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Dispersão urbana e empresas urbanizadoras: a atuação da Compañía Madrileña de Urbanización, da Garden City Pioneer Company, da First Garden City Ltd e da Cia. City

Resumo

Este artigo tem como objetivo problematizar o fenômeno contemporâneo da dispersão urbana dentro do campo da história do Urbanismo. Este exercício historiográfico foi construído com base em uma análise crítica da atuação de empresas urbanizadoras de reconhecida importância na historiografia do Urbanismo: a Compañia Madrileña de Urbanización, empresa urbanizadora fundada pelo madrilenho Arturo Soria y Mata para implementar sua ideia de ciudad lineal; as empresas Garden City Pioneer Company e First Garden City Ltd, fundadas, respectivamente, para levantar fundos e gerenciar a construção de Letchworth, na Inglaterra, primeira cidade-jardim construída, cujo esquema teórico Ebenezer Howard havia concebido em 1898; e a empresa City of São Paulo Improvements and Freehold Company Ltd, que implementou os primeiros bairros-jardim de São Paulo. Na narrativa sobre cada empresa, destacam-se os dois conceitos urbanísticos propagados por essas empresas, relacionados com a ideia de urbanização dispersa e com as estratégias empresariais desenvolvidas para viabilizar empreendimentos ligados à dispersão.

Palavras-chave:
Dispersão; História do urbanismo; Empresas urbanizadoras; Compañía Madrileña de Urbanización; Garden City Pioneer Company; First Garden City Ltd; Cia. City

Abstract

This article problematizes the contemporary phenomenon of urban sprawl within the field of Urbanism history through a historiography of the performance of urbanization companies with recognized importance in the history of Urbanism: the Compañía Madrileña de Urbanización, an urbanization company founded by Arturo Soria y Mata in order to implement his idea of a Linear City; the Garden City Pioneer Company and the First Garden City Ltd, founded, respectively, to raise funds and manage the construction of Letchworth, in England, the first built city garden, whose theoretical scheme Ebenezer Howard conceived in 1889; and the City of São Paulo Improvements and Freehold Company Ltd, which implemented the first garden suburbs in São Paulo. The narrative on each company highlights two aspects: how the urban concepts propagated by these companies relate to the idea of urban sprawl and which business strategies were developed to enable dispersion-related ventures.

Keywords:
Urban sprawl; Urbanism history; Urbanization companies; Compañía Madrileña de Urbanización; Garden City Pioneer Company; First Garden City Ltd; Cia. City

Introdução

Este artigo problematiza o fenômeno contemporâneo da dispersão urbana no campo da história do Urbanismo. O termo em destaque designa a “extensão dos tecidos urbanos por vastos territórios, separados no espaço, mas mantendo estreitos vínculos entre si, como partes de um único sistema” (REIS FILHO, 2006REIS FILHO, N. G. Notas sobre urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano. São Paulo : Via das Artes, 2006., p. 12). Ocorre com o predomínio de baixas densidades habitacionais apoiadas em amplo sistema de infraestrutura viária (MONCLÚS, 1998 MONCLÚS, J. La ciudad dispersa. In: MONCLÚS, J. (org.). La ciudad dispersa: suburbanización y nuevas periferias. Barcelona: CCBB, 1998.; DEMATTEIS, 1998 DEMATTEIS, G. Suburbanización y periurbanización: ciudades anglosajonas y ciudades latinas. In: MONCLÚS, J. (org.). La ciudad dispersa: suburbanización y nuevas periferias. Barcelona: CCCB, 1998.; REIS FILHO, 2006REIS FILHO, N. G. Notas sobre urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano. São Paulo : Via das Artes, 2006.). Fenômeno importante para a configuração da cidade contemporânea, os espaços dispersos são lócus de ação extremamente lucrativa do capital imobiliário e de seus mecanismos de reprodução, onde se materializam os “emergentes padrões urbanísticos”, como condomínios horizontais e loteamentos fechados.

A pesquisa estabeleceu como recorte temático a atuação de empresas urbanizadoras na expansão urbana por meio de propostas que guardam relação com o processo de dispersão urbana em curso. Esse olhar historiográfico reconheceu uma relação fundamental entre os fenômenos de descentralização e de dispersão urbana. A descentralização é uma estratégia de relocalização de atividades produtivas aglomeradas em certa área (centro), com o propósito de reduzir demandas por infraestrutura, equilibrar a distribuição populacional e de trabalho e redistribuir os recursos gerados pelas atividades produtivas de forma mais equânime. Apesar de não implicar necessariamente dispersão, quando ocorre em áreas de expansão urbana, a descentralização se coaduna com o processo de dispersão, configurando ocupações fragmentadas no território. Neste sentido, propostas urbanísticas que articulam a descentralização valendo-se da ocupação/criação de novos núcleos distantes das cidades existentes podem ser compreendidas como catalisadores de dispersão urbana.

Essa interpretação constrói outro olhar sobre a dispersão, não mais como uma “novidade” característica do século XX, e sim como parte de um processo histórico de pensamento e prática do Urbanismo. Essa argumentação é importante, pois parte da literatura contemporânea de planejamento e projeto urbanístico, que compreende a dispersão urbana como uma ruptura no processo histórico de urbanização, um fenômeno completamente novo, cujas formas representam a morte da cidade ou mesmo a anticidade (CHOAY, 2004CHOAY, F. El reinado de lo urbano y la muerte de la ciudad. In: RAMOS, À. M. (org.). Lo Urbano em 20 autores contemporáneos. Barcelona: ETSAB, UPC, 2004.; REIS FILHO, 2006REIS FILHO, N. G. Notas sobre urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano. São Paulo : Via das Artes, 2006.; MONTE MÓR, 2007MONTE MÓR, R. L. Urbanização extensiva e a produção do espaço social contemporâneo. In: REIS FILHO, N. G.; TANAKA, M. M. S.; SPOSITO, M. E. B. (orgs.). Brasil: estudos sobre dispersão urbana. São Paulo: FAU-USP, 2007. p. 241-251.; SPOSITO, 2007 SPOSITO, M. E. B. Novas formas de produção do espaço urbano no estado de São Paulo. In: REIS FILHO, N. G.; TANAKA, M. M. S.; SPOSITO, M. E. B. (orgs.). Brasil: estudos sobre dispersão urbana. São Paulo: FAU-USP, 2007. p. 7-28.). Na contramão dessa ideia, é relevante salientar que a dispersão, por mais desconcertante e transformadora que seja, não significa o fim da cidade, mas apenas uma de suas (várias) transformações históricas, com antecedentes no pensamento e na prática urbanística.

