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Nietzsche e as mulheres: ligações perigosas?

MARTON, Scarlett. . Nietzsche e as mulheres: figuras, imagens e tipos femininos. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, 223 p.

Enfrentar certos temas em chave filosófica é iniciativa arriscada. Quando a matéria está na ordem do dia e seu teor é polêmico, as expectativas do público tendem a gerar ruído, dificultando uma apreciação justa das questões em jogo. Sem a necessária ruminação das ideias, é provável que mal-entendidos venham a dominar o debate. E se existe um consenso tácito sobre a reputação de um autor em relação a isso e aquilo, seu exame se torna quase tabu.

Coragem, paciência e senso de oportunidade são aliados indispensáveis para um caso assim. A preparação da tarefa deve contar com descortino, disciplina e, sobretudo, inteligência filosófica longamente exercitada-um verdadeiro trabalho de gestação. O livro em foco reúne todas essas forças para expor, de modo acessível e otimamente argumentado, uma visão de conjunto das posições e disposições de Nietzsche a respeito das mulheres.

De saída, o estereótipo de misoginia atribuído ao filósofo é rechaçado, abrindo campo para uma recuperação minuciosa de suas inúmeras afirmações sobre as mulheres e o feminino. A estratégia, alinhada às recomendações filológicas nietzschianas, pratica a atenção aos textos e às palavras e a pulverização de blocos temáticos opacos-a mulher e o feminino, por exemplo-em rubricas específicas, alimentadas por uma contextualização exaustiva, tanto em relação à própria obra de Nietzsche quanto em relação a suas leituras, o estado da questão em seu tempo e, claro, a história da filosofia ela mesma. O procedimento permite que se reconheça a variedade de perspectivas que dão acesso ao assunto e, principalmente, a irredutibilidade de tais perspectivas a um único parti pris. Não se trata de provar ou refutar teses, mas de levar adiante determinados experimentos, retomados junto a Nietzsche, no sentido de fazê-los render o quanto podem, inclusive quando se mostram aquém da habitual perspicácia nietzschiana.

Resulta daí um quadro vivo e multifacetado. Evitando psicologizar ou sociologizar o pensamento, restituem-se lhe as inflexões, os trechos de galope e os pontos de parada, os lances felizes e infelizes. Mesmo as opiniões mais estridentes são tomadas em consideração no âmbito do programa de pesquisa que as organiza, favorecendo sua apropriação segundo o melhor espírito de lealdade filosófica. Não se constrange os livros a dizerem mais ou menos do que dizem e com isso as leituras estabelecidas tornam-se altamente plausíveis.

A análise se desdobra nas seguintes instâncias, formuladas em fina sintonia com a obra: estudo de imagens de mulheres e seus respectivos papéis, tipologia das figuras femininas, personificações femininas de abstrações especulativas, posicionamento acerca da emancipação feminina e combate às intelectuais. Cada uma dessas divisões se abre ao diálogo com aspectos relevantes da “filosofia geral” do criador de Zaratustra.

Assim, por exemplo, o questionamento dos compromissos metafísicos essencialistas do mainstream da filosofia ocidental encontra ocasião para ser explorado a quente, a partir da verificação de sua incidência sobre as instâncias referidas. Pedra de toque da investigação, a dessubstancialização da prática filosófica e de seus móveis funciona à perfeição, mesmo quando contra Nietzsche. Movimentando-se com total desenvoltura no interior do corpus nietzschiano, a autora avança sem hesitação tanto em meio aos lugares comuns como pelos textos de decifração mais difícil. Seu painel consegue explicitar e debater na íntegra os proferimentos do pensador sobre as mulheres, enquanto faculta uma autêntica iniciação ao seu pensamento, ao testar suas linhas de força exatamente sob a luz do tema “Nietzsche e as mulheres”.

Não cabe agora voltar ao livro e parafrasear o que nele aparece de forma excelente. Apenas insinuo, a seguir, algumas das peripécias do pensamento trabalhado por Marton. Os cenários variam; quase nada dos escritos juvenis entra em conta e a reflexão decola a partir da mobilização das obras do chamado período intermediário. Distinguindo moralistas de moralizadores, estipulando coordenadas claras para a circulação entre eles, como a opção por Voltaire e contra Rousseau, chamando à baila os espíritos livres, a natureza, a naturalização e a idealização, sem perder de vista a constituição psicofisiológica dos bichos que somos, as figuras, imagens e tipos femininos vão emergindo conforme a ordem firmada de início. Tendo o optimum de condições para a formação filosófica como fio de prumo, obsessão nietzschiana em sua campanha contra a decadência da civilização, as razões dos textos são esquadrinhadas, mostrando causas negligenciadas a animar posicionamentos discutíveis. Bem-vinda esta recuperação de nexos nem sempre aparentes entre as razões de um autor-situação frequente na lida com os escritos de Nietzsche. Se o leitor é selecionado pelos livros, eis um caso exemplar de afinidade.

