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Nietzsche, herdeiro de Demócrito: nas pegadas do materialismo inaugural* * Tradução de Vânia Dutra de Azeredo.

Nietzsche, Heir of Democritus: Over the Waves of an Inaugural Materialism

Resumo:

O presente artigo objetiva revisar os principais aforismos em que Nietzsche aborda o pensamento de Demócrito, visando a desvendar a importância que o materialismo inaugural democratiano exerce na reflexão nietzschiana. Para atingir esse propósito, realiza-se uma análise voltada tanto para o que Nietzsche destaca como acerto quanto o que ele aponta como falhas no materialismo atomístico de Demócrito. A partir da avaliação dos comentários de Nietzsche a esse respeito, será possível avaliar o peso da teoria de Demócrito na abordagem nietzschiana.

Palavras-Chave:
Nietzsche; Demócrito; materialismo; atomismo

Abstract:

This article intends to review the main aphorisms in which Nietzsche addresses the thoughts of Democritus. The purpose is to unravel the importance that the inaugural Democritean materialism exerts in Nietzsche's reflection. To achieve this purpose, an analysis is carried out that addresses not only the successes that Nietzsche highlights in Democritus's atomistic materialism, but also the flaws that he finds in his approach. From the evaluation of Nietzsche's comments in this regard, it will be possible to establish a balance of the weight of Democritus' theory in the Nietzschean approach.

Keywords:
Nietzsche; Democritus; materialism; atomism

Aventurar-se a comentar a relação de Nietzsche com qualquer outro filósofo resulta sempre em uma tarefa de enorme complexidade, haja vista que, via de regra, ele adota uma postura ambivalente no trato dos pensadores, documentada em uma mistura de aforismos ora a favor ora contra o autor em questão. Tal é o caso de Demócrito de Abdera, assim como de grande parte dos pensadores gregos que Nietzsche conhecia muito bem devido à sua formação de filólogo clássico. A fim de elucidar as ambiguidades em torno da figura de Demócrito, partiremos do pressuposto de que todas as contradições que encontramos se dão somente em um nível aparente, pois, depois de uma leitura cuidadosa, os equívocos que em princípio acreditávamos encontrar mostrar-se-ão como sendo críticas ou elogios de diferentes aspectos do pensamento democratiano.

Em linhas gerais, podemos afirmar que Nietzsche percebe Demócrito como um mestre, pois as menções a ele aparecem ao lado de outros nomes da Antiguidade grega, como Heráclito ou Parmênides, como um dos "grandes gregos" de quem recebeu educação1 1 “O conhecimento dos grandes gregos me educou: em Heráclito, Empédocles, Parmênides, Anaxágoras, Demócrito há mais para venerar, eles são mais completos” (NF/FP 1884, 26 [3], KSA 11. 151). F. NIETZSCHE. Fragmentos Póstumos. Vol. III. Ed. Diego Sánchez Meca Et. Al. Madrid: Tecnos, 2010. As demais obras de Nietzsche tratadas, com exceção de sua correspondência, pertencem ao mesmo editor, de modo que doravante serão indicadas apenas como DSM, Et. Al. . Essa consideração se enraíza em dois pilares do pensamento de Demócrito que Nietzsche considera dignos de louvor. Em primeiro lugar, Nietzsche celebra o materialismo de Demócrito por ele remeter tudo o que existe ao plano físico, entendendo que qualquer aspecto da realidade que se queira explicar tem de se assentar em uma dimensão estritamente material. Em segundo lugar, o filósofo de Röcken também aprova a aplicabilidade da filosofia democratiana, enquanto o leva a aceitar única e exclusivamente aquele discurso que visa alcançar a felicidade do homem.

Partindo deste duplo enfoque, Nietzsche irá repensar os ensinamentos deste mestre com o "espírito crítico" que o caracteriza, ou seja, com a intenção de assimilar o que nele considera como valioso e de criticar os aspectos que não o são, "de uma forma diversa daquela que seria de esperar com base em sua procedência, seu ambiente, posição social e função, ou mesmo com base nas opiniões predominantes em sua época” (MA I/HH I 225, Et. Al., KSA 2.189). Nesse sentido, ele escreve ao amigo Erwin Rohde em 9 de dezembro de 1868, afirmando ser necessário reconstruir completamente a figura de Demócrito, de quem tanto gostava, devido à injustiça cometida pelos historiadores da filosofia que o trataram a partir um enfoque judaico-cristão tradicional. (BVN/CO 1868, 604, KSB 2. 350)2 2 F. NIETZSCHE. Correspondencia. Vol. I. Junio 1850 - Abril 1869. Ed. Luis Enrique de Santiago Guervós. Madrid: Trotta, 2012. . Nesta reconstrução, em sintonia com o apreço que Nietzsche expressamente professa, vamos encontrar sobretudo uma celebração desses dois elementos basilares do pensamento de Demócrito, obscurecidos por algumas críticas pontuais.

No que concerne à localização dos textos em que Nietzsche aborda diretamente o pensamento de Demócrito, convém assinalar, como costuma acontecer quando ele trata de autores ou de temas específicos, que as palavras que a eles dedica se encontram dispersas em diferentes aforismos presentes no conjunto da obra, incluindo tanto a que foi publicada por ele, quanto os fragmentos póstumos deixados em seus cadernos. Cronologicamente, tais referências encontram-se desde os escritos de juventude até os últimos ensaios maduros de Nietzsche, confirmando que ele não apenas admirava o filósofo grego, mas que o mantinha em mente ao longo de sua vida lúcida. Tal ideia é reforçada pela posição privilegiada conferida por Nietzsche a Demócrito na relação com a maioria dos pensadores clássicos, como monstra o fato de que no verão de 1867, aos 23 anos, ele planejava dedicar-lhe um escrito inteiro intitulado "Sobre os escritos apócrifos de Demócrito”; com o escrito, participaria de um volume coletivo que não se concretizou. Apesar dessas alusões constantes, a frequência com que Demócrito é citado vai perdendo a intensidade com o passar dos anos. Ainda que, geralmente, os gregos estejam mais presentes no período inicial da obra nietzschiana -já que os estudou de modo aprofundado durante os anos de formação acadêmica como filólogo clássico-, é possível atribuir esse enfraquecimento aos inconvenientes que Nietzsche vai detectando e diagnosticando na filosofia de Demócrito, para além das virtudes que ele não deixa de reconhecer.