Assim, relacionamos dispersão urbana a propostas urbanísticas de descentralização elaboradas a partir da segunda metade do século XIX, quando o ritmo de expansão das cidades se modificou completamente e o campo disciplinar do Urbanismo começou a se configurar (CHOAY, 2005CHOAY, F. O urbanismo utopias e realidades, uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 2005.; CALABI, 2012CALABI, D. História do urbanismo europeu. São Paulo: Perspectiva, 2012.). Nesse período, foram desenvolvidas propostas urbanísticas que incorporaram a dispersão ao repertório projetual da cidade, em conformidade com as mais diversas intenções, interpretações e dimensões. Algumas foram bastante radicais, como as propostas dos desurbanistas socialistas nas décadas de 1920 e 1930 e a Broadacre City, de Frank Lloyd Wright, de 1930. Porém, as propostas que interessam a este estudo são aquelas que sugeriram esquemas teóricos e práticos de expansão urbana que guardam semelhanças, ou ao menos proximidades, com configurações dispersas, e que atuaram em um contexto específico e significativo para a compreensão do processo de dispersão urbana contemporâneo, qual seja, o de empresas urbanizadoras.

Considerando essas relações, apresentamos uma narrativa historiográfica do ideário de dispersão difundido por meio da ação de empresas de reconhecida importância na historiografia do Urbanismo: a Compañía Madrileña de Urbanización (CMU), empresa urbanizadora fundada pelo madrilenho Arturo Soria y Mata para implementar sua ideia de ciudad lineal, proposta pela primeira vez em 1882; as empresas Garden City Pioneer Company e First Garden City Ltd, fundadas, respectivamente, para levantar fundos e gerenciar a construção de Letchworth, primeira cidade-jardim construída, cujo esquema teórico foi concebido em 1898 por Ebenezer Howard; e a empresa City of São Paulo Improvements and Freehold Company Ltd, conhecida como Cia. City, responsável pela implementação dos primeiros bairros-jardim de São Paulo, a partir de 1915.

Na análise da atuação dessas empresas, é essencial enfatizar o modo como suas propostas urbanísticas se relacionam com o processo de dispersão urbana em razão de seus princípios teóricos e de seus modos de atuação empresarial. Essas empresas urbanizadoras foram selecionadas porque tiveram (e ainda têm) grande importância na formação das ideias do campo do Urbanismo, mantendo-se relevantes enquanto referências projetuais no mundo ocidental (MACEDO, 2011 MACEDO, J. Maringá: a British Garden City in the Tropics. Cities, n. 28, p. 347-359, 2011. DOI: 10.1016/j.cities.2010.11.003.
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; ROHE, 2009ROHE, W. M. From Local to Global: One Hundred Years of Neighborhood Planning, Journal of the American Planning Association, 75:2, p. 209-230, 2009. DOI: 10.1080/01944360902751077.
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; SALAS, 2009 SALAS, J. F. La Ciudad Lineal del centenario: Los cien años de la utopía lineal. Revista de Urbanismo, n. 20, Departamento de Urbanismo, FAU de la Universidad de Chile, p. 1-13, 2009.; TREVISAN, 2014TREVISAN, R. Introdução ao ideário cidade-jardim no Brasil. In: PEIXOTO, E. R.; DERNTL, M. F. (org.). Arquitetura, Estética e Urbanismo: questões da modernidade. Brasília: Editora FAU/UnB, 2014. v. 1, p. 204-219.). A seleção desses casos relevantes e influentes é o que fortalece a interpretação da dispersão urbana como fenômeno histórico construída neste texto. Para tanto, a pesquisa se baseou, majoritariamente, em documentos primários, incluindo os textos originais de Ebenezer Howard, os textos de Soria y Mata e outros publicados na revista La Ciudad Lineal, além de textos oficiais e propagandas da Cia. City. Com base nesses documentos e na bibliografia, tecemos, conforme afirma Paul Veyne (2014VEYNE, P. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Brasília: Ed. da UnB, 2014 [1971]. [1971], p. 42), uma trama narrativa, “uma mistura muito humana e pouco ‘científica’ de causas materiais, de fins e de acasos; de uma fatia da vida que o historiador isolou segundo sua conveniência”.

1. A Compañía Madrileña de Urbanización e a Cidade Linear

Soria y Mata foi o primeiro a elaborar uma proposta de dispersão urbana - a cidade linear (ESTEVE, 1948ESTEVE, G. A. del. Teoría de la Ciudad: ideas fundamentales para un urbanismo humanista. Madrid: Instituto de Estudios de Administración Local, 1948.) -, descrita pela primeira vez em 6 de março de 1882 (COLLINS, 1968COLLINS, G. R. Lo Sviluppo della Pianificazione Lineare. In: SORIA Y MATA, A. La Città Lineare. Milano: Alberto Mondadori, 1968. p. 13-85.; SAMBRICIO, 1996 SAMBRICIO, C. Ciudad Lineal, un ejemplo de urbanismo liberal. Madrid, 1996. Disponível em: http://oa.upm.es/1628/1/MONO_SAMBRICIO_1996_01.pdf . Acesso em: 11 nov. 2015.
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). O ordenamento urbano da cidade linear definia funções distribuídas ao longo de um eixo linear de largura controlada e preestabelecida, por onde circulariam pessoas e produtos de maneira moderna e rápida, por meio de transporte coletivo de bonde elétrico (COLLINS, 1968COLLINS, G. R. Lo Sviluppo della Pianificazione Lineare. In: SORIA Y MATA, A. La Città Lineare. Milano: Alberto Mondadori, 1968. p. 13-85., p. 13).

Para Soria y Mata, era necessária uma transformação urbanística e de gestão para Madri solucionar seus graves problemas urbanos e sociais: o aumento populacional, as doenças urbanas, a falta de saneamento, a especulação imobiliária, o alto custo de vida na cidade, a concentração excessiva de bens e pessoas, a carência de habitação, a irregularidade dos alinhamentos das edificações e as ruas tortuosas. Para o urbanista espanhol, esses eram “os grandes males da cidade”, os fatores que causavam a ineficiência do trânsito e do transporte. Sorya y Mata considerava duas possibilidades: “retocar” a planta de Madri, que era defeituosa, ou fazer uma nova. Os custos relativos à primeira opção eram inviáveis devido ao alto custo das desapropriações; esse foi o argumento utilizado para justificar uma alternativa completamente nova, o tipo ideal, quase perfeito, da cidade como a concebemos. E foi na geometria da linha reta que ele embasou sua proposta para uma nova cidade (SORIA Y MATA, 1968SORIA Y MATA, A. La Città Lineare. Milano: Alberto Mondadori, 1968 [1882-1883]. [1882-1883], p. 153-178).

