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Cidade-Frotagem1 1 Artigo traduzido por Zélie Denis e revisado por Adalberto Retto, Cristina Leme e José Lira.

Frottage City

Resumo

A citação é uma operação fundamental de todas as práticas artísticas e literárias, assim como de todas as formas discursivas da vida cotidiana e tem sido uma prática amplamente difundida no discurso arquitetônico desde o Renascimento. O que dizer da citação em produções não verbais? A intertextualidade atua em várias áreas da teoria e da prática de arquitetura e sua consideração permite entender a reverberação de ideias e projetos de diferentes autores sobre os de seus contemporâneos ou sucessores. Intericonicidade, intertectonicidade e, especialmente, a transurbanidade são categorias relevantes para a compreensão da circulação local, nacional ou universal de imagens, caracteres materiais e formas urbanas na constituição do tecido histórico concreto das cidades.

Palavras chave:
Citação; Intertextualidade; Transurbanidade; Cidade; História; Forma Urbana

Abstract

Citation is a basic operation among all artistic and literary practices, as well as among any discursive forms of everyday life. It has also been a widespread practice within the architectural discourse since the Renaissance. What about quotations within non-verbal productions? Intertextuality works in several regions of architectural theory and practice. Taking it into account allows for the understanding of the ways by which different architects’ ideas and projects may ressonate in their contemporaries or successors. Intericonicity, intertectonicity and, above all, transurbanity are relevant categories to the understanding of local, national or universal circulation of images, material characters and urban forms in the making of the historical fabric of cities.

Keywords:
Citation; Intertextuality; Transurbanity; City; History; Urban Form

A citação é uma operação fundamental de todas as práticas artísticas e literárias, assim como de todas as formas discursivas da vida cotidiana. Os francófonos das gerações passadas preservaram com devoção a memória das “páginas cor-de-rosa” do Petit Larousse, cujas notas eram sempre, e em todas as circunstâncias, úteis, e para as quais, hoje, os sites especializados talvez venham fornecendo um substituto. Os anglófonos nunca deixaram de se referir, desde 1855, às Familiar Quotations de John Bartlett, das quais foram impressas mais de vinte edições. Tendo como ponto de partida essa operação corriqueira, até banal, tanto nas modalidades eruditas como nas vernaculares, gostaria de abordar as questões relacionadas à arquitetura e à forma das cidades, o que farei adiante, não sem antes tecer algumas considerações no campo da literatura.

A citação, de texto a texto

A citação é parte constitutiva de todo o campo literário, como mostraram, de maneira brilhante, Antoine Compagnon há cerca de quarenta anos, em La Seconde Main (1979COMPAGNON, A. La Seconde Main, ou le travail de la citation. Paris: Seuil , 1979. ), e Gérard Genette, em Palimpsestes (1982GENETTE, G. Palimpsestes, la littérature au second degré. Paris: Seuil , 1982. ). Mais recentemente, a Quotology, de Willis Goth Regier (2010REGIER, W. G. Quotology. Lincoln (Nebraska): University of Nebraska Press, 2010.), e The Words of Others, de Gary Saul Morson (2011MORSON, G. S. The Words of Others; from Quotation to Culture. New Haven: Yale University Press, 2011.), propuseram suas teorias da citação. Esses estudos recorrem a um grande número de obras decisivas que assumiram a forma de coletâneas de citações, como os Adagia de Erasmo ou os Essais de Montaigne, para nos mantermos apenas no século XVI, mas, obviamente, seria possível recuar à Antiguidade e listar todas as ocorrências de citações de Homero ou de Sócrates.

A reunião de citações é uma componente fundamental da pesquisa e de outras formas de escrita. Walter Benjamin identificou em tal procedimento de coleta “um fenômeno primevo do estudo” (2009BENJAMIN, W. Paris, capitale du XIXe siècle; le livre des passages. Paris: Cerf, 1997. [Edição brasileira: Passagens. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009]. , p. 245) e fez dele o princípio fundamental do seu Passagen-Werk, alegando ter frequentemente omitido as aspas. Ele reconheceu a força potencial das citações, suscetíveis de desviar ou destruir o texto em que aparecem, e declarou que “as citações em meu trabalho são como salteadores no caminho, que irrompem armados e roubam ao flâneur a sua convicção” (BENJAMIN, 1987BENJAMIN, W. Sens unique. Paris: Les Lettres nouvelles, 1978. [Edição brasileira: Rua de mão única, obras escolhidas. V. II, São Paulo: Brasiliense, 1987.] , p. 61). Assim, Benjamin (2009BENJAMIN, W. Paris, capitale du XIXe siècle; le livre des passages. Paris: Cerf, 1997. [Edição brasileira: Passagens. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009]. , p. 509) escreveu que Jules Michelet é um autor “que, onde quer que seja citado, faz o leitor esquecer o livro no qual aparece a citação”. Por sua vez, é provável que ele próprio tenha sido um dos autores mais citados nos últimos decênios nos campos das ciências humanas e da história, incluindo a história da arquitetura. Sua interpretação da aquarela de Paul Klee, Angelus novus, por ele adquirida em 1921, com cujo título pretendia nomear uma revista, foi tão marcante que Massimo Cacciari e Cesare De Michelis o usaram para batizar a revista trimestral que publicaram de 1964 a 1971, em Florença. A literatura também é composta de autocitação. Paul Valéry observa em seus Cahiers (1958VALÉRY, P. Cahiers. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, t. 6, 1916-1918, p. 473, 1958.): “Meu trabalho de escritor consiste apenas em implementar (literalmente) notas, fragmentos escritos acerca de qualquer coisa e a qualquer momento da minha história. Para mim, tratar de um assunto é levar pedaços existentes a se agruparem no assunto doravante escolhido ou imposto”.

Desloquemo-nos agora para o campo da arquitetura. A citação textual tem sido uma prática amplamente difundida no discurso escrito dos arquitetos desde o Renascimento. As maiores figuras da modernidade encheram suas obras de trechos emprestados de escritores. O interesse de Frank Lloyd Wright por Notre Dame de Paris de Victor Hugo não é um segredo, assim como o interesse de Auguste Perret pelo diálogo socrático de Valéry em Eupalinos ou O arquiteto. O caso de Le Corbusier não é menos evidente. Embora nem sempre se preocupasse em usar aspas, ele inseria fragmentos de Mallarmé ou de Nietzsche em seus artigos e livros. Além disso, praticou a autocitação, por exemplo, ao publicar fragmentos das próprias cartas em Le Modulor 2. As citações ocasionalmente alimentam a controvérsia, quando são desviadas ou de alguma forma exageradas. O livro de Robert Venturi, Complexidade e contradição em Arquitetura (1966VENTURI, R. Complexity and Contradiction in Architecture. Nova York: Museum of Modern Art , 1966. [Edição brasileira: Complexidade e contradição em Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 2004.]), vem à mente a propósito do desvio paródico do “less is more” de Mies van der Rohe em seu “less is a bore”. É verdade que o próprio Mies havia praticado a anticitação quando substituiu o aforismo alemão “o diabo está nos detalhes” por “Deus está nos detalhes” - aliás, já usado por Gustave Flaubert e atribuído a Santo Agostinho.

