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Turistificação e regeneração urbana: o caso do projeto Porto Maravilha na zona portuária do Rio de Janeiro

Touristification and urban regeneration: the case of the Porto Maravilha project in Rio de Janeiro’s port area

Resumo

O artigo apresenta uma avaliação do processo de turistificação da zona portuária do Rio de Janeiro conduzido pelo projeto Porto Maravilha. Com base em uma análise dos impactos da atividade turística na produção do espaço e na dinâmica socioeconômica da área, discutem-se as relações entre turismo e regeneração urbana mediante a abordagem de temas como a mobilização da cultura para fins de revalorização simbólica e o intuito de dinamização econômica local. O resultado da pesquisa demonstra os descaminhos e a incompletude da tentativa de inserção da zona portuária do Rio de Janeiro no circuito de turismo internacional uma década após o lançamento do projeto Porto Maravilha.

Palavras-chave:
Turistificação; Regeneração Urbana; Porto Maravilha; Rio de Janeiro

Abstract

This article evaluates the process of touristification in Rio de Janeiro’s port area driven by the Porto Maravilha project. Through an analysis of tourism impacts on the making of space and socioeconomic dynamics, it discusses the relationship between tourism and urban regeneration. The article also highlights how culture is used to symbolically revalorize the area and boost the local economy. The results draw attention to the failed attempt to insert Rio de Janeiro’s port into the international tourism circuit after a decade since the launch of the Porto Maravilha project.

Keywords:
Touristification; Urban Regeneration; Porto Maravilha; Rio de Janeiro

Introdução

Durante os Jogos Olímpicos Rio 2016, multidões ocuparam o recém-inaugurado Boulevard Olímpico, uma via de pedestres construída às margens da Baía de Guanabara inspirada na Rambla de Barcelona. Apesar de não acolher nenhuma modalidade esportiva, coube ao bulevar a função de “sala de visitas” da cidade olímpica, abrigando atividades artísticas e culturais, e de espaço de exibição das marcas de grandes empresas patrocinadoras do evento. O sucesso da nova atração parecia consumado quando 150 mil pessoas visitaram o local num único fim de semana, provocando um “congestionamento humano” que obrigou a Prefeitura a montar bloqueios com grades e a estabelecer uma mão única de circulação de pedestres (Figura 1).1 1 “Congestionamento humano” faz prefeitura mudar Boulevard Olímpico. Folha de S.Paulo, 15 ago. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3KT6Frz. Acesso em: 14 jan. 2022.

Após o encerramento do evento, as multidões engarrafadas não foram mais vistas, e a Rambla carioca ficou cada vez mais longe de ser um espaço aglutinador de visitantes, como a sua congênere catalã. As atividades comerciais e de serviços não decolaram, e os poucos empresários que apostaram no potencial turístico se decepcionaram com os rumos do “legado olímpico” encarnado na figura do bulevar. Ao longo da via, as fachadas de imóveis vazios em sequência, cobertas por grafites, mal escondem o fracasso da tentativa de inserir a zona portuária carioca no circuito internacional de turismo. Um taxista à espera de clientes em frente ao terminal de passageiros de transatlânticos do Píer Mauá resume o sentimento de frustração: “Ficamos a ver navios, literalmente. As promessas não duraram nem um verão”.2 2 Entrevista nº 21 (homem, 53 anos, taxista), realizada em 18 de fevereiro de 2018.

Figura 1
“Congestionamento humano” durante a inauguração do Boulevard Olímpico, às vésperas da abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016

Para além de uma vitrine das Olimpíadas, é preciso situar o bulevar como uma das principais intervenções do projeto Porto Maravilha, uma operação urbana consorciada inspirada em experiências internacionais de “regeneração” de antigos bairros portuários e executada com o aporte de investimentos públicos bilionários. O projeto funciona como indutor de revalorização de um extenso perímetro da área central do Rio de Janeiro e está amparado na captura de renda fundiária em bases especulativas. Para alcançar esse objetivo, foram implantadas novas materialidades - vias expressas e túneis, um sistema de veículo leve sobre trilhos (VLT), requalificação de espaços públicos, construção de dois museus e um aquário municipal, entre outros -, atreladas à conformação de novas subjetividades - em especial a reversão dos estigmas territoriais prevalecentes sobre a zona portuária, além da disseminação de representações positivas, com o intuito de atrair visitantes e investidores. Nesse contexto, a configuração da área como um novo polo turístico do Rio de Janeiro e sua inserção no circuito internacional de turismo aparecem como potencialidades compatíveis com os anseios dos promotores do Porto Maravilha, reproduzindo uma tendência mundial de atrelar processos de regeneração urbana à turistificação.

Este artigo tem como objetivo discutir os resultados de uma pesquisa sobre a turistificação da zona portuária; nele, avaliam-se os impactos do turismo na produção do espaço e tecem-se algumas considerações sobre as transformações na dinâmica socioeconômica da área. Os conhecimentos produzidos no âmbito desta investigação partiram de uma abordagem etnográfica e, portanto, de viés qualitativo. As reflexões apresentadas estão apoiadas em trabalhos de campo, entrevistas semiestruturadas, coleta de reportagens e artigos de opinião na imprensa, assim como em levantamento em redes sociais, materiais de divulgação e documentação oficial de promotores do projeto Porto Maravilha e de entidades associadas.3 3 Os dados foram coletados no âmbito de uma pesquisa realizada entre os anos de 2016 e 2020, totalizando 95 entrevistas semiestruturadas com representantes de entidades da sociedade civil organizada e de organismos públicos, moradores, trabalhadores, empresários e frequentadores da zona portuária. Optou-se por manter o anonimato dos entrevistados. A pesquisa foi interrompida em fevereiro de 2020 em função do avanço da pandemia da covid-19 no Brasil. Os resultados apresentados não contemplam as possíveis transformações na zona portuária do Rio de Janeiro após essa data. Os impactos da pandemia deverão ser objeto de estudo futuro. A coleta de dados demonstrou a insatisfação de comerciantes locais, de profissionais do setor do turismo e de turistas quanto às infraestruturas instaladas e às atividades concebidas com o propósito de atrair visitantes. De modo geral, revelou-se como principal resultado que a euforia em relação ao potencial da turistificação de gerar um círculo virtuoso de desenvolvimento deu lugar a questionamentos, confirmando a hipótese inicial da pesquisa de que a inserção da zona portuária do Rio de Janeiro no circuito de turismo era deficiente e incompleta uma década após o lançamento do projeto Porto Maravilha.

Na primeira parte do texto, discutimos o conceito de turistificação e a relação desse processo com os esforços de regeneração urbana. Em seguida, amparados no estudo de caso, ressaltam-se as diferentes iniciativas do poder público a fim de promover a atividade turística no perímetro de intervenção do projeto Porto Maravilha, com destaque para (i) o turismo diaspórico em torno da valorização da cultura e da memória afro-brasileira; (ii) o turismo em favela direcionado à dinamização econômica do Morro da Providência; e (iii) o Boulevard Olímpico, conformado enquanto espaço de turismo inspirado em fórmulas internacionalmente difundidas de regeneração de waterfronts. Em seguida, chamamos atenção para alguns elementos que indicam o “naufrágio” do projeto em sua tentativa de transformar a zona portuária em novo cluster do turismo internacional. Ao final, trazemos breves considerações sobre novas possibilidades que se abrem ante o relativo fracasso do processo de turistificação do território em foco, com uma reflexão sobre o protagonismo da população local na constituição de um projeto renovado de desenvolvimento da atividade turística.