Na cidade linear de Soria y Mata, a fusão entre cidade e campo é a resposta aos problemas urbanos, na mesma linha traçada anos antes, em 1867, pelo também espanhol Ildefons Cerdà, quando publicou Teoría General de la Urbanización y aplicación de sus principios y doctrinas a la reforma y ensanche de Barcelona, um trabalho amplo e extenso em que se aprofunda a análise da história da urbanização, procurando, nas palavras do autor, “compreender as causas desse mal-estar profundo que as sociedades modernas sentem” e pesquisar “as exigências da nova civilização cujo caráter distintivo são o movimento e a comunicação” (CERDÀ, 1867CERDÀ, I. Teoría General de la Urbanización y aplicación de sus principios y doctrinas a la reforma y ensanche de Barcelona. Madrid: Imprenta Española, 1867. Disponível em: http://www.anycerda.org/web/es/arxiu-cerda . Acesso em: 15 abr. 2015.
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, p. 12). No texto da Teoría, Cerdà tratou da “rururbanização”, uma urbanização ruralizada que buscava fundir campo e cidade em uma configuração menos adensada, porém não utilizada por ele no projeto do Ensanche:

Dar a cada família um campo, que baste às suas necessidades, para que nele construísse sua casa no ponto, na forma e no modo que melhor lhe aprouvesse, era oferecer na urbe o que havia na rure (permita-nos esse termo, que serve de passagem para fazer compreender a etimologia de uma palavra nova que precisamos usar), ou seja, era criar uma urbe rus, ou uma urbe ruralizada, que é como chamaremos as obras dessa classe de urbanização (CERDÀ, 1867CERDÀ, I. Teoría General de la Urbanización y aplicación de sus principios y doctrinas a la reforma y ensanche de Barcelona. Madrid: Imprenta Española, 1867. Disponível em: http://www.anycerda.org/web/es/arxiu-cerda . Acesso em: 15 abr. 2015.
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, p. 122).

Collins (1968COLLINS, G. R. Lo Sviluppo della Pianificazione Lineare. In: SORIA Y MATA, A. La Città Lineare. Milano: Alberto Mondadori, 1968. p. 13-85., p. 25) afirma que Cerdà foi modelo para Soria y Mata, e que foi da Teoría General de Urbanización que este retirou a inspiração para “ruralizar a vida urbana, urbanizar o campo”. Assim como Cerdà, Soria y Mata desenvolveu uma proposta que fundia campo e cidade, a fim de dirimir os “inconvenientes” e dinamizar os “benefícios de cada modo de vida” (SORIA Y MATA,1968SORIA Y MATA, A. La Città Lineare. Milano: Alberto Mondadori, 1968 [1882-1883]. [10 de abril de 1882], p. 158).

No entanto, a dispersão proposta por Soria y Mata difere profundamente daquela de Cerdà, bem como da ideia (posterior) de Ebenezer Howard, criticada pelo primeiro em diversos momentos. Apesar de todos eles abraçarem os princípios de ruralização da cidade, o Ensanche de Barcelona mantinha uma centralidade e uma noção de crescimento radial contínuos, e a cidade-jardim propunha uma organização regional polinucleada; Soria y Mata, por sua vez, defendia o crescimento linear ininterrupto, intenção explicitada na sua afirmação de que as cidades se diluiriam em linhas “rururbanizadas” potencialmente infinitas, ligando cidades e países distantes por uma única rua, “que poderá ter como respectivas extremidades Candace e Petersburgo, Pequim e Bruxelas” (SORIA Y MATA, 1968SORIA Y MATA, A. La Città Lineare. Milano: Alberto Mondadori, 1968 [1882-1883]. [6 de março de 1882], p. 153-154). O esquema reproduzido a seguir mostra a organização das quadras dispostas linearmente, reforçando a conexão e a proximidade com Madri (Figura 1).

Figura 1
Plano General de la primera barriada de la Ciudad Lineal y sus inmediaciones.

Apesar da proposta radical de crescimento infinito, mantinha-se a distinção entre cidade e campo, como na cidade-jardim de Howard, também limitada, definida espacial e demograficamente, formando uma composição de cidades espalhadas e interdependentes. Porém, para Soria y Mata, a proposta de Howard era insuficiente, pois apenas disseminava “(n)a superfície do planeta cidades pontuais ou aglomeradas que em confronto com aquelas de hoje têm somente mais jardins, mais flores, mais árvores” (SORIA Y MATA, 1968SORIA Y MATA, A. La Città Lineare. Milano: Alberto Mondadori, 1968 [1882-1883]. [30 de outubro de 1908], p. 258-259). Essa crítica ao polinucleamento como estratégia de organização territorial reforça a interpretação de que a cidade linear aprofunda a dispersão como estrutura organizadora de um processo de urbanização eficiente e equitativo. Estes dois princípios - eficiência e equidade - seriam o fundamento da cidade linear: “Terreno a bom preço e comunicação rápida, frequente e econômica” (SORIA Y MATA, 1968 SORIA Y MATA, A. La Città Lineare. Milano: Alberto Mondadori, 1968 [1882-1883].[5 de março de 1883], p. 176).

A eficiência decorreria da tecnologia relacionada ao transporte coletivo, o trem, que Soria y Mata procurava difundir também como resultado de outros interesses: ele desenvolveu um projeto de implantação de uma linha ferroviária circundando Madri, a Red Ferroviaria de la Compañía de Urbanización. Durante muitos anos, o urbanista espanhol tentou obter a licença para construí-la, sem sucesso contudo (SORIA Y PUIG, 1968SORIA Y PUIG, A. Profilo di Arturo Soria y Mata. In: SORIA Y MATA, A. La Città Lineare. Milano: Alberto Mondadori, 1968. , p. 116-117). Embora ele não tenha conseguido a licença para a ferrovia completa, a CMU construiu uma linha ferroviária ligando Madri até a parte edificada da cidade linear. Já o princípio de equidade se efetivaria, na visão de Soria y Mata, pela possibilidade de expansão infinita da cidade linear, o que tenderia a diminuir a especulação imobiliária com a ampliação da oferta de lotes urbanizados e pela diversidade de tipologias habitacionais (PALACIO, 1969 PALACIO, P. N. La Ciudad Lineal de Arturo Soria. Villa de Madrid, v. 1, n. 28, p. 49-58, 1969., p. 54).

No entanto, não é possível escapar ao fato de que Soria y Mata era um empresário em busca de lucro por meio da urbanização de áreas periféricas. Donatella Calabi (2012CALABI, D. História do urbanismo europeu. São Paulo: Perspectiva, 2012., p. 39) afirma que ele “era um homem de negócios, cujo campo de trabalho é o território”. Para o historiador Carlos Sambricio (1996 SAMBRICIO, C. Ciudad Lineal, un ejemplo de urbanismo liberal. Madrid, 1996. Disponível em: http://oa.upm.es/1628/1/MONO_SAMBRICIO_1996_01.pdf . Acesso em: 11 nov. 2015.
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, p. 44), Soria propôs “a primeira cidade privada que conhecemos” com o objetivo de enfrentar os graves problemas urbanos, “desde os interesses do empresário, submetendo para isso a forma da cidade aos interesses da sua companhia”. Assim, atrair mais acionistas e investidores não se tratava de realizar o projeto da cidade linear, mas sim dispor de mais recursos para a empresa, de modo a ampliar seu capital, sua capacidade de atuação e de construção, bem como os lucros de seus acionistas.

