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Propriedades urbanas e controle da terra: o Patrimônio da Câmara de Desterro no século XIX

Urban properties and land control: the patrimony of Desterro’s City Council in the 19th century

Resumo

Objetiva-se, neste artigo, realizar uma análise da formação e das transformações do patrimônio da Câmara Municipal de Desterro ao longo do século XIX. A partir da utilização de fontes primárias e secundárias, busca-se debater o cadastramento de ocupantes de 1817, o tombamento do patrimônio de 1823 e a dinâmica de posses e aforamentos realizada pela Câmara Municipal. À luz de debates sobre a historiografia da propriedade da terra no Brasil, identifica-se localmente o aumento do controle estatal sobre o rossio e a baixa influência da Lei de Terras durante o período estudado. Destaca-se, finalmente, a importância de ampliar o conhecimento acerca da alienação do patrimônio fundiário municipal, seus efeitos na configuração da cidade e na formação do patrimônio imobiliário privado.

Palavras-chave:
Patrimônio da Câmara; Propriedade Imobiliária; Desterro; Florianópolis

Abstract

The objective of this article is to carry out an analysis of the formation and transformations of the patrimony of Desterro’s City Council throughout the 19th century. From the use of primary and secondary sources, we sought to discuss the registration of occupants from 1817, the patrimony demarcation of 1823 and the dynamics of possessions and leases carried out by the City Council. In the light of debates on the historiography of land ownership in Brazil, we identified the increase in state control over the rossio and the low influence of the Land Law during the period studied. Finally, it is worth highlighting the importance of expanding knowledge about the alienation of municipal land patrimony, its effects on the configuration of the city and on the formation of private real estate patrimony.

Keywords:
City Council’s Patrimony; Real State Property; Desterro; Florianópolis

1. Introdução

O estudo da propriedade privada como categoria dinâmica e estruturante do sistema capitalista aponta para uma possível agenda de pesquisa que subverta o seu lugar de instituição entronizada e canônica (COUTINHO et al., 2018COUTINHO, D. R.; TOMASO, F.; LESSA, M. R.; MIOLA, I. Z.; PROL, F. M.; UNGARETTI, D. Propriedades em transformação: uma agenda contemporânea de estudos sociojurídicos. In: Propriedades em transformação: abordagens multidisciplinares sobre a propriedade no Brasil. São Paulo: Blucher, 2018. Disponível em: https://www.blucher.com.br/propriedades-em-transformacao-abordagens-multidisciplinares-sobre-a-propriedade-no-brasil_9788580393279. Acesso em: 20 abr. 2021.
https://www.blucher.com.br/propriedades-...
). Para os processos de urbanização, os regimes de propriedade da terra estão na raiz dos problemas urbanos e no centro da dificuldade em fazer com que a produção do espaço atenda às necessidades da maioria. Os vazios urbanos, a escassez de áreas públicas, a segregação socioespacial e o déficit habitacional são algumas das problemáticas relacionadas ao reconhecimento da propriedade urbana e à capacidade do Estado e da sociedade civil em garantir o acesso à terra e à cidade, enquanto estabelecem controles e exigências à apropriação e utilização do espaço urbanizado. Ao mesmo tempo, a imposição de um modelo proprietário baseado no título absoluto registrado individualmente e visto como universal escamoteia outras formas de se lidar com a apropriação da terra (MARÉS, 2021MARÉS, C. A função social da terra. Curitiba: Arte e Letra, 2021.).1 1 Carlos Marés (2021) aponta como, desde o século XIX, a propriedade pública passa a ser vista como excepcional, como “sobras” das propriedades privadas. Também nesse sentido, as formas de propriedade coletiva, propriedade dividida (enfiteuse) ou de apropriação comum das terras foram consideradas como relações a serem “superadas” e incoerentes com a ordem jurídica liberal. A aparente universalidade desse modelo funciona também como uma ideologia: um modo de esconder a história das formas proprietárias e seus processos de transformação ao longo do tempo e do espaço.2 2 Em contraponto, busca-se a perspectiva defendida por Rosa Congost (2006) de uma história da propriedade não linear e que considera a pluralidade das formas proprietárias, analisando não apenas a parte jurídica, mas também suas condições práticas de realização.

Interpretar esse quadro, tomando a propriedade como categoria central, abre caminho para o estudo da propriedade da terra urbana por meio da história da urbanização brasileira. Um caminho ainda pouco traçado e que teve em Marx (1991MARX, M. Cidade no Brasil: terra de quem? São Paulo: Nobel; Edusp, 1991.;1999MARX, M. Cidade no Brasil: em que termos? São Paulo: Nobel, 1999.) um dos seus principais precursores. Para o autor, “a questão da terra, de sua partilha, distribuição e domínio, pode fornecer a chave para o conhecimento de nossa formação, conformação e transformação urbanas” (MARX, 1991MARX, M. Cidade no Brasil: terra de quem? São Paulo: Nobel; Edusp, 1991., p. 14). Para além de uma simples consideração sobre a importância da Lei de Terras, trabalhos de história urbana realizados para as cidades de São Paulo (SILVA, 2012SILVA, E. M. Práticas de apropriação e produção do espaço em São Paulo: a concessão de terras municipais através das cartas de datas (1850-1890). 2012. Dissertação (Mestrado em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.; RIBEIRO, 2017RIBEIRO, F. V. A. Os direitos de propriedade da terra urbana na América portuguesa. História, São Paulo, v. 36, 2017. ; BRITO, 2006BRITO, M. S. Modernização e tradição: modernização, propriedade da terra e crédito hipotecário em São Paulo, na segunda metade do século XIX. 2006. Tese (Doutorado em Geografia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. ; BUENO, 2016BUENO, B. P. S. Aspectos do mercado imobiliário em perspectiva histórica: São Paulo (1809-1870). 2. ed. São Paulo: Edusp, 2016.), Rio de Janeiro (FRIDMAN, 1999FRIDMAN, F. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. ), Natal (SIQUEIRA, 2014SIQUEIRA, G. F. Dessacralizando as propriedades: um estudo sobre o aforamento urbano e a mentalidade proprietária do início do século XX em Natal (RN). Urbana, v. 6, n. 9, p.131-172, 2014. ) e Belém (ABREU; LIMA; FISCHER, 2018ABREU, P. V. L.; LIMA, J. J. F.; FICHER, L. R. C. Aforar, arrumar e alinhar: a atuação da Câmara Municipal de Belém na configuração urbano-fundiária da cidade durante o século XIX. Anais do Museu Paulista, Nova Série, v. 26, p.1-55, 2018.) evidenciam as potencialidades deste estudo para a compreensão do espaço urbano e suas múltiplas abordagens possíveis, como o processo de concessão de terras urbanas, o surgimento do mercado imobiliário, a formação das propriedades religiosas e a materialidade da paisagem urbana ao longo da história do Brasil (BUENO, 2018BUENO, B. P. S. et al. Décimas Urbanas e Censos: a dimensão material e visual de vilas e cidades em fontes textuais. URBANA, v.10, n. 1, 2018. ).