1. Turistificação e regeneração urbana

Na literatura especializada, turistificação é definida como a transformação funcional do espaço mediada pela proliferação de atividades vinculadas direta ou indiretamente ao acolhimento e ao consumo de visitantes. O crescimento do turismo e o papel instrumental que essa atividade desempenha nas múltiplas transformações do ambiente urbano são, portanto, compreendidos como processos contínuos de “turistificação”. Para Ojeda e Kieffer (2020OJEDA, A.; KIEFFER, M. Touristification. Empty concept or element of analysis in tourism geography? Geoforum, v. 114, p. 143-145, 2020. doi 10.1016/j.geoforum.2020.06.021.
https://doi.org/10.1016/j.geoforum.2020....
), esse neologismo, no entanto, não deve ser interpretado como um conceito bem definido e estabelecido na literatura. Essa é também a opinião de Mendes (2022MENDES, L. Touristification. In: BUHALIS, D. (org.). Encyclopedia of tourism management and marketing. Cheltenham: Edward Elgar , 2022. p. 537-540. doi 10.4337/9781800377486.touristification.
https://doi.org/10.4337/9781800377486.to...
), que identifica a turistificação como um fenômeno recente, para o qual ainda não existe uma definição conceitual clara nos estudos turísticos. Para o autor, o termo faz referência aos impactos do turismo de massa nas atividades comerciais e no tecido social dos bairros, que acabam por tornar o ambiente local orientado a atender demandas de visitantes em detrimento das necessidades da população residente. Trata-se, portanto, de um conceito que “designa uma hiperespecialização da economia e do tecido social de um território no setor do turismo” (id., p. 57).4 4 Todos os trechos extraídos de obras em língua estrangeira foram traduzidos pelo autor. Mansilla (2022MANSILLA, J. Turistificación: propuesta de definición y planeamiento de estrategias para su control. Càtedra d´habitatge i dret a la ciutat, Universitat de València, informe n. 2, jul. 2022., p. 6) se alinha a essa perspectiva, ao propor definir a turistificação como “as consequências experimentadas por um território, seja ele uma rua, um bairro, um vilarejo ou uma cidade, quando praticamente todas as relações sociais que nele ocorrem são medidas pela atividade turística”.

Em muitos casos, o termo turistificação é mobilizado para compor juízos negativos de transformações socioespaciais, relacionando-o a fenômenos de gentrificação e espetacularização.5 5 Esse é o caso de Pavel (2016), que, em seu estudo sobre o Bairro Alto de Lisboa, identifica a turistificação como um sinônimo de gentrificação. Nas palavras da autora, “a turistificação se constitui como uma ‘nova’ forma de gentrificação” (p. 3). PAVEL, F. El Bairro Alto en Lisboa entre gentrificación, turistificación y derechos de la población. Contested Cities, Madrid, p. 1-11, jul. 2016. Nesse sentido, este artigo se alinha a uma perspectiva acadêmica no campo dos estudos turísticos, ao discutir a turistificação sem atrelá-la a um sentido dicotômico de positividade/negatividade, considerando o fenômeno um processo complexo de transformação induzida pela atividade turística sobre determinado recorte espacial.

Em um contexto de neoliberalização, em que as políticas urbanas se mostram cada vez mais vinculadas às lógicas de extração de mais-valia do solo urbano e à promoção do consumo dos lugares, a turistificação adquire novos significados. Historicamente, o turismo foi acionado para promover o desenvolvimento social e econômico por meio da criação de empregos, geração de renda, captura de divisas estrangeiras e arrecadação de impostos. Nos marcos do atual regime de acumulação pós-fordista, gestores locais lançam mão da atividade turística como uma “boia salva-vidas” em contextos de crise e recessão.

A dificuldade de muitas localidades em se adequarem às novas demandas, suscitadas pelo advento da globalização e pela revolução tecnológica-informacional, e a assimilação de uma racionalidade empresarial na gestão pública repercutem diretamente na produção do espaço urbano (HARVEY, 1989aHARVEY, D. From managerialism to entrepreneurialism: The transformation in urban governance in late capitalism. Geografiska Annaler, v. 71, n. 1, p. 3-17. 1989a. doi 10.2307/490503.
https://doi.org/10.2307/490503...
). Para salvar as cidades da “crise urbana” - representada pelas altas taxas de desemprego, pela queda das arrecadações de impostos e a consequente incapacidade das municipalidades em prover serviços básicos para a reprodução social -, observa-se um alinhamento de gestores municipais e agentes econômicos em prol de medidas que visem maximizar a atratividade de capitais. As iniciativas de regeneração urbana despontam como um dos principais recursos mobilizados para promover o desenvolvimento social e econômico locais. Em todo o mundo, verifica-se uma profusão de grandes projetos urbanos que buscam a transformação do ambiente construído, em especial naqueles setores das cidades que se qualificam pelo alto potencial de lucratividade sob a forma de extração da renda da terra, adaptando-os às exigências de potenciais investidores.

A literatura sobre o tema indica que projetos de regeneração urbana estão pautados em grande medida por um receituário de ações em que se destaca o desenvolvimento da atividade turística. Trata-se, portanto, de enfatizar que, além da atração de capitais e investidores, as transformações do espaço urbano assumem o compromisso de criar ambientes compatíveis com desejos e demandas de turistas. Para tanto, o portfólio de ações contempla a criação de espaços públicos de lazer, a valorização de edifícios históricos, a implementação de distritos patrimoniais, a promoção de festivais e eventos de natureza esportiva, cultural e artística, a requalificação de frentes marítimas, a construção de cassinos, centros de convenções, museus, entre outros. Nesse sentido, “acima de tudo, a cidade tem que se apresentar como um lugar inovador, excitante, criativo e seguro para se viver ou visitar, divertir-se e consumir” (HARVEY, 1989aHARVEY, D. From managerialism to entrepreneurialism: The transformation in urban governance in late capitalism. Geografiska Annaler, v. 71, n. 1, p. 3-17. 1989a. doi 10.2307/490503.
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, p. 9).

De diferentes maneiras, constata-se que o turismo permeia e influencia decisões relacionadas à política urbana e à produção do espaço urbano, interferindo em deliberações de uso e ocupação do solo, regulações urbanísticas e implementação de infraestruturas (PASQUINELLI; BELLINI, 2017PASQUINELLI, C.; BELLINI, N. Global context, policies and practices in urban tourism: An introduction. In: PASQUINELLI, C.; BELLINI, N. (org.). Tourism in the city: Towards an integrative agenda of urban tourism. New York: Springer, 2017. p. 1-25.). Soma-se a isso o investimento no marketing urbano, em que se lança mão de estratégias para promover imagens positivas sobre as cidades, operando na valorização de determinadas representações e na invisibilização de outras, com o objetivo final de tornar os espaços atraentes para visitantes. Segundo Fainstein e Judd (1999FAINSTEIN, S.; JUDD, D. Global forces, local strategies, and urban tourism. In: JUDD, D.; FAINSTEIN, S. (org.). The tourist city. London: Yale University Press, 1999. p. 1-17., p. 4):

O place marketing fez aumentar o apelo turístico. Lugares constituem a essência da experiência turística e, portanto, são os produtos essenciais dessa indústria. Raramente é perceptível a evidência de que um local deva ser visitado; portanto, algum significado precisa ser atribuído a ele para que sua importância seja reconhecida [...]. Cidades são vendidas como qualquer outro produto [...]. Cada cidade tenta se projetar como um lugar maravilhoso para ser visitado, onde um fluxo incessante de eventos se desdobra constantemente [...]. O produto deve se assemelhar à representação, e assim as cidades muitas vezes se refazem em consonância com a sua imagem anunciada. Caso não exista uma infraestrutura que atraia e estimule as expectativas dos turistas, ela deve ser então construída. Como isso não pode ser confiado à própria sorte, o poder público está inevitavelmente envolvido na coordenação, no subsídio e no financiamento da transformação do ambiente urbano.

Nessa simbiose entre transformação do ambiente construído e estratégias de representação, a cultura - na forma do consumo cultural - tem sido mobilizada como componente fundamental para o desenvolvimento urbano, em especial naquelas cidades que não se mostram bem-sucedidas na transição para o regime de acumulação pós-fordista (ZUKIN, 1998ZUKIN, S. Urban lifestyles: Diversity and standardisation in spaces of consumption. Urban Studies, v. 35, n. 5-6, p. 825-839, 1988. doi 10.1080/0042098984574.
https://doi.org/10.1080/0042098984574...
). Nesse sentido, no que tange a propostas de regeneração, Arantes (2000ARANTES, O. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 11-73.) discorre sobre como as políticas urbanas estão cada vez mais entrelaçadas a políticas culturais, garantindo legitimidade ao “encontro glamoroso entre cultura e capital” (p. 15) e fortalecendo o papel da cultura como “senha mais prestigiosa” (p. 31) da revalorização urbana.