Para garantir publicações de seu interesse, a CMU criou revistas, sua principal estratégia de propaganda. Primeiro, La Dictadura, de 1895. Posteriormente, em 1897, La Ciudad Lineal, que incorporava discussões de cunho urbanístico para além da cidade linear e que se tornou a primeira revista de urbanismo (CALABI, 2012CALABI, D. História do urbanismo europeu. São Paulo: Perspectiva, 2012.). A CMU também participou de vários congressos e exposições, atitude bastante rara no meio imobiliário (SAMBRICIO, 1996 SAMBRICIO, C. Ciudad Lineal, un ejemplo de urbanismo liberal. Madrid, 1996. Disponível em: http://oa.upm.es/1628/1/MONO_SAMBRICIO_1996_01.pdf . Acesso em: 11 nov. 2015.
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, p. 40). Nas revistas, a Companhia divulgava a estabilidade da empresa, a crescente valorização de seus terrenos, patrimônio e ações, assim como todos seus balanços financeiros, incluindo os custos das obras e das construções. Porém, o principal objetivo era divulgar seus produtos, como lotes e edificações de diversos tipos e portes. A primeira página da revista frequentemente apresentava propagandas ilustradas: modelos de casas e outras construções, com padrões e preços variados, sempre com opções de pagamento parcelado, além de perspectivas, cortes, plantas e fotografias da cidade linear.

De fato, a atuação da CMU destaca-se por seu cunho empresarial. Tais características, levantadas nos diversos textos de Soria y Mata e nas propagandas da CMU analisados, ajudam a colocar em outros termos e questionar a ideia de que a ciudad lineal se tratava de uma utopia equitativa propagada no discurso oficial da empresa. Esse argumento se fortalece quando se percebem as mudanças que a proposta urbanística da CMU sofreu ao longo do tempo para adaptar-se às demandas do mercado e dos potenciais clientes. As mais importantes ocorreram depois que Hillarión González del Castillo, associado da CMU, assumiu a direção da empresa em 1908, em meio a uma grave crise financeira. Inicialmente, Castillo modificou as referências arquitetônicas das construções, as quais, em sua visão, eram “historicistas” e “fora de moda”, e introduziu referências consideradas mais atuais e atraentes à elite madrilenha, incluindo “os esquemas americanos de casas de campo e os conceitos ingleses sobre a casa-jardim, buscando, deste modo, ‘modernizar’ a imagem do modelo difundido por Soria” (SAMBRICIO, 2004 SAMBRICIO, C. Madrid, vivienda y urbanismo 1900-1960: de la “normalización de lo vernáculo” al Plan Regional. Madrid: Akal, 2004., p. 23).

Depois, em razão das duras críticas sofridas pela proposta de Soria em congressos internacionais, Castillo modificou os princípios urbanos da cidade linear: a cidade deixou de ser ilimitada; a organização espacial não era mais restrita a quarteirões; as ruas passaram a ter um desenho mais curvilíneo, de hierarquia mais complexa, incluindo cul-de-sacs; a cidade não se pretendia autônoma, mas sim um subúrbio de Madri. Enfim, Castillo abraçou os princípios da garden city e os mesclou àqueles da ciudad lineal, e isso resultou em uma proposta que guardava pouquíssimas semelhanças com a ideia original (SAMBRICIO, 2004 SAMBRICIO, C. Madrid, vivienda y urbanismo 1900-1960: de la “normalización de lo vernáculo” al Plan Regional. Madrid: Akal, 2004., p. 28-48).

Muitas mudanças também vieram depois da morte de Soria y Mata, em 1920, quando seus filhos assumiram diversos cargos na empresa, que enfrentava então muitas dificuldades financeiras diante do cenário da Primeira Guerra Mundial (RODRÍGUEZ, 2017RODRÍGUEZ, A. L. La singladura de La Compañía Madrileña de Urbanización: a la muerte de su fundador. Espacio, Tiempo y Forma - Serie V Historia Contemporánea, n. 29, p. 329-351, 2017. DOI: 10.5944/etfv.29.2017.18858.
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, p. 331-332).

O fracasso da CMU não invalida duas leituras importantes. A primeira é de que ela atuou, ainda que com maior ênfase durante a gestão de Soria y Mata, orientada por uma proposta urbanística pautada pela dispersão, no sentido de promover tanto um espraiamento espacial da urbanização por extensos territórios como uma expansão urbana distanciada do núcleo existente, com certo nível de dependência, em terras rurais, mais baratas e passíveis de viabilizar lucros maiores. A segunda diz respeito ao objetivo da CMU de sobreviver no mercado imobiliário, produzir lucro para seus acionistas e atrair o maior número de compradores e investidores possível, como qualquer outra empresa urbanizadora. O que transparece dessa análise são as ricas e diversificadas estratégias empresariais da CMU de difusão de uma proposta urbanística, de propaganda comercial, de uso de concessões de serviços públicos para benefício próprio e de adequação às mudanças de demanda do mercado consumidor, inclusive quanto ao “estilo arquitetônico” e às premissas mais “fundamentais” da ideia de cidade linear.

2. A Garden Cities Association e a dispersão controlada

Uma das propostas de descentralização mais influentes nos séculos XIX e XX foi a cidade-jardim proposta pelo taquígrafo inglês Ebenezer Howard, detalhadamente explicada em seus livros To-morrow: A Peaceful Path to Real Reform (1898) HOWARD, E. To-morrow: a Peaceful Path to Real Reform. London: Swan Sonnenschein & CO. Ltd., 1898. e Garden Cities of To-morrow (1902) HOWARD, E. Garden Cities of To-morrow (being the second edition of “To-morrow: a Peaceful Path to Real Reform”). London: Swan Sonnenschein & CO. Ltd., 1902., em que o autor defende veementemente a urbanização de baixa densidade como solução para os problemas da cidade daquele período.

Para Howard, a questão central de sua proposta consistia em deter a migração campo-cidade, “restituir as pessoas ao campo”, unindo na nova forma “atrativos” urbanos e rurais: a “cidade-campo”, ou cidade-jardim. A “cidade-campo” funcionaria como um ímã (Figura 2), agregando as vantagens do campo e da cidade em uma terceira via que “assegure a combinação perfeita de todas as vantagens da mais intensa e ativa vida urbana com toda a beleza e prazeres do campo na mais perfeita harmonia” (HOWARD, 1996 HOWARD, E. Cidades-jardim do amanhã. São Paulo: Hucitec, 1996 . [1898], p. 108).

Figura 2
Diagrama dos três ímãs, 1898.

Essas qualidades seriam alcançadas como resultado de uma transformação multidimensional da cidade, por meio de uma organização social cooperativa de gestão urbana que socializaria lucros e dividendos da produção local, incluindo a produção agrícola na dinâmica urbana. Essa proposta coletivista intencionava o fim gradual da concentração da propriedade da terra nas mãos de poucos (mas não o fim da propriedade privada), aspecto considerado por Howard como “a raiz de todos os problemas”, o que aproximou a cidade-jardim das propostas urbanas utópicas (FISHMAN, 1982 FISHMAN, R. Urban Utopias in the Twentieth Century: Ebenezer Howard, Frank Lloyd Wright, and Le Corbusier. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1982., p. 40-51).