Quanto ao primeiro aspecto que Nietzsche admira no filósofo de Abdera, isto é, o materialismo herdado de seu mestre Leucipo, pode ser caracterizado como aquela teoria capaz de unificar o paradoxo parmenidiano que postula a unidade do ser devido à impossibilidade da criação ab nihilo3 3 Trata-se da negação tanto do nascimento quanto da destruição do ser pela impossibilidade lógica de admitir que o ser vem do nada, ou que o ser se torna nada. Admitir a inviabilidade de “o que não é” tornar-se “ser”, equivale a negar consistentemente que “o que é” torna-se “não ser”. Por isso, a impossibilidade da criação ab nihilo reúne de uma vez por todas a unidade do ser pela inviabilidade tanto do nascimento quanto da destruição do que é. com a pluralidade de seres que captamos pelos sentidos. Com efeito, afastando-se de Parmênides na admissão da existência do vazio, quer dizer, do não-ser, ele consegue resolver a incongruência entre lógica e percepção. Para tanto, ele afirma que não há mais elementos do que "o cheio e o vazio - chamando a um de ser e ao outro de não ser -" (Aristóteles, Metafísica, 985b4ARISTÓTELES,-. Metafísica. Trad. Tomás Calvo Martínez. Madrid: Gredos, 1994.). O pleno é constituído por unidades indivisíveis e invisíveis, os átomos, que mantêm a unidade do ser enquanto definido como idênticos em qualidades internas, diferindo apenas na forma e no tamanho. O vácuo permite que esses átomos homogêneos viajem pelo espaço colidindo uns com os outros e, consequentemente, produzindo realidades mutáveis ​​e plurais, pois em cada um desses choques atômicos "sua combinação produz a geração e a dissolução, a corrupção" (Aristóteles, Sobre a geração e a corrupção, 325a23). Com isso, os atomistas conseguem demonstrar que “a pluralidade do ser com características idênticas ao uno parmenídeo é perfeitamente possível” (Bernabé, 2008VV.AA. Fragmentos presocráticos. De Tales a Demócrito. Ed., trad., y notas de Alberto Bernabé. Madrid: Alianza, 2008. , p. 227).

Nietzsche tem presente os ensinamentos de Demócrito sobre o atomismo e a resolução por ele proposta para o problema de Parmênides e elogia especialmente o fato de ele resolver o absurdo do ser, ao mesmo tempo, mutável e imutável, formulando uma teoria que resolve o oxímoro da maneira mais simples possível. Parmênides começa com o abstrato, com as categorias de ser e não-ser, para depois descer ao mundo e comprovar que não se encaixam. O atomismo realiza o movimento contrário, pois parte do mundo em que a mudança já está ocorrendo, e a partir dessa observação procura reconstruir uma teoria que se coadune com tal fato:

Demócrito: A máxima simplificação possível das hipóteses 1) Existe o movimento, portanto, existe o espaço vazio, portanto, o não-ser. O pensamento é um movimento. 2) Se existe um ente, ele deve ser indivisível, ou seja, absolutamente pleno. A divisão só pode ser explicada pelos espaços vazios, pelos poros. Uma coisa completamente porosa é apenas o não-ser (NF/FP 1872-1873, 23 [39], Trd. DSM, Et. Al., KSA 7.556).

Para além da façanha de resolver o problema de Parmênides, Nietzsche considera essa explicação interessante por reduzir o âmbito do real à dimensão corpórea, permitindo não recorrer a mais nada do que a matéria para explicar a completude de fenômenos existentes no universo, reduzindo seu funcionamento a um mero mecanismo físico, no qual cumpre esperar necessariamente o mesmo efeito de uma mesma colisão de átomos. Daí a afirmação de Leucipo segundo a qual "nenhuma coisa se engendra ao acaso, mas todas (a partir) de razão e por necessidade" (Leucipo, Fragmento 2, 1996LEUCIPO,-. “Fragmentos”. In: Pré-Socráticos. Coleção Os Pensadores. tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural , 1996, pp. 243-253., p 244)4 4 Com relação aos fragmentos dos pré-socráticos, sempre que possível, recorremos à tradução de José Cavalcante de Souza e Anna L. A. de A. Prado contante no volume Pré-Socráticos da Coleção Os pensadores, conforme consta nas referencias. (N.T.). . Assim, se fôssemos capazes de conhecer toda a cadeia causal física, estaríamos em condições de explicar todos os fenômenos do universo, pois todos eles provêm de um choque atômico específico sujeito às mesmas regras físicas que produzem o agrupamento e a desagregação de átomos em cada colisão.

Na ótica de Nietzsche, duas consequências importantes decorrem dessa consideração da física. Em primeiro lugar, limitar a explicação do mundo ao âmbito da corporeidade permite, pela primeira vez, abandonar radicalmente o plano mitológico, circunscrevendo a explicação ao plano científico ou racional. Dessa forma, tem lugar a culminação do processo que vai do mito ao logos, ou seja, da busca de respostas sobre a origem e o funcionamento do cosmos em elementos fantásticos e divinos para a busca de respostas que se encontram no plano físico-mecânico. Nietzsche elogia esse passo de Demócrito rumo ao conhecimento afirmando que:

ele condenou qualquer intromissão de um mundo mítico [tornando-se assim] o primeiro entre os gregos a alcançar o caráter científico, que consiste na tentativa de explicar uma infinidade de fenômenos de forma unificada sem recorrer, em momentos difíceis, a um deus ex machina (P I 1867-1868 6, 57 [48]/OC I, p. 256, Trd. DSM, Et. Al., KGW I, 4. 413).

Graças a essa nova forma de pensar, Demócrito não necessita mais da intervenção do divino, pois lhe é possível reduzir todo o movimento do universo a uma cadeia causal, puramente mecânica, que não necessita de um deus para continuar funcionando. Com isso, o indivíduo torna-se protagonista de sua própria existência e não mero sujeito passivo à mercê da vontade caprichosa dos deuses. Trata-se, portanto, de que a pessoa se dê por "feliz com o mundo dado" (P I 1867-1868 6, 57 [26]/ OC I, p. 248 Trd. DSM, Et. Al., KGW I, 4. 394), quer dizer, que aceite as condições que lhe foram dadas e nelas prospere sem considerar que sua vida possa estar exposta a misteriosas forças supraterrestres.