A “virada cultural” nas políticas urbanas confere novo papel à atividade turística, sobretudo ao turismo urbano, historicamente associado com a dimensão da cultura. Desde o final do século XX, essa relação tem ganhado novos contornos, indissociáveis da condição pós-moderna descrita por Harvey (1989bHARVEY, D. The condition of postmodernity: An enquiry into the origins of cultural change. Oxford: Blackwell, 1989b.). O visitante é hoje compreendido como um consumidor de “produtos culturais”, que vão desde suvenires de plástico made in China ou artesanato e culinária locais a tíquetes de ingresso de espetáculos, festivais e museus, e todas as outras formas de consumo derivadas dessa visitação, mesmo aquelas não monetizadas, como selfies em frente a ícones arquitetônicos. Em um contexto em que cultura e arte se tornam iscas de turistas, elas conferem ainda a simbologia necessária para o reconhecimento da opinião pública de que processos de regeneração alcançaram êxito. Assim, a presença de turistas tem o papel de neutralizar negatividades (estigmas) sobre determinado setor urbano, servindo de ponta de lança para que a população local frequente um espaço antes percebido como degradado - uma no-go area.

Compreende-se, portanto, que o estímulo à animação cultural, e a turistificação a ela atrelada, não concorre com as intenções rentistas dos grandes projetos urbanos; pelo contrário, caminham juntos por meio de uma retroalimentação entre valorização simbólica e valorização fundiária. Sendo essa valorização importante fonte de conflitos e contradições - notadamente os conhecidos processos de gentrificação -, políticas culturais são acionadas para suavizar tensões inerentes à lógica de extração de renda em bases especulativas próprias da racionalidade neoliberal de produção do espaço urbano (PECK, 2010PECK, J. Creative liberties. In: PECK, J. Constructions of neoliberal reason. Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 192-231.): trata-se de um cúmplice ideal para a legitimação de projetos de regeneração - afinal, quem se atreve a ser contra “a cultura”?

Ao “pacificar” os espaços para acomodar investimentos e atrair turistas, o álibi cultural induz à estetização e à coreografização de manifestações culturais locais e populares, além de espetacularizar e padronizar os lugares. Não é por azar que vemos a reprodução em série de elementos idênticos em cidades que investiram na regeneração ancoradas no binômio cultura-turistificação: estruturas e edifícios icônicos concebidos por arquitetos renomados, produzidos em série, povoam as paisagens urbanas em todo o planeta. Para A. Smith (2007SMITH, A. Monumentality in “capital” cities and its implications for tourism marketing. Journal of Travel & Tourism Marketing, v. 22, n. 3-4, p. 79-93, 2007. doi 10.1300/J073v22n03_07.
https://doi.org/10.1300/J073v22n03_07...
, p. 82):

A obsessão contemporânea com edifícios icônicos pode ser interpretada como a última tentativa das cidades de usar a monumentalidade como uma forma de afirmar e exibir o status do capital. Na atualidade, os objetivos turísticos são frequentemente a principal justificativa para essas novas estratégias monumentais. [...] Ao tentar se aproximar de potenciais consumidores, em especial os turistas, a cidade contemporânea depende da comunicação eficaz proporcionada por sinais e símbolos urbanos, tanto quanto de propiciar experiências agradáveis.

Iconicidade, monumentalidade, privatização e securitização dos espaços públicos, estratégias de marketing, entre outros, são componentes de um mesmo receituário reproduzido em todos os continentes, transferido de um lugar para o outro com a autoridade de uma “fórmula mágica” capaz de salvar espaços urbanos em “crise”. O resultado é uma “reprodução repetitiva e seriada de certos padrões de desenvolvimento” (HARVEY, 1989aHARVEY, D. From managerialism to entrepreneurialism: The transformation in urban governance in late capitalism. Geografiska Annaler, v. 71, n. 1, p. 3-17. 1989a. doi 10.2307/490503.
https://doi.org/10.2307/490503...
, p. 10), em que o turismo aparece como peça central da engrenagem de regeneração.

Na próxima seção, tratamos de colocar em debate este conteúdo teórico com a tentativa recente de turistificação da zona portuária carioca. Porém, antes de avançarmos nesse estudo de caso específico, é importante salientar que o projeto Porto Maravilha é o produto mais recente de uma construção histórica de imaginários da/para a cidade do Rio de Janeiro. A monumentalidade, a iconicidade arquitetônica, a valorização de elementos da paisagem e da cultura e tantas outras estratégias de promoção e construção simbólica não são novidade; elas fazem parte de um repertório de iniciativas de atores hegemônicos desde o início do século XX. Cristo Redentor, Pão de Açúcar, Arcos da Lapa e praia de Copacabana são elementos da paisagem transformados em símbolos da cidade e explorados há décadas, seja com vistas à construção de identidade local, seja para fins mercadológicos e de promoção de atividade turística.

Diante disso, cabe aqui ressaltar a novidade trazida pelo Porto Maravilha: pela primeira vez, o intento de turistificação surge integrado a um projeto de regeneração urbana. Ou seja, a concepção da operação urbana funde-se com a promoção da atividade turística e aparece mesmo como princípio da legislação que a institui - Lei Complementar nº 101/2009 (PCRJ, 2009aPCRJ. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Lei Complementar nº 101, de 23 de novembro de 2009. Modifica o Plano Diretor, autoriza o Poder Executivo a instituir a Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio e dá outras providências. Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 25 nov. 2009a.), que cria a Área de Especial Interesse Urbanístico da Região do Porto do Rio.

A verdade é que há décadas os grupos hegemônicos que ditam os rumos da cidade vêm buscando consolidar esse objetivo. A tentativa de articulação entre turismo e regeneração urbana já vinha sendo posta em prática desde os anos 1980 em diversos projetos para os bairros centrais da cidade propostos por diferentes entidades públicas e setores do empresariado. Destacam-se as propostas de criação de um world trade center (1982), de um teleporto (1985) e de uma filial do Museu Guggenheim (2002).6 6 Para mais informações sobre esses e outros projetos, consultar Silvestre (2022). SILVESTRE, G. Zona portuária do Rio de Janeiro: entre modelos urbanos e paradigma de requalificação. In: GIANNELLA, L.; MONTEIRO, J. (org.). Zona portuária do Rio de Janeiro: múltiplos olhares sobre um espaço em mutação. Rio de Janeiro: Consequência, 2022. p. 35-64.

As recorrentes gestões de Cesar Maia e seus afilhados políticos - Luiz Paulo Conde e Eduardo Paes - conformaram na esfera municipal a obstinação pela tríade cultura-turismo-regeneração, tal como demonstram os “planos estratégicos” da cidade (PCRJ, 1996PCRJ. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro “Rio sempre Rio”. Rio de Janeiro: PCRJ, 1996., 2009bPCRJ. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Plano Estratégico da Prefeitura do Rio de Janeiro “O Rio mais integrado e competitivo”. Rio de Janeiro: PCRJ , 2009b.). Por um lado, observa-se uma tentativa de complexificação dos “produtos” turísticos - leia-se, ofertar novas experiências para além do tradicional pacote “carnaval-praia” - e, por outro, a inserção de novos espaços no circuito turístico -, rompendo a concentração espacial da atividade turística, historicamente engessada nos bairros da zona Sul e em parte da área central. O incessante esforço de acolher na cidade os “megaeventos turísticos” internacionais também é uma marca dessa estratégia das gestões municipais no período. Alguns exemplos são os Jogos Pan-americanos (2007), os Jogos Mundiais Militares (2011), a Conferência Rio+20 (2012), a Jornada Mundial da Juventude (2013), a Copa das Confederações (2013), a Copa do Mundo FIFA (2014), os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos (2016), uma candidatura malsucedida para os Jogos Olímpicos de 2004, além de inúmeras edições do festival de música Rock in Rio. Os Jogos Olímpicos Rio 2016 e o projeto Porto Maravilha devem ser entendidos, portanto, como o ápice de um longo caminho percorrido pelas elites locais, concretizado num momento em que as condições econômicas e políticas se mostraram ideais para essa realização.

2. Porto Maravilha e os novos produtos turísticos da Cidade Maravilhosa

A turistificação é apenas uma das dimensões da aposta de transformação da zona portuária do Rio de Janeiro, mas assume relevância ao imbricar-se com outros componentes do projeto, tais como a ressignificação simbólica do lugar e o acionamento da cultura para fins de regeneração. A escolha do nome comercial “Porto Maravilha” para a operação urbana consorciada está em sintonia com esse objetivo, ao resgatar uma alcunha que há décadas exalta elementos culturais e naturais da cidade. A “Cidade Maravilhosa” foi consolidada ao longo do século passado como imagem-força atrelada a ícones da zona Sul carioca selecionados enquanto produtos turísticos (FREIRE-MEDEIROS; CASTRO, 2013FREIRE-MEDEIROS, B.; CASTRO, C. Destino: Cidade Maravilhosa. In: CASTRO, C.; GUIMARÃES, V.; MAGALHÃES, A. (org.). História do turismo no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2013. p. 13-36.). Desse modo, pelas intenções dos promotores do projeto Porto Maravilha, a zona portuária estaria integrada aos “encantos mil” dessa utopia romântica explorada comercialmente.

