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Entre o espaço abstrato e o espaço diferencial: ocupações urbanas em Belo Horizonte1 1 Este artigo é produto de debates, investigações compartilhadas e de um esforço de escrita coletiva no âmbito do Grupo de Estudos Henri Lefebvre (GEHL/UFMG). O GEHL/UFMG organizou-se desde 2003, fundado pelo Prof. Roberto Luís de Melo Monte-Mór (FACE/UFMG), com o propósito de estudar a obra de Henri Lefebvre, em especial a problemática urbana, nas diversas configurações que esse tema assume nos textos desse pensador. O GEHL reúne na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) professores e estudantes de graduação e pós-graduação em economia, geografia, arquitetura e direito. Entre 2003 e 2015, em suas diversas formações, o GEHL vem participando dos Encontros da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ENANPUR) por meio da organização de sessões livres junto a outros pesquisadores da obra lefebvriana no Brasil. Nos últimos anos (2015-2017), o GEHL tem atuado no sentido de articular a teoria lefebvriana aos processos de produção do espaço urbano brasileiro.

Between abstract space and differential space: urban occupations in Belo Horizonte2 2 An English version of this article is being prepared by GEHL/UFMG and will be available for download in the group’s Academia.edu profile: https://ufmg.academia.edu/GrupodeEstudosHenriLefebvre

Resumo

O artigo aborda as ocupações urbanas em Belo Horizonte a partir das formulações de Henri Lefebvre sobre a produção do espaço e a vida cotidiana. Ao refletirmos sobre as experiências das ocupações, buscamos enfatizar suas dimensões relacionais e processuais, atentando-nos à sua materialidade e ao seu cotidiano vivido. Para entender em que medida as ocupações podem engendrar diferenciações espaciais, circunscrevemos seu percurso histórico em Belo Horizonte segundo suas dinâmicas e tensões, atentos às especificidades da produção do espaço nas mesmas. Discutimos também as contradições entre o privado e o comum quanto à propriedade da terra, ressaltando os modos pelos quais o espaço abstrato se reafirma nas ocupações. Procuramos ressaltar as ocupações como tensionadas entre o espaço abstrato e o diferencial, como uma prática espacial intermediária entre a dominação e a apropriação: espaço político contraditório, que atualiza o debate sobre a produção do espaço urbano no Brasil contemporâneo.

Palavras-chave:
ocupações urbanas; espaço diferencial; produção do espaço; vida cotidiana; Belo Horizonte; Henri Lefebvre

Abstract

This article explores urban occupations in Belo Horizonte departing from Henri Lefebvre’s formulations on the production of space and everyday life. As we reflect on the experiences of these occupations, we seek to emphasize their relational and processual dimensions, paying attention to their materiality and their lived everyday. In order to understand the extent to which occupations can engender spatial differentiations, we circumscribe their historical background in Belo Horizonte according to their dynamics and tensions, attentive to the specificities of their production of space. We also discuss the contradictions between the private and the commons in regards to the landed property, highlighting the ways in which abstract space is reaffirmed in occupations. We seek to accentuate urban occupations as tensioned between abstract and differential spaces, as an intermediate spatial practice between domination and appropriation: a contradictory political space, which updates the debate on the production of urban space in contemporary Brazil.

Keywords:
urban occupations; differential space; production of space; everyday life; Belo Horizonte; Henri Lefebvre

Introdução

Um dos fenômenos mais disruptivos na metrópole brasileira nos últimos anos tem sido a explosão de ocupações urbanas - sob os mais variados modos de organização -, processo que se vincula a um contexto vicioso em que se combinam crescimento econômico, ampliação da renda e do crédito, expansão do mercado imobiliário, aumento vertiginoso do preço do solo e políticas ditas habitacionais que privilegiam mais os capitais imobiliários do que as necessidades de moradia dos pobres urbanos (MAGALHÃES; TONUCCI FILHO; SILVA, 2011MAGALHÃES, F.; TONUCCI FILHO, J.; SILVA, H. Valorização imobiliária e produção do espaço: novas frentes na RMBH. In: MENDONÇA, J.; COSTA, H. S. (Org.). Estado e capital imobiliário: convergências atuais na produção do espaço urbano brasileiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2011. p. 17-40.). Na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), hoje quase 15 mil famílias residem em mais de 20 ocupações urbanas, segundo informações de Morado Nascimento e Libânio (2016MORADO NASCIMENTO, D.; LIBÂNIO, C. (Org.). Ocupações urbanas na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Favela é Isso Aí, 2016.). Espontâneas e/ou organizadas por movimentos sociais com extensas redes de apoio, as ocupações têm início por meio de ações concentradas no tempo: em não mais de uma semana, um grupo de famílias se estabelece em terrenos vagos (públicos ou privados), para daí prosseguir à autoconstrução de residências e da infraestrutura básica.

Este artigo tem o intuito de propor um espaço de pensamento crítico sobre as ocupações em Belo Horizonte (BH), especialmente - mas não exclusivamente - a partir de questões que a obra do filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre (1901-1991) suscita às realidades brasileiras contemporâneas. Esses territórios ocupam hoje importante espaço nos debates e embates políticos locais, nos engajamentos de militantes e apoiadores, nas experimentações práticas e cotidianas, na reflexão sobre as lutas pelo direito à cidade. Daí o desejo de problematizar e de interrogar criticamente uma realidade que, por vezes, nos parece tão próxima e transparente e, noutras ocasiões, tão distante, quase inapreensível.

Procuramos, ao refletirmos sobre as experiências das ocupações, enfatizar suas dimensões relacionais e processuais, atentando à sua materialidade e ao seu cotidiano vivido, evitando entendimentos deterministas e finalísticos que só percebem nas ocupações a desolação da miséria e da desigualdade ou a utopia de uma comunidade perfeita. Entre os extremos do niilismo e do romantismo de tais abordagens, colocamo-nos o desafio de analisar as ocupações como dialeticamente tensionadas entre o espaço abstrato e o espaço diferencial teorizados por Lefebvre entre a dominação e a apropriação: nem um, nem outro, mas ambos ao mesmo tempo; um espaço contraditório, aberto e movente.

Apostando que há mundos diferentes para além de suas amarras e dos absurdos da repetição, nosso trabalho busca compreender as diferenças (gestos, percursos, ritmos, ciclos) que brotam com as ocupações urbanas belo-horizontinas. Movidos pela possibilidade de encontrarmos, nessas ocupações, o germe de um espaço diferencial, buscamos entrelaçar teoria e prática na tentativa de construir e de compreendê-las.

Podemos sustentar que as ocupações urbanas produzem diferenciações espaciais? De que modo as práticas de ocupação da RMBH permitem atualizar o debate sobre a produção do espaço diferencial? Como engendrar a produção de um espaço diferencial a partir do cotidiano das ocupações? Enfim, se “o caminho do ‘concreto’ passa pela negação ativa, teórica e prática: pelo contraprojeto, o contraplano”, como afirma Lefebvre (2000LEFEBVRE, H. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 2000[1974], p. 481, tradução nossa), “pela intervenção ativa e massiva dos ‘interessados’”, que sentidos concretos do cotidiano das ocupações nos levam a pensar em práticas do espaço diferencial?