Essa forma de explicar o funcionamento do mundo rendeu-lhe o título de primeiro racionalista da história (P I 1867-1868 6, 57 [50] ]/ OC I, p. 258, Trd. DSM, Et. Al., KGW I, 4. 416), compreendendo tal posição como a de quem só se apega à matéria e à lógica de causa e efeito ao elaborar uma explicação, mas não se trata da busca enquanto proposição de uma racionalidade como sentido último do mundo, pois para "Demócrito o mundo não é racional, nem dotado de medida e de beleza, mas apenas de necessidade” (NF/FP 1875, 6 [50], Trd. DSM, Et. Al. KSA 8.119). A perspectiva dele se baseia em um materialismo puro, no sentido de que "o mundo em seu conjunto se agita, completamente desprovido de razão ou de alguma tendência [de tal modo que] todos os deuses e mitos [resultam] inúteis" (NF/FP 1875, 6 [21], Trd. DSM, Et. Al., KSA 8.106). Assim, o filósofo de Abdera é racional na medida em que ele recorre à razão aplicada à matéria para explicar a realidade, mas o mundo que descreve é ​​irracional, já que não obedece a nenhuma causa que explique o porquê de ser de um modo ou de outro, para além da cadeia causal que o choque atômico gera à margem da vontade divina.

Ao atribuir ao mundo um estar desprovido de razão, a posição de Demócrito o distancia completamente não só dos deuses e dos mitos enquanto explicam as causas do mundo a partir de uma visão concreta relacionada à divindade, mas também dos autores que procuram um sentido último do mundo a partir de uma posição metafísica, ou seja, de uma formulação sobre o ser que visa a descobrir seus fundamentos e fixá-los por meio do discurso, ou por meio de sua sujeição sistemática a estruturas fechadas. Com efeito, para Demócrito, o mundo não responde a uma categorização abstrata formulável através do discurso, como seria o Mundo das Ideias platônico, onde habitam as ideias imutáveis ​​do Bem, da Beleza, da Unidade, etc., através das quais, em teoria, nosso mundo é regido, participando imperfeitamente delas; senão que, independentemente de entendermos ou não, de se adequar melhor ou pior em relação às nossas categorias e conceitos, o mundo continua sendo como é. Desse modo, a realidade, para Demócrito, não é regida nem por deuses e nem por ideais, razão pela qual ele se distancia, simultaneamente, das abordagens que se baseiam em um desses dois aspectos que, para Nietzsche, fazem parte de um mesmo movimento: o de tentar subordinar a realidade a algum tipo de princípio orientador que a organize e lhe dê sentido, seja pelo recurso à teologia seja pelo recurso à metafísica.

O que Demócrito afirmava, então, é que não se deve misturar mito com ciência, como fazem os metafísicos ao introduzir no mundo princípios orientadores que lembram as vontades divinas, do mesmo modo como também faz Sócrates, do ponto de vista de Nietzsche, ao pretender reduzir a realidade a um discurso lógico, fazendo do mundo um ente mumificado em um esquematismo lógico. Com efeito, a partir dessa assimilação da proposta socrática, a realidade obedece às definições que fazemos dela, de tal modo que estas atuam como um precedente das ideias platônicas, com a ressalva de que não lhes é dada realidade como entes existentes em um mundo para além do físico, mas sim como princípios classificatórios abstratos de nosso mundo que, paradoxalmente, acabam por abrigar mais poder do que aquilo que nos é apresentado. Dessa forma, a partir da leitura de Sócrates, alguém que não consegue definir bravura, por exemplo, não tem nenhum critério sobre o que ela seja, nem mesmo assumindo que tenha demonstrado sua coragem no campo de batalha. Tal é o caso exposo no Laques, em que, após terem falhado na tentativa de dar uma definição de bravura, os interlocutores são desqualificados como especialistas na matéria, embora já tenham demonstrado essa qualidade durante a guerra.

Como Nietzsche explica no escrito preparatório Sócrates e a tragédia, com o socratismo o conhecimento confunde-se com o esgotamento da realidade em explicações lógico-conceituais, pois para esta forma de pensamento “nada se sabe que não possa ser expresso e do qual outro não possa ser convencido” (ST/OC I, p. 452, Trd. DSM, Et. Al.). O fato de ele aceitar apenas explicações discursivas sobre o mundo e rejeitar tudo o que não pode reduzir a conceitos fundamenta seu pensamento no princípio de que "tudo tem que ser consciente para ser bom". (ST/OC I, p. 451, Trd . DSM, Et. Al.). Com isto, a realidade que nos é apresentada está sujeita à adaptabilidade, a um conceito que a antecede, no qual se introduz um toque de irracionalidade, uma vez que se rejeita o mais óbvio, isto é, o que nos é apresentado. Assim, descobrimos que o conceito, a ferramenta, que deveria estar no final da cadeia lógica para explicar a realidade, prevalece, deixando-nos órfãos de teorias que respeitam aquilo mesmo que queríamos conhecer no início. Para Nietzsche, o filósofo de Abdera livrou-se de cair nessa contradição, pois “Demócrito, ao contrário de Sócrates, sempre refutou tais subterfúgios [irracionais], aderindo com rigor à uma explicação puramente racional” (Stiegler, 2008STIEGLER, B. “El joven Nietzsche y la ciencia: el caso de Demócrito”. En Estudios Nietzsche, n.8, pp. 119-131, 2008., p. 127).

Graças a essa nova abordagem, Demócrito é capaz de servir-se das teorias disponíveis e depurá-las do irracionalismo. Em uma de suas notas, Nietzsche ilustra esse processo com a crítica que Demócrito faz com seu atomismo ao pensamento de Anaxágoras, pois, embora inclua seu conceito de sperma, como um conjunto de partículas elementares e iguais de que tudo é composto, ele rejeita o nous. Dessa forma, ele mantém essas unidades como átomos que compõem toda a materialidade, mas rejeita o nous como princípio orientador que os organiza, limitando, com isso, sua interação ao puro mecanicismo. Para Nietzsche, trata-se de um passo decisivo na passagem do mito ao logos, ou seja, da explicação fabulosa da natureza à explicação racional dela, pois respeita o princípio da lei da economia, o que reduz as chances de introduzir arbitrariedade ao aderir à explicação mais simples disponível:

[Em Demócrito encontra-se uma] renúncia contínua de acordo com o mencionado espírito da ciência natural, a lei da economia aplicada à explicação da natureza [:] a hipótese que explica o mundo existente, com o mínimo dispêndio de meios e de pressupostos, deve ter preferência: pois nela se encontra o menor grau de arbitrariedade […]. Se houvesse duas hipóteses que explicassem o mundo, então seria necessário examinar rigorosamente qual das duas satisfaz melhor esse requisito da economia. […] fazendo uso das forças mais simples e conhecidas, sobretudo da mecânica. (NF/FP 1872-1873, 23 [30], Trd. DSM, Et. Al, KSA 7.551).