No reduzido território do projeto Porto Maravilha, inúmeras “potencialidades turísticas” afloram para os agentes da regeneração. Além do waterfront com vista para alguns dos mais importantes cartões-postais da cidade, e de um patrimônio arquitetônico passível de destinação para fins turísticos, a zona portuária conta com um atributo que lhe garante singularidade: a cultura local está historicamente povoada de símbolos da brasilidade que hoje fazem parte do imaginário brasileiro ao redor do mundo, elementos da herança africana com alto potencial de conversão em produtos culturais originais.

Uma das principais características da turistificação na atualidade é assumir múltiplas feições, tão diversificadas quanto o próprio espaço geográfico. Pelo lado da demanda, trata-se de uma resposta a anseios de determinados grupos por novos produtos turísticos; na perspectiva da oferta, observa-se a criação de produtos turísticos por agentes e grupos sociais em contexto de projetos de “desenvolvimento”. Como resultado, têm-se a diversificação e a segmentação da atividade turística, com a criação de uma infinidade de micronichos, que resulta na fragmentação cada vez maior da indústria do turismo. No caso da zona portuária do Rio de Janeiro, por exemplo, a aposta dos promotores locais não se limita ao Boulevard Olímpico e ao seu entorno, e a adaptação do espaço urbano para fins de acolhimento e consumo turísticos se manifesta de diferentes formas.

2.1 Cais do Valongo e o turismo diaspórico

A poucos metros do Boulevard Olímpico, outro espaço de destaque nos planos do complexo turístico da zona portuária revitalizada é o Cais do Valongo, reconhecido como principal ponto de desembarque de africanos escravizados nas Américas (Figura 2). Como ressaltado, a cultura e a geografia do local foram marcadas pela forte presença de africanos escravizados e libertos, e de seus descendentes, o que levou o artista Heitor dos Prazeres a representá-lo, no início do século XX, como a “Pequena África” carioca.7 7 Apud Moura (1995). MOURA, R. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995.

Figura 2
Funcionários realizam manutenção do Cais do Valongo após alagamento por chuva (2018)

Se, inicialmente, o passado negro e popular da zona portuária não aparecia no hall de elementos selecionados pelos promotores do projeto Porto Maravilha para fins de valorização cultural e de turistificação, esse descaso ganha novo rumo quando organizações estrangeiras e a mídia internacional visitam e noticiam a “descoberta” do Cais do Valongo. Assessores do então prefeito Eduardo Paes foram exitosos em convencer o gestor municipal e a presidência da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (CDURP) da importância de conservação do cais e dos benefícios de seu enaltecimento para o intento de fomentar a regeneração local.8 8 Originalmente, e seguindo os planos da CDURP, após a finalização dos trabalhos arqueológicos, o Cais do Valongo seria novamente encoberto para a construção de uma via de automóveis.

Trata-se, portanto, de reconhecer que o processo de homogeneização - enquanto estratégia de replicação de um receituário de desenvolvimento de forma a minimizar riscos para investidores - é apenas uma faceta da turistificação: o sucesso para a dinamização da atividade turística depende também da valorização do “autêntico” e do “único”. O acionamento do patrimônio material e imaterial é exemplar nesse esforço de construção da singularidade local. No caso do Porto Maravilha, a celebração da cultura afro-brasileira foi vislumbrada como um produto para os visitantes, instrumentalizando o passado negro da área como um elemento de distinção diante de outras cidades que igualmente exploram o potencial turístico de seus waterfronts. Assim, o esforço pelo reconhecimento do sítio arqueológico do Cais do Valongo como patrimônio da humanidade pela Unesco está atrelado à intencionalidade de desenvolver o turismo diaspórico na zona portuária.

Na interpretação de Coles e Timothy (2004COLES, T.; TIMOTHY, D. (org.). Tourism, diasporas and space. London: Routledge, 2004.), o turismo diaspórico teria como público-alvo prioritário os membros de comunidades diaspóricas que buscam uma experiência de consumo e vivência de lugares relacionada com a história de seus antepassados. No caso brasileiro, Pinho (2018PINHO, P. Mapping diaspora: African American roots tourism in Brazil. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2018.) demonstra como a Bahia se tornou um ponto nodal de um nicho do turismo que atrai milhares de afro-estadunidenses interessados nas raízes culturais da diáspora negra no Atlântico. A patrimonialização do Cais do Valongo permitiria, assim, a integração da zona portuária carioca nesse “mapa da africanidade”, com repercussões positivas para a revalorização simbólica da área, ao impulsionar seu potencial turístico.

O incentivo de agentes públicos à criação de atrações destinadas a celebrar a cultura e a história afro-brasileiras é abraçado por ativistas e setores do movimento negro, que vislumbram nele a possibilidade de alinhar o turismo étnico a debates mais amplos sobre desigualdade e racismo. A equalização desses interesses, contudo, não ocorre sem tensionamentos. Grupos locais criticam as iniciativas da Prefeitura de promover a celebração do passado negro, acusando-a de optar por uma abordagem com feições folclóricas e espetacularizada - e, portanto, despolitizada e mercadológica.

Para um gestor público engajado na promoção local, o reconhecimento do patrimônio do Cais do Valongo teria “potencial de atrair a atenção do mundo, do turismo internacional”, culminando com “milhares de turistas americanos vindo visitar a zona portuária” nas próximas décadas:

O título de Patrimônio da Humanidade é importantíssimo para a cidade e para o projeto [Porto Maravilha]. Isso tem o potencial de atrair a atenção do mundo, do turismo internacional para a zona portuária. [...] Hoje o turismo étnico é a grande aposta do setor, movimenta muitos dólares e só vem crescendo. [...] Nos Estados Unidos tem agências de viagens que se especializaram nos roteiros afros para os negros americanos. Eles viajam para a África e fazem visitação nos espaços de memória da escravidão, no Benin, em Gana, no Senegal. [...] O Rio de Janeiro tem condições muito melhores de atrair esse público, vamos entrar na rota, e eu vejo milhares de turistas americanos vindo visitar a zona portuária nos próximos anos.9 9 Entrevista no 12 (assessor do prefeito Eduardo Paes), realizada em 18 de outubro de 2016.

Apesar da inscrição do cais na lista de patrimônios da Unesco em 2017, a expectativa de torná-lo uma atração internacional não foi concretizada, e as entrevistas revelam que o sítio arqueológico é uma localidade desconhecida ou ignorada pelos turistas que circulam pelo Boulevard Olímpico. A falta de visitantes só não é constante em razão da presença de grupos de estudantes dos ensinos fundamental e médio, levados por seus professores em excursões escolares. Dessa forma, o insucesso do cais em atrair “milhares de turistas” não apaga sua relevância para fins educacionais e como lugar de memória para a comunidade negra e religiões de matriz africana.

2.2 Morro da Providência e o turismo em favela

A zona portuária abriga também a comunidade reconhecida como a primeira favela do Brasil, o Morro da Providência, um marco histórico igualmente acionado para promover o Porto Maravilha como destino turístico. No âmbito da operação urbana, a principal infraestrutura concebida para a comunidade foi um teleférico, que, além de melhorar a mobilidade urbana dos moradores, facilitaria o acesso de visitantes ao morro, permitindo a contemplação da paisagem em mirantes voltados para a Baía de Guanabara e o Cristo Redentor. O ambiente seguro para os turistas foi garantido pela instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP da Providência), que durante alguns anos manteve um aparente controle militarizado do tráfico de drogas na área.

A turistificação do Morro da Providência reproduz o formato slum tourism, existente há pelo menos duas décadas nas favelas da zona Sul do Rio de Janeiro.10 10 Para um debate sobre o turismo em favelas, consultar Freire-Medeiros (2012). FREIRE-MEDEIROS, B. Touring poverty. London: Routledge, 2012. Desde a Eco-92, quando representantes de delegações estrangeiras mostraram interesse em conhecer as comunidades cariocas, os tours propostos por guias locais e agências especializadas se multiplicaram. O sucesso do filme Cidade de Deus (2002) consolidou o turismo em favela como um novo produto a ser explorado na promoção da cidade internacionalmente.