Procuramos respostas concretas a tais indagações nas lutas e no cotidiano vivido dos moradores das ocupações, assim como nos relatos daqueles envolvidos, direta ou indiretamente, nas ações de resistência e de construção coletiva das ocupações.

O método dialético3 3 É fundamental para a nossa discussão que se reconheça o papel do método dialético no pensamento lefebvriano (MARTINS, 1996). Os temas, preocupações, embates teóricos e políticos, assim como o método de realização da pesquisa são orientados pelo método dialético hegeliano-marxista. O pensamento dialético tem, entre suas características, o reconhecimento do caráter contraditório da realidade. Nesse sentido, não se compreende a realidade extirpando-se as suas contradições, sob pena de se construir um saber marcado pela unilateralidade e - o que é pior - pela ideologia. A contradição é constitutiva do real. Das contradições, internas e inerentes ao ser social e histórico, provém o movimento que caracteriza o mundo como devir e não como coisa estática. A dialética como método de pesquisa requer a consideração constante do negativo e da contradição. Esse princípio cria diversos desafios, entre os quais a limitação da própria linguagem para expressar realidades que se contradizem internamente. No nosso próprio exercício, tentamos seguir as indicações metodológicas de Lefebvre (1975), sem, com isso, assumir um “estilo de escrita lefebvriano”, tampouco tentar a redução -extrapolação do método ao modelo. Não se ignora nenhum dos dois riscos, mas não se esposa nenhum deles como projeto: antes, nossa tentativa é empreender uma pesquisa concreta pautada pelo método dialético, tal qual Lefebvre propôs. da presente abordagem consiste numa alternância entre formas qualitativas de pesquisa (entrevistas e observação participante, principalmente) conduzidas pelos autores ao longo dos últimos anos em suas diversas frentes de trabalho, e as propostas de teorização, a partir de um grupo de leituras e discussões da obra de Henri Lefebvre.

O artigo está organizado em seis sessões. Depois da introdução, na segunda sessão, trazemos a problemática da produção do espaço a partir das reflexões de Lefebvre, buscando enfatizar os sentidos possíveis da diferenciação espacial em meio às contradições do espaço abstrato. A seguir, na terceira sessão, circunscrevemos o percurso histórico das ocupações na RMBH segundo suas dinâmicas e tensões, em busca de suas especificidades. Na quarta sessão, abordamos o processo de produção do espaço das ocupações a partir do cotidiano vivido. A quinta sessão apresenta a discussão sobre a propriedade comum da terra nas ocupações, e a sexta, a seu turno, demonstra de que modo o espaço abstrato se reafirma dentro do experimento radical da ocupação. Finalmente, as considerações finais desenvolvem a ideia de uma prática espacial intermediária delineada como mediação concreta e movente que parte do espaço abstrato na direção do espaço diferencial.

A produção do espaço: do abstrato ao diferencial

É n’A produção do espaço, de 1974, que Lefebvre formula com maior ousadia as suas teses relativas à problemática espacial, sua complexa e abrangente teoria do espaço social. A partir da economia política, o autor enuncia a produção do espaço como conceito teórico e realidade prática, aspectos esses indissoluvelmente ligados. O autor propõe aí uma modificação profunda na maneira de compreender o espaço como realidade empírica e como categoria de análise. Trata-se de passar dos produtos (descritos, enumerados) à compreensão da produção: o espaço (social) é um produto (social) e não uma coleção de coisas e objetos (espaço físico) ou um receptáculo vazio e inerte a ser preenchido (espaço mental). A produção do espaço religa e coordena os aspectos da prática espacial.

Para Lefebvre, o capitalismo só conseguiu atenuar suas contradições internas e sobreviver graças à sua permanente expansão e à passagem da produção de coisas no espaço à produção do próprio espaço. Nesse sentido, pode-se dizer que a produção do espaço está intimamente ligada à reprodução do modo de produção capitalista, englobando os níveis da reprodução bio-fisiológica familiar, da reprodução da força de trabalho e da reprodução ampliada das relações sociais de produção.

O espaço abstrato, em Lefebvre (2000)LEFEBVRE, H. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 2000[1974], corresponde à expressão espacial do trabalho tornado abstrato pela produção capitalista sob o controle do Estado moderno. O espaço abstrato, formal e quantificado, é simultaneamente homogêneo (o que vai na direção da negação das diferenças, sem, contudo, jamais eliminá-las por completo), fragmentado (pulverizado pela propriedade privada, funcionalmente segregado) e hierarquizado (organizado em termos de relações centro-periferia de dominação). Ocupado, controlado e orientado para a reprodução das relações sociais de produção, ele consolida uma lógica burocrática de controle e repetição. Espraia-se, portanto, por todo o planeta, negando as diferenças espaciais: as que provêm da natureza e da história, assim como aquelas originárias do corpo, das idades, dos sexos, das etnias.

Como amplamente reafirmado nos estudos urbanos e na geografia humana das últimas décadas (SOJA, 1993SOJA, E. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.), o espaço não se situa no capitalismo como lugar passivo das relações sociais, mas se revela ativo (operatório e instrumental) ao exercício das hegemonias. Evidentemente político e estratégico, ele é um meio de produção e de controle, mas que escapa parcialmente aos que dele se servem, aos que o engendram (o capital, o Estado). Isso se deve ao fato de que mesmo o espaço abstrato contém também suas contradições internas (entre quantidade e qualidade; globalidade e fragmentação; homogeneidade e diferença; entre o que é concebido e o que é vivido).

No entanto, em meio a essas contradições dos espaços, Lefebvre (2009LEFEBVRE, H. Space: social product and use value. In: BRENNER, N.; ELDEN, S. State, space, world: selected essays. Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2009. p. 185-195.) chama a atenção para a importância de novos movimentos sociais, não mais restritos às demandas em torno do mundo do trabalho, que questionam o uso e a organização capitalista do espaço, atentos às problemáticas da reprodução social e da vida cotidiana. Tais movimentos urbanos mostram que o espaço não é apenas econômico e subordinado ao valor de troca, e que tampouco é meramente um instrumento político homogeneizante. Diversamente, tal qual o tempo, o espaço é um protótipo perpétuo do valor de uso que resiste à generalização do valor de troca e do trabalho sob o capitalismo. Ainda que não tenham o caráter contínuo e institucionalizado do trabalhismo, a pressão desses movimentos aponta para a explosão de todos os espaços impostos, para a produção de um espaço autogerido pelos “interessados”.

O espaço diferencial teorizado por Lefebvre é o espaço engendrado pelas contradições do espaço abstrato, e, portanto, decorre da dissolução de relações sociais orientadas pela homogeneização, fragmentação e hierarquização de objetos e sujeitos abstratos, e que implica no nascimento de novas relações sociais, radicadas no uso dos espaços e nas suas qualidades múltiplas. O espaço diferencial significa também o fim da propriedade privada do espaço e da sua dominação política pelo Estado. Sua produção acontece a partir da completa imbricação entre uma vida cotidiana profundamente transformada e uma prática da diferença espacial. O espaço diferencial “[...] religará o que o espaço abstrato separa: as funções, os elementos e momentos da prática social” (LEFEBVRE, 2000LEFEBVRE, H. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 2000[1974], p. 64, tradução nossa). Esse espaço surge de um contraprojeto e visa a restituir os diferentes usos possíveis do espaço, isto é, a possibilitar a apropriação espacial contra a homogeneização patogênica de um espaço racionalizado, coercitivo, hierárquico, comandado pela lógica capitalista e estatal. Momento em que o corpo inteiro - restituído à condição de totalidade - assume o protagonismo das invenções.