Essa atitude antiteológica e antimetafísica gera o ódio daqueles que recorrem a um princípio orientador para explicar o mundo, ou seja, a algum tipo de "ideia superior" que organiza a existência, seja através de deuses, de mitos ou de conceitos abstratos. Ganha-se, certamente, a antipatia do platonismo e do cristianismo, isto é, dos dois movimentos que tomaram conta da esfera do pensamento ocidental por mais de dois milênios:

Raramente, um escritor significativo sofreu ataques tão múltiplos e por razões tão diversas quanto Demócrito: teólogos e metafísicos lançaram sobre ele toda a fúria visceral contra o materialismo; o divino Platão considerou seus escritos perigosos a ponto de ter pensado em destruí-los em um particular auto-da-fé, dissuadindo-lhe a ideia de que já era demasiado tarde; que o veneno já havia se estendido em demasia. Mais tarde, os obscurantistas da Antiguidade vingaram-se dele, atribuindo-lhe escritos mágicos e alquímicos, dando, assim, ao pai de todas as tendências ilustradas e racionalistas a fama de um grande mago. Foi o cristianismo emergente que finalmente conseguiu colocar em prática o desejo de Platão: em uma época anticósmica, os escritos de Demócrito, como os de Epicuro, devem ter aparecido como a própria personificação do paganismo. (MP IX, 1867- 1868, 2, 59 [1], OC I, p. 292, Trd. DSM, Et. Al., KGW I, 4. 504 e 505)

Com efeito, para qualquer abordagem teórica que funde seus princípios em um plano desvinculado da materialidade, como ocorre com as Ideias platônicas e com o Deus cristão, a aposta de Demócrito aparece como a própria refutação de seus próprios rudimentos, pois o materialismo, com sua base mecanicista, torna impossível aceitar um princípio orientador do cosmos para além da matéria.

De fato, para qualquer abordagem teórica que baseie seus princípios em um plano desconectado da materialidade, como ocorre com ideias platônicas e com o Deus cristão, o compromisso de Demócrito aparece como a própria refutação de suas noções basilares, uma vez que o materialismo, com sua base mecanista, torna impossível aceitar um princípio orientador do cosmos para além da matéria.

Contudo, apesar dos elogios dedicados ao pensamento democratiano, Nietzsche também reconhece os limites e as contradições em que essa teoria incorre. O atomismo defendido por este autor sustenta a existência de unidades de ser idênticas em composição - os átomos - embora variáveis ​​em forma e tamanho. Em última instância, essas unidades participam em algum grau do plano metafísico, pois no fundo trata-se novamente de ideias fixas e imutáveis ​​que se aplicam à realidade, ao invés de considerar de modo contrário, isto é, como instrumentos ou ferramentas de nossa razão para aplicar ao mundo uma lógica que jamais poderemos ter certeza que existe. Assim, do mesmo modo que os demais pensadores gregos, ele pressupõe uma unidade no ser, ainda que, no seu caso, esteja baseada na pura materialidade. Desse modo, acaba cometendo o mesmo erro de Parmênides e da escola eleática:

O erro do ser, tal como foi formulado, por exemplo, pelos eleatas: tem a seu favor, de fato, cada palavra, cada frase que pronunciamos! - Mas também os adversários dos Eleatas sucumbiram à sedução do seu conceito de ser: Demócrito, entre outros, quando inventou o seu átomo... A "razão" na linguagem: oh, que velha mulher enganadora! Receio que não nos livremos de Deus porque continuamos a acreditar na gramática… (GD/CI, A “razão na filosofia” 5, Trd. DSM, Et. Al., KSA 6.77-79).

Como pode ser visto na citação anterior, Nietzsche atribui o erro à razão, especificamente, à razão na linguagem que introduz a crença "no eu como substância, e projeta sobre todas as coisas a crença no eu-substância, [criando], desta forma, sobretudo o conceito 'coisa'” (GD/CI, A “razão na filosofia” 5, Trd. DSM, Et. Al., KSA 6.77-79). É esse preconceito que "nos obriga a estabelecer a unidade, a identidade, a permanência, a substância, a causa, a coisidade [e] o ser, [até que] nos vejamos de alguma forma enredados nas malhas do erro" (GD/CI, La "a razão na filosofia " 5, Trd. DSM, Et. Al., KSA 6.77-79), pois desde a unidade do sujeito cognoscente formulamos objetos igualmente unitários. Mais uma vez, acabamos por trair a realidade em que nos encontramos, pois ao invés de partir da mutação, da mudança e do devir, e culpar os preconceitos da razão pela unidade e pela permanência com que formulamos nossos conceitos, parte-se de um discurso conceitual, ainda que se baseie na materialidade dos átomos, nos quais procura-se enquadrar a realidade mutável; desta forma, continua sendo metafísica porque, embora se prenda à matéria, não parte da observação, mas de um plano lógico-abstrato.