Aproveitando a onda de interesse pelas comunidades, em 2004, durante a gestão Cesar Maia, foi concebido o projeto “Museu a Céu Aberto”, como parte do programa Favela Bairro para o Morro da Providência. A ideia foi criar um corredor cultural com diversos pontos de visitação e a construção de três mirantes voltados para diferentes ângulos da paisagem carioca. Nas palavras da arquiteta da Prefeitura responsável pelo projeto (s.d.),

[...] o programa Favela Bairro pensou em fazer um corredor histórico que é um museu. [...] Nós agregamos outros elementos da modernidade, como os mirantes, onde é possível ver a cidade quase que com uma vista equivalente àquela do Pão de Açúcar e do Corcovado, e sem ter que pagar nada por isso. E, ao mesmo tempo, conhecer um lado da cidade que é pouco visitado. Esse é o museu. [...] Ao invés de construir um prédio dentro de uma favela e chamar aquilo de museu, nós utilizamos o morro como prédio. E o museu é a própria favela.11 11 Informação verbal extraída de vídeo institucional da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (s.d.). Disponível em: https://bit.ly/3uYH4b3. Acesso em: 16 fev. 2022.

Os investimentos realizados pelo poder público municipal não impulsionaram a atividade turística na favela, e os edifícios que faziam parte do circuito do museu a céu aberto permaneceram sem conservação nos anos seguintes à implementação do projeto. Curiosamente, os mirantes que deveriam atrair visitantes foram apropriados por narcotraficantes da localidade e passaram a funcionar como pontos de observação privilegiados em situações de conflito com as forças policiais.

Na década seguinte, em meio ao turbilhão de propostas estruturantes do projeto Porto Maravilha, o poder público municipal foi especialmente atuante na tentativa de transformar o Morro da Providência em atrativo turístico. O pacote de ações iria além da construção do teleférico mencionado, pois contemplaria também a reestruturação dos mirantes - os mesmos criados pelo programa Favela Bairro - e uma cenarização do local, que, nas palavras de uma gestora municipal entrevistada, “buscou inspiração no projeto de revitalização do Pelourinho de Salvador”.12 12 Entrevista nº 7 (gestora municipal), realizada em 9 de março de 2016. A gestora faz referência ao projeto de “revitalização” do centro histórico da capital baiana entre os anos de 1980 e 1990, que promoveu a remoção de centenas de moradores de baixa renda da área, transformando o Pelourinho numa “vitrine a ser apreciada pelos turistas” (ZANIRATO, 2004, p. 342). ZANIRATO, S. A restauração do Largo do Pelourinho: edificações tão bonitas de se ver, histórias não tão bonitas de se contar. Dimensões, n. 16, p. 323-344, 2004. Se todas as intervenções previstas tivessem se concretizado, mais de trezentas casas - o equivalente a um terço do total de moradias da Providência - seriam removidas (Figura 3).

Figura 3
Projeto da Prefeitura para o Morro da Providência (2011)

A mobilização da população contra o processo de remoção forçada, aliada à repercussão negativa na imprensa internacional das violações de direito à moradia, fez a Prefeitura abandonar a ideia de conceber um “Pelourinho” para o Morro da Providência. Poucos meses depois dos Jogos Olímpicos, o teleférico foi desativado e a UPP da Providência passou por uma desestruturação que culminou com a volta da atuação ostensiva de narcotraficantes. Em meio às disputas pelo controle do território, os tiroteios frequentes interrompem a circulação do VLT nas ruas do entorno da favela. A presença de turistas na Providência hoje é reduzida e esporádica. Pequenos comerciantes locais, donos de bares e restaurantes, além de moradores que investiram suas economias na conversão de seus imóveis em hostels, relatam frustração com a interrupção de seus planos.

Apesar do cenário desolador para aqueles que previam a geração de renda por meio da atividade turística, é preciso salientar que esses moradores expressam juízo positivo quanto ao processo de turistificação da favela. Nas entrevistas realizadas, observa-se que, no curto período de intensa visitação, a presença de turistas garantiu empoderamento e amplificação de vozes da comunidade, além de uma visibilidade midiática jamais verificada na história da Providência. Nesse aspecto, é necessário reconhecer o turismo em favelas não só como mera contemplação de espaços da pobreza, mas também como atividade que fomenta a ação política de grupos sociais invisibilizados e silenciados no espaço urbano.

É perceptível que o objetivo de turistificação da zona portuária - e do Morro da Providência, especificamente - buscou angariar legitimidade por meio do acionamento de um discurso que inferia o desenvolvimento econômico da comunidade em face das oportunidades de emprego e renda decorrentes das realizações do projeto Porto Maravilha. Alia-se a isso a mobilização de uma retórica neoliberal pautada no discurso ideológico do empreendedorismo e na responsabilização dos indivíduos pela sua situação de pobreza. As ações do programa denominado “Porto Maravilha Cidadão”, por exemplo, eram destinadas à profissionalização da população e dos microempreendedores da área, especialmente por meio de parcerias com o Sebrae-RJ - e o turismo era considerado fator propulsor de desenvolvimento comunitário. Nas palavras de um assessor do prefeito Eduardo Paes, os moradores deveriam “explorar a criatividade” de forma a fazer emergir “os talentos existentes na favela”, e “o Porto Maravilha é bom para quem sabe se aproveitar dele”.13 13 Entrevista nº 12 (assessor do prefeito Eduardo Paes), realizada em 18 de outubro de 2016.

Mais de uma década após a operação urbana entrar em funcionamento, o insucesso da turistificação é verbalizado pelos moradores e pequenos comerciantes entrevistados, e a memória das ameaças de remoção e violação de direitos sofridas impõe-se aos supostos benefícios do projeto de regeneração da zona portuária. Sem a pretensão de aprofundar este debate e pelas limitações impostas a este artigo, cabe, no entanto, questionar as reais intenções do projeto Porto Maravilha de buscar compatibilidade entre lógicas especulativas de produção do espaço e a permanência de grupos sociais de baixa renda no perímetro de atuação da operação urbana consorciada.

2.3 De volta ao Boulevard Olímpico

Retoma-se aqui a análise do Boulevard Olímpico, ponto de partida deste artigo. A opção de conceber essa via de pedestres como elemento central do projeto Porto Maravilha alinha-se aos pressupostos de um modelo consagrado em várias cidades do mundo nas últimas três décadas: converter antigos bairros portuários obsoletos e desvalorizados em novos espaços de consumo, ressignificados por meio de instalações culturais e de entretenimento. No caso da zona portuária carioca, o Museu do Amanhã, projetado pelo starchitect Santiago Calatrava, e o painel “Etnias”, assinado pelo renomado grafiteiro Eduardo Kobra, são duas das principais iscas culturais (ARANTES, 2000ARANTES, O. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 11-73.) concebidas para compor uma nova imagem da área. Um aquário municipal, o AquaRio, “o maior aquário da América do Sul”, e uma roda-gigante, a Rio Star, “a maior roda-gigante da América Latina”, completam as materialidades que compõem esse novo polo turístico da cidade.

Em todo o mundo, os espaços públicos são cada vez mais integrados aos circuitos de turismo urbano, especialmente pela inserção de objetos arquitetônicos capazes de atrair visitantes. Por essa razão, as antigas zonas portuárias acabam sendo alvos privilegiados de projetos de regeneração, por um lado, por disponibilizarem amplos espaços “vazios” e subutilizados, passíveis de acolher grandes edificações e outras amenidades de lazer e entretenimento,14 14 Em consonância com a teoria da renda diferencial (rent gap) de N. Smith (1979), analisada por Martins (2015) para o caso do projeto Porto Maravilha. SMITH, N. Toward a theory of gentrification: A back to the city movement by capital, not people. Journal of the American Planning Association, v. 45, n. 4, p. 538-548, 1979. doi 10.1080/01944367908977002. MARTINS, R. O projeto Porto Maravilha e o rent gap de Neil Smith. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 17, n. 3, p. 195-214, 2015. doi 10.22296/2317-1529.2015v17n3p195. e, por outro, porque a interface entre espaços urbanos e os waterfronts produzem um fascínio de contemplação historicamente explorado e valorizado em diversas culturas.