Entre o espaço abstrato e o diferencial, habitam as práticas espaciais do desvio (détour), termo compartilhado por Lefebvre e pela Internacional Situacionista: “Acerca do desvio, já se sabe que deve ser estudado como prática intermediária entre a dominação e a apropriação, entre a troca e o uso. Opô-lo à produção ou dissociá-lo dela é desconhecer seu sentido” (LEFEBVRE, 2000LEFEBVRE, H. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 2000[1974], p. 425, tradução nossa). O desvio pode estimular diferentes aprendizagens sobre a produção de outras cidades e urbanidades possíveis. Experiências e práticas orientadas pelo uso do espaço, as quais explicitam tensões contidas nas concepções espaciais dominadas pela mercantilização da vida.

Ao propor a distinção entre desvio e apropriação, Lefebvre persegue com rigor e cuidado o projeto de “mudar a vida, mudar a sociedade”, orientando a reflexão para a assimilação dos erros e acertos das comunidades políticas, efêmeras ou duradouras, que já tentaram inventar uma “vida nova” por meio de um “espaço novo”. Ao longo da história do espaço, os exemplos são muitos, assim como os impedimentos.

Para Lefebvre, a real apropriação do espaço envolve uma invenção morfológica, isto é, uma nova forma intimamente ligada às novas funções e às estruturas do prazer e da alegria. O desvio de um espaço pode ser bastante profícuo à concepção de um contraponto às formas de dominação instituídas. Contudo, ele será realmente apropriado quando realizar outras formas e estruturas arquitetônicas, urbanísticas e territoriais. As novas ideias e representações, bem como os valores e interesses novos, precisam vir inscritos com um processo criativo total, da criação de um espaço inteiro. O espaço diferencial requer a organização, a disposição dos elementos essenciais que compõem um corpo de outra maneira, tanto quanto necessita de outras estéticas.

O urbano contemporâneo é repleto de embriões com potências criadoras de espaço diferencial, quando considerados em seu conjunto. Há uma tendência à produção de dinâmicas que buscam se afirmar, como outros modos de existência na metrópole e/ou como resistências diante de dinâmicas heterônomas que engendram situações repressoras e autoritárias das quais se busca emancipar. Essas buscas tendem a ocorrer em variações que combinam elementos ligados a dois formatos de ação política espacial: ou por meio de métodos autonomistas, em fuga de espacialidades sociopolíticas abstratas e hegemônicas; ou por meio do confronto em busca de alterações nas instituições estabelecidas.

Da Corumbiara à Tina Martins: ocupações na RMBH

“O Brasil é uma terra sem gente e uma gente sem terra”: noutra perspectiva teórico-política, Holston (2013HOLSTON, J. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.) parte desse aforismo para capturar a negação do acesso à propriedade fundiária como um dos pilares históricos da constituição e reprodução do regime de cidadania desigual no país. Paula (2002PAULA, J. A. O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história. Em: História Econômica & História de Empresas, v. 5, n. 1, p. 7-39, 2002.) igualmente salientou o papel do acesso desigual à terra na desigualdade, no autoritarismo e na dependência na sociedade e economia brasileiras. Holston (2013)HOLSTON, J. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2013. observa que o acesso restrito à propriedade da terra perpetua a extraordinária desigualdade de renda e riqueza e reproduz a ilegalidade como a norma de acesso pela tomada de posse, invasões, ocupações etc. para a maioria dos pobres urbanos.

No período recente de crescimento econômico (2004-2013), a produção do espaço urbano metropolitano no Brasil viveu um novo ciclo de expansão e valorização imobiliária. A RMBH vivenciou transformações de seu espaço urbano ligadas a um forte dinamismo do mercado imobiliário. Houve aumento exponencial da quantidade de construções, lançamentos, transações, além da busca por novas áreas de atuação por construtores e incorporadores, e elevação dos preços praticados. O processo incluiu tendências socioespaciais de gentrificação e financeirização do espaço urbano, transformando significativamente a metrópole (MAGALHÃES, TONUCCI FILHO; SILVA, 2011MAGALHÃES, F.; TONUCCI FILHO, J.; SILVA, H. Valorização imobiliária e produção do espaço: novas frentes na RMBH. In: MENDONÇA, J.; COSTA, H. S. (Org.). Estado e capital imobiliário: convergências atuais na produção do espaço urbano brasileiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2011. p. 17-40.).

Soma-se a isso a omissão usual do poder público quanto a políticas habitacionais inclusivas, o que potencializou a ocorrência de lutas, também usuais no Brasil, pela moradia em outras vertentes. Em Belo Horizonte, o cenário político trouxe uma guinada conservadora na década de 2000, reforçando a luta, dessa vez, pelo surgimento de ações e experiências que extrapolaram a agenda e o repertório dos movimentos pela moradia e pela reforma urbana. Inicia-se uma nova rodada de movimentos que inclui as ocupações urbanas.

As ocupações inscrevem-se nas tradições de luta pela terra urbana no Brasil, mas são dotadas de características peculiares. Entre os aspectos que as distinguem está uma conjugação de diversos agentes. Famílias em luta pela terra e/ou pela moradia, movimentos sociais e políticos organizados, tanto antigos como novos, e, por outro lado, agentes políticos ligados a instituições consolidadas - Igreja Católica, esferas do Estado (administração pública e poder judiciário, por ex.), educação pública superior (alunos e professores universitários). Especificamente em Belo Horizonte, a nova onda de movimentos urbanos é marcada pela ausência de vínculos com as gestões municipais do ciclo sintonizado à plataforma da reforma urbana, o que provoca uma ruptura e um conflito com grupos anteriormente estruturados e que participaram de formas variadas do processo de gestão e planejamento urbano do município, inclusive de sua política habitacional.

Ainda em 1996, teve início em Belo Horizonte a experiência pioneira da Ocupação Corumbiara, num terreno particular no Vale do Jatobá, na região do Barreiro. Organizada pela Liga Operária (LOP) e pelo Partido Comunista Revolucionário (PCR), ela assentou 379 famílias engajadas no Orçamento Participativo da Habitação (OPH), mas sem perspectivas de adquirir moradia. Segundo Bedê (2005BEDÊ, M. C. Trajetória da formulação e implantação da Política Habitacional de Belo Horizonte na gestão da Frente BH Popular - 1993/1996. 2005. 302 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005. <Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/MPBB-6YGLGE >. Acesso em: 4 abr. 2017.
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), desenvolveu-se aí uma forma de organização popular incomum na cidade, através da demarcação de lotes e vias, cercamento do terreno, vigilância constante e revista de visitantes. Nesse processo, surge o Movimento de Lutas nos Bairros e Favelas (MLB), vinculado ao PCR. A ocupação Corumbiara, atualmente regularizada e consolidada como Vila, representa, para Lourenço (2014LOURENÇO, T. C. B. Cidade ocupada. 2014. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. <Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/BUOS-9QRGL5 >. Acesso em: 4 abr. 2017.
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), um “mito de fundação” para novas ocupações urbanas organizadas.