Além do envolvimento disfarçado em princípios metafísicos, o atomismo de Demócrito também toma partido na dualidade realismo/idealismo, que Nietzsche se esforçou em superar. Embora o átomo obedeça a princípios materiais, o filósofo de Abdera não considera que possamos conhecer essa realidade feita de átomos, já que, desde nosso ponto de vista teremos apenas uma versão limitada à nossa percepção como sujeitos ao acessar o mundo. Assim, ele afirma que "Nós, porém, nada de preciso apreendemos, mas em mudança, segundo a disposição do corpo e das coisas que nele penetram e chocam” (Demócrito, Fragmento 9, 1996DEMÓCRITO DE ABDERA. “Fragmentos”. In: Pré-Socráticos. Coleção Os Pensadores. tradução de Anna L. A. de A. Prado. São Paulo: Abril Cultural, 1996, pp.259-308., p. 266). Essa perspectiva o separa de seu discípulo Epicuro, para quem sempre podemos acessar a realidade, ou, em termos kantianos, para quem a coisa em si sempre será cognoscível para nós. Como afirma Nina Power, “é essa inserção da percepção humana no esquema das coisas que leva Nietzsche a nos lembrar de não ignorar o ‘idealista’ em Demócrito e separar seu materialismo de um realismo não problemático”. (Power, 2001POWER, N. “On the Nature of Things: Nietzsche and Democritus”. En Pli, n.12, pp. 118-130, 2001 (La traducción es propia)., p. .125). Como o próprio Nietzsche nos adverte: “seu princípio fundamental é 'a coisa em si é incognoscível', e isso o separa para sempre de todos os realistas” (P I 1867-1868 4, 52 [30]/ OC I, p. 241, Trd. DSM, Et. Al, KGW I, 4. 221) Essa separação pode ser observada especialmente em sua atitude em relação à informação que nos chega através da sensibilidade, pois enquanto “para Epicuro, os sentidos nos ensinam inteiramente a verdade. [...] Esta não era a opinião de Demócrito. Epicuro evolui do atomismo para o realismo. De acordo com Demócrito, não conhecemos de nenhum modo a verdade” (P I 1867-1868 4, 52 [30]/ OC I, p. 242, Trd. DSM, Et. Al., KGW I, 4. 222).

A abordagem de Nietzsche desse problema é muito diferente: nem podemos afirmar que conhecemos o númeno e nem podemos afirmar que conhecemos o fenômeno, por isso, é melhor não se pronunciar sobre isto. De fato, ao postular que a realidade, ou a própria coisa, é inapreensível, mas o fenômeno, ou seja, a forma como ela nos aparece, o é, está sendo assumido que, embora não possamos conhecer a realidade sem um filtro, nós podemos nos conhecer como sujeitos cognoscentes, como se o eu fosse uma entidade homogênea e universal à qual os mesmos fenômenos são apresentados. Para Nietzsche, esse idealismo cai em uma nova forma de dualidade semelhante à platônica ou à cristã, já que aparece novamente uma diferenciação entre dois mundos: neste caso o mundo real e sua representação mediada pelo sujeito racional. Da mesma forma, dá-se preferência àquela versão idealizada da realidade, mesmo que não seja a que existe, com base em alguns ideais racionais que emanam do “eu”. No caso do idealismo, o mundo que vai se apresentar como eterno e imutável é o da razão subjetiva, ou seja, não é mais uma esfera transcendente como em Platão ou no cristianismo, mas sim um mundo além do real em um sentido conceitual.

A opção oposta, ou seja, a realista, também não se coaduna muito com o pensamento de Nietzsche, pois obedece novamente ao intento de homogeneizar a forma de interpretar a realidade, o que acaba oprimindo a pluralidade de indivíduos com múltiplas perspectivas e sensibilidades. Nosso filósofo de Röcken, ao contrário, propõe deixar para trás qualquer indício de dualidade, superar a fragmentação do dualismo que divide o mundo entre aparência e realidade, e ir além de posições idealistas e realistas. Não podemos admitir a existência da coisa em si e nem podemos negá-la. Tampouco podemos supor que o mesmo fenômeno apareça a todos os sujeitos cognoscentes a partir da mesma coisa em si, pois além dos valores comunitários que podemos encontrar: unidade, pluralidade, causa e efeito, etc., é a intencionalidade de cada indivíduo que faz a diferença ao avaliar um mesmo aspecto da realidade. Em última instância, não há sequer um “fenômeno” que possamos acessar de modo inequívoco, pois afirmar que tudo é subjetivo já é “interpretação; [já que] o 'sujeito' não é algo dado, mas algo inventado e acrescentado, algo colocado por detrás (NF/FP 1886-1887, 7 [60], Trd. DSM, Et. Al., KSA 12.305). Assim, pode ser que nossa experiência do mundo seja realista, quer dizer, coincida com a própria coisa; mas pode não ser e ser idealista, ou o mesmo, coincidir com o fenômeno. Qualquer afirmação que nos coloque em um dos campos estará, por definição, ultrapassando os limites de nossas possibilidades de conhecimento, pois jamais poderemos sair de nós mesmos para verificar se nossa forma de acessar o mundo é objetiva e universal ou ao contrário, subjetiva e particular.

A partir desta impossibilidade de acesso ao conhecimento de uma forma precisa ou absoluta, faz sentido o famoso provérbio nietzschiano que nos adverte de que “não há fatos, apenas interpretações” (NF/FP 1886-1887, 7 [60], Trd. DSM), et al. KSA 12.305). Tudo o que teorizamos sobre a realidade, inclusive sobre nós mesmos, não pode ser mais do que uma tentativa de conhecimento que jamais poderá resolver a problemática concernente ao que é real e ao que é subjetivo em nossas formulações. Por isso, os critérios que devemos seguir para validar nosso conhecimento terão que situar-se para além da uniformidade que nos daria acesso homogêneo aos fatos, seja como fenômenos, seja como númenos.

Para o filósofo de Röcken, esse critério envolve conferir a toda interpretação uma avaliação idiossincrática codificada em valores de fortalecimento da existência. Assim, uma teoria tem valor na medida em que nos faz dizer sim à vida, ou, dito de outra forma, na medida em que nos permite passar na prova do "eterno retorno do mesmo", através da qual aceitaríamos viver novamente mesmo sabendo que cada um dos instantes de nossa existência se repetiria da mesma maneira. No caso de nossa hipótese carecer de vitalidade, Nietzsche nos pergunta: então, "como terias que amar a ti e à vida para não querer nada mais do que esta última confirmação, este último selo?" (FW/GC 341, Trd. DSM, Et. Al. KSA 3.570). Somente no desejo de repetir fielmente nossa trajetória vital que teremos a confirmação de que nossa interpretação teórica da existência é a adequada para nós.