Na cidade-jardim, a dispersão se configura como plano urbanístico e como solução de organização territorial, apresentando-se na definição de baixas densidades populacionais, por meio da defesa da habitação unifamiliar como a tipologia mais adequada para oferecer ampla qualidade de vida, ao aliar a desejada privacidade do lar e da vida familiar a uma relação franca com espaços livres e arborizados.

Para além das definições de tipologias e densidades, os limites físico e demográfico da cidade aparecem como uma resposta ao crescimento desmedido da cidade no século XIX. No entanto, essa limitação trazia consigo implicações de ordem regional. Segundo Fishman (1982 FISHMAN, R. Urban Utopias in the Twentieth Century: Ebenezer Howard, Frank Lloyd Wright, and Le Corbusier. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1982., p. 50), Howard compreendia que uma cidade de 30 mil habitantes não seria capaz de gerar dinâmica suficiente para garantir autonomia em relação a outros núcleos urbanos, como de fato não gerou. A solução foi propor uma organização territorial polinucleada, em que uma cidade-jardim poderia estar conectada a outras, e estas, por sua vez, ligadas a uma cidade central de maior porte, como demonstrado no diagrama apresentado em To-morrow (1898). Na segunda edição do livro, em 1902, Howard elaborou outro diagrama, menos complexo, entretanto ainda ilustrando a organização polinucleada formando uma rede de cidades.

Assim, tão importante quanto a malha urbana menos adensada, foi a proposta de desenvolvimento territorial disperso, que ainda hoje é retomada como princípio de organização territorial eficiente, em contraposição ao crescimento contínuo da cidade. O polinucleamento integrado, ou seja, a composição de núcleos urbanos separados fisicamente, mas interligados econômica, social e culturalmente, é uma organização dispersa na essência, baseada na noção de que a cidade não deve crescer infinitamente; ela deve ser limitada e, conforme a necessidade, outro núcleo deve ser construído. Ainda que a proposta de Howard se preocupasse muito mais com o detalhamento da configuração urbana e social dos núcleos e com a limitação do seu crescimento físico e populacional, a dispersão urbana é, de fato, resultado direto dessa organização contida, desdobramento pelo qual a ideia de cidade-jardim se insere nesta narrativa.

Apesar de toda a riqueza da proposta de Howard, seu primeiro livro recebeu pouca atenção do público. Assim, ele empenhou-se em uma forte campanha de divulgação de suas ideias, aproximando-se de pessoas que pudessem auxiliá-lo a propagá-las e a financiá-las. O trabalho de divulgação foi intenso e bastante profícuo: já em 1899 fundou-se a Garden City Association (renomeada Town and Country Planning Association, em 1909, atuante até hoje na Inglaterra), e, apenas cinco anos depois de To-morrow, iniciavam-se as construções da primeira cidade-jardim, projetada pelos urbanistas ingleses Raymond Unwin e Barry Parker: Letchworth, a 40 quilômetros de Londres.

Há, no entanto, mais detalhes importantes para esta pesquisa do que apenas o sucesso de Howard. Das ideias utópicas do taquígrafo até a realização da primeira cidade-jardim, há uma rica costura de relações sociais, de interesses e de negócios, cuja análise permite interpretar a garden city como uma proposta que está além da dispersão urbana, conforme já discutido, mas que também guarda uma faceta de empreendimento de urbanização, desenvolvido segundo uma perspectiva empresarial.

Sabe-se que as bases teóricas que influenciaram Howard foram anarquistas e ligadas ao social-radicalismo (FISHMAN, 1982 FISHMAN, R. Urban Utopias in the Twentieth Century: Ebenezer Howard, Frank Lloyd Wright, and Le Corbusier. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1982.; ANDRADE, 1998 ANDRADE, C. R. M. de . Barry Parker: um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998 .), as quais, contudo, foram gradativamente abandonadas para que ele pudesse reunir os recursos financeiros necessários, convencendo ricos empresários a investir na construção de uma nova cidade. Entre 1892 e 1898, Howard se aproximou do grupo radical Land Nationalisation Society, fundado em 1881 por Alfred Russel Wallace, voltado à promoção da reforma agrária. Wallace encampou a proposta de cidade-jardim, pois, apesar de favorável à reforma agrária, não defendia uma revolução social. Era neste ponto que a cidade-jardim se encaixava perfeitamente: melhor divisão de terras dentro de um sistema capitalista, protetor da propriedade privada (FISHMAN, 1982 FISHMAN, R. Urban Utopias in the Twentieth Century: Ebenezer Howard, Frank Lloyd Wright, and Le Corbusier. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1982., p. 55-56).

Em 10 de junho de 1899, fundou-se a Garden Cities Association, que funcionou dentro do escritório da Land Nationalisation Society. A despeito desse avanço e do esforço publicitário de Howard, ainda não haviam aparecido mecenas dispostos a financiar a empreitada. Isso perdurou até 1901, quando ele recebeu o apoio de Ralph Neville, importante advogado inglês a quem caberia angariar financiadores para o projeto, enquanto Howard “refinava” a proposta da cidade-jardim, expurgando-a de seus princípios comunitaristas e adequando-a a uma visão liberal de empreendimento. Desse modo, ela se tornaria palatável aos filantropos enriquecidos e a seu desejo de uma solução capaz de acalmar os ânimos citadinos (FISHMAN, 1982 FISHMAN, R. Urban Utopias in the Twentieth Century: Ebenezer Howard, Frank Lloyd Wright, and Le Corbusier. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1982., p. 62).

Em dezembro de 1901, a Garden Cities Association aprovou a formação da Garden City Pioneer Company, empresa organizada para levantar fundos para a construção e a aquisição da gleba para Letchworth. Em junho de 1903, foi registrada a First Garden City Ltd com a incumbência de gerenciar a obra e a implantação da cidade (FISHMAN, 1982 FISHMAN, R. Urban Utopias in the Twentieth Century: Ebenezer Howard, Frank Lloyd Wright, and Le Corbusier. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1982.). A First Garden era uma empresa com fins lucrativos, e suas ações foram vendidas com a promessa de retorno para os investidores de até 5% ao ano. Como a venda das ações foi muito lenta e os esperados subsídios governamentais não se efetivaram, não foi possível implementar a construção de casas populares para os trabalhadores mais pobres, como esperava Howard. Muitos trabalhadores das fábricas de Letchworth “não conseguiam pagar os aluguéis e acabavam usando bicicletas para se deslocar de seus apartamentos, localizados em cidades antigas para além do Cinturão Agrário, até o trabalho” (FISHMAN, 1982 FISHMAN, R. Urban Utopias in the Twentieth Century: Ebenezer Howard, Frank Lloyd Wright, and Le Corbusier. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1982., p. 73-75).