Depois disso, as ocupações cessaram em Belo Horizonte por, pelo menos, uma década, movimento arrefecido graças à institucionalização da política habitacional da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH) e neutralização dos canais participativos. Em 2006, aconteceu, no bairro Serra, a ocupação Caracol, primeira apoiada pelas Brigadas Populares em colaboração com grupos da Vila do Cafezal. Um grupo de famílias sem-teto ocupou um prédio de três pavimentos por três meses até seu despejo. Mesmo breve, a Caracol chamou a atenção dos movimentos críticos à política habitacional na capital.

No final de 2007, encerra-se a ocupação de prédios abandonados e os movimentos passam a discutir a ocupação de terrenos ociosos. A primeira delas, Camilo Torres, no Barreiro, acontece em fevereiro de 2008. A partir de então, as Brigadas Populares não mais participariam diretamente da organização de ocupações verticais em edificações abandonadas, em parte pelo desinteresse das famílias em ocupar imóveis nas regiões Centro Sul e Pampulha, distante de suas relações sociais e do padrão unifamiliar. Além disso, as ocupações horizontais apresentavam maiores possibilidades de resistência e permanência (LOURENÇO, 2014LOURENÇO, T. C. B. Cidade ocupada. 2014. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. <Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/BUOS-9QRGL5 >. Acesso em: 4 abr. 2017.
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; MAYER, 2015MAYER, J. O comum no horizonte da metrópole biopolítica. 2015. 290 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015. <Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/MMMD-A7TP7N/dissertacao_joviano.pdf?sequence=1 >. Acesso em: 4 abr. 2017.
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).

A discussão de alternativas de ação quanto à ligação entre moradia e geração de trabalho e renda levou à tentativa de implantar, em associação com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ocupações de caráter misto: rural e urbano. A discussão inspirava-se em experiências do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) no Rio Grande do Sul e do MST na Região Metropolitana de São Paulo. A ideia era que as ocupações combinassem habitação e atividades agrícolas - e até de produção e serviços - em terrenos urbanos. Segundo Lourenço (2014LOURENÇO, T. C. B. Cidade ocupada. 2014. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. <Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/BUOS-9QRGL5 >. Acesso em: 4 abr. 2017.
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), a proposta dividiu os militantes, pois muitos não acreditavam na sua factibilidade. Ainda assim, a ideia foi levada adiante, materializando-se na ocupação Dandara (2009).

Dandara veio a ter um papel decisivo nas lutas por moradia em razão de sua visibilidade nacional e internacional. A ocupação deu-se em terreno particular no bairro Céu Azul, mantido vago por motivos especulativos, acumulando dívidas de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). Os lotes amplos propostos para agricultura tiveram que ser reduzidos diante da pressão por habitação, levando ao abandono do projeto original em prol do mais denso de ocupação. Formada originalmente por 150 famílias, abriga atualmente mais de 1.100 famílias (LOURENÇO, 2014LOURENÇO, T. C. B. Cidade ocupada. 2014. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. <Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/BUOS-9QRGL5 >. Acesso em: 4 abr. 2017.
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). O sentido misto rural e urbano persistiu na implantação de uma horta comunitária, que não conseguiu êxito de fato, embora famílias tenham seguido cultivando hortas nos quintais. O processo da Dandara trouxe também uma inovação notável: a construção de um plano urbanístico desenvolvido colaborativamente por comunidade, urbanistas e outros técnicos.

Desde as experiências da Camilo Torres (2008) e Dandara (2009), muitas outras ocupações sucederam-se em Belo Horizonte: Irmã Dorothy (2010), Zilah Sposito / Heleno Greco (2011), Eliana Silva (2012 - despejada), Eliana Silva II (2012), William Rosa (2013), Guarani Kaiowá (2013), Rosa Leão (2013), Jardim Vitória (2013 - despejada), Esperança (2013), Vitória (2013), Nelson Mandela (2013 - despejada), Nelson Mandela (2014), Professor Fábio Alves (2014), Paulo Freire (2015), Zezeu Ribeiro e Norma Lúcia (2015), Novo Horizonte (2015), dentre outras.

Camilo Torres, Irmã Dorothy e Eliana Silva, as três situadas em um mesmo vale circunscrito pela Av. Perimetral no Barreiro, ocuparam terrenos que haviam sido doados pelo Governo do Estado para uso industrial e que posteriormente foram vendidos para terceiros, sem cumprir a função econômica à qual a concessão estaria vinculada. Juntamente com a Dandara, as três ocupações foram reconhecidas pela PBH como Áreas de Especial Interesse Social 2 (AEIS-2) durante a IV Conferência de Política Urbana de BH em 2014, mas aguardam a aprovação do novo Plano Diretor. As demais ocupações seguem sob constante ameaça de despejo e sob negociação com poder público, Poder Judiciário e proprietários.

Um desdobramento recente do movimento das ocupações está na Ocupação Tina Martins, em 2016. Diferente das ocupações discutidas, Tina Martins não é ato de luta pela moradia. O Movimento de Mulheres Olga Benário ocupou um prédio que foi utilizado como restaurante universitário da UFMG. Reconduzindo a luta à área central da Capital, o movimento reivindica a transformação do prédio - sem uso há 10 anos - em Casa de Referência da Mulher. O movimento propõe atender demandas que o poder público não tem atendido: acolhimento de mulheres em situação de risco, prevenção à violência, empoderamento e emancipação feminina.

O padrão de ação na Tina Martins repetiu aquele da criação do Espaço Cultural Luís Estrela, ocupação que foi um desdobramento das ações de Junho de 2013. Durante as reuniões da Assembleia Popular Horizontal, articularam-se movimentos culturais e políticos, organizando a ocupação de prédio público situado no bairro Santa Efigênia. Essa ação levou o princípio do “ocupar” além da luta pela moradia, em direção ao uso coletivo e cultural. A criação do Luís Estrela recoloca na área central de BH as lutas transferidas para as periferias desde a ocupação de imóveis em 2006. O local tem servido simultaneamente como suporte e como objeto de ações colaborativas de grande vitalidade, articulando múltiplos militantes e simpatizantes de modo criativo.

Os movimentos de ocupação iniciaram-se em torno da moradia, e ela mantém-se como seu núcleo. Porém, é uma luta que se enriquece e fortalece pela articulação com outros temas e que promove aprendizado e cooperação entre agentes de diferentes gerações, filiações e interesses. Ademais, são movimentos que tentam explicitamente uma construção que mescla arte e política, ativismo e festa; intencional ou intuitivamente aproximando cotidiano, produção e reprodução.

Espaço, cotidiano e política nas ocupações

No rescaldo da contracultura dos anos 1970, Lefebvre atentou-se ao fato de que faltava àquelas novas formas e tentativas de vida comunitária “uma invenção morfológica” (LEFEBVRE, 2000LEFEBVRE, H. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 2000[1974], p. 437, tradução nossa). Tantos grupos, utópicos, efêmeros ou duradouros, ousaram experimentar e, em meados daquela década, pareciam ter vivido o fim da sua experiência radical. Esse fim deveu-se, segundo Lefebvre, “à ausência de um espaço apropriado”, no qual se pudesse levar ao limite a vivência daquilo que denominou “arquitetura do prazer e da alegria, da comunidade do uso dos bens da terra” (LEFEBVRE, 2000LEFEBVRE, H. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 2000[1974], p. 437, tradução nossa). Cinquenta anos passados, parece-nos possível afirmar que estamos mais uma vez diante de uma experiência radical em busca de novos modos de viver ancorados em laços comunitários. Dessa vez, não obstante, as ocupações nos parecem ter dado um importante passo na direção de produzir um espaço apropriado.