Apesar dos traços de idealismo que Nietzsche detecta na teoria de Demócrito, ele continua a achá-lo digno de admiração enquanto integrante de um tipo de homem grego emergente, com olhar sem preconceitos, tipo de homem esse que se perde com a irrupção do socratismo. Como ele mesmo diagnosticou, "o aparecimento dos filósofos gregos a partir de Sócrates é um sintoma de decadência" (NF/FP 1887-1888, 11 [375], KSA 13.167), no sentido de que é a partir deles que a interpretação metafísica da existência começa a ganhar terreno, não mais como um elemento anedótico, mas como a única interpretação válida da existência, "que fixa o valor de nossas experiências a partir da ideia de 'valor incondicionado', que se aplica a determinados elementos, considerados como valiosos em si, em relação a outros cujo valor é, por sua vez, condicionado e desvalorizado por estes primeiros" (Quejido, 2015QUEJIDO ALONSO, Ó. “Crítica, genealogía y transvaloración”. En Nietzsche y la transvaloración de la cultura. Ed. Mariano Rodríguez. Madrid: Arena Libros, 2015, pp. 101-130., p. 105). Com esta perspectiva única, "anula-se a esfera da criatividade, da inventividade, própria do momento interpretativo, impedindo, com isso, a geração de novos valores” (Quejido, 2015QUEJIDO ALONSO, Ó. “Crítica, genealogía y transvaloración”. En Nietzsche y la transvaloración de la cultura. Ed. Mariano Rodríguez. Madrid: Arena Libros, 2015, pp. 101-130., p. 105), tão importante depois da afirmação nietzschiana que põe fora de nosso alcance qualquer tipo de verdade absoluta, de horizonte último interpretativo.

Para Nietzsche, aqueles gregos de "natureza superior"5 5 É assim que ele se refere aos filósofos gregos anteriores a Sócrates, incluindo o nome de Demócrito especificamente ao lado do de Anaxágoras. (Cf. NF/FP 1885, 41 [4], Trd. DSM, Et. Al., KSA 11. 679). , incluindo Demócrito, permaneceram firmes quando se tratava de reivindicar sua própria interpretação ao invés de assumir uma comum e unitária que começa a se impor a partir da chegada de Sócrates à esfera do pensamento. Essa característica lhes vale a denominação no aforismo 261 de Humano demasiado humano de "tiranos do espírito", entendendo como tais filósofos aqueles que têm "uma fé robusta em si mesmos e em sua 'verdade' [com a qual] eles derrotaram todos os seus vizinhos e os predecessores” (MA I/HH I, 261, KSA 2.214). Esse exercício de imposição da valoração própria faz com que Nietzsche afirme que "talvez a felicidade nunca tenha sido tão grande no mundo", pois sem um preconceito que queira reger o restante das subjetividades, é dado espaço suficiente à manifestação da particularidade, da singularidade no indivíduo, permitindo a cada um avaliar a existência em termos idiossincráticos e, portanto, adaptado a si mesmo:

Com Empédocles e Demócrito, os gregos estavam em melhor posição para avaliar corretamente a existência humana, sua irracionalidade e sua dor, mas se jamais o fizeram, foi graças a Sócrates. Um olhar sem preconceitos sobre os homens falta a todos os socráticos, que só têm na mente aquelas horríveis abstrações do “bom, do justo” [...] Por causa de Sócrates, eles perderam aquela atitude sem preconceitos. Seus mitos e tragédias têm mais sabedoria do que as éticas de Platão e de Aristóteles; e seus "estóicos e epicuristas" resultam pobres, em comparação com seus poetas e estadistas mais antigos (NF/FP 1875, 6 [25], Trd. DSM, Et. Al. KSA 8.107).

Naquele mesmo aforismo 261, Nietzsche lamenta que a emergência desse tipo de homem superior tenha sido truncada pelo socratismo, pois "talvez não haja perda mais séria do que a perda de um tipo, de uma nova e altíssima possibilidade de vida filosófica ainda a ser descoberta" especialmente no caso dos pensadores que vão "de Tales a Demócrito, [cujas] figuras [correspondem a] criações do tipo mais poderoso e puro" (MA I/HH I, 261, KSA 2.214). O aparecimento de Sócrates marca o fim dessa nova forma de pensamento que visa acessar o conhecimento da natureza a partir de uma perspectiva livre de preconceitos metafísicos. Por este motivo, Nietzsche não considera os filósofos anteriores a Sócrates como pré-socráticos, mas sim como pensadores cujos frutos não foram colhidos pelo socratismo:

A esses filósofos mais antigos [...] considero-os como os PRECURSORES DE UMA REFORMA dos gregos: mas não como os precursores de Sócrates. Apenas que sua reforma não chegou a produzir-se [...] É evidente que os gregos estavam prestes a encontrar um tipo de homem ainda mais elevado do que os anteriores; mas então produziu-se uma fratura. O processo para na era trágica dos gregos. (NF/FP 1875, 6 [18], Trd. DSM, Et. Al. KSA 8.104).

O que se perde a partir de Sócrates é o olhar sem preconceitos sobre o mundo, manchando de moral o plano do físico. Todas essas abstrações que culminam no Mundo das Ideias platônico e no além-mundo do cristianismo nada mais fazem do que conferir à existência um sentido último que afeta também a esfera da ética. Reger-se por um discurso lógico-conceitual que aspira à uniformidade estabelece um paradigma do bem e do mal que oprime os homens na medida em que eles devem se ajustar a esses valores pré-estabelecidos, fixos e únicos, independentemente de suas próprias particularidades. Ao escapar das garras desse tipo de idealismo com sua aposta materialista, Demócrito torna-se um "imoralista, [porque seu] mundo [aparece] sem sentido moral" (NF/FP 1872-1873, 23 [36], Trd. DSM, et al. KSA 7.576), na acepção de que não há princípio orientador da existência, apenas o puro choque aleatório de átomos através do qual tudo o que existe vai se compondo e decompondo.