A citação, de edifício a edifício

O que dizer da citação em produções não verbais? O filósofo Nelson GoodmanGOODMAN, N. On Some Questions Concerning Quotation. The Monist, v. 58, n. 2, p. 299, abr. 1974. empenhou-se em explorar tais modalidades no campo visual. Ele levantou questões relevantes em um artigo de 1974, ao observar que “uma pintura somente cita outra se ao mesmo tempo a ela se refere e a contém. Mas quais são os meios pelos quais uma pintura se refere a outra que ela contém? Em outras palavras, qual é o análogo pictórico das aspas?”. As premissas de Goodman foram aplicadas a uma análise comparativa de edifícios por Remei Capdevila-Werning (2011)CAPDEVILA-WERNING, R. Can Buildings Quote?. The Journal of Aesthetics and Art Criticism, v. 69, n. 1, p. 115-124, inverno 2011.. Mais recentemente, um número inteiro da revista Perspecta (2016)ARTEMEL, A. J.; LESTOURGEON, R.; SELLE, V. de la (dir.). Quote, Perspecta, n. 49, 2016. foi dedicado à citação na arquitetura.

Antes de observar alguns fenômenos arquitetônicos concretos, convém submeter o assunto a uma reflexão mais ampla sobre as transferências de um texto para outro, sobre intertextualidade, conceito proposto em 1969 por Julia KristevaKRISTEVA, J. Semiotikè, recherches pour une sémanalyse. Paris: Seuil , 1969. [Edição brasileira: Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974] 2 2 Sobre os pontos de vista acerca dessa noção e de sua evolução, ver especialmente as seguintes sínteses: BIASI, P.-M. Intertextualité (théorie de), Encyclopedia Universalis. Paris, p. 514-516, 1989. PIEGAY-GROS, N. Introduction à l’intertextualité. Paris: Dunod, 1996; SAMOYAULT, T. L’Intertextualité, mémoire de la littérature. Paris: Nathan, 2001. RABAU, S. L’Intertextualité. Paris: GF Flammarion, 2002. . Ela pretendia então apresentar o fenômeno poiético identificado pelos formalistas russos já na década de 1920 sob a designação de “dialogismo”3 3 A esse respeito, ver principalmente, em francês, as seguintes obras: BAKHTIN, M. Esthétique et Théorie du roman. Paris: Gallimard, 1978; BAKHTIN, M. Esthétique de la création verbale. Paris: Gallimard, 1984. Ver também: TODOROV, T. (dir.). Théorie de la littérature, textes des formalistes russes. Paris: Seuil, 1965; TODOROV, T. Mikhaïl Bakhtine - Le Principe dialogique. Paris: Seuil, 1981. . Posteriormente, Gérard Genette (1979GENETTE, G. Introduction à l’architexte. Paris: Seuil , 1979.) introduziu a noção de transtextualidade, definida como “a presença literal (mais ou menos literal, integral ou não) de um texto em outro”. Ele observou que “a citação, ou seja, a convocação explícita de um texto, ao mesmo tempo apresentado e distanciado pelas aspas, é o exemplo mais óbvio desse tipo de função, que inclui muitos outros”. Essas relações estendidas estão inscritas no registro de Genette chamado “arquitextualidade”, da raiz grega arkhè. Para o crítico e teórico literário, trata-se “[d]essa relação de inclusão que une cada texto com os diferentes tipos de discurso a que ele pertence”. Divertindo-se com o que poderia ser uma “arquitextura” hipotética, Genette (1979GENETTE, G. Introduction à l’architexte. Paris: Seuil , 1979., p. 87-88) vê cada um dos textos utilizados de acordo com uma multiplicidade de figuras de “arquitextos” anteriores.

Além desse trocadilho quase comovente, as análises de Antoine Compagnon sobre a “segunda mão” e aquelas iniciadas por Julia Kristeva e Genette são relevantes para a observação das formas da arquitetura e das cidades. Em vez de se limitarem a localizar citações, entendidas como a transferência de um enunciado de um projeto ou de um edifício para outro, as relações intertextuais ou arquitextuais se desenvolvem de acordo com um leque amplo de figuras. Elas variam, entre outras possibilidades, da inclusão literal - justamente, a citação - à paráfrase, à condensação e à homologia. Sua transposição para o estudo de formas espaciais pode ser direta e é possível falar de citações formais, de plágio ou de paródia, como na literatura. Também se utilizam de estratégias não textuais, como aquelas fornecidas pela geometria, da homotetia à semelhança e à translação. Na escala das estruturas, os homomorfismos podem ser igualmente identificados.

O caso mais simples de tais relações é o da inclusão, de um edifício que contém outro edifício por inteiro, ou um ou mais fragmentos de edifícios. Um exemplo impressionante é o do Museu Pergamon, construído em Berlim por Alfred Messel, em 1909, no qual está exposto o altar arrancado das ruínas da cidade grega de mesmo nome. A forma em U do edifício que o contém, projetando seu frontispício em direção ao rio Spree, parece ecoar o conteúdo antigo. A poucos passos de distância, o Altes Museum, construído por Karl Friedrich Schinkel em 1830, abriga atrás de sua colunata iônica uma rotunda que reproduz em tamanho reduzido o Panteão de Agripa, mas com seus nichos e caixotões operando a colagem de um continente inspirado nos templos gregos com o interior de um edifício romano. Quanto aos fragmentos de edifícios, o Museu de Escultura Comparada, inaugurado em 1882 por Geoffroy-Dechaume no palácio du Trocadéro, que os desdobra segundo um princípio diacrônico inspirado em Viollet-le-Duc, por certo oferece um caso-limite, mas muito eloquente. Um programa artístico e científico levou à produção de uma narrativa didática que tem como protagonistas centenas de réplicas em gesso de modelos originais (FONT-RÉAUXL, 2001FONT-REAULX, D. de (dir.). Le Musée de sculpture comparé: naissance de l’histoire de l’art moderne. Paris: Éditions du patrimoine, 2001.).

No felizmente breve período de ironia pós-moderna, a citação era a regra. No edifício central da cidade nova de Tsukuba, Arata Isozaki inseriu em 1983 um espaço que reproduz a praça do Capitólio de Michelangelo, em Roma, com o mesmo padrão no piso, porém sem a estátua equestre de Marco Aurélio. Esse espaço fechado, em que faltam os três palácios que cercavam a praça original e a vista deslumbrante de Roma, é uma espécie de sinédoque, ao remeter-se ao Renascimento como um todo, talvez como uma homenagem de Isozaki ao seu mentor Kenzo Tange, grande admirador de Michelangelo. Charles Moore realizou outra operação utilizando o repertório romano, incluindo uma paródia da Fonte de Trevi na Piazza d’Italia, esse grande cenário por ele criado em Nova Orleans em 1978.

Em seu belo texto de 1952, “Kafka e seus precursores”, Jorge Luis Borges (2000)BORGES, J. L. Kafka et ses précurseurs. In: Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2010. [Edição brasileira: Kafka e seus precursores. In: Obras completas, v. 2. São Paulo: Globo, 2000]. apresenta um aforismo luminoso ao afirmar: “O fato é que cada escritor cria seus precursores. Sua contribuição modifica nossa concepção do passado, bem como a do futuro”. Essas palavras podem amplamente ser transpostas para a arquitetura; podem também ser parodiadas com a alegação de que “cada arquiteto cria seus precursores”. Pelo menos, é o que revela o estudo cuidadoso de muitos projetos decisivos.

Intericonicidade e intertectonicidade4 4 Neologismos sugeridos pelo autor. “Intericonicidade”, formado a partir da palavra “icônico”, qualifica interações de imagens, e “intertectonicidade”, formado a partir da palavra “tectônica”, qualifica a transferência das características tectônicas entre edifícios. [NdT.]