A utopia da garden city foi reduzida, com o aval do próprio Howard, a uma experiência urbanística controlada por uma empresa urbanizadora e, posteriormente, reproduzida em outros contextos urbanos e empresariais. Os arquitetos ingleses Raymond Unwin e Barry Parker tiveram papel fundamental na propagação e na defesa dos princípios morfológicos da cidade-jardim por meio de seus projetos e escritos, os últimos desenvolvidos mais profusamente por Unwin. Além do conhecido livro Town Planning in Practice, de 1909, ele escreveu, em 1912, um interessante panfleto intitulado Nothing Gained by Overcrowding! How the Garden City Type May Benefit Both Owner and Occupier, que ilustra os princípios de uma rede urbana dispersa, porém controlada (Figura 3). No panfleto, reforça-se a relação entre o limite populacional e a noção de “organização comunitária”, com base no princípio de que a “cooperação individual efetiva está limitada a um número pequeno de pessoas que possuam conhecimento interpessoal imediato e relações pessoais constantes” (UNWIN, 1912UNWIN, R. Nothing Gained by Overcrowding! How the Garden City Type of Development May Benefit Both Owner and Occupier. Westminster: P. S. King & Son, 1912., p. 2). Esse urbanista britânico fundamentou a limitação populacional de uma cidade como parâmetro primordial para a retomada de uma noção de comunidade diluída pelo hipercrescimento urbano e a consequente impessoalidade das relações sociais modernas. Nessa visão, a dispersão da sociedade urbana em cidades-jardins menores era também uma tentativa de manter uma escala de sociabilidades pré-industrial.

Figura 3
Capa do panfleto Nothing Gained by Overcrowding! How the Garden City Type May Benefit Both Owner and Occupier.

A cidade-jardim e os subúrbios-jardim consolidaram um modelo de urbanização entusiasta do controle do crescimento urbano e da baixa densidade para os padrões da sua época. Entretanto, a cidade-jardim proposta inicialmente por Howard era imbuída de profundo caráter social, aspecto que não pode ser menosprezado na sua interpretação e que demarca uma diferença crucial entre ambos. Para Dácio Ottoni (1996OTTONI, D. A. B. Cidade-jardim: formação e percurso de uma ideia. In: HOWARD, E. Cidades-jardins do amanhã. São Paulo: Hucitec, 1996., p. 82), o subúrbio-jardim foi uma interpretação unilateral e parcial dos pensamentos e realizações de Howard, reduzido “basicamente ao uso do verde e ao desenho sinuoso das suas vias”, além de restringir-se ao uso residencial, desconsiderando a autossuficiência mínima necessária ao funcionamento de uma cidade-jardim. Uma questão importante que esse autor não considera em seu estudo sobre a cidade-jardim é que o próprio Howard foi responsável por despir sua proposta urbanística de qualquer conteúdo utópico coletivista, ao articular-se com grandes mecenas de suas ideias e aceitar construir Letchworth por intermédio de empresas urbanizadoras que visavam ao lucro.

O ideário da cidade-jardim também formou o pensamento e a atuação prática sobre a expansão urbana no Brasil, onde a ação de empresas urbanizadoras foi fundamental para a construção da ideia (e da configuração espacial) da dispersão. Um caso emblemático dessa confluência se apresenta na história da City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Ltd, a Cia. City, cuja atuação revisitaremos para destacá-la como empresa urbanizadora que auxiliou na difusão do ideário de dispersão urbana.

3. A City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Ltd e a difusão do subúrbio-jardim no Brasil

A ação urbanizadora da CMU, da Garden City Pioneer Company, da First Garden City Ltd. e da City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Ltd relaciona-se no que tange à configuração dispersa de suas proposições e realizações. Porém, enquanto a CMU imaginou a ciudad lineal separada de Madri, como uma cidade autônoma, e Letchworth foi ainda mais adiante, com sua autonomia e independência em relação a outros grandes centros urbanos consolidados da Inglaterra à época, a experiência urbanizadora da Cia. City não foi tão ampla nem tão independente. Sua atuação restringiu-se à construção de bairros majoritariamente residenciais, que sempre dependeram das questões urbanísticas, sociais e econômicas de São Paulo e que a ela responderam. Assim, diferentemente da análise que empreendemos sobre a empresa espanhola e as empresas inglesas, a análise da atuação da City depende da compreensão do processo de urbanização da capital paulista na virada do século XIX para o XX, quando se organizou o contexto que levaria à construção do Jardim América e de loteamentos posteriores.

São Paulo foi a cidade brasileira que mais se industrializou e cresceu no começo do século XX, especialmente em virtude da política econômica de Getúlio Vargas. As primeiras intervenções urbanísticas que nela se efetivaram se inserem no que Maria Cristina Leme define como o primeiro período da formação do pensamento urbanístico no Brasil, quando “foram propostos e realizados melhoramentos localizados em partes das cidades” (LEME, 1999LEME, M. C. da S. Urbanismo no Brasil, 1895-1965. São Paulo: Studio Nobel; FAU-USP; Fupam, 1999., p. 22). Os planos de melhoramentos foram importantes porque iniciaram um debate em torno da temática urbana em São Paulo, incluindo profissionais e legisladores, mas também conjugando os interesses de companhias estrangeiras, notoriamente as inglesas, como a Light e a Cia. City, e de seus investidores privados, com aqueles dos grandes proprietários de terras, “sob a mediação da Diretoria de Obras da prefeitura” (ANDRADE, 1998 ANDRADE, C. R. M. de . Barry Parker: um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998 ., p. 180).

A proximidade dos interesses da Cia. City com os da Diretoria de Obras de São Paulo é extremamente importante para este trabalho. Primeiro, porque a atuação urbanística da City se apresenta como vertente do ideário de dispersão urbana que emergiu da crítica à cidade compacta e densa. Segundo, porque a City estabeleceu um intricado modus operandi, com o desenvolvimento de estratégias de negócios baseadas em relações de influência direta sobre o poder público com vistas a beneficiar-se, acomodar seus interesses e ampliar os lucros (ANDRADE, 1998 ANDRADE, C. R. M. de . Barry Parker: um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998 .). A proximidade entre funcionários da City e da Prefeitura foi fundamental para a valorização dos terrenos da empresa, pois garantiu que ela se beneficiasse dos projetos de melhoramentos planejados pelo governo municipal e que seus interesses fossem protegidos e acomodados, inclusive pela legislação urbanística local.

A Cia. City foi fundada em 5 de setembro de 1911 e contava com um corpo de diretores bastante heterogêneo, incluindo vários políticos e empresários (SOUZA, 1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano: o caso da Companhia City. 1988. Dissertação (Mestrado em Administração) - Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988., p. 165-166). Essa composição diversificada determinou um forte campo de influência entre a empresa e o Governo da Cidade de São Paulo, o que foi fundamental para sua exitosa ação no campo do desenvolvimento urbano, com destaque para a atuação do arquiteto francês Joseph-Antoine Bouvard, primeiro vice-presidente da Companhia.