Demócrito combina esse imoralismo materialista com a segunda das características que merece o respeito de Nietzsche: a subordinação de toda atividade filosófica a um fim prático para o homem, já que ele só aceita aquele discurso que visa a alcançar sua felicidade. Desta forma, a investigação científica não tem por objetivo a busca da verdade, o que, aliás, para Demócrito, teria sido impossível, afinal "o que ele queria obter com a investigação da natureza é viver com confiança" (P I 1867-1868 4, 52 [30]/ OC I, p.242, Trd.DSM, Et.Al.). Por nada fazer mais sentido no mundo do que o mecanismo materialista, o estudo das cadeias causais pode fornecer ao ser humano um tipo de existência de acordo com o que ele deseja obter, dando-lhe, assim, algum controle sobre sua vida. Daí, Cícero definir a ética de Demócrito "como um sentimento de segurança, por chamar, assim, ao bem-estar da alma"6 6 Convém considerar que qualquer referência à alma deve ser compreendida no estrito plano material. Tanto Demócrito quanto Nietzsche são materialistas, no sentido de que não aceitam a existência de nada além do físico. Assim, quando são mencionados conceitos que tradicionalmente transgridem a esfera da materialidade, estes devem ser entendidos única e exclusivamente como “estados CORPORAIS [já que] os estados mentais são suas consequências e símbolos” (Rodríguez, 2018, p. 51), do mesmo modo que os estados espirituais. (P I 1867-1868 4, 52 [30]/ OC I, p. 242, Trd. DSM, Et al., KGW I, 4. 221). A ciência está, portanto, subordinada ao serviço que presta à humanidade na conquista de sua felicidade, o que coincide plenamente com a aproximação nietzschiana que avalia o valor das teorias de acordo com sua capacidade de fortalecer a existência do homem:

Tende-se a superestimar a ciência. O primeiro dever não é ajudar a ciência e o segundo ajudar a si mesmo, mas ao contrário. Isso deve ser dito aos estudiosos, para que eles orientem seus estudos de acordo com isso. Se alguém tem um excesso de força intelectual, uma vez satisfeitas as suas próprias necessidades subjetivas, estará interessado nas necessidades da humanidade. O oposto é crueldade e barbárie (P I 1867-1868 4, 52 [30]/ OC I, p. 242, Trd. DSM, Et. Al., KGW I, 4. 222).

Com Demócrito, refuta-se a premissa que associa a vida infeliz a um fator que nos transcende como indivíduos. Como Nietzsche, sua filosofia nos incita a cuidar de nós mesmos, deixando para trás superstições metafísicos-religiosas que nos levam a culpar um terceiro superior por nossos erros e suas consequências correspondentes. Dessa forma, Demócrito inverte a causa-efeito em torno do problema da felicidade, pois o conhecimento dos deuses - ou de qualquer outro fundamento metafísico - não garante mais a felicidade, mas, ao contrário, a torna impossível. Assim, Demócrito "tinha, de fato, uma confiança absoluta na força dedutiva da razão" (P I 1867-1868 6, 57 [48]/OC I, p. 256, Trd. DSM, Et. Al., KGW I, 4. 414), ao ponto de "os sofrimentos e os males humanos serem atribuídos a uma vida não científica e, sobretudo, ao medo dos deuses" (P I 1867-1868 6, 57 [48]/OC I, p. 256, Trd. DSM, Et. Al., KGW I, 4. 414). A fé em sua existência é o que nos leva a abandonar-nos a seus caprichos e a não remediar nossos males atuais por meio do conhecimento. Em vista disso, Nietzsche afirmar que "todos os materialistas acreditam que o homem é infeliz porque não conhece a natureza" (P I 1867-1868 6, 57 [19]/OC I, p. 247, Trd. DSM, Et. Al., KGW I, 4. 386).

Essa abordagem da ciência permite que Demócrito nos coloque em uma posição otimista em relação à existência. Se os deuses já não são mais responsáveis ​​por nossa vida, todo o peso recai sobre nós, mas pelo mesmo motivo somos livres para escolher nosso destino e planejar diligentemente o tipo de existência que melhor nos convém. Por isso, Demócrito valoriza acima de tudo uma abordagem prática do conhecimento que nos possibilita colocar nossa inteligência a serviço da conquista da felicidade:

Os homens plasmaram uma imagem da sorte como desculpa para sua própria falta de julgamento; pois, raramente a sorte conflita com a inteligência e, no mais das vezes, na vida o olhar penetrante e inteligente mostra o caminho reto (Demócrito, Fragmento 119, 1996DEMÓCRITO DE ABDERA. “Fragmentos”. In: Pré-Socráticos. Coleção Os Pensadores. tradução de Anna L. A. de A. Prado. São Paulo: Abril Cultural, 1996, pp.259-308., p. 281).

Com esse enfoque materialista, Demócrito aproxima-se da concepção nietzschiana de "corpo humano [como] um compêndio do tornar-se que efetivamente ocorreu, mas que também é projetada na evolução futura da linha da vida" (Rodríguez, 2018RODRÍGUEZ GONZÁLEZ, M. Más allá del rebaño. Nietzsche, filósofo de la mente. Madrid: Avarigani, 2018., p. 48): dadas algumas condições materiais, uma disposição da matéria na qual se inclui nossa própria corporeidade, trata-se de descobrir as fontes que permitem a Demócrito alcançar a felicidade e para Nietzsche o fortalecimento de nossa existência. Desta forma, explica-se que em ambos os autores encontramos fórmulas que se destinam a esse fim prático, apostando numa regulação conscienciosa do corpo que nos permita extrair dele o estado desejado. Assim, enquanto Demócrito nos adverte que "prazeres intempestivos geram aversão” (Fragmento 71); Nietzsche faz o mesmo ao equiparar a doença a "contraposição das paixões, a duplicidade, a triplicidade, a multiplicidade das 'almas num só peito’” (NF/FP 1888, 14 [157], Trd. DSM, Et. Al. KSA 13.341).

Contra isso, a irrupção do socratismo está comprometida com uma moralização da ciência que não permite mais aproveitar esse conhecimento para promover uma vida que possamos desfrutar, mas impõe um único critério de bem e mal que impede o desenvolvimento frutífero da ciência, sobretudo da ciência focada em obter a felicidade do homem:

No fundo, a moral é hostil à ciência: já era assim em Sócrates - porque a ciência considera importantes coisas que nada têm a ver com “bom” e “mau”, minimizando assim o sentimento de “bem” e “mal”. Em outras palavras, a moral requer que o homem inteiro esteja a seu serviço com todas as suas forças: considera um desperdício [...] que o homem se preocupe seriamente com plantas e estrelas. É por isso que na Grécia a cientificidade foi declinando rapidamente, uma vez que Sócrates havia transmitido a doença de moralizar a ciência; um nível como o modo de pensar de Demócrito [...] não foi alcançado novamente (NF/FP 1885, 36 [11], Trd. DSM, Et. Al., KSA 11. 553 e 554).