A intertextualidade arquitetônica atua em várias áreas da teoria e da prática. Sua consideração permite entender as formas de pensar na base da produção de determinado arquiteto ou a reverberação de projetos de diferentes autores sobre aqueles de seus contemporâneos ou sucessores. O paradigma do intertexto fornece uma estrutura na qual todas as relações observadas podem ser pensadas, quer elas operem na ordem sintagmática da arquitetura - o que, convencionalmente, é chamado composição -, quer o façam na ordem lexical. Assim consideradas, essas formas de pensar podem ser estudadas escapando da noção duvidosa e notoriamente obsoleta de “influência”. Encorajado por Gérard Genette, que me mostrou o caminho nesse assunto, me arriscarei a sugerir alguns neologismos.

A primeira relação é a intericonicidade, que sugere a circulação de imagens de um projeto ou de um edifício para outro. Nessa operação, as projeções, como plantas, elevações ou cortes, são preservadas. A École des Beaux-Arts de Paris notabilizou-se por esse tipo de transferência com base em uma arqui-imagem, por assim dizer, em analogia à noção sugerida por Genette, frequentemente chamada de “tubard5 5 Gíria da Escola de Belas Artes de Paris para designar uma construção, um projeto ou um desenho que é copiado em dado projeto; uma espécie de modelo oculto, ainda que reconhecível pelos iniciados. , termo-chave da gíria escolar. Antes da era da fotocópia, a transferência era feita algumas vezes através do “poncif6 6 Outra gíria da Escola explicada no próprio texto. Poncif significa “desenho”. [NdT.] , um decalque do desenho original reproduzido após este ter sido revestido com grafite e esfregado sobre a folha do novo desenho.

Além da mediação pelo desenho, pela gravura e pela fotografia, a disseminação de formas se concretizou como resultado de experiência material direta durante as viagens de formação de arquitetos. Brunelleschi e Palladio haviam visitado Roma; este último chegou mesmo a restituir edifícios antigos, como as Termas de Caracalla, das quais ele fará uma reconstituição hipotética em 1540. O jovem Le Corbusier desenharia o mesmo conjunto em 1911 em seu caderno de desenho romano, enquanto tirava fotografias e comprava outras em estúdios como o Alinari. Ele jamais deixaria de usar esses materiais em suas obras, editando-os como recurso de demonstração, como fez com a imagem da basílica de Santa Maria em Cosmedin, publicada em 1923, em Por uma arquitetura, despojada, graças à tinta preta, dos ornamentos que contradiziam a imagem de modernidade que pretendia nela acentuar (COHEN, 2007COHEN, J.-L. Introdução. In: LE CORBUSIER. Toward an Architecture. Trad. John Goodman. Los Angeles: Getty Research Institute, 2007., p. 5-82 e p. 308-330). Foi justamente com relação a Le Corbusier que as aplicações mais estimulantes das teorias da intertextualidade foram sugeridas (JOURNEL; REICHLIN, 2007JOURNEL, G. M.; REICHLIN, B. (dir.). Le Corbusier, l’atelier intérieur. Cahiers de la recherche architectural, urbaine et paysagère, n. 22-23, fev. 2007.).

Voltando rapidamente a esse grande momento dos empréstimos historicistas que foi o pós-moderno, as imagens cumpriram um papel determinante na apropriação de certos projetos anteriores. Assim, as arqui-imagens da sede dos Walt Disney Studios, projetada por Michael Graves em Burbank, em 1988, são a Casa dos Círculos e a Barreira de La Villette, de Claude-Nicolas Ledoux, ambas ilustradas em seu livro de 1804, L’Architecture considérée sous le rapport des lois, des mœurs et de la législation.7 7 A arquitetura vista pelo viés das leis, dos costumes e da legislação, por Claude-Nicolas Ledoux, 1804. [NdT.] Mas os modernos também usaram métodos comparáveis. Se observarmos a ala de serviço da grande casa comunal, construída em 1930 por Ivan Nikolaev para os alunos do Instituto Têxtil de Moscou, veremos uma citação literal da fachada para o jardim da villa Stein-de-Monzie, construída em 1926 em Garches, por Le Corbusier, publicada pela SA, a principal revista construtivista russa, no ano seguinte. A citação pode se tornar paródica quando um parâmetro fundamental da arqui-imagem é modificado ou invertido. É o caso da Villa Savoye de Le Corbusier, concluída em 1931 em Poissy, metade da qual foi reconstruída em preto, e não em branco, como a original, em 2001, por Ashton Raggatt McDougall, em Camberra, para hospedar o Instituto Australiano de Estudos sobre Aborígenes e Ilhas do Estreito de Torres. O ponto subjacente a essa inversão cromática é a crítica ao apagamento da componente aborígene da história australiana.

A segunda relação é a da intertectonicidade, que remete à transferência de caracteres tectônicos de um edifício para outro, seja literal, seja como efeito de inflexões e transformações, das quais um exemplo histórico é o maneirismo. Surgida no início do século XVI, essa abordagem reciclou as formas do primeiro Renascimento, repetindo-as e distorcendo-as ou modificando sua escala. Encontro, em determinados projetos do século XX, um eco desse maneirismo. Assim, o arquiteto petersburguês Alexandre Gegello imaginou em 1923, para o concurso para a sede da ARCOS em Moscou, uma ordem dórica um tanto inflada, de modo que parecesse mais musculosa e “proletária”. De novo, foi a ordem dórica que inspirou Robert Venturi na caricatura de um templo instalado na Strada Novissima da Bienal de Veneza de 1980, com todas as suas licenças, começando pelas colunas agrupadas a três, uma das quais no eixo. Esses dois projetos, entre outros tantos, são o indício do duplo status das ordens, operadores da composição de conjunto dos edifícios, tanto quanto sistemas decorativos.

Em busca de determinadas figuras clássicas em uma arquitetura redefinida pelo uso de concreto armado, Auguste Perret também soube repensar as ordens, como as do seu Museu de Obras Públicas, de 1937, cujos capitéis revelam, na sua modelagem, a presença das estruturas de aço que revestem. As soluções usadas por Perret para deixar transparecer a estrutura dos edifícios em suas fachadas, diferenciando a sua superfície, foram adotadas por seus seguidores diretos, antes de cruzar os Alpes e serem desenvolvidas pelo escritório de Lodovico Belgiojoso, Enrico Peressutti e Ernesto Rogers. Este último, em 1955, dedicou uma breve monografia ao mestre falecido no ano anterior (ROGERS, 1955ROGERS, E. Auguste Perret. Milão: Il Balcone, 1955.). A tectônica de Perret afloraria em 1957 na Torre Velasca, em Milão, e em 1959 no imóvel do Corso Francia, em Turim.

Ainda operando com o concreto armado e sua superfície, a transmutação do método de construção utilizando fôrmas de madeira para fins estéticos, tal como propôs Le Corbusier com o concreto bruto na Unidade de Habitação de Marselha ou no convento de La Tourette, foi objeto de uma interpretação incontestavelmente maneirista por parte de Jean François Zevaco, em 1953, no prédio dos correios da cidade reconstruída de Agadir (GARGIANI; ROSELLINI, 2011GARGIANI, R.; ROSELLINI, A. Le Corbusier: béton brut and ineffable space, 1940-1965, Surface Materials and Psychophysiology of Vision, Lausanne: Presses de l’EFPL, 2011.). Daquilo que originalmente era uma necessidade e se tornou virtude, ele criou um princípio estético ao levar ao extremo a busca pelo contraste plástico. Ainda no Marrocos, outra transferência tectônica foi levada a efeito pela equipe do ATBAT-África - Georges Candilis, Shadrach Woods e Vladimir Bodiansky -, ao construírem em Casablanca, em 1952, conjuntos habitacionais para os trabalhadores muçulmanos. Como Alison e Peter Smithson (1955SMITHSON, A.; SMITHSON, P. Collective Housing in Morocco. Architectural Design, p. 2-7, jan. 1955.) demonstraram, seus pátios suspensos evocam um arquitexto vernacular - as casbás do sul do Marrocos. Essa transferência diferencia-se daqueles que no passado viram os ornamentos pré-coloniais migrarem para as fachadas nos edifícios especulativos dos europeus.