Ao se analisar a ocupação como lugar próprio de ação política coletiva exercida num território concreto, é necessário descrever quais relações de poder se evidenciam nesses territórios e o que as constitui. Formulando a questão em termos teóricos, é necessário perguntar pelos dispositivos de poder que ali se colocam em jogo, mobilizando campos de saber, modos de subjetivação e, sobretudo, inscrevendo-se como momento singular na história da luta por acesso ao solo urbano e, dessa vez, fortemente determinado pela formação social e cultura política do Brasil contemporâneo.

A ocupação é um ato de coragem: é uma atitude radical que nasce preocupada em resgatar a vida cotidiana da dominação do espaço abstrato e na qual se coloca em curso um processo de tomada de consciência dos entraves da produção do espaço urbano. Tal consciência - a qual arriscaríamos chamar urbana - implica iniciativa e participação, mesmo que sejam meramente tentativas ou incompletas.

Há dois vetores no movimento político desses ocupantes: um orientado às formas de pressão externa das instituições; outro voltado às formas internas de coesão capazes de tornar os moradores uma coletividade. No primeiro caso, a prática política refere-se ao exercício das lideranças que aglutinam o grupo e ao apoio de variados atores urbanos no enfrentamento à repressão e às tentativas de despejo e reintegração de posse por parte de instituições de governo, proprietários da terra e aparatos de Estado. No segundo caso, o esforço político dirige-se ao erguimento dos espaços comuns (creche, cozinha, biblioteca) que reforçam relações de vizinhança, na medida em que exigem esforços cotidianos de cooperação e solidariedade, bem como emprego do tempo livre de cada um, de suas horas de descanso do trabalho, em prol de um objeto de demanda comum.

Nesses dois movimentos (a luta pelo reconhecimento externo e a construção da coesão interna), a questão do espaço está colocada em termos da relação de forças sociopolíticas, na qual as identidades individuais deixam de fazer sentido e assomam o comum constituído pela falta (a moradia, o espaço próprio de residência). Nota-se, aqui, um poder que circula e funciona horizontalmente em rede, com intensa capilaridade, com relações inscritas nos pontos de interseção permitidos pelos ritmos das vidas dos residentes. Uma dinâmica socioespacial comum que consolida os laços entre moradores. São pessoas reunidas não por uma “propriedade”, mas justamente por uma ausência que as convoca e mantém juntas para realizar um ofício comum (ESPOSITO, 2010ESPOSITO, R. Communitas: the origin and destiny of community. Stanford, California: Stanford University Press, 2010.): a construção do que é necessário, viável e possível para sua sobrevivência. Estar junto é palavra de ordem para estabelecer a permanência; reunião e presença são estratégias para pressionar os governos, ampliar os objetivos (a posse do terreno e, depois, o reconhecimento formal da habitação) e prolongar as formas cotidianas de mobilização.

A maioria das ocupações é precedida por um longo período de planejamento, realizado entre movimentos sociais e futuros moradores. Durante essa fase, são definidas regras e posicionamentos para o cotidiano dos lugares recém-ocupados. Esse aspecto prático descortina uma dimensão desalienante de um cotidiano instituído intencionalmente. Tem sido tática das ocupações o estabelecimento de espaços coletivos logo quando da entrada no terreno. Esses espaços são criados para atender demandas práticas e, às vezes, pontuais, que respondem à urgência da resistência, necessária principalmente nos primeiros meses da ocupação.

Um dos primeiros alvos do esforço coletivo é a construção de cozinha e creche comunitárias. Ambas são fundamentais à alimentação e garantem o bem-estar das crianças. Essas instalações também desempenham papel na interação entre a ocupação e a comunidade externa, apoiadores e vizinhança. Ali se estabelecem ou se fortalecem relações de solidariedade, cooperação e apoio mútuo.

A construção da creche na ocupação Eliana Silva ilustra as possibilidades desse esforço de construção e politização do cotidiano. A creche foi concebida e construída originalmente pelos moradores, para depois incorporar mudanças com um projeto arquitetônico feito em parceria com universidades. O caso mostra quão longe podem ir a organização e a criação de visibilidade pelos movimentos e apoiadores, assim como aponta o aprendizado sobre essa colaboração interna e externa. Embora não seja um caso de êxito trivial, podemos fazer duas observações sem ingenuidade.

Em primeiro lugar, que uma necessidade prosaica, como a creche, pode criar mobilização político-afetiva baseada no cotidiano. Longe da grandiloquência das disputas político-partidárias, necessidades corriqueiras impulsionam a criatividade institucional feita de baixo para cima. Em segundo lugar, a importância da ampliação dos objetos da ação coletiva como meio de extensão e dilatação no tempo e no espaço da coletividade. Há, nessa estratégia, um contraprojeto ao apelo desmobilizador do cotidiano privatizado. Se a conquista da moradia e o menor risco de despejo desmobilizam a comunidade, é necessário recriar crescentemente o envolvimento comunitário. Se isso for efetivo, o desejo de construção coletiva mantém-se, e a ampliação dos objetivos coletivos fortalece a ação política. Esse esquema diz respeito a um lema lefebvriano: mudar a vida, mudar a sociedade, passa por revolucionar o espaço cotidiano.

A prioridade na construção de espaços comuns é uma estratégia que delimita cotidianos de partilha e consolidação de laços. Trata-se de uma política do cotidiano que se soma aos encontros e assembleias - frequentes no início da ocupação para deliberação conjunta dos principais problemas enfrentados no seu dia a dia, mas que se escasseiam quando ela se consolida. Também iniciativas como as hortas comunitárias, espaços de lazer, mutirões de autoconstrução de moradias ou de outras instalações coletivas estabelecem novos momentos de ação conjunta para além daqueles iniciais da resistência.

Numa ocupação, o espaço não é uma localização ou um suporte inerte; ao contrário, é um meio pelo qual fluem energias potenciais de mudança coletiva, configurando-se em espaço desviado, cujos usos se dão segundo táticas de apropriação diversas e divergentes da ordem abstrata do espaço, que se firmam como práticas contestatórias.

Se pensarmos nos habitantes de uma ocupação enquanto subjetividades que se constituem em torno de objetivos ou contextos de ação mais ou menos definidos, compreendemos que sua ação conjunta é capaz de fornecer um ambiente de aprendizado político que transcende as possibilidades detidas pelos indivíduos no contexto anterior à ação conjunta. É distintivo da constituição de uma comunidade que seus membros carreguem para dentro da nova tessitura experiências peculiares que enriquecem um patrimônio emergente.

Pode-se opor a esse argumento o fato de que não há especificidade em tais tipos de comunidade, pois suas características seriam as que se verifica em qualquer situação de reunião e ação social. Ocorre que delimitar esse padrão de ação nas ocupações e entendê-lo em sua especificidade nos habilita a capturar e reproduzir um aprendizado que provém da ação coletiva específica nessas comunidades. Tal aprendizado acontece na dimensão política e também como aprendizado social amplo, e, em especial, considerando as situações de cidadania constrangida características das sociedades periféricas.