Em sua vinda ao Brasil, em março de 1911, alguns meses antes da criação da City, Bouvard atuou como consultor, analisando as propostas de melhorias para o centro da cidade e de intervenções no Vale do Anhangabaú e cercanias (ACKEL; CAMPOS FILHO, 2002bACKEL, L.; CAMPOS FILHO, C. M. Freire e Bouvard: a cidade europeia. In: SOMEKH, N.; CAMPOS FILHO, C. M . (orgs.). A cidade que não pode parar: planos urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo: Mackpesquisa, 2002b., p. 41). No mesmo período, ele esteve em contato com empresários estrangeiros, dentre eles o banqueiro belga Édouard Fontaine de Laveleye, para quem prestou consultoria de negócios imobiliários, com a indicação de áreas que seriam valorizadas em decorrência da implantação do plano de melhoramentos. Segundo Maria Claudia Pereira de Souza (1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano: o caso da Companhia City. 1988. Dissertação (Mestrado em Administração) - Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988., p. 36), foi essa consultoria que gerou o interesse em criar uma companhia urbanizadora para atuar em São Paulo. Laveleye procurou o urbanista paulistano Victor da Silva Freire, para que ele o apresentasse aos proprietários das terras de seu interesse; Freire o apresentou ao deputado federal Cincinato Braga, que conhecia diversos investidores que planejavam adquirir os mesmos terrenos, com as mesmas intenções. Isso resultou em uma situação propícia à associação de todos esses interessados como uma única companhia urbanizadora, que mantinha estreitas relações com concessionárias de serviços públicos, com o capital financeiro e com o Estado e seus agentes.

Na composição da empresa, chama atenção a participação do ex-presidente da República Campos Sales, do ex-presidente de diversos estados Sancho de Barros Pimentel e do deputado Cincinato Braga, “estreitamente vinculado à prefeitura por meio de Victor da Silva Freire” (SOUZA, 1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano: o caso da Companhia City. 1988. Dissertação (Mestrado em Administração) - Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988., p. 62). A relação entre a City e Freire foi duradoura; ele, inclusive, figurou entre seus diretores anos depois, em 1940 (LEME, 1999LEME, M. C. da S. Urbanismo no Brasil, 1895-1965. São Paulo: Studio Nobel; FAU-USP; Fupam, 1999., p. 456; SOUZA, 1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano: o caso da Companhia City. 1988. Dissertação (Mestrado em Administração) - Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988., p. 62; COSTA, 2011 COSTA, L. A. M. Victor da Silva Freire: a vida, as ideias e as ações de um urbanista paulistano de primeira hora - 1869 - 1951. Cadernos de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, v. 11, n. 2, p. 1-30, 2011., p. 11). Andrade (1998 ANDRADE, C. R. M. de . Barry Parker: um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998 ., p. 156) trata das relações entre Freire e a Cia. City:

A Cia. City havia sido recém-criada e, no entanto, já encontramos no esquema da Diretoria de Obras a indicação de uma “Avenida principal projetada pela S. Paulo City Improvements”, continuando a Avenida Paulista. Em outra estampa de seu Relatório vemos o traçado sinuoso do que foi o primeiro projeto para o Pacaembu, provavelmente elaborado por Bouvard, que estava na ocasião também a serviço da Cia. City. Tal vínculo entre a Cia. City, e o plano da Diretoria de Obras, não nos parece algo fortuito. Arriscaríamos lançar a hipótese de um conluio de interesses entre Freire e aquela promissora companhia imobiliária, que[,] em grande medida, determinou os rumos da expansão metropolitana, reforçando setores da cidade nos quais a City havia adquirido, por indicação do próprio Freire e com assessoria de Bouvard, enormes glebas de terrenos. Não por acaso também esses senhores tornaram-se, em momentos diversos, diretores da City, com Bouvard, assim como Freire, tendo atuado, desde a criação da companhia, como consultores técnicos.

Ou seja, Bouvard desenvolveu uma solução para a querela entre os projetos para o Vale do Anhangabaú e poucos meses depois foi nomeado vice-presidente da City, mesmo ano em que sugeriu ao investidor Laveleye que adquirisse terras na cidade - mais de 12 milhões de metros quadrados (PEIXOTO-MEHRTENS, 2010PEIXOTO-MEHRTENS, C. Urban Space and National Identity in Early Twentieth Century São Paulo, Brazil: Crafting Modernity. New York: Palgrave Macmillan, 2010., p. 33). As glebas adquiridas pela City destacavam-se pela localização extremamente privilegiada das terras em relação à malha urbana consolidada de São Paulo naquele momento (Figura 4). Ainda segundo Andrade (1998 ANDRADE, C. R. M. de . Barry Parker: um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998 ., p. 184), Bouvard, Laveleye e Freire vincularam os planos da Prefeitura aos interesses da City, “direcionando o crescimento da cidade para áreas que seriam adquiridas pela City, e que tiveram rápida e expressiva valorização imobiliária”. A nosso ver, as relações lucrativas entre membros do governo local e da empresa são mais que hipóteses, dado que os benefícios e privilégios da City foram explícitos, garantindo o acesso de seus loteamentos aos serviços de infraestrutura, bem como “a oficialização de seu regulamento de construções” (SOUZA, 1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano: o caso da Companhia City. 1988. Dissertação (Mestrado em Administração) - Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988., p. 62).

Figura 4
Mapa de São Paulo com as propriedades adquiridas pela Cia City em 1912CIA CITY . História da Cia. City. Disponível em: http://ciacity.com.br . Acesso em: 10 jul. 2016.
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Também foram significativas as interferências de profissionais contratados pela City na legislação urbanística vigente à época. Segundo Andrade (1998 ANDRADE, C. R. M. de . Barry Parker: um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998 ., p. 4), o arquiteto inglês Barry Parker, que trabalhou em São Paulo desenvolvendo projetos para a City entre fevereiro de 1917 e janeiro de 1919, tirou proveito de sua “fama internacional” como arquiteto e sócio de Raymond Unwin para aproximar-se de funcionários da Prefeitura de São Paulo e influenciá-los no que se refere à realização de seus projetos urbanísticos, ou seja, ele atuou como verdadeiro “lobista” da empresa. Nesse período, fez “sugestões para modificação da legislação urbanística paulistana”, particularmente para o projeto da City para o Vale do Pacaembu, cuja proposta inicial não fora aprovada por não atender às dimensões mínimas de largura de ruas e de comprimento de quadras e por seu traçado sinuoso, que divergia das exigidas ruas retilíneas (SOUZA, 1988SOUZA, M. C. P. de. O capital imobiliário e a produção do espaço urbano: o caso da Companhia City. 1988. Dissertação (Mestrado em Administração) - Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 1988., p. 67; ANDRADE, 1998 ANDRADE, C. R. M. de . Barry Parker: um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998 ., p. 229-230). Não questionamos aqui se tais alterações na legislação urbanística foram ou não positivas, mas sim o fato de elas terem sido implementadas em razão da influência direta de uma empresa urbanizadora, que se aproveitou das relações pessoais entre seus prestadores de serviço e diretores com funcionários públicos para direcionar a legislação e assim acomodar seus interesses.