As migrações intertectônicas às vezes são iterativas, como mostra o projeto de Le Corbusier para o Palácio dos Sovietes em Moscou, em 1932. O arco que sustenta a cobertura do grande salão é uma referência híbrida a duas obras do engenheiro Eugène Freyssinet: sua ponte estaiada em 1922, em Saint-Etienne du Vauvray, e as abóbadas parabólicas de seus hangares para dirigíveis em Orly, construídas ao mesmo tempo e reproduzidas em Por uma arquitetura. O projeto estudado para Moscou foi retomado quase literalmente em 1937 por Lucio Costa e Oscar Niemeyer no projeto do anfiteatro da Cidade Universitária do Rio de Janeiro. Trinta anos depois, Walter Gropius lhe daria outra interpretação em seu estudo para o anfiteatro da Universidade Estadual da Flórida, em Tallahassee, associando a citação corbusieriana às cascas em concreto de conotações brasileiras. Proveniente da arte do engenheiro, o arco usado por Le Corbusier continuou suas migrações, por exemplo, no projeto não realizado de Marcello Piacentini que teria dominado a exposição planejada em 1942, em Roma, e no Gateway Arch de Eero Saarinen, concluído em 1965 em St. Louis, em forma de catenária e construído em aço inoxidável.

Transurbanidade e espaços nacionais

A essas duas noções, eu acrescentaria a de interurbanidade, ou melhor, de transurbanidade, à qual gostaria de dedicar a maior parte das minhas observações, deslocando o olhar para as formas urbanas e suas relações, apoiando-me na hipótese de que as cidades podem ser pensadas como grandes artefatos aos quais se aplicam princípios comparáveis àqueles válidos para os textos e os edifícios. Se observarmos a criação e o desenvolvimento das cidades desde o Renascimento, veremos que a translação dos traçados viários, da forma dos espaços abertos e das composições monumentais de um lugar para outro são operações recorrentes, cujo levantamento nos permite ultrapassar visões redutoras de sua história. Em vez de pensar as cidades individualmente em sua diacronia, em uma crônica limitada a um espaço local ou estendida a uma escala regional ou nacional, é útil perceber a inscrição de cada quadro nacional em determinantes mais amplos. Essa inscrição pode ser pensada de acordo com três modelos diferentes, como já tive a oportunidade de explicar (COHEN, 2017COHEN, J.-L. Verso una storia transurbana delle città. In: MENNA, G. (dir.). Historia Rerum. Scritti in onore di Benedetto Gravagnuolo. Nápoles: Clear, 2017. , p. 150-157).

O primeiro modelo, e o mais comum, opõe o espaço local ou nacional ao espaço universal. Esse modelo privilegiou o estudo de dispositivos como o dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, ou de organizações comprometidas com a reforma urbana, as cidades-jardins e a habitação social, para oferecer uma visão demasiado homogênea das transformações ligadas à modernização. Exemplos extremos desse posicionamento são o discurso sobre o “estilo internacional”, desenvolvido em Nova York na década de 1930, e, no caso da Europa, o discurso datado de historiadores como Leonardo Benevolo (1960BENEVOLO, L. Storia dell’architettura moderna. Bari: Laterza, 1960.). Jacques Gubler (1975GUBLER, J. Nationalisme et internationalisme dans l’architecture moderne de la Suisse. Lausane: Éditions L’Âge d’homme, 1975.) ficou bastante isolado em suas observações mais sutis sobre nacionalismo e internacionalismo na arquitetura moderna na Suíça. A teoria do “regionalismo crítico”, desenvolvida por Kenneth Frampton, na esteira de Alex Tzonis e de Liane Lefaivre, mas de fato já sugerida por Lewis Mumford, pretendia opor uma “arquitetura de resistência” ao universalismo (BENEVOLO, 1960BENEVOLO, L. Storia dell’architettura moderna. Bari: Laterza, 1960.). Uma formulação unilateral dessa dialética foi proposta por Rem Koolhaas em 2014, na Bienal de Arquitetura de Veneza, ao sugerir que cada pavilhão nacional expusesse as modalidades segundo as quais a modernidade havia sido “absorvida” em cada país.

O segundo modelo ressalta as relações bilaterais entre cenas nacionais e cidades. Conceitos relevantes para o primeiro modelo, como “dominação” ou “hegemonia”, aplicam-se quando os dois parceiros de um relacionamento são desiguais. Assim, a preeminência dos Estados Unidos gerou o fenômeno do americanismo, que afetou a Europa, inclusive a Rússia, desde o início do século XX. A modernidade foi, portanto, amplamente identificada com a América, que parecia representar o futuro, rumo ao qual cidades e edifícios deveriam se aproximar (COHEN; DAMISCH, 1993COHEN, J.-L.; DAMISCH, H. (dir.). Américanisme et modernité, l’idéal américain dans l’architecture. Paris: Flammarion/École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1993.; COHEN, 1995COHEN, J.-L. Scènes de la vie future; les architectes européens et la tentation de l’Amérique 1893-1960. Paris: Flammarion/Montréal, Centre Canadien d’Architecture, 1995.). Relação desigual por excelência, a colonização é outro caso explícito que associa dominação e hegemonia, no sentido que Antônio Gramsci atribui a esse termo, mas por vias bem distantes de serem exclusivamente no sentido norte-sul, da metrópole à colônia. As cenas coloniais às vezes estabeleceram comunicação por meio de circuitos sul-sul. E certas soluções espaciais e estéticas de ultramar também migraram para as metrópoles, fossem experiências urbanísticas ou puramente formais, como no art déco, nas quais colônias e protetorados funcionaram como laboratórios.

Os conceitos convocados para o estudo desse modelo foram o de “influência” ou aquele, ainda mais rico, de “recepção”, proposto no meio do século XX pela Escola de Constança8 8 Ligada à Universidade de Constança, na Alemanha, e à estética da recepção desenvolvida por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. (NdR.) . Ambos têm o defeito de terem sido fundados sobre o pressuposto de uma relação unilateral do emissor ao receptor. A noção de relações cruzadas ou recíprocas tem sido amplamente utilizada no estudo de dispositivos binacionais, para as quais Michel Espagne (1999ESPAGNE, M. Les transferts culturels franco-allemands. Paris: Presses universitaires de France, 1999.) também propôs a noção de “transferência cultural”, que se mostrou muito produtiva. Sugeri, com Hartmut Frank, recorrer à noção de “interferência”, emprestada do campo da física, para explicar as perturbações que a arquitetura alemã e a arquitetura francesa causaram alternada ou simultaneamente uma à outra (COHEN; FRANK, 2013COHEN, J.-L.; FRANK, H. Interférences/Interferenzen: architecture, Allemagne, France 1800-2000. Estrasburgo: Musées de la Ville de Strasbourg, 2013.).