O Boulevard Olímpico foi concebido como um enclave turístico desconectado de sua vizinhança direta, descumprindo, portanto, a promessa dos promotores do Porto Maravilha de “integrar” as antigas instalações portuárias ao tecido urbano carioca. Por ter recebido o maior volume de investimentos destinados às obras de regeneração, o bulevar antagoniza a precariedade dos espaços de pobreza localizados a poucos passos da promenade, onde os cortiços e o esgoto a céu aberto parecem ter sido ignorados, apesar dos bilhões de reais aplicados pela operação urbana (Figura 4).

Figura 4
Grafites e intervenções artísticas cobrem as fachadas de imóveis vazios ao longo do Boulevard Olímpico (2018)

Se uma das principais características dos projetos de turistificação tem sido a vigilância dos espaços públicos requalificados, com o objetivo de garantir a “segurança” e o “conforto” dos visitantes, essa tentativa de enquadramento é refutada pela população local, que transformou o waterfront em espaço de lazer. O bulevar hoje conta com forte ocupação de pessoas “reais”, moradores de baixa renda da zona portuária, que se apropriam do espaço mediante usos populares.

3. Naufrágio

Todos esses investimentos demonstram um incremento real da atividade turística na zona portuária, notadamente quando o cenário atual é confrontado com o contexto de uma década atrás, antes das obras do projeto Porto Maravilha: tratava-se de uma no-go area, um território estigmatizado pela presença de sujeitos e grupos sociais indesejados e fora da vista daqueles que buscavam o Rio de Janeiro como destino turístico. Por outro lado, é preciso chamar atenção para os descaminhos do processo de turistificação e para a incapacidade de os gestores públicos cumprirem a promessa de tornar a zona portuária “mais famosa e mais visitada que o Cristo Redentor”.15 15 Entrevista nº 12 (assessor do prefeito Eduardo Paes), realizada em 18 de outubro de 2016.

Nos fins de semana, a imagem de longas filas que se formam em frente ao Museu do Amanhã - sem dúvida, o mais bem-sucedido dos equipamentos criados no âmbito do Porto Maravilha - pode induzir a uma conclusão apressada de que o objetivo da turistificação foi plenamente alcançado. Essa concentração de visitantes contrasta com o “vazio” à medida que deixamos a Praça Mauá e percorremos o bulevar. É preciso sublinhar ainda que boa parte do público frequentador do novo equipamento é composta de moradores da região metropolitana fluminense e, principalmente, de grupos escolares em excursões organizadas por professores que desejam explorar o potencial educativo do museu.16 16 O Museu do Amanhã tem forte apelo educativo ao procurar debater o futuro da humanidade, em especial no que diz respeito a temas relacionados ao meio ambiente. Para uma análise crítica do museu, ver Funk (2022). FUNK, K. Museu do Amanhã, museu de possibilidades: arquitetura icônica e produção neoliberal (progressista) de lugares no Porto Maravilha. In: GIANNELLA, L.; MONTEIRO, J. (org.). Zona portuária do Rio de Janeiro: múltiplos olhares sobre um espaço em mutação. Rio de Janeiro: Consequência, 2022. p. 183-200. Estamos distantes, portanto, do compromisso original de dinamização do turismo internacional na área, idealizada pelos promotores do projeto - segundo relatório de atividades do Museu do Amanhã, apenas 3% dos visitantes em 2018 eram estrangeiros.17 17 “Museu do Amanhã Três Anos”. Disponível em: https://museudoamanha.org.br. Acesso em: 18 fev. 2022.

O efeito de “transbordamento” esperado em decorrência das intervenções do Porto Maravilha até o momento não é visível na paisagem: o Boulevard Olímpico é um grande deserto de atividades comerciais e de serviços para os visitantes. Dos dois hotéis construídos na área, um fechou as portas e o outro amarga baixas taxas de ocupação dos quartos. Os comentários deixados por clientes estrangeiros em sites de avaliação oferecem uma dimensão dos desafios encontrados pelos visitantes:18 18 Comentários extraídos dos sites Booking, Trivago e Google Meu Negócio em 2019.

“O hotel fica numa área desértica”

“Não ande a pé pela região!”

“É preciso pegar Uber ou táxi para chegar a qualquer lugar”

“Precisa pegar um Uber se você quiser almoçar”

“Não é um lugar seguro para mulheres”

As entrevistas corroboram o descontentamento generalizado em relação aos esforços de turistificação da área. Em frente ao terminal de transatlânticos do Píer Mauá, uma guia de turismo nos confiou um depoimento enquanto aguardava o desembarque de uma família francesa em visita à cidade:

Aqui na zona portuária eu não tenho muitas coisas a oferecer para um turista. O que eu tenho para propor como visitação? [...] Essas pessoas vêm passar duas ou três noites na cidade, elas já têm em mente o que querem visitar: Pão de Açúcar, o Cristo [Redentor], Santa Teresa, às vezes a Lapa, ou o [estádio do] Maracanã.19 19 Entrevista nº 32 (mulher, 33 anos, guia de turismo), realizada em 27 de janeiro de 2019.

Outro guia de turismo relatou: “Uma vez eu tive uma demanda de um grupo para visitar o bulevar. Mas foi rápido, aproveitaram as últimas horas antes de o navio partir [...]. Não tem nada de diferente para se ver aqui, é só um calçadão sem árvores, não tem nem sombra”.20 20 Entrevista nº 33 (homem, 29 anos, guia de turismo), realizada em 27 de janeiro de 2019.

A proprietária de um food truck estacionado no entorno do Museu do Amanhã discorreu sobre o esvaziamento do espaço após os Jogos Olímpicos:

Eu investi todas as minhas economias neste food truck. Durante as Olimpíadas, eu ganhei muito dinheiro. Todo o mundo que trabalhava com alimentação aqui lucrou [...]. Depois, virou esse deserto que você está vendo. De vez em quando, eles fazem algum evento aqui no bulevar, isso aumenta as vendas, mas eu estou pensando em sair, voltar para o meu emprego anterior.21 21 Entrevista nº 35 (mulher, 40 anos, microempresária), realizada em 27 de janeiro de 2019.

Um comerciante local, proprietário de uma champanheria, aponta que a solução para aumentar a frequentação de turistas seria “trazer a zona Sul” para a zona portuária, ou seja, reproduzir nela elementos do consagrado espaço turístico carioca:

A maioria dos meus clientes são funcionários de escritórios, funcionários públicos que trabalham no Centro da cidade e frequentam nosso espaço no happy hour. [...] Raramente entra um gringo aqui. [...] Eles estão interessados em Ipanema, Copacabana, Santa Teresa, então a solução talvez seja trazer a zona Sul para cá. [...] O governo deveria fazer um estudo para dizer por que esses turistas não têm interesse pela zona portuária, e tentar reproduzir aqui as coisas que deram certo lá.22 22 Entrevista nº 47 (homem, 48 anos, empresário), realizada em 18 de dezembro de 2019.

Em 2018, o então prefeito Marcelo Crivella surge com uma nova fórmula mágica para resolver a crise econômica da cidade e, de quebra, impulsionar o turismo na zona portuária: a construção de um cassino-resort, com recursos do magnata estadunidense Sheldon Adelson. De acordo com Crivella:

A ideia dele [Sheldon Adelson] era comprar [a área do aeroporto] Santos Dumont. Tirei isso da cabeça dele, para ele comprar o Porto Maravilha. E nós termos aqui um cassino tipo o que ele fez em Cingapura, onde 5% é o cassino, e tem centro de exposição, centro de convenções, hotel, com duas torres enormes, de 50 metros, e piscina lá em cima. [...] Nós estamos falando de um cassino, um só na cidade do Rio de Janeiro, que tenha a capacidade de atrair milhões de turistas [...] Cingapura tinha 6 milhões de turistas e passaram para 20 milhões. O Adelson [...] me disse que não há hipótese de não dobrarmos o número de turistas para cá.23 23 “Crivella sobre cassino no Porto: ‘Sou contra o vício, mas contra a miséria e o desemprego’”. O Globo, 17 dez. 2018. Disponível em: https://glo.bo/3gY2Mnu. Acesso em: 16 dez. 2022.