Ainda pela City, Parker foi responsável pela revisão e adequação do projeto de Raymond Unwin para o Jardim América, entre abril e maio de 1917, além de ter feito estudos e comentários determinantes para os projetos do bairro do Anhangabaú em 1918 e de ter desenvolvido o projeto do Alto da Lapa e Bela Aliança, em 1918 (ANDRADE, 1998 ANDRADE, C. R. M. de . Barry Parker: um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998 .). Como bairros-jardim, esses loteamentos não exprimiram um processo de dispersão propriamente, mas fizeram parte de um processo de expansão urbana de baixa densidade, com “residências isoladas em amplos lotes ajardinados” (FELDMAN, 2005 FELDMAN, S. Planejamento e zoneamento: São Paulo 1947-1972. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2005., p. 17), e que alimentaria o ideário de habitação suburbana da elite paulista, a se realizar décadas mais tarde.

Embora Parker tenha permanecido no Brasil apenas até o início de 1919, sua experiência incorporou “o conhecimento mais genuíno” do ideário da cidade-jardim e, mais propriamente, do bairro-jardim, quando “o tipo garden city adentra o urbanismo que se fazia em São Paulo e nele fecundará, difundindo-se através de inúmeras propostas e concepções até os anos 50” (ANDRADE, 1998 ANDRADE, C. R. M. de . Barry Parker: um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998 ., p. 5-6). A City teve uma atuação profícua para além da produção de Barry Parker, com uma extensa lista de empreendimentos entre 1915 e 1980, mantendo, por certo tempo, a referência do bairro-jardim para seus projetos (COMPANHIA CITY DE DESENVOLVIMENTO, 1980COMPANHIA CITY DE DESENVOLVIMENTO. História da Companhia City. São Paulo: City, 1980., p. 19-20).

A partir de 1950, os projetos variaram bastante em escopo, público-alvo e porte. A empresa lançou conjuntos habitacionais de baixo custo, com poucos espaços livres, lotes menores e habitações simples e pequenas, como é o caso do Jardim Brasília, lançado em São Paulo em 1955. Nos anos 1970, depois de um intervalo de oito anos sem lançamentos, a City acompanhou o movimento de distanciamento das classes média alta e alta em relação ao centro e começou a empreender condomínios residenciais horizontais e condomínios de chácaras em municípios paulistas. São exemplos o Jardim Bussocaba, em Osasco, cuja propaganda de 1971 anunciava um lago bucólico no centro do empreendimento, com lotes de 400 metros quadrados, e o Chácaras City Castelo, um condomínio de chácaras localizado em Itu, cuja propaganda de 1974 destacava as redes de infraestrutura já instaladas e as amenidades de lazer, incluindo clube com piscinas e quadras de tênis e vôlei (Figura 5).

Figura 5
Propagandas do Jardim Brasília (a) e do Jardim Bussocaba (b).

A atuação da City no início do século XX produziu uma expansão urbana bastante característica, voltada para as elites de São Paulo, reinterpretando o ideário da cidade-jardim para a realidade brasileira. A empresa foi definitiva na difusão desse ideário como proposta de urbanização, ainda que restrita à escala do bairro. E, mesmo nessa escala, apresentam-se princípios de dispersão urbana, especialmente no que tange aos padrões da urbanização residencial unifamiliar, de baixa densidade e de expansão da malha urbana.

4. Conclusões

O percurso pela atuação da Compañía Madrileña de Urbanización, da Garden City Pioneer Company, da First Garden City Ltd. e da Cia. City estruturou-se pelo fio condutor da produção privada da expansão urbana com características que as aproximam de uma organização espacial dispersa, conforme o debate contemporâneo sobre dispersão urbana. No entanto, a ocupação do solo de modo disperso perdeu todo e qualquer cunho de transformação social que caracterizou seus primeiros movimentos e conceituações. De fato, as características das propostas do século XIX e início do XX não são idênticas àquelas do processo de dispersão urbana do século XXI; são prenúncios dela. Porém, elas anunciaram as possibilidades de outras formas de urbanização, guardando semelhanças que não podem ser menosprezadas quando se compreendem a urbanização e o pensamento urbanístico sob uma perspectiva historiográfica de longo prazo. O ideário que informou os projetos dessas empresas, a cidade linear e a cidade-jardim, se caracterizou pelo espalhamento da malha urbana, tanto de forma linear quanto multinucleada, de baixas densidades, ocupando extensas áreas, enquanto suas partes mantiveram estreito vínculo econômico e social entre si, determinando uma ampliação territorial da vida cotidiana.

Por um lado, as práticas urbanísticas propostas por Soria y Mata, por Howard, por Unwin e Parker apresentam uma origem comum de crítica às precariedades da cidade hipercompacta do século XIX, propondo formas de urbanização articuladas com a dispersão urbana, ainda que de maneiras diversas, e consolidando-as no pensamento urbanístico e na história da cidade. A cidade-linear, a cidade-jardim e os bairros-jardim constituíram-se em alternativas que, em algum momento, almejaram uma transformação social e melhor qualidade de vida. Porém, a perspectiva histórica permitiu a construção de uma leitura crítica sobre como essas ideias vanguardistas foram materializadas por empresas urbanizadoras, que o fizeram por meio de práticas e estratégias que permanecem eficazes e vigentes.

Sobre a atuação da Compañía Madrileña de Urbanización, reiteramos a leitura de que a cidade linear foi um empreendimento imobiliário em busca de lucros com a transformação de terras rurais (baratas) em terras urbanas (valorizadas), utilizando a publicação sistemática de uma revista própria para propagar os princípios urbanísticos da urbanização linear, mas, principalmente, para fazer propaganda de seus produtos e, assim, arrebanhar investidores.

Do mesmo modo, a primeira realização efetiva da proposta de garden city de Ebenezer Howard só saiu dos livros e das lâminas de apresentação quando foi decantada de suas intenções comunitaristas, depois do que se transformou em um empreendimento urbanístico comercializável por uma empresa urbanizadora que visava à obtenção de lucro. Das empresas formadas para a construção de Letchworth, na Inglaterra, destaca-se a depuração dos conteúdos coletivistas e igualitários que a ideia inicial de Howard sofreu a fim de concretizar-se como cidade.

Sobre a atuação da Cia. City, particularmente na sua fase inicial, chama atenção o modo como a empresa influenciou diretamente decisões importantes sobre a gestão urbana, a distribuição de infraestrutura e a definição de parâmetros urbanísticos em São Paulo por meio das relações pessoais entre seus diretores e funcionários públicos. Foi marcante a organização de relações de interesses entre membros da diretoria e técnicos da empresa com funcionários da Prefeitura, os quais fizeram uso de seus cargos e funções para beneficiá-la, fosse por meio da alteração de legislação para acomodar projetos urbanísticos e valorizar terrenos da empresa, fosse para garantir a expansão das redes de infraestrutura e serviços nos loteamentos da City.

Esse conjunto de experiências de empresas urbanizadoras é reiteradamente aplicado na urbanização privada contemporânea, seja na especulação imobiliária de terras rurais, seja na utilização de meios de comunicação para consolidar um produto, seja nas articulações com o poder público para beneficiar e viabilizar planos e projetos.

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    This, and all non-English citations hereafter, have been translated by the authors.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2019
  • Aceito
    25 Maio 2020
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