A escala nacional não é necessariamente a única digna de atenção. As relações entre metrópoles no campo da arte, da literatura e da arquitetura vêm sendo consideradas desde a década de 1970, sobretudo durante as exposições inaugurais organizadas entre 1977 e 1979 por K. G. Pontus Hultén no Centro Georges Pompidou - Paris-Nova York, Paris-Berlim e Paris-Moscou. Esse princípio binário foi adotado por vários outros curadores, como na exposição Berlim-Moscou no Martin-Gropius-Bau, em 2003, na Berlim-Tóquio, da Nationalgalerie, em 2006, ou na Paris-Barcelona, do Grand Palais, em 20019 9 Ver os catálogos respectivos: Paris-Nova York, Paris, Centro Georges Pompidou, 1977. Paris-Berlim, Paris, Centro Georges Pompidou, 1978. Paris-Moscou, Paris, Centro Georges Pompidou, 1979. Berlin-Moskau: Metropolen im Wandel, Berlim, Jovis, 2003. Berlin-Tokyo, Tokyo-Berlin: die Kunst zweier Städte, Ostfildern: Hatje Cantz; Berlim, Nationalgalerie, 2006. Paris-Barcelone: de Gaudí à Miró, Paris, Réunion des Musées nationaux, 2001. .

Transurbanidade e migração das formas

O terceiro modelo permite considerar as relações entre duas cenas ou duas formas urbanas em sua diversidade e suas semelhanças e remete à teoria literária. Assim, baseando-me em Genette, proponho tomar a transtextualidade como arquitexto para construir a noção de transurbanidade, cuja definição, um tanto paródica, poderia simplesmente ser “a presença literal (mais ou menos literal, integral ou não) de uma forma urbana em outra”. A transurbanidade pressupõe a existência de um arquitexto urbano que também se poderia chamar de arquiforma.

Em escala menor, a transurbanidade pode atuar sobre uma forma isolada, como o exemplo das praças com arcadas, cuja origem remete às ágoras helenísticas e aos fóruns romanos. Elas se multiplicaram nas cidades novas da Idade Média, como as cidadelas ou vilas fortificadas, criadas no século XIII nas fronteiras entre os reinos da França e da Inglaterra, e que assumiram nova forma durante o Renascimento. Por vezes centrada na estátua de um soberano ou na de uma figura do poder, a praça de ordenanças com suas arcadas migra de Libourne para Charleville, e depois para Paris no início do século XIII, onde a praça Royale estabelece um modelo posteriormente declinado em Paris e nas outras cidades do reino. Esse modelo atravessou o canal da Mancha com o Covent Garden de Inigo Jones, antes de ser transformado, na Londres georgiana, com a inclusão de um jardim em seu centro.

Um dos exemplos mais evidentes dessa presença é evocado por Italo Calvino (1996CALVINO, I. Les villes invisibles. Paris: Seuil, 1996. [Edição brasileira: As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.] , p. 82) em As cidades invisíveis, quando ele toma de empréstimo a Marco Polo essa confissão feita a Kublai Khan: “Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza”. O comerciante veneziano parece quase dominar o conceito de arquitexto, quando diz ao seu nobre interlocutor: “Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza”. Essa Veneza que Polo lembra fornecerá, alguns séculos depois, o prisma através do qual Canaletto retratará Londres em suas pinturas, como se o Tâmisa fosse apenas um Canal Grande mais amplo. Sem contar as inúmeras cidades, cujos canais as qualificaram como “Veneza do Norte”, casos de Bruges, Amsterdã e São Petersburgo, ou uma “Veneza Americana”, como o Recife. Dentre outras cidades que podem ser qualificadas como “emissoras”, por gerarem formas transponíveis, destaca-se Roma, cujas formas urbanas produzirão ecos, próximos ou distantes. A primeira arquiforma que vem à mente a esse respeito é o tridente traçado no século XVI da Via del Babuino, do Corso, e da Via di Ripetta, que têm como origem comum a Piazza del Popolo. Esse tridente é a arquiforma da cidade de Versalhes, onde o sistema romano é aplicado às três rotas originárias do castelo real - as avenidas de Sceaux, de Paris e de Saint Cloud (CASTEX, 1980CASTEX, J. (dir.). Lecture d’une ville: Versailles. Paris: Éditions du Moniteur, 1980.).

No caso de São Petersburgo, cuja fundação segue a de Versalhes algumas décadas depois, a topografia é mais complexa, uma vez que a nova capital é implantada no delta do Neva, de cada lado da ilha de Vassiliev, de um lado Vyborg e do outro Petersburgo, ao sul, no qual é desenhado um tridente. Sua origem não é o palácio do soberano, como em Versalhes, mas a flecha do Almirantado, um indício da aspiração da Rússia ao poderio militar. Ele é composto de três perspectivas: a avenida Nevsky, via nova aberta em 1712 para o sudeste, e Novgorod, que leva a uma parte mais residencial e menos monumental da cidade, a avenida Voznesensky, para o sudoeste, e a rua Gorokhovaya, no centro (COHEN, 1997COHEN, J.-L. Saint-Pétersbourg: la règle et la perspective. In: PINON, P.; MALVERTI, X. (dir.). La Ville régulière modèles et traces. Pari: Picard, 1997. , p. 53-63; EGOROV, 1969EGOROV, I. A. The Architectural Planning of St. Petersburg. Athens: Ohio University Press, 1969.).

Também é possível detectar processos de inclusão, paralelos ou cruzados, com a sobreposição de figuras que variam da citação à alusão, e cujo deslocamento pode ser acompanhado por alterações de escala e deformações. Desse ponto de vista, São Petersburgo hesita, na primeira metade do século XVIII, entre o princípio obsoleto de uma cidade ideal e fortificada, completamente centralizada no palácio do czar, como Jean-Baptiste-Alexandre Le Blond a imagina, e aquele de uma cidade comercial regulada por uma rede de canais, como Amsterdã, tal como proposto por Johann Baptist Homann, antes de ela vir a optar pragmaticamente por um sistema híbrido. Com os canais fechados, “a nova Amsterdã sonhada por Pierre Le Grand acabou se tornando um novo Versalhes”, observou Louis Réau (1924RÉAU, L. Histoire de l’expansion de l’art français moderne, le monde slave et l’Orient. Paris: H. Laurens, 1924., p. 87) sem nuances.

Se a terceira, e última, capital dos Estados Unidos pode ser igualmente descrita como “francesa”, o que André Corboz (2003CORBOZ, A. Deux capitales françaises: Saint-Pétersbourg et Washington. Gollion: Infolio, 2003.) percebeu com tanta acuidade, é em Londres que se encontram algumas das arquiformas utilizadas na primeira: Nova York. Durante o período “federal”, após a Independência, os quarteirões de Manhattan anteriores ao plano dos Comissários de 1811 eram compostos de casas geminadas que reproduziam o alinhamento dos bairros georgianos, como Bloomsbury. A semelhança entre a Vandam Street nova-iorquina e as ruas do Bedford Estate londrino é perturbadora, em especial nas imagens em preto e branco, pois o tijolo preto original mudou para vermelho. Napoleão III também pensou intensamente em Londres ao planejar as transformações de Paris, o que se reflete nos espaços vazios com a interpretação parisiense dos squares londrinos, espaços privados do outro lado do canal da Mancha, onde contribuem para a regulação das propriedades georgianas, e que se tornam espaços públicos nos passeios da Paris haussmaniana, onde são delimitados por edifícios tão variados quanto é permitido pelo regulamento de alinhamento. É o que mostra, por exemplo, o square des Arts et Métiers, criado em 1858. No entanto, a rue de l’Elysée, em frente ao palácio de mesmo nome, é uma verdadeira rua londrina que foi reconstituída, com a hierarquia vertical dos seus andares e seus pátios ingleses (PINON, 2015PINON, P. Napoléon III, de Londres à Paris. In: ARNOLD, D.; COHEN, J.-L. (dir.). Paris-Londres. Gollion: Infolio , 2015., p. 225-227).