A proposta nunca foi levada a sério, nem mesmo pelos gestores da CDURP, e as notícias sobre o empreendimento desapareceram rapidamente da mídia. Crivella não foi reconduzido ao cargo de prefeito nas eleições de 2019, e o empresário milionário faleceu em 2021.

A utilização de cassinos como indutores de regeneração urbana foi uma estratégia amplamente utilizada por governos locais estadunidenses nos anos 1970 e 1980. Na literatura sobre o tema, um número relevante de autores aponta essa estratégia como insustentável do ponto de vista econômico, social e ambiental, com significativos impactos negativos em comunidades locais. Ela também é criticada por policymakers das mais diversas tendências ideológicas no mundo todo.24 24 Para uma revisão da literatura, consultar Hannigan (2007). HANNIGAN, J. Casino cities. Geography Compass, v. 1, n. 4, p. 959-975, 2007. doi 10.1111/j.1749-8198.2007.00044.x.

Considerações finais

No campo dos estudos turísticos, um volume expressivo de trabalhos ressalta que a transformação funcional do espaço para atividades vinculadas ao consumo e ao acolhimento de visitantes gera consequências negativas em muitas cidades e leva à eclosão de ondas de descontentamento de moradores e de comerciantes locais.25 25 Novy e Colomb (2016) apresentam análises sobre a politização e a atuação de movimentos de contestação da atividade turística. NOVY, J.; COLOMB, C. (org.). Protest and resistance in the tourist city. London: Taylor & Francis, 2016. O aumento do preço de aluguéis - ocasionado pela pressão da especulação imobiliária e pelo aumento exponencial de imóveis disponibilizados em plataformas digitais de locação por temporada, como o Airbnb - e a privatização de espaços públicos - criando restrições à circulação nos espaços e corroendo o sentimento de pertencimento de moradores aos seus bairros - estão entre os motivos mais comuns de descontentamento.26 26 O fenômeno do overtourism (“sobreturismo”, em tradução livre) pode ser descrito como “o crescimento excessivo de visitantes levando à superlotação de áreas, onde os moradores sofrem as consequências de picos de turismo temporários e sazonais, que causam mudanças permanentes em seus estilos de vida, negam o acesso a comodidades e prejudicam o bem-estar geral da população local” (MILANO; CHEER; NOVELLI, 2019, p. 1). MILANO, C.; CHEER, J.; NOVELLI, M. (org.). Overtourism: excesses, discontents and measures in travel and tourism. Wallingford: CABI, 2019. Barcelona é um dos exemplos mais notáveis dos impactos negativos da turistificação, os quais contribuíram para a eleição de uma prefeita cujo plano de governo era pautado pelo decrescimento do turismo.27 27 Ada Colau, eleita em 2015 e reconduzida ao cargo de prefeita em 2019.

Apesar de adotar um receituário de produção do espaço urbano inspirado na capital catalã, o projeto Porto Maravilha não alcançou até o momento o mesmo êxito. O artigo demonstrou que as três principais apostas dos promotores do projeto em estimular a turistificação se mostraram insuficientes diante das expectativas iniciais. Em face dessa situação, é necessário analisar as ações futuras de agentes públicos e privados relacionadas ao fomento da atividade turística na área e avaliar se os impactos negativos identificados em cidades europeias e estadunidenses encontrarão eco nos bairros portuários cariocas. Não se trata de negar as evidências de que a zona portuária se tornou um polo de turismo da cidade do Rio de Janeiro, e sim de identificar que as projeções relativas ao projeto não se efetivaram até o momento. Enquanto os visitantes estrangeiros não chegam, o naufragado Porto Maravilha deve continuar, nas próximas décadas, como objeto de propostas - algumas delas mirabolantes - com o intuito de alavancar o turismo internacional.

Grandes projetos urbanos, como o Porto Maravilha, são reconhecidos na literatura como expressões máximas de uma racionalidade neoliberal de produção do espaço, encarnando lógicas especulativas alinhadas a estratégias de acumulação capitalista de grupos hegemônicos (SWYNGEDOUW; MOULAERT; RODRIGUEZ, 2002SWYNGEDOUW, E.; MOULAERT, F.; RODRIGUEZ, A. Neoliberal urbanization in Europe: Large-scale urban development projects and the New Urban Policy. Antipode, v. 34, n. 3, p. 542-577, 2002. doi 10.1111/1467-8330.00254.
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). Quando mobilizado por tais agentes, o turismo demonstra ser uma peça fundamental dessa engrenagem propulsora de revalorização fundiária e simbólica de setores urbanos alvos de “regeneração”. O fenômeno de gentrificação turística (COCOLA-GANT, 2018COCOLA-GANT, A. Tourism gentrification. In: LEES, L.; PHILIPS, M. (org.). Handbook of gentrification studies. Cheltenham: Edward Elgar, 2018. p. 281-293. doi 10.4337/9781785361746.00028.
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; GOTHAM, 2018GOTHAM, K. Assessing and advancing research on tourism gentrification. Via, v. 13, p. 1-11, 2018. doi 10.4000/viatourism.2169.
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) é um dos resultados nefastos da aplicação de políticas urbanas pró-mercado observadas em diversas metrópoles do mundo.28 28 Para uma revisão crítica sobre o tema, consultar a coletânea organizada por Gravari-Barbas e Guinand (2017). GRAVARI-BARBAS, M.; GUINAND, S. (org.). Tourism and gentrification in contemporary metropolises: international perspectives. New York: Taylor & Francis, 2017.

Os mecanismos de governança de grandes projetos urbanos tendem a minar a participação popular, ao criarem práticas de accountability meramente formalistas e ao alijarem a população local de processos decisórios (SWYNGEDOUW; MOULAERT; RODRIGUEZ, 2002SWYNGEDOUW, E.; MOULAERT, F.; RODRIGUEZ, A. Neoliberal urbanization in Europe: Large-scale urban development projects and the New Urban Policy. Antipode, v. 34, n. 3, p. 542-577, 2002. doi 10.1111/1467-8330.00254.
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). Não é, portanto, surpreendente observar que, nesses casos, o desenvolvimento da atividade turística comporta em si o déficit democrático que está na essência dessas intervenções, incorporando práticas do tipo tábula rasa que culminam em fenômenos de apagamento, invisibilização, espetacularização e gentrificação.

Perante o relativo fracasso do processo de turistificação da zona portuária do Rio de Janeiro, abre-se a possibilidade de uma reflexão crítica das ações colocadas em prática ao longo da primeira década de implementação do projeto Porto Maravilha. Esse exercício de reflexão pode sinalizar a adoção de uma política de turismo comprometida com anseios e demandas da população local, fundamentada no reconhecimento do protagonismo de moradores na formulação e na execução de um novo modelo de desenvolvimento do turismo - especialmente o turismo de base comunitária.

Diante disso, é necessário lançar um olhar atento para a “Pequena África”, um território repleto de manifestações culturais e artísticas, muitas delas engajadas em pautas antirracistas e em lutas contra desigualdades históricas. Na perspectiva de uma transformação ancorada em princípios da justiça socioespacial, o turismo apresenta-se como um importante fenômeno sociopolítico, sobretudo quando mobilizado como ferramenta de empoderamento da comunidade, promovendo a valorização de identidades locais e contribuindo para a construção de representações contra-hegemônicas.

Lefebvre (1974LEFEBVRE, H. La Production de l’espace. Paris: Anthropos, 1974.) ensina que a construção de representações é uma prática intrinsecamente política, elemento fundamental da produção do espaço. Pode-se argumentar, com inspiração nesse pressuposto, que estratégias de representação são acionadas por diferentes agentes, muitas vezes antagônicos e com interesses conflituosos em relação a um mesmo território. No caso do projeto Porto Maravilha, duas tendências se destacam: de um lado, as representações instituídas e regidas por interesses de grupos hegemônicos que controlam a operação urbana em curso; de outro, as representações construídas por ativistas locais e por organizações comunitárias que se contrapõem à urbanização neoliberal vigente e resistem à lógica especulativa que tende a inviabilizar a permanência desses grupos no território (MONTEIRO, 2022MONTEIRO, J. Uma Dubai cercada de Calcutá: estratégias discursivas na produção neoliberal do espaço. São Paulo: Max Limonad, 2022.). É nesse sentido que o turismo, quando apropriado pela comunidade, pode se tornar um instrumento capaz de fazer ecoarem as vozes dissonantes e dissidentes do projeto de regeneração, possibilitando que os indivíduos implicados reorganizem as próprias identidades, contem as próprias histórias, comuniquem seus valores e visões de mundo, construam concepções alternativas de futuros realizáveis e, consequentemente, assumam o papel de agentes da transformação social (DREW, 2007DREW, E. Strategies for antiracist representation: Ethnic tourism guides in Chicago. Journal of Tourism and Cultural Change, v. 9, n. 2, p. 55-69, 2007. doi 10.1080/14766825.2010.548560.
https://doi.org/10.1080/14766825.2010.54...
; SANTOS; BUZINDE, 2007SANTOS, C.; BUZINDE, C. Politics of identity and space: Representational dynamics. Journal of Travel Research, v. 45, p. 322-332, 2007. doi 10.1177/0047287506295949.
https://doi.org/10.1177/0047287506295949...
; TIMOTHY, 2007TIMOTHY, D. Empowerment and stakeholder participation in tourism destination communities. In: CHURCH, A.; COLES, T. (org.). Tourism, power and space. London: Routledge , 2007. p. 199-216.).

