLIO, Gilbert. “Nietzsche, Darwin et le darwinisme“. Revue germanique internationale, 10, 2009.); (Bouriau, 2015BOURIAU, Christophe. Nietzsche et la Renaissance. Paris: PUF, coll. Philosophies, 2015.).
  • 4
    GD/CI, Streifzüge eines Unzeitgemässen 8. KSA 6, 116. - A embriaguez é uma pré-condição fisiológica da arte, em geral, ela não se reduz ao Renascimento. É interessante, entretanto, ressaltar que em o NT, § 1, a embriaguez já é apresentada como uma pré-condição fisiológica da arte, entretanto associada ao princípio dionisíaco em contraste reconciliável com a outra pré-condição da arte, o sonho, associado ao princípio apolíneo, a arte trágica grega seria o momento da reconciliação destas duas pré-condições. Portanto, há uma nítida mudança na posição de Nietzsche, em CI, ao tomar a embriaguez sozinha - contudo, não anulando o sonho - como a pré-condição fisiológica da arte, este deslocamento se dá no bojo da resignificação que ele faz dos seus conceitos de trágico e dionisíaco. Em o NT, seu autor fala do trágico como um emparelhamento (Paarung) entre os princípios apolíneo e dionisíaco, porém em várias passagens, Nietzsche toma os dois termos - o dionisíaco e trágico - como equivalentes. O que concluímos que no conceito de dionisíaco ressignificado está acoplado o princípio apolíneo dando uma espécie de equilíbrio.
  • 5
    Cf. MA I/HH I, 220. KSA 2, 180.
  • 6
    Eis o fragmento na integra: “Homens dogmáticos como Dante e Platão são os mais distantes e. talvez, por isso, sejam os mais atraentes: aqueles que acreditam viver em uma casa do conhecimento feita sob medida e segura. O primeiro em seu próprio, o outro na patrística cristã. Requer uma grande variedade de força e flexibilidade para se manter em um sistema incompleto com perspectivas livres e inacabadas: do que em um mundo dogmático. Leonardo da Vinci é superior a Michelangelo, Michelangelo é superior a Rafael”. (Nachlass/FP KSA 1885, 34 [25]. KSA 11. 429).
  • 7
    Cf. GT/NT 3. KSA 1. 35, s./f.
  • 8
    GT/NT 3. KSA 1. 35.
  • 9
    Faz parte do acervo da Pinacoteca Nacional de Bolonha.
  • 10
    Nietzsche faz menções a Shelley: em cartas para Elisabeth Nietzsche, do final de Novembro 1861 (KSB 1. 187) e em 22/10/1884 (KSB 6. 548), a Carl von Gersdorff: 28/09/1869 (KSB 3. 57 s./f.); em obra SE/ Co.Ext. III 3 KSA 1 . 352, JGB/BM 245. KSA 5. 187; em um póstumo Nachlass/FP 1887-1888. 11 [228]. KSA 13. 90); e ainda há evidências de leituras de dois volumes - o 28 e o 30 - Ausgewählt Dichtungen. Deutsch von Aldod Strodtmann. Hildburghausen: Verlag des Bibliographichen Instituts, 1866 - Cf. (Campioni; D’Iorio; Fornari; Orsucci; Fronterotta 2003CAMPIONI, Giuliano ; D’IORIO, Paolo; FORNARI, Maria Christina; ORSUCCI, Andrea; FRONTEROTTA, Francesco (Herausgegeben). Nietzsches persönliche Bibliothek. Supplementa Nietzscheana. Band 6. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2003., p. 557). Contudo não há vestígio de leitura das Cartas de Shelley na Itália. Contudo não há vestígio de leitura das Cartas de Shelley na Itália.
  • 11
    Cf. Schoppenhauer MVR I, § 52, cf. também o § 46.