Adiante nos reencontramos com o canto de Zaratustra, em cujo andamento a autora verifica um “descompasso entre personificações femininas de entidades abstratas [solidão, felicidade, sabedoria, vida, eternidade] e as mulheres humanas, demasiado humanas [mães, solteironas, esposas, concubinas, artistas, atrizes, feministas, escritoras e intelectuais]” (Marton, 2022MARTON, S. Nietzsche e as mulheres. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 103). Confidente e cúmplice da sabedoria, par de dança da vida, amante da eternidade, o personagem e suas queridas parecem muito distantes daquilo que certas máximas e aforismos dão a esperar sobre a situação das mulheres na modernidade. Esse descompasso ilumina as ambivalências de Nietzsche em relação às mulheres, achado central da interpretação. Cabe sublinhar a fidelidade de Marton ao que conhecemos de sua obra, mantendo espaço para a leitura do eterno retorno em sede cosmológica, e saudar o aprofundamento de algumas suspeitas antes apenas ventiladas.

Mudando de bastidor para os escritos finais, avulta-se a crítica nietzschiana à modernidade e às ideias modernas-em extrato, progresso, utilidade e felicidade para todos em medidas iguais. Cabe, então, conjecturar se a doutrina igualitarista preconizada pela moral dessa época não seria efeito do ressentimento contra toda hierarquia. A prioridade dada aos elementos axiológicos da questão exige de Nietzsche a consolidação de uma perspectiva de ataque inédita, grande conquista de sua filosofia: a pesquisa genealógica. Graças a ela, pode-se perseguir a proveniência das avaliações que emprestam valor às agências humanas. A instrutiva confrontação entre Nietzsche e Stuart Mill evidencia as insuficiências do esquema utilitarista: tomar prazer e dor, simples sintomas, como critério de avaliação, manter o gregarismo como fundamento último para a instituição de qualquer tábua de valores, pensar o altruísmo e o egoísmo esvaziados de seus elementos históricos. Morais e religiões não são entendidas como meros reflexos da ordem social, mas como fatores produtivos das posições que comunidades, grupos e indivíduos adotam em relação à sua existência.

Se a moderna definição de “gênero” aspira à universalidade segundo o repertório aludido, e se a emancipação feminina se fia nela, existe o risco, como concordam Nietzsche e Marton, de uma indexação dogmática da luta política motivada pelo ressentimento. O dinamismo inerente aos processos de configuração pulsional não deve depender de convicções que se pretendem perenes-e se tal acontece, importa, de novo, suspeitar, perguntando se foi “a fome ou a abundância que aí se fez criadora?” (FW/GC, 370, KSA 3.619). Seja como for, independentemente de tais intuições, a imagem da mulher que aparece nesta altura é “das mais tradicionais” (Marton, 2022MARTON, S. Nietzsche e as mulheres. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 151). Feitas as contas, Marton conclui que ambivalências dão lugar a afirmações inequívocas, testemunhos de uma visão conservadora do processo de emancipação feminina. Num balanço equilibrado, fica constatada a tensão: à crítica das ideias modernas não se articula, em Nietzsche, uma saída libertadora, mas tão somente a reiteração da prática da exclusão feminina.

Retomadas na conclusão, a prioridade metodológica do ângulo filosófico e a cautela quanto ao uso dos componentes biográficos e sociológicos correlatos aos problemas estudados provam seu acerto, conferindo ao livro uma notável ausência de partidarismo. Operando em paralelo ao campo dos estudos feministas, a montagem triunfa ao estipular condições filosóficas rigorosas para a apreciação das contribuições nietzschianas relativas às discussões ali em curso. Como foi notado alhures, dispomos agora de parâmetros inteiramente novos para o enquadramento dessa interlocução.

Para arrematar, uma dúvida. Ao notar o contraste entre mulheres que existem apenas na imaginação e as mulheres em carne e osso, talvez convenha meditar sobre este “apenas”. Alinhado a Paul Veyne, admito o sentido constitutivo da imaginação-não “a faculdade psicológica e historicamente conhecida por esse nome”, mas aquela “histórico-transcendental” (Veyne, 1984VEYNE, P. Acreditavam os gregos em seus mitos? São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 10) que produz efeitos concretos incontornáveis em nossas formas de viver. Ao entretecer vida, sabedoria, eternidade, verdade e feminino, a par de recusar determinadas mulheres encarnadas, quem sabe Nietzsche não terá oferecido imagens sublimes de realidades que finalmente poderão ser concebidas em moldes femininos? Arauto da morte de Deus, não será ele, também, em relação ao futuro da cultura, anunciador do tempo das deusas?

Referências

  • NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), 15 vols. (Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari), Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1988.
  • MARTON, S. Nietzsche e as mulheres Belo Horizonte: Autêntica, 2022.
  • VEYNE, P. Acreditavam os gregos em seus mitos? São Paulo: Brasiliense, 1984.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2002
  • Aceito
    15 Jun 2022
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