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  • 1
    “Congestionamento humano” faz prefeitura mudar Boulevard Olímpico. Folha de S.Paulo, 15 ago. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3KT6Frz. Acesso em: 14 jan. 2022.
  • 2
    Entrevista nº 21 (homem, 53 anos, taxista), realizada em 18 de fevereiro de 2018.
  • 3
    Os dados foram coletados no âmbito de uma pesquisa realizada entre os anos de 2016 e 2020, totalizando 95 entrevistas semiestruturadas com representantes de entidades da sociedade civil organizada e de organismos públicos, moradores, trabalhadores, empresários e frequentadores da zona portuária. Optou-se por manter o anonimato dos entrevistados. A pesquisa foi interrompida em fevereiro de 2020 em função do avanço da pandemia da covid-19 no Brasil. Os resultados apresentados não contemplam as possíveis transformações na zona portuária do Rio de Janeiro após essa data. Os impactos da pandemia deverão ser objeto de estudo futuro.
  • 4
    Todos os trechos extraídos de obras em língua estrangeira foram traduzidos pelo autor.
  • 5
    Esse é o caso de Pavel (2016), que, em seu estudo sobre o Bairro Alto de Lisboa, identifica a turistificação como um sinônimo de gentrificação. Nas palavras da autora, “a turistificação se constitui como uma ‘nova’ forma de gentrificação” (p. 3). PAVEL, F. El Bairro Alto en Lisboa entre gentrificación, turistificación y derechos de la población. Contested Cities, Madrid, p. 1-11, jul. 2016.
  • 6
    Para mais informações sobre esses e outros projetos, consultar Silvestre (2022). SILVESTRE, G. Zona portuária do Rio de Janeiro: entre modelos urbanos e paradigma de requalificação. In: GIANNELLA, L.; MONTEIRO, J. (org.). Zona portuária do Rio de Janeiro: múltiplos olhares sobre um espaço em mutação. Rio de Janeiro: Consequência, 2022. p. 35-64.
  • 7
    Apud Moura (1995). MOURA, R. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995.
  • 8
    Originalmente, e seguindo os planos da CDURP, após a finalização dos trabalhos arqueológicos, o Cais do Valongo seria novamente encoberto para a construção de uma via de automóveis.
  • 9
    Entrevista no 12 (assessor do prefeito Eduardo Paes), realizada em 18 de outubro de 2016.
  • 10
    Para um debate sobre o turismo em favelas, consultar Freire-Medeiros (2012). FREIRE-MEDEIROS, B. Touring poverty. London: Routledge, 2012.
  • 11
    Informação verbal extraída de vídeo institucional da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (s.d.). Disponível em: https://bit.ly/3uYH4b3. Acesso em: 16 fev. 2022.
  • 12
    Entrevista nº 7 (gestora municipal), realizada em 9 de março de 2016. A gestora faz referência ao projeto de “revitalização” do centro histórico da capital baiana entre os anos de 1980 e 1990, que promoveu a remoção de centenas de moradores de baixa renda da área, transformando o Pelourinho numa “vitrine a ser apreciada pelos turistas” (ZANIRATO, 2004, p. 342). ZANIRATO, S. A restauração do Largo do Pelourinho: edificações tão bonitas de se ver, histórias não tão bonitas de se contar. Dimensões, n. 16, p. 323-344, 2004.
  • 13
    Entrevista nº 12 (assessor do prefeito Eduardo Paes), realizada em 18 de outubro de 2016.
  • 14
    Em consonância com a teoria da renda diferencial (rent gap) de N. Smith (1979), analisada por Martins (2015) para o caso do projeto Porto Maravilha. SMITH, N. Toward a theory of gentrification: A back to the city movement by capital, not people. Journal of the American Planning Association, v. 45, n. 4, p. 538-548, 1979. doi 10.1080/01944367908977002. MARTINS, R. O projeto Porto Maravilha e o rent gap de Neil Smith. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 17, n. 3, p. 195-214, 2015. doi 10.22296/2317-1529.2015v17n3p195.
  • 15
    Entrevista nº 12 (assessor do prefeito Eduardo Paes), realizada em 18 de outubro de 2016.
  • 16
    O Museu do Amanhã tem forte apelo educativo ao procurar debater o futuro da humanidade, em especial no que diz respeito a temas relacionados ao meio ambiente. Para uma análise crítica do museu, ver Funk (2022). FUNK, K. Museu do Amanhã, museu de possibilidades: arquitetura icônica e produção neoliberal (progressista) de lugares no Porto Maravilha. In: GIANNELLA, L.; MONTEIRO, J. (org.). Zona portuária do Rio de Janeiro: múltiplos olhares sobre um espaço em mutação. Rio de Janeiro: Consequência, 2022. p. 183-200.
  • 17
    “Museu do Amanhã Três Anos”. Disponível em: https://museudoamanha.org.br. Acesso em: 18 fev. 2022.
  • 18
    Comentários extraídos dos sites Booking, Trivago e Google Meu Negócio em 2019.
  • 19
    Entrevista nº 32 (mulher, 33 anos, guia de turismo), realizada em 27 de janeiro de 2019.
  • 20
    Entrevista nº 33 (homem, 29 anos, guia de turismo), realizada em 27 de janeiro de 2019.
  • 21
    Entrevista nº 35 (mulher, 40 anos, microempresária), realizada em 27 de janeiro de 2019.
  • 22
    Entrevista nº 47 (homem, 48 anos, empresário), realizada em 18 de dezembro de 2019.
  • 23
    “Crivella sobre cassino no Porto: ‘Sou contra o vício, mas contra a miséria e o desemprego’”. O Globo, 17 dez. 2018. Disponível em: https://glo.bo/3gY2Mnu. Acesso em: 16 dez. 2022.
  • 24
    Para uma revisão da literatura, consultar Hannigan (2007). HANNIGAN, J. Casino cities. Geography Compass, v. 1, n. 4, p. 959-975, 2007. doi 10.1111/j.1749-8198.2007.00044.x.
  • 25
    Novy e Colomb (2016) apresentam análises sobre a politização e a atuação de movimentos de contestação da atividade turística. NOVY, J.; COLOMB, C. (org.). Protest and resistance in the tourist city. London: Taylor & Francis, 2016.
  • 26
    O fenômeno do overtourism (“sobreturismo”, em tradução livre) pode ser descrito como “o crescimento excessivo de visitantes levando à superlotação de áreas, onde os moradores sofrem as consequências de picos de turismo temporários e sazonais, que causam mudanças permanentes em seus estilos de vida, negam o acesso a comodidades e prejudicam o bem-estar geral da população local” (MILANO; CHEER; NOVELLI, 2019, p. 1). MILANO, C.; CHEER, J.; NOVELLI, M. (org.). Overtourism: excesses, discontents and measures in travel and tourism. Wallingford: CABI, 2019.
  • 27
    Ada Colau, eleita em 2015 e reconduzida ao cargo de prefeita em 2019.
  • 28
    Para uma revisão crítica sobre o tema, consultar a coletânea organizada por Gravari-Barbas e Guinand (2017). GRAVARI-BARBAS, M.; GUINAND, S. (org.). Tourism and gentrification in contemporary metropolises: international perspectives. New York: Taylor & Francis, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Abr 2022
  • Aceito
    28 Out 2022
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