Com este último aspecto, são abordados os principais aforismos em que Nietzsche valoriza as contribuições do materialismo de Demócrito para o campo do pensamento. Como temos verificado, apesar das críticas que o atomismo merece em alguns aspetos, a avaliação global continua a ser positiva. Esse materialismo inaugural, sobretudo pelo que tem de antimetafísico, resulta em um valioso precedente para a própria teoria nietzschiana, baseada no corpo como um conjunto idiossincrático de tendências ou forças em disputa que lutam para dominar umas às outras. Como aponta Nina Power, tal é o peso que a teoria de Demócrito exerce sobre o nietzschianismo que “não podemos deixar de ver ecos do 'mundo da força' de Demócrito no próprio Nietzsche, em que cada corpo concreto se esforça para ser mais poderoso, estendendo-se" (2001, p. 129).

Referências

  • ARISTÓTELES,-. Metafísica Trad. Tomás Calvo Martínez. Madrid: Gredos, 1994.
  • DEMÓCRITO DE ABDERA. “Fragmentos”. In: Pré-Socráticos. Coleção Os Pensadores tradução de Anna L. A. de A. Prado. São Paulo: Abril Cultural, 1996, pp.259-308.
  • LEUCIPO,-. “Fragmentos”. In: Pré-Socráticos. Coleção Os Pensadores tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural , 1996, pp. 243-253.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), 15 vols. (Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari), Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1988.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe (KSB), 8 Vols. (Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari ). Berlim: Walter de Gruyter & Co. , 1986.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kritische Gesamtausgabe (KGW). Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1967 - 1978.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos póstumos. Vol. IV (1885-1889) Ed. Diego Sánchez Meca. Madrid: Tecnos, 2006.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos póstumos. Vol. II (1875-1882) Ed. Diego Sánchez Meca. Madrid: Tecnos , 2008.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos póstumos. Vol. III (1882-1885) Ed. Diego Sánchez Meca. Madrid: Tecnos , 2010.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Obras Completas. Escritos de juventud. Vol. I Ed. Diego Sánchez Meca. Madrid: Tecnos , 2011.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Correspondencia. Vol. I. Junio 1850 - Abril 1869 Ed. Luis Enrique de Santiago Guervós. Madrid: Trotta, 2012.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Obras Completas. Escritos de madurez I. Vol. III Ed. Diego Sánchez Meca. Madrid: Tecnos , 2014.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Obras Completas. Escritos de madurez II y Complementos a la edición. Vol. IV Ed. Diego Sánchez Meca. Madrid: Tecnos , 2016.
  • POWER, N. “On the Nature of Things: Nietzsche and Democritus”. En Pli, n.12, pp. 118-130, 2001 (La traducción es propia).
  • QUEJIDO ALONSO, Ó. “Crítica, genealogía y transvaloración”. En Nietzsche y la transvaloración de la cultura Ed. Mariano Rodríguez. Madrid: Arena Libros, 2015, pp. 101-130.
  • RODRÍGUEZ GONZÁLEZ, M. Más allá del rebaño. Nietzsche, filósofo de la mente Madrid: Avarigani, 2018.
  • STIEGLER, B. “El joven Nietzsche y la ciencia: el caso de Demócrito”. En Estudios Nietzsche, n.8, pp. 119-131, 2008.
  • VV.AA. Fragmentos presocráticos. De Tales a Demócrito Ed., trad., y notas de Alberto Bernabé. Madrid: Alianza, 2008.
  • *
    Tradução de Vânia Dutra de Azeredo.
  • 1
    “O conhecimento dos grandes gregos me educou: em Heráclito, Empédocles, Parmênides, Anaxágoras, Demócrito há mais para venerar, eles são mais completos” (NF/FP 1884, 26 [3], KSA 11. 151). F. NIETZSCHE. Fragmentos Póstumos. Vol. III. Ed. Diego Sánchez Meca Et. Al. Madrid: Tecnos, 2010NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos póstumos. Vol. III (1882-1885). Ed. Diego Sánchez Meca. Madrid: Tecnos , 2010.. As demais obras de Nietzsche tratadas, com exceção de sua correspondência, pertencem ao mesmo editor, de modo que doravante serão indicadas apenas como DSM, Et. Al.
  • 2
    F. NIETZSCHE. Correspondencia. Vol. I. Junio 1850 - Abril 1869. Ed. Luis Enrique de Santiago Guervós. Madrid: Trotta, 2012NIETZSCHE, Friedrich. Correspondencia. Vol. I. Junio 1850 - Abril 1869. Ed. Luis Enrique de Santiago Guervós. Madrid: Trotta, 2012..
  • 3
    Trata-se da negação tanto do nascimento quanto da destruição do ser pela impossibilidade lógica de admitir que o ser vem do nada, ou que o ser se torna nada. Admitir a inviabilidade de “o que não é” tornar-se “ser”, equivale a negar consistentemente que “o que é” torna-se “não ser”. Por isso, a impossibilidade da criação ab nihilo reúne de uma vez por todas a unidade do ser pela inviabilidade tanto do nascimento quanto da destruição do que é.
  • 4
    Com relação aos fragmentos dos pré-socráticos, sempre que possível, recorremos à tradução de José Cavalcante de Souza e Anna L. A. de A. Prado contante no volume Pré-Socráticos da Coleção Os pensadores, conforme consta nas referencias. (N.T.).
  • 5
    É assim que ele se refere aos filósofos gregos anteriores a Sócrates, incluindo o nome de Demócrito especificamente ao lado do de Anaxágoras. (Cf. NF/FP 1885, 41 [4], Trd. DSM, Et. Al., KSA 11. 679).
  • 6
    Convém considerar que qualquer referência à alma deve ser compreendida no estrito plano material. Tanto Demócrito quanto Nietzsche são materialistas, no sentido de que não aceitam a existência de nada além do físico. Assim, quando são mencionados conceitos que tradicionalmente transgridem a esfera da materialidade, estes devem ser entendidos única e exclusivamente como “estados CORPORAIS [já que] os estados mentais são suas consequências e símbolos” (Rodríguez, 2018RODRÍGUEZ GONZÁLEZ, M. Más allá del rebaño. Nietzsche, filósofo de la mente. Madrid: Avarigani, 2018., p. 51), do mesmo modo que os estados espirituais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2022
  • Aceito
    07 Out 2022
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