Dizíamos que a luta pelo direito à moradia e à cidade aproxima e catalisa a cooperação e o aprendizado entre agentes diversos. A vida cotidiana dessas ocupações constitui-se tanto como luta quanto como espaço físico e social onde emergem possibilidades de ação e criação bastante flexíveis. A urgência, diversidade e extensão dos problemas vividos e sua invisibilidade para o mercado e para o Estado, formas hegemônicas de atendimento às necessidades cotidianas, abrem portas para a colaboração social e o comprometimento político.

Certamente, a tentativa de resolução dos problemas cotidianos básicos partiu sempre dos próprios grupos excluídos. A autoconstrução e a luta histórica pela moradia nas favelas brasileiras são uma afirmação disso. A luta pela permanência, o improviso e a gambiarra são formas que essa luta assume. No entanto, uma das faces da exclusão é o acesso restrito à educação, ao treinamento formal e à absorção da técnica e organização modernos. Essa carência tradicionalmente é compensada com a improvisação, a adaptação e a resiliência, positiva e negativamente. Tudo isso confere à vida de grupos subalternos intensidade e criatividade reconhecidas.

Quando convergem para as ocupações atores dotados de treinamento formal rarefeito nas periferias, há formação de uma potência criativa singular. Treinamento formal e capacidade de organização aproximam-se de um ambiente de experimentação e cooperação com um grau de horizontalidade peculiar. Essa horizontalidade deriva do conteúdo político das ocupações onde os movimentos sociais se aproximam da luta popular pela moradia. Delimitada a ideia de comunidades de ação política, podem-se iluminar forças de emancipação e realização mais ampla da cidadania. É usual e verdadeiro ver no cotidiano a diluição da cidadania. No caso das nossas sociedades periféricas, essa diluição atinge os limites do constrangimento: o cotidiano constrange a prática da cidadania e o cidadão exerce uma cidadania constrangida. A condição periférica, além do mais, é transescalar. As ocupações estão em periferias urbanas da sociedade brasileira, a qual é, por sua vez, uma sociedade desigual e periférica ao sistema mundo capitalista.

Essa desigualdade se materializa em cidadania constrangida, seja do lado dos subalternos, seja do daqueles que, não vivendo a subalternidade, se aproximam dos que a vivem como militantes de movimentos sociais. No primeiro caso, a exclusão e a negação de voz e direitos associam-se à exclusão socioeconômica. No segundo caso, o distanciamento em relação ao universo prático e cultural característico da população de baixa renda traz ao sujeito o desconhecimento de problemas e possibilidades de resolução, a não ser pelos procedimentos tradicionalmente contidos nas políticas habitacionais brasileiras.

O ambiente das ocupações cria experimentações partilhadas em desenho urbano (marcação das ruas), infraestrutura urbana (TEVAPs), financiamento e implantação de serviços comunitários (Creche Tia Carminha), estabelecendo uma experiência densa (SILVA, 2015SILVA, H. Cidades, urbanização, desenvolvimento na Amazônia: notas para uma interpretação lefebvriana. In: COSTA, G. M.; COSTA, H. S. M.; MONTE-MÓR, R. L. M. (Org.). Teorias e práticas urbanas: condições para a sociedade urbana. Belo Horizonte: C/Arte, 2015. p. 317-342. ), onde se testam saberes mistos de técnicas codificadas e “saberes autoconstruídos” (MORADO NASCIMENTO, 2016 MORADO NASCIMENTO, D. Outra lógica da prática. In: MORADO NASCIMENTO, D. (Org.). Saberes [auto] construídos. Belo Horizonte; Associação Imagem Comunitária, 2016. ). Os desdobramentos dessa relação enriquecem o repertório dos residentes nas ocupações e também o repertório dos próprios movimentos sociais.

Denominamos esse processo de “experiência densa” porque se trata de uma dinâmica que emerge da combinação de fatores e agentes sociais em ação, e que, não fosse a densidade do momento criado pelas ocupações, não ocorreria a não ser de forma diluída no tempo e no espaço.

Entre o privado e o comum: propriedade nas ocupações

As tentativas de implementar lotes coletivos ao invés do tradicional lote individual nas ocupações Dandara, Eliana Silva e Guarani Kaiowá não foram muito bem sucedidas na avaliação de Lourenço (2014LOURENÇO, T. C. B. Cidade ocupada. 2014. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. <Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/BUOS-9QRGL5 >. Acesso em: 4 abr. 2017.
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). Contudo, ele aponta que os lotes coletivos seriam benéficos em termos de economia de escala quanto aos custos infraestruturais. Em termos da criação de mais espaços coletivos para interação, a proposta sofreu importantes desafios e restrições: a necessidade premente de assentar as famílias que chegavam às ocupações, preconceitos contra formas mais coletivas de habitação e de arranjos de propriedade (especialmente devido à origem da maior parte das famílias, que viviam anteriormente em espaços superlotados), e a falta de tempo suficiente para discutir isso com as famílias.

Nada disso deveria surpreender, já que a propriedade privada e a ideologia da casa própria são estruturais na sociedade brasileira e cada vez mais reforçadas pelas políticas habitacionais. Como Holston (2013HOLSTON, J. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.) notou, num país desigual, onde o acesso à propriedade fundiária foi sempre negado aos pobres, a ascensão pessoal ao status de proprietário, mesmo ilegalmente, é vista pela maioria da população como um passo na direção de se tornar um cidadão pleno, distanciado dos sem-propriedade.

Entretanto, precisamos considerar que, embora o lote individual seja usualmente adotado como principal arranjo espacial e proprietário das ocupações, isso não significa que ele se enquadre imediatamente no modelo da propriedade privada individual: podem existir restrições para quem possua um lote numa ocupação, especialmente contra a mercantilização da terra, já que os lotes devem ser usados para uso residencial e não para fins especulativos ou lucro. Portanto, é importante ressaltar que propriedade individual não é imediatamente idêntica à propriedade privada, na medida em que, sob determinadas condições, a primeira pode não significar direitos exclusivos, alienáveis e absolutos sobre a terra, mas baseia-se nas ideias de uso, posse, função social da propriedade e direito à moradia.

Trata-se de uma formulação distinta de propriedade, mais próxima do comum4 4 O comum designa os bens, espaços e recursos (materiais e/ou imateriais) que são usados e geridos coletivamente por uma dada comunidade por meio de uma série de práticas e relações de compartilhamento e reciprocidade, fora do âmbito do Estado e do mercado, da propriedade pública e privada. Nos dias de hoje, as práticas e conceitos do comum estão se fortalecendo em torno de um princípio político que suporta, ajuda a articular e reconhece a potência de uma pluralidade de lutas, resistências e experiências emancipatórias. Colocando-se em oposição à racionalidade neoliberal que procura estender os imperativos do mercado e da propriedade privada a todas as esferas da vida, o comum delineia a construção de novas formas democráticas de produção e gestão de recursos compartilhados. Mais sobre o comum, ver Dardot e Laval (2015). do que da forma-mercadoria, mas só sustentada através de alguma forma de controle exercido pelos movimentos sociais ou pelos próprios residentes. Uma imagem crucial, registrada na ocupação Irmã Dorothy, mostra um alerta interessante. Diz a placa: “Aqui não vende área. Sob (sic) pena de expulsão quem vender ou quem comprar”: eis uma tentativa de resistência à propriedade privada e à terra transformada em mercadoria.