Durante e após o Segundo Império, Paris almeja tornar-se a “capital do mundo” (HIGONNET, 2001HIGONNET, P. Paris, capitale du monde; des lumières au surréalisme. Paris: Tallandier, 2005.). As formas da cidade haussmaniana migram por toda a esfera de influência francesa. Renascendo de suas cinzas depois do incêndio de 1871, Chicago sonha em tornar-se a “Paris on the lake”, sobretudo quando Daniel H. Burnham e Edward H. Bennett esboçam o seu plano diretor em 1909. Em Nova York, os reformadores eleitos e alguns arquitetos formados na École de Beaux-Arts de Paris denunciam a monotonia do tabuleiro de xadrez de 1811, que eles recortam com diagonais para criar ângulos agudos capazes de acomodar edifícios monumentais (LEITNER, 2009LEITNER, P. Entre Paris et New York. Dynamiques d’échange pour transformer la métropole, 1858-1926. 2009. Tese de doutorado, Universidade Paris 8, 2009.). A figura do boulevard parisiense, regulado por linhas horizontais contínuas e pontuado por cúpulas, espalha-se pelos Bálcãs, com a avenida Queen Elisabeth, em Bucareste, e na América do Sul, com a avenida Central, atual Rio Branco, no Rio de Janeiro, e a avenida de Mayo, em Buenos Aires.

Além da citação dessa forma urbana longitudinal e simétrica que é o bulevar, os homomorfismos - ou analogias de estrutura - podem ser observados na transferência e na adaptação das formas parisienses. Em Argel, visitantes da França continental, como o escritor Pierre Loti (1897LOTI, P. Les trois dames de la Kasbah (conte oriental). Paris: Calmann-Lévy, 1897., p. 35), diante dos “alinhamentos de belas casas regulares”, só podiam sentir “uma impressão de uma Paris muito quente”, o que, de modo algum, era fruto de sua imaginação. De fato, o alinhamento da rue de Rivoli foi ali reproduzido em 1860, quando da criação do bulevar de l’Impératrice, cujas arcadas repetitivas se voltam para o Mediterrâneo, tal como os da via parisiense beiram o Jardim das Tulherias (CRESTI, 2003CRESTI, F. Une façade pour Alger: le boulevard de l’Impératrice. In: COHEN, J.-L.; OULEBSIR, N.; KANOUN, Y. (dir.). Alger, paysage urbain et architecture 1800-2000. Paris: Éditions de l’Imprimeur, 2003.). As situações coloniais são favoráveis a esse tipo de relação estrutural. Sessenta anos depois, quando Henri Prost, um urbanista cuja família é originária da Lorena, criou para o general residente Hubert Lyautey, nascido em Nancy, uma grande praça administrativa, é daquela cidade que ele empresta a sua arquiforma - a praça Stanislas e a praça de la Carrière, cujo espaço urbano marroquino é isomórfico. A segunda praça projetada por Prost é imediatamente apresentada por ele como um eco da Canebière de Marselha, uma vez que ela também conduz do centro da cidade até o porto. Mas, se considerarmos o projeto de 1917 para a capital econômica do Protetorado francês, desponta uma relação triangular com Paris e Chicago. A “Canebière de Casablanca” é inserida no sistema geral de um plano radioconcêntrico com a implantação de bulevares de inspiração parisiense atravessados por um bulevar circular, como no plano de Burnham, a costa reduzindo, em ambos os casos, a figura potencialmente circular a uma meia-lua. Portanto, neste caso, há uma complexa trança de citações de formas simples - as praças e as avenidas - e de homomorfismos.

Transurbanidade e urbanismo moderno

Sem se restringir a ser um receptáculo de formas europeias, Chicago também é constitutiva de arquiformas urbanas. Na origem da teoria da cidade-jardim, elaborada pelo britânico Ebenezer Howard em 1898, encontra-se o subúrbio-jardim de Riverside, projetado em 1869 pelo arquiteto paisagista Frederick Law OlmstedOLMSTED, F. L. Public Parks and the Enlargement of Towns. Cambridge: Riverside Press, 1870. com base no parcelamento parisiense de Vésinet e de certas extensões de Londres. Foi numa cidade qualificada, no final do século XIX, como “urbs in horto” ou “Nature’s Metropolis”, que Howard concebeu um sistema cuja irradiação será considerável por meio das edições sucessivas do seu manifesto de 1898, To-morrow, a Peaceful Path to Real Reform, reeditado em 1902 com o título de Garden Cities of To-morrow. O livro foi publicado em alemão em 1907, em russo em 1912 e em francês em 1916 - por um belga estabelecido em Tianjin -, enquanto as associações nacionais militantes para a cidade-jardim se multiplicavam. O diagrama espacial publicado por Howard em 1898 sofreu distorções significativas quando aplicado a situações territoriais específicas, que podem ser classificadas na ordem da anamorfose, figura cujas características não se deixam revelar senão a partir de determinado ângulo de visão ou em um espelho. No geral, sua estrutura topológica permanece invariável conforme os lugares, mas as proporções dos seus diferentes componentes variam muito entre a primeira cidade-jardim britânica, implantada em Letchworth, e as que a seguem na Alemanha, em Hellerau e em Estrasburgo, bem como na Rússia, em Prozorovskoe, e, ao término da Primeira Guerra Mundial, nos arredores de Paris e em Radburn, em Nova Jersey, onde o modelo howardiano é transformado pelo uso do automóvel (WARD, 1992WARD, S. V. The Garden City: Past, Present, and Future. Londres; Nova York: E. & F. N. Spon, 1992. ; HALL; WARD, 1998HALL, P.; WARD, C. Sociable Cities, the Legacy of Ebenezer Howard. Chichester; Nova York: Wiley, 1998.).

A invenção e a disseminação das parkways, ou avenidas-passeios, oferece outro caso de transurbanidade iterativa. Na origem da Eastern Parkway, traçada por Olmsted no Brooklyn em 1871, encontramos a avenida de l’Impératrice, conectando a place de l’Étoile no Bois de Boulogne, que ele tinha conhecido em Paris em 1867. Olmsted estica excessivamente o seu comprimento e multiplica a sua largura, com o propósito de acomodar nela diversos modos de transporte. Em sua brochura de 1870, Public Parks and the Enlargement of Towns, transformou essa via com calçadas justapostas em um dispositivo generalizado entre os grandes parques. Ele mesmo o implementará com o “colar de esmeraldas” em torno de Boston, o primeiro anel de um conjunto estendido à escala da metrópole estadunidense. Coube a Jean-Claude Nicolas Forestier (1997FORESTIER, J.-C. N. Grandes Villes et systèmes de parcs, suivi de deux mémoires sur les villes impériales du Maroc et sur Buenos Aires. Organização: Bénédicte Leclerc; SalvadorTarragò i Cid. Paris: Norma, 1997.), guardião das promenades de Paris e grande admirador do sistema de parques de Boston, por ele retratado em 1906 em um de seus livros, repatriar o sistema Olmsted para Paris, ao estudar as promenades exteriores da cidade na perspectiva de sua extensão, e deslocá-lo mais tarde para a América do Sul, quando elabora um plano para as promenades de Buenos Aires em 1924.