  • 12
    Trata-se de duas passagens ilustrativas e comparativas com o sentimento que a música de Wagner proporciona ao ouvinte: “como a Caecília de Rafael longe dos ouvintes que exigem prazer ou erudição dela” WB/Co.Ext. IV, 9. KSA 1. 490; “aquela linguagem que sempre ouvimos na música de Wagner: raros momentos de esquecimento que a invadem, por assim dizer, onde a música fala consigo mesma e olha para cima, como A Caecilia de Rafael, longe dos ouvintes que exigem dela prazer ou erudição”. (Nachlass/FP 1875, 11 [42]). KSA 8, 235)
  • 13
    Faz parte do acervo do Museu do Vaticano.
  • 14
    Cf. Mateus 17:1-9; Marcos 9:2-8; Lucas 9:28-36. A transfiguração é considerada junto com o batismo, a morte, a ressurreição e a assunção, como os acontecimentos mais importante de Jesus.
  • 15
    Cf. Mateus 17:14-21; Marcos 9:14-29; Lucas 9:37-49.
  • 16
    Os três são considerados Evangelistas Sinópticos, devido os seus Evangelhos conterem uma grande quantidade de histórias em comum, na mesma sequência e, algumas vezes, utilizando exatamente as mesmas palavras e estruturas das frases em suas narrativas. Esses compartilham, portanto, do mesmo ponto de vista e estão claramente ligados entre si. Cf. The Oxford Dictionary of the Christian Church. 1989. p. 1333.
  • 17
    O tema da transfiguração, em Nietzsche, por si só já é bastante complexo e permeia toda a sua obra desde os seus escritos de juventude até os últimos, nos quais, o filósofo usa alternadamente os termos Transfiguration ou Verklärung. No § 8 de M/A, o tema ocupa um lugar de destaque, inclusive dando título ao aforismo, como veremos mais adiante. No § 3 do prólogo de FW/GC, Nietzsche diz que a arte da transfiguração é filosofia, ou seja - em sua perspectiva -, a criação estética está desde sempre vinculada à experiência espiritual, ela parece estar ligada de forma direta aos estados místicos que são considerados, por ele, como processos transfiguradores da consciência, ou seja, uma transformação espiritual, uma espécie de metanoia, sem o arrependimento cristão da conversão. Para Nietzsche, o sentimento estético potencializa a vontade de vida, o êxtase místico aumenta o desejo de viver, por isso, diz em um póstumo do período genealógico: “Imagens da vida elevada e triunfante e a sua força transfiguradora: de modo que certa perfeição seja colocada nas coisas” (Cf. Nachlass/FP 1887, 9 [6], KSA 12, 341). Nas últimas obras, sobretudo, depois da terceira dissertação de a GM/GM, o tema vem relacionado à questão dos ideais ascéticos e das asceses que são analisados respectivamente: na filosofia, em GD/CI; na arte, em WA/CW e NW/NW; na religião, em AC/AC.
  • 18
    Nietzsche liga ao apolíneo àquilo que Schiller, em sua obra A Poesia Ingênua e Sentimental (1796), definiu como ingênuo, na distinção que estabelece entre poesia ingênua e poesia sentimental, caracterizando, deste modo, respectivamente o Classicismo e o Romantismo. A poesia ingênua, grosso modo, vê o homem em intima integração com a natureza, imerso nela, a mesma forma como Nietzsche a caracteriza em o NT, “a unidade do ser humano com a natureza” (GT/NT 3. KSA 1, 37). A noção de natureza é o que sustenta essa distinção e é sempre pensada como algo que está presente no poeta ingênuo ou clássico, como se ele estivesse totalmente lançado de imediato nela; por outro lado, no poeta sentimental ou romântico, a natureza é algo que se perdeu. Na poesia sentimental, portanto, ocorre a autoconsciência da perda de algo - que é a natureza. Por isso, é definida pela nostalgia (Sehnsucht), defrontando-se com a natureza como algo perdido, como um objeto nostálgico. De modo geral, a natureza é vista pelo poeta sentimental como algo que não lhe é imediato, mas como algo que ele considera perdido, alheio e que ele quer reencontrar.