Entretanto, caso as ocupações sejam oficialmente reconhecidas e integradas à cidade (ou mesmo antes disso), elas podem também subordinar-se às dinâmicas do mercado imobiliário. As ocupações vivem, assim, uma forte contradição: enquanto os movimentos sociais e residentes aspiram a ser reconhecidos pelo Estado (e, portanto, não mais sujeitados a viver sob o risco do despejo), eles também reconhecem que essa entrada na “cidade formal” pode significar a perda de muitos dos projetos coletivos e dos arranjos de propriedade mais comuns que eram possíveis enquanto muitos estavam engajados na resistência e em experimentações socioespaciais.

De acordo com Blomley (2004BLOMLEY, N. K. Unsettling the city: urban land and the politics of property. Londres: Routledge, 2004 ), enquanto as ocupações são uma afronta extralegal ou mesmo ilegal à hegemonia da propriedade privada, seja como um argumento político contra a desigualdade ou como uma reivindicação coletiva à terra por necessidade, os ocupantes podem também reivindicar do Estado a sanção de direitos de propriedade privada no espaço ocupado. Com isso, não queremos sugerir que toda luta é luta pela propriedade: certamente, muitas dessas lutas por justiça espacial transformam as situações concretas daquelas famílias muito pobres, procurando um lugar na cidade, e elas também transformam a consciência política daqueles que delas participam. Através das ocupações, os pobres urbanos formulam, nos termos de Holston (2013HOLSTON, J. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.), uma cidadania insurgente contra uma ordem socioespacial arraigada e profundamente desigualitária.

Desse modo, as ocupações remetem a diferentes relações na direção do comum não apenas por meio do fomento de muitas práticas e espaços comuns (as hortas coletivas, a autoconstrução de instalações comunitárias, o desenho urbano participativo), mas também por reivindicações mais coletivas à propriedade da terra, contra a mercantilização da terra associada ao espaço abstrato, que perturbam o modelo de propriedade privada plena. Gostaríamos de sugerir que alterações em escalas mais amplas - como o reconhecimento formal de arranjos comunais de propriedade fundiária (urbana) pela lei, timidamente admitido nos dias de hoje no Brasil - poderiam transformar as lutas locais de cada ocupação particular, dando-lhes tanto um vocabulário de reivindicação quanto um repertório de alternativas mais claras além da dicotomia entre o público e o privado.

O espaço abstrato nas ocupações

Passadas as fases iniciais de conceber a ocupação, tomar o terreno e erguer as casas, observa-se, no momento seguinte, a reemergência do espaço abstrato no formato de uma reação em série, através de dispositivos diversos e em grande medida de natureza indireta, ao afloramento de diferenças efetivas na produção do espaço. Essas dinâmicas surgem engendradas por agentes e poderes distintos, com uma capacidade significativa de disciplinar, controlar e diminuir potenciais efetivos de tais experiências se constituírem em seus próprios termos diferenciais, produzindo outras espacialidades, outras experiências urbanas e outras narrativas acerca do que constitui o urbano contemporâneo.

De fato, após sua fase inicial de planejamento, as ocupações passam por um período de construção, luta e resistência contra as ameaças de despejo e de ação correspondente no âmbito do aparato jurídico do Estado. O ativismo jurídico, que se realiza como forma de garantir direitos às ocupações, constitui uma das mais importantes especificidades do contexto atual, além do próprio planejamento territorial de algumas ocupações por parte dos movimentos, visando, assim, a anular as eventuais remoções de famílias em processos futuros de urbanização e incorporação das áreas pelo Estado.

Ocupações já nascem, inegavelmente, no terreno da disputa entre dois conjuntos de forças: germes do espaço diferencial e o espaço abstrato, que permite o nascimento efetivo somente daquilo que seja conformado à sua própria lógica. Considerando a enorme assimetria entre esses dois conjuntos, mesmo que não seja de forma abrupta e direta (como no caso da simples remoção de uma ocupação recém-efetivada), o grupo de agentes que conduzem os processos conformadores do denominado espaço abstrato demonstra ser capaz de (re)entrar em cena e (re)definir o teor das diversas disputas que surgem, em escalas diversas, com as espacialidades diferenciais emergentes.

Os vetores decorrentes dessa disputa assimétrica criam tendências, em muitas ocupações de Belo Horizonte, que conduzem à desvirtuação dessas experiências ao longo de sua maturação. Os agentes que têm promovido tal processo são variados. Um primeiro exemplo é o mercado imobiliário informal que surge nas ocupações e ganha forças em alguns casos, apesar das tentativas de contenção ou regulação por parte de organizadores e/ou lideranças. Seu aquecimento promove o incremento e a mobilização da renda da terra dentro das ocupações, alterando as relações internas de poder, internalizando uma dinâmica imobiliária que, no limite, reconduz a lógicas de exclusão e segregação semelhantes àquelas que criaram a necessidade da própria ocupação.

Essas dinâmicas tensionam o funcionamento das ocupações, reenquadrando-as à lógica da cidade neoliberal da qual, de início, se tentava escapar de forma autônoma. Assim, essas dinâmicas atuam na direção da produção de novos ativos imobiliários, mesmo que temporariamente informais. Dentro da ocupação, o mercado imobiliário em expansão reconduz o cotidiano para a criação e enraizamento de canais de extração de renda da terra através da produção do espaço. É óbvio, entretanto, que os movimentos organizados têm consciência desse processo e fazem dele uma possibilidade de aprendizado a partir do próprio percurso das experiências. Resta, contudo, um campo aberto em relação às (eventuais) tentativas de se atenuar tais forças que inserem um nexo de mercado interno às ocupações e que correm contra seus sentidos políticos.

Outra situação crítica que emerge da experiência das ocupações diz respeito à segurança pública e à convivência com atividades ilícitas. Na medida em que se constituem em contraposição ao Estado, as ocupações costumam ser apresentadas ou até percebidas no senso comum como fontes de insegurança ou de ataque à dita ordem pública. Assim, as próprias formas convencionais de promoção de segurança pública pelo Estado tornam-se problemáticas nas tentativas de construção social autônoma por grupos sociais marcadamente subalternos. Um exemplo disso são as situações criadas pela entrada de agentes do tráfico de entorpecentes, os quais se aproveitam, em algumas situações de ausência de policiamento em certas ocupações, criando relações de poder autoritárias sobre o cotidiano e os sentidos do lugar, relações estas que enfraquecem a mobilização política e mesmo o próprio ato de ocupar.

Em suma, tais manifestações próprias do espaço abstrato frequentemente têm a capacidade de anular impulsos emancipatórios suscitados pela diferença e pelo espaço diferencial. Elas insulam-se nas limitações e exploram fraquezas próprias de experiências embrionárias, impondo-se em função de seu caráter já consolidado como agrupamento de forças hegemônicas que se fazem presentes nesses espaços em construção. Enquanto poderes constituídos e forças hegemônicas, tendem a atuar na direção de sua própria reprodução e crescimento, mirando, para tal, inclusive na direção daquilo que busca escapar das relações heterônomas e contradições que tais poderes engendram.