Em uma conjuntura favorável, marcada pelo surgimento do urbanismo como disciplina, o que se manifesta em publicações, congressos e concursos (SUTCLIFFE, 1981SUTCLIFFE, A. Towards the Planned City Title: Germany, Britain, the United States, and France, 1780-1914. Oxford: B. Blackwell, 1981.), emergem transurbanidades diacrônicas. Entre as mais originais, está o projeto do francês Donat-Alfred Agache, em 1912, no concurso para o plano da nova capital australiana de Camberra, que reproduz as estranhas figuras que Giambattista Piranesi havia implantado, exatos 150 anos antes, nas pranchas do seu Campo Marzio dell’antica Roma. Em sentido oposto, de leste a oeste, o Stadtkrone, publicado pelo berlinense Bruno Taut em 1919TAUT, B. Die Stadkrone. Jena: Eugen Diederichs, 1919., idealiza os templos orientais e extrai do passado exótico e distante das cidades da Indonésia e da China formas consideradas válidas para o centro cívico das metrópoles europeias. Leitor da Frühlicht, uma revista fundada e editada por Taut, Le Corbusier adotou esse princípio em 1922 em sua “Cidade Contemporânea para 3 milhões de habitantes”, um projeto ainda mais transurbano ao responder às reflexões berlinenses sobre Nova York. Espiritual para Taut, a coroa de arranha-céus se tornou com Le Corbusier uma metonímia da preeminência da organização.

Um olhar mais atento sobre esse projeto instaurador revelaria muitas outras arquiformas além do Stadtkrone. Le Corbusier apoia-se no seu conhecimento dos edifícios em redente de Eugène Hénard, que ele copiou em 1915 na Biblioteca Nacional, no projeto das “Villes-tours”, estudado por Perret desde 1922, assim como em precedentes estadunidenses, como a Grand Central Station de Nova York, fonte do nó ferroviário sobreposto por uma pista de aterrissagem localizada no centro da “Cidade Contemporânea”. A transurbanidade sincrônica compõe-se com a diacronia. O espaço central da cidade pode ser comparado ao Palácio Real de Paris e ao parque de Versalhes, e seu traçado geral é justificado por uma alusão explícita à planta de Beijing, reproduzida com comentários lisonjeiros em 1925 nas páginas de Urbanisme, onde a “Cidade Contemporânea” é a grande atração (LE CORBUSIER, 1925LE CORBUSIER. Urbanisme. Paris: G. Crès & Cie, 1925. [Edição brasileira: Urbanismo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.], p. 81). As estratégias de persuasão de Le Corbusier também passam pelo que eu chamaria de transurbanidade negativa, baseada na oposição entre uma forma urbana que opera por repulsa e a que a ela se opõe. Em Urbanisme, é denunciada a “confusão” de Manhattan para sublinhar, por contraste, a ordem da “Cidade Contemporânea” (LE CORBUSIER, 1925LE CORBUSIER. Urbanisme. Paris: G. Crès & Cie, 1925. [Edição brasileira: Urbanismo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.], 1925, p. 164).

Outro caso de transurbanidade, desta vez sedimentar, é aquele que vê Nikolai Milioutin, burocrata soviético apaixonado pelo urbanismo, aplicando o sistema da cidade linear desenvolvido em 1894 por Arturo Soria y Mata às cidades industriais construídas no âmbito do primeiro Plano Quinquenal. Não é baseado na experiência concreta da Ciudad Lineal de Madri que ele desenvolve seus projetos, mas sim na publicação dos desenhos de Soria por El Lissitzky, que o retira ele mesmo de um texto que o teórico da cooperação Charles Gide havia publicado - portanto, por meio de um mecanismo de transmissão bastante complexo. A rede de infraestruturas lineares assim formada é associada a uma transposição da linha de montagem de Ford, e foi dessa estranha conexão que nasceu o Sotsgorod de Miliutin (2002MILIUTIN, N. Sotsgorod, le problème de la construction des villes socialistes. Paris: Éditions de l'Imprimeur, 2002 [1930].), apresentado em 1930 em um livro marcante. Suas propostas são lidas e traduzidas na Alemanha, onde inspiram Ernst May e Otto Ernst Schweizer, que desenvolvem um plano linear para a região de Karlsruhe, antes de serem citadas literalmente por Le Corbusier em seus Trois établissements humains, de 1945LE CORBUSIER. Les trois établissements humains. Paris: Denoël, 1945 [Edição brasileira: Os três estabelecimentos humanos. São Paulo: Perspectiva, 1976]., este último tendo o cuidado de reintroduzir, no princípio traçado por Miliutin, alguns elementos gráficos de Soria. Finalmente, em sua visão de um “combinat” linear paralelo à costa de Casablanca, associando uma sucessão de fábricas e respectivas vilas operárias, Michel Écochard explorou, em 1950, o sistema que Le Corbusier codificou, o que não deixa de ser bastante irônico, considerando que o Marrocos espanhol foi uma das áreas em que Soria tentou desenvolver o seu projeto no início do século XX, ao imaginar uma cidade linear paralela à costa entre Ceuta e Tetuã (MATA, 1926MATA, A. S. Y. La Cité linéaire, nouvelle architecture de villes. Madri: Imprenta de la Ciudad lineal, 1926.).

Poderíamos de fato considerar todos os projetos de cidades de Le Corbusier sob o ângulo da transurbanidade. Esses projetos encontram suas arquiformas em suas viagens de juventude, suas leituras e seus desenhos realizados na Biblioteca Nacional, que fundamentam transurbanidades retrospectivas. Como mostrei, é na representação da Roma antiga, gravada em 1561 por Pirro Ligorio, com seus monumentos descolados de qualquer tecido contínuo, que ele acredita ter descoberto “o protótipo de cidade moderna nas árvores” (COHEN, 2013COHEN, J.-L. Rome, a Lesson in Urban Landscape. In: Le Corbusier: Atlas of Modern Landscapes. Nova York: Museum of Modern Art, 2013. , p. 112)10 10 Fundação Le Corbusier, Paris, desenho B2-20-655. . É no projeto do Capitólio de Chandigarh que é transposta essa visão de uma cidade composta de entidades autônomas, enquanto o resto da cidade deriva do plano anterior do urbanista estadunidense Albert Mayer, e que toda a sua abordagem é confrontada com a grande composição de Edwin Lutyens para Nova Délhi.

Transurbanidade, idealização e representação

Ecoando esses projetos, é tentador propor uma tipologia das relações transurbanas. Por analogia com as relações da transtextualidade, é possível distinguir semelhanças, paráfrases, paródias, plágio, condensação, para falar dos casos mais evidentes. A produção urbana posterior a 1945, por exemplo, apresenta vários casos de semelhança - a transferência de uma forma acompanhada de uma mudança de escala. No bloco soviético anterior a 1954, as vias radiais do projeto stalinista de Moscou de 1935 foram reproduzidas na Stalinallee, em Berlim oriental, e na nova Marszałkowska, em Varsóvia. Na periferia de Paris, o bairro empresarial de La Défense foi projetado primeiro em torno de um eixo que reproduz a Park Avenue, mas dilatando a largura da avenida nova-iorquina, antes que o plano definitivo, de 1964, recorresse a figuras de outra operação estadunidense - o plano de Victor Gruen para o centro de Fort Worth, cujo contorno em forma de pera e lajes elevadas são repetidos. Se esses exemplos associam claramente duas formas, outros se utilizam de múltiplas arquiformas. Assim, o projeto de Rem Koolhaas para o concurso Parc de la Villette, em 1982, atua em duas ordens. O plano em faixas paralelas provém do rebaixamento do corte do Downtown Athletic Club, que ele havia publicado anteriormente em Delirious New York (1978KOOLHAAS, R. Delirious New York, a Retroactive Manifesto for New York. Nova York: Rizzoli, 1978 [Edição brasileira: Nova York delirante. São Paulo: Cosac Naify, 2008]. , p. 154), em uma espécie de autotransurbanidade. Além disso, no tratamento gráfico das pranchas do concurso, são reproduzidos os códigos do projeto elaborado em 1930 para Magnitogorsk por Ivan Leonidov - um dos modelos de referência de Koolhaas.