  • 19
    A pintura foi encomendada pelo Papa Júlio II em homenagem póstuma ao seu tio, Papa Sisto IV, como uma peça de altar da basílica do Monastério Beneditino de São Sisto em Placência. Cf. (Henning, 2010HENNING, Andreas. Die Sixtinische Madonna von Raffael. Berlin: Deutscher Kunstverlag, 2010.).
  • 20
    Cf. (Belting, 200, p. 50); (Carrier,. 2006CARRIER, David. Museum skepticism: a history of the display of art in public galleries. Duke University Press. 2006. , p. 106)
  • 21
    Embora haja menção à capacidade de Rafael, e também Correggio, de expressarem em suas pinturas toda força dos Evangelhos, não há menção direta a nenhuma Madona, nessa passagem de o Mundo como vontade e representação.
  • 22
    Rafael, como é amplamente propalado, é o autor de inúmeras Madonas, e reza a lenda de que com a pintura O Casamento de Maria (ou O Casamento da Virgem - o Sposalizio), considerada a primeira obra-prima do artista, então com 21 anos, ele teria selado o seu compromisso com a Sta. Virgem. Trata-se de um compromisso espiritual com a virgem, que a partir de então passa a ter um lugar especial em seu trabalho. Inclusive, quando Nietzsche menciona “a visão da futura noiva”, ele está se referindo provavelmente a esta pintura. Cf. (Thoenes. 2005THOENES, Christof. Rafael 1483-1520. Trad. Espanhola de Jose Garcia. Ed. Taschen, 2005.).
  • 23
    A pintura foi encomendada pelo Papa Júlio II, em honra do seu falecido tio, Papa Sisto IV, como uma peça-de-altar da basílica do Monastério Beneditino de São Sisto, em Placência (Cidade do norte da Itália). Na encomenda, foi exigido que o quadro devesse conter as imagens de São Sisto e Santa Bárbara (cf. Henning, 2010HENNING, Andreas. Die Sixtinische Madonna von Raffael. Berlin: Deutscher Kunstverlag, 2010.). O que não se sabia até recentemente - logo, na época de Nietzsche não se sabia - que a obra de Rafael fazia parte de uma instalação que incluía um crucifixo que hoje não há mais na basílica. Portanto, a reação expressa nos rostos do menino Jesus e da Santa Virgem era de sofrimento e de terror que se explicam pelo fato de ambos preverem a morte na cruz como um destino futuro. (cf. Prater, 1991PRATER, Andreas: Jenseits und Diesseits des Vorhanges. Bemerkungen zu Raffaels „Sixtinischer Madonna“ als religiöses Kunstwerk. In: Jahrbuch der bildenden Kunst“. N. 42, p. 117-136 1991.. p. 117-136).
  • 24
    Cf. sobre a importância do tema da “paixão pelo conhecimento” na filosofia de Nietzsche, (Brusotti, 1997BRUSOTTI, Marco. Die Leidenschaft der Erkenntnis. Philosophie und ästhetische ebensgestaltung bei Nietzsche von Morgenröthe bis Also sprach Zarathustra. Berlin/NY: Walter de Gruyter, 1997.).
  • 25
    M/A, Transfiguration. KSA 3, 21- Os que sofrem desorientados, os que sonham confusos, os que se encantam com o sobrenatural - estes são os três níveis (Grade) em que Rafael divide a humanidade...
  • 26
    M/A, Transfiguration. KSA 3, 2.
  • 27
    Sendo o § 221, “A revolução na poesia”, especificamente, dedicado à poesia e os demais dedicados à arte em geral.
  • 28
    GD/CI, Streifzüge eines Unzeitgemässen, § 8. KSA 6, 116.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2021
  • Aceito
    23 Nov 2021
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