Considerações finais

A experiência da produção do espaço nas ocupações urbanas de Belo Horizonte traz à tona um conjunto de elementos novos para a discussão das relações entre prática e aprendizagem, dominação, desvio e apropriação do espaço. Oferece também estímulo a quem quer aprofundar o debate aberto por Henri Lefebvre acerca da emergência do espaço diferencial em meio às contradições do espaço abstrato vigente. Respondendo à indagação sobre em que medida as ocupações engendram espaços diferenciais, podemos afirmar que muitas das novas ocupações constituem formas de urbanização tão mais singulares quanto mais sustentam experimentações político-comunitárias em torno da produção do comum. Desse modo, elas atuam em direção diametralmente oposta à produção do espaço hegemônica na metrópole contemporânea - que tende ao cerceamento, à privatização, à constituição de espaços públicos onde se minimiza o elemento político conflitivo. No entanto, essas construções vivem em permanente disputa com as tendências mais pertinentes ao espaço social hegemônico da cidade neoliberal, que demonstram estar presentes nas ocupações de formas diversas.

Diante dos obstáculos à realização de uma apropriação espacial efetivamente produtora de diferenças (para além daquelas induzidas), os sucessos e fracassos registrados pelas ocupações urbanas levam-nos a pensar em modos de atualizar os sentidos concretos das ações contra-hegemônicas, em outros espaços possíveis. Nesse contexto, cabe destacar a relevância dos desvios de funções dos espaços já existentes. Um processo de resistência à violência estatal e de tentativa de desprendimento da lógica da propriedade privada que passa, num primeiro momento, pela transformação dos espaços vividos.

Demonstra-se, no contexto contemporâneo de reorganização do cenário dos movimentos sociais urbanos no Brasil, a importância fundamental da ação direta localizada, e, ao mesmo tempo, sua insuficiência quando não inserida num mosaico mais amplo de estratégias voltadas para transformações no plano das instituições (como reconhecido plenamente por muitos dos próprios protagonistas dos movimentos organizados ligados às ocupações). Conquistas muitas vezes restritas ao campo simbólico, mas que abrem brechas reais para a criação de uma realidade espacial diferente.

Isso nos leva a considerar, finalmente, a importância de aprendizados que produzam diferenças também em relação às formas e às estruturas espaciais. Mantendo o cuidado e o rigor dos apontamentos prático-teóricos de Lefebvre, precisamos pensar nos possíveis modos de as ocupações entrelaçarem uma função, uma forma e uma estrutura do espaço diferencial. O que levaria os “interessados” nas ocupações a (não) realizarem essa amarração? Com essa questão inconclusa, mas bastante estimuladora dos diálogos que constroem este texto, apontamos uma possível agenda de investigação futura sobre as potencialidades de espaço diferencial que entrevemos nas ocupações belo-horizontinas.

Se podemos afirmar que as ocupações são respostas concretas da população de baixa renda e dos movimentos sociais às contradições do espaço abstrato da metrópole (particularmente à contradição entre a negação do acesso à terra e à moradia às classes trabalhadoras mais pauperizadas e a realidade de um imenso estoque de terrenos e imóveis ociosos mantidos para fins especulativos), disso não decorre imediatamente, como se viu, que as ocupações urbanas sejam o germe de um espaço diferencial.

Entretanto, o que aqui se quis apontar enquanto conclusão principal do artigo, a partir de uma lente lefebvriana, é que as ocupações podem ser mais bem compreendidas em sua complexidade e diversidade como campos de tensão situados entre o espaço abstrato e o diferencial, contendo, contraditoriamente, tanto forças de dominação quanto de apropriação, ora pendendo para um lado, ora para outro e, por vezes, constituindo-se não mais do que através de desvios. O que em si não reduz ou ignora suas potências associadas à produção de um espaço outro a partir de uma vida cotidiana diferente, orientada pelo valor de uso, através da apropriação: momento de fissura e irrupção na ordem da cidade capitalista.

Referências

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    Este artigo é produto de debates, investigações compartilhadas e de um esforço de escrita coletiva no âmbito do Grupo de Estudos Henri Lefebvre (GEHL/UFMG). O GEHL/UFMG organizou-se desde 2003, fundado pelo Prof. Roberto Luís de Melo Monte-Mór (FACE/UFMG), com o propósito de estudar a obra de Henri Lefebvre, em especial a problemática urbana, nas diversas configurações que esse tema assume nos textos desse pensador. O GEHL reúne na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) professores e estudantes de graduação e pós-graduação em economia, geografia, arquitetura e direito. Entre 2003 e 2015, em suas diversas formações, o GEHL vem participando dos Encontros da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ENANPUR) por meio da organização de sessões livres junto a outros pesquisadores da obra lefebvriana no Brasil. Nos últimos anos (2015-2017), o GEHL tem atuado no sentido de articular a teoria lefebvriana aos processos de produção do espaço urbano brasileiro.
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    An English version of this article is being prepared by GEHL/UFMG and will be available for download in the group’s Academia.edu profile: https://ufmg.academia.edu/GrupodeEstudosHenriLefebvre
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    É fundamental para a nossa discussão que se reconheça o papel do método dialético no pensamento lefebvriano (MARTINS, 1996MARTINS, J. S. Henri Lefebvre e o retorno à dialética. São Paulo: Hucitec, 1996.). Os temas, preocupações, embates teóricos e políticos, assim como o método de realização da pesquisa são orientados pelo método dialético hegeliano-marxista. O pensamento dialético tem, entre suas características, o reconhecimento do caráter contraditório da realidade. Nesse sentido, não se compreende a realidade extirpando-se as suas contradições, sob pena de se construir um saber marcado pela unilateralidade e - o que é pior - pela ideologia. A contradição é constitutiva do real. Das contradições, internas e inerentes ao ser social e histórico, provém o movimento que caracteriza o mundo como devir e não como coisa estática. A dialética como método de pesquisa requer a consideração constante do negativo e da contradição. Esse princípio cria diversos desafios, entre os quais a limitação da própria linguagem para expressar realidades que se contradizem internamente. No nosso próprio exercício, tentamos seguir as indicações metodológicas de Lefebvre (1975)LEFEBVRE, H. Lógica formal, lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. , sem, com isso, assumir um “estilo de escrita lefebvriano”, tampouco tentar a redução -extrapolação do método ao modelo. Não se ignora nenhum dos dois riscos, mas não se esposa nenhum deles como projeto: antes, nossa tentativa é empreender uma pesquisa concreta pautada pelo método dialético, tal qual Lefebvre propôs.
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    O comum designa os bens, espaços e recursos (materiais e/ou imateriais) que são usados e geridos coletivamente por uma dada comunidade por meio de uma série de práticas e relações de compartilhamento e reciprocidade, fora do âmbito do Estado e do mercado, da propriedade pública e privada. Nos dias de hoje, as práticas e conceitos do comum estão se fortalecendo em torno de um princípio político que suporta, ajuda a articular e reconhece a potência de uma pluralidade de lutas, resistências e experiências emancipatórias. Colocando-se em oposição à racionalidade neoliberal que procura estender os imperativos do mercado e da propriedade privada a todas as esferas da vida, o comum delineia a construção de novas formas democráticas de produção e gestão de recursos compartilhados. Mais sobre o comum, ver Dardot e Laval (2015)DARDOT, P.; LAVAL, C. Común: ensayo sobre la revolución en el siglo XXI. Barcelona: Editorial Gedisa, 2015..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2016
  • Aceito
    28 Mar 2017
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