Mais amplamente, as manifestações da transurbanidade decorrem de processos de idealização, de identificações com arquiformas por vezes ocultas e com outras, claramente reivindicadas. Entre suas manifestações mais evidentes, mencionarei o projeto elaborado por Albert Speer para a Berlim de Hitler, pensado em uma relação clara com Roma - que não esconde seu Volkshalle, concebido como uma praça de São Pedro hipertrofiada, com seu arco triunfal agigantado - e com os bulevares da Paris haussmaniana. Hitler estava tão familiarizado com eles que não parou de corrigir as informações fornecidas pelo guia durante sua visita relâmpago numa manhã de junho de 1940, numa Paris esvaziada de seus habitantes (GRUAT, 2010GRUAT, C. Hitler à Paris: juin 1940. Paris: Tirésias, 2010.). Seu conhecimento era puramente livresco e baseava-se, como algumas das análises de Walter Benjamin, nos best-sellers da literatura turística alemã, como as obras de Karl Scheffler (1908SCHEFFLER, K. Paris. Leipzig: Insel Verlag, 1908. ) e Fritz Stahl (1928STAHL, F. Paris: Eine Stadt als Kunstwerk. Eine Biographie der schönsten Stadt der Welt. Berlim: Rudolf Mosse, 1928.), em que se celebra Paris como “obra de arte”.

Uma das formas mais originais de transurbanidade é a cristalização da relação de inveja da Rússia czarista e soviética em relação aos Estados Unidos, e cujo desdobramento é duplo. No nível sincrônico, ela conduziu não apenas à transferência do tipo de arranha-céu isolado, o que levou às “sete irmãs” moscovitas, mas também a sua atribuição programática e implantação multipolar, derivada da proposta de Hugh Ferriss, em 1929, em sua Metropolis of Tomorrow, uma obra recebida com elogios pelos arquitetos soviéticos (SCUSEV; ZAGORSKIJ, 1934SCUSEV, A. V.; ZAGORSKIJ, L. E. Arhitekturnaja organizacija goroda. Moscou: Gosstrojizdat, 1934.). No nível diacrônico, esse empréstimo da América foi negado, e mesmo reprimido, pelo apelo à silhueta da Moscou medieval, cujos campanários foram apresentados como precedentes das novas torres. A referência à cidade capitalista, que se tornou algo vergonhoso, levou à busca por arquiformas legítimas na história russa. Tanto em Berlim como em Moscou, formaram-se relações especulares pelas quais essas capitais se moldavam a outras cidades, apesar de tudo o que as distanciava, em uma tentativa deliberada de capturar sua aura. Em tais casos, a transurbanidade torna-se muito mais do que uma questão de desenho, porque à arquiforma concreta se sobrepõe um arquitexto simbólico.

Uma observação final é de extrema importância com relação à maneira pela qual as formas transurbanas são montadas para constituir o tecido concreto das cidades. Em seu memorável trabalho Collage City, Colin Rowe e Fred KoetterROWE, C.; KOETTER, F. Collage City. Cambridge, Mass: The MIT Press, 1978. situaram, em 1977, a montagem de morfologias heterogêneas que constituem a maioria das cidades por meio da justaposição de fragmentos autônomos. No lugar da colagem, que era uma prática constitutiva da modernidade artística e arquitetônica, ousarei convocar uma estratégia nascida alguns anos mais tarde, que vê fragmentos de objetos existentes serem interpretados, atenuados ou acentuados em seu relevo, por um jogo de frotagem. Max Ernst revela que inventou essa técnica “num dia chuvoso” do verão de 1925, aplicando um papel no assoalho de madeira de um quarto de hotel na Côte d’Azur e depois o esfregando, ou o frotando, com um lápis preto para reproduzir as nervuras (SPIES, 1986SPIES, W. Max Ernst: frottages. Londres: Thames & Hudson, 1986., p. 6-7). No ano seguinte, ele apresentou os primeiros exemplos tão surpreendentes quanto enigmáticos dessas assemblages de texturas em sua coleção Histoire naturelle, da qual mais de uma prancha se assemelha à vista vertical de um território (ERNST, 1926ERNST, M. Histoire naturelle. Paris: Galerie Jeanne Bucher, 1926.). Mais próximos dos mecanismos concretos de produção dos conjuntos urbanos do que as colagens com suas bordas vivas, as frottages11 11 Literalmente: raspagem, esfregação, fricção. [NdT.] exibem as sobreposições de trama e os palimpsestos. Tal como essas obras sedimentadas, com suas bordas desgastadas e incertas - que terei a oportunidade de estudar mais de perto em sua relação com os tecidos urbanos das cidades -, o artefato coletivo resultante da transurbanidade poderia ser decifrado e designado, parodiando Rowe, pelo termo Frottage City, Cidade-Frotagem em português.

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  • WARD, S. V. The Garden City: Past, Present, and Future Londres; Nova York: E. & F. N. Spon, 1992.
  • 1
    Artigo traduzido por Zélie Denis e revisado por Adalberto Retto, Cristina Leme e José Lira.
  • 2
    Sobre os pontos de vista acerca dessa noção e de sua evolução, ver especialmente as seguintes sínteses: BIASI, P.-M. Intertextualité (théorie de), Encyclopedia Universalis. Paris, p. 514-516, 1989. PIEGAY-GROS, N. Introduction à l’intertextualité. Paris: Dunod, 1996; SAMOYAULT, T. L’Intertextualité, mémoire de la littérature. Paris: Nathan, 2001. RABAU, S. L’Intertextualité. Paris: GF Flammarion, 2002.
  • 3
    A esse respeito, ver principalmente, em francês, as seguintes obras: BAKHTIN, M. Esthétique et Théorie du roman. Paris: Gallimard, 1978; BAKHTIN, M. Esthétique de la création verbale. Paris: Gallimard, 1984. Ver também: TODOROV, T. (dir.). Théorie de la littérature, textes des formalistes russes. Paris: Seuil, 1965; TODOROV, T. Mikhaïl Bakhtine - Le Principe dialogique. Paris: Seuil, 1981.
  • 4
    Neologismos sugeridos pelo autor. “Intericonicidade”, formado a partir da palavra “icônico”, qualifica interações de imagens, e “intertectonicidade”, formado a partir da palavra “tectônica”, qualifica a transferência das características tectônicas entre edifícios. [NdT.]
  • 5
    Gíria da Escola de Belas Artes de Paris para designar uma construção, um projeto ou um desenho que é copiado em dado projeto; uma espécie de modelo oculto, ainda que reconhecível pelos iniciados.
  • 6
    Outra gíria da Escola explicada no próprio texto. Poncif significa “desenho”. [NdT.]
  • 7
    A arquitetura vista pelo viés das leis, dos costumes e da legislação, por Claude-Nicolas Ledoux, 1804. [NdT.]
  • 8
    Ligada à Universidade de Constança, na Alemanha, e à estética da recepção desenvolvida por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. (NdR.)
  • 9
    Ver os catálogos respectivos: Paris-Nova York, Paris, Centro Georges Pompidou, 1977. Paris-Berlim, Paris, Centro Georges Pompidou, 1978. Paris-Moscou, Paris, Centro Georges Pompidou, 1979. Berlin-Moskau: Metropolen im Wandel, Berlim, Jovis, 2003. Berlin-Tokyo, Tokyo-Berlin: die Kunst zweier Städte, Ostfildern: Hatje Cantz; Berlim, Nationalgalerie, 2006. Paris-Barcelone: de Gaudí à Miró, Paris, Réunion des Musées nationaux, 2001.
  • 10
    Fundação Le Corbusier, Paris, desenho B2-20-655.
  • 11
    Literalmente: raspagem, esfregação, fricção. [NdT.]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2020
  • Aceito
    11 Maio 2020
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