Tendo como referência tais trabalhos e buscando contribuir com a história urbana da cidade de Desterro, atual Florianópolis, objetiva-se neste artigo realizar uma análise da formação e das transformações do patrimônio da Câmara Municipal de Desterro durante o século XIX. Esse período, vale dizer, foi escolhido em razão das transformações intensas ocorridas em relação às formas proprietárias, como o fim do regime sesmarial, a promulgação da Lei de Terras, a criação do primeiro registro de imóveis, entre outros aspectos que conformam uma das principais dinâmicas proprietárias da história da urbanização brasileira. Para chegar aos resultados apresentados, a pesquisa contou com a consulta aos ofícios trocados entre a Câmara Municipal de Desterro e o Presidente da Província de Santa Catarina no decorrer do século XIX, além de cartografias históricas, jornais da época, legislações e outros documentos relativos à gestão das terras urbanas. Os principais acervos utilizados foram o Arquivo Público do Estado de Santa Catarina (APESC), o Arquivo Histórico Municipal de Florianópolis (AHMF) e a Hemeroteca da Biblioteca Nacional.

Em termos de estrutura, o artigo inclui outras três partes, além da presente introdução e das considerações finais. Na segunda parte, a pesquisa se volta para o campo da história urbana e, em especial, das pesquisas acerca da propriedade da terra urbana no Brasil. Na terceira, e adentrando na questão específica do Patrimônio da Câmara Municipal de Desterro, são analisadas informações sobre o processo de cadastramento dos proprietáriosCADASTRO de imóveis proprietários na Rua da Pedreira de 1817. Juízo de Fora Florianópolis: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. e medição do rossio, realizados respectivamente em 1817 e 1823. Por fim, é feita uma análise sobre a dinâmica de posses e aforamentos do patrimônio ao longo do século XIX.

2. Propriedade da terra e história urbana no Brasil

O campo da história da urbanização no Brasil, conforme Bueno (2012 BUENO, B. P. S. Dossiê Caminhos da História da Urbanização no Brasil Colônia. Anais do Museu Paulista , São Paulo, v. 20, n. 1, p. 11-40, 2012. ), parte de uma perspectiva da urbanização como processo social ampliado e tem como marcos iniciais os trabalhos de Aroldo de Azevedo (1956AZEVEDO, A. Vilas e Cidades do Brasil Colonial: ensaio de Geografia Urbana Retrospectiva. Boletim da FFCL, n. 208; Geografia, n. 11. São Paulo, 1956.), Robert Smith ([1955] 2012)SMITH, R. C. As Cidades Coloniais da América Espanhola e Portuguesa. Tradução: Murillo Marx. In: REIS FILHO, N. G. (Org.). Robert Smith e Brasil: arquitetura e urbanismo. Brasília: IPHAN, 2012., Nestor Goulart Reis Filho (1968REIS FILHO, N. G. Contribuição ao estudo da evolução urbana do Brasil: 1500-1720. São Paulo: Pioneira, 1968.), entre outros. Esse campo se constituiu no movimento de renovação da historiografia, oriundo da chamada Escola dos Analles,3 3 Corresponde ao conjunto de historiadores que estiveram à frente da revista fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre, cujo nome inicial era Annales d’Histoire Économique et Sociale. e ganhou força no Brasil e no mundo após a década de 1960, favorecendo pesquisas em direção à interdisciplinaridade, à utilização de novas fontes e à constituição de objetos diversos daqueles considerados pela historiografia tradicional, pautada principalmente na política, em questões nacionais e nos grandes eventos (FELDMAN, 2001FELDMAN, S. Avanços e limites na história da legislação urbanística no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 4, p.33-47, 2001. ). Da quarta geração da escola, Bernard Lepetit (2016LEPETIT, B. Arquitetura, geografia, história: usos da escala. In: SALGUEIRO, H. (Org.). Por uma nova história urbana: Bernard Lepetit. São Paulo: Edusp , 2016. p. 227-263.) foi um autor que marcou a produção teórica relacionada ao campo da história urbana, defendendo o uso de múltiplas escalas de observação como “pontos de vista” não hierarquizados e a importância da autonomia dos atores como contraponto aos esquemas analíticos de longa duração. No Brasil, a partir dos anos 1990, autores como Murillo Marx (1991MARX, M. Cidade no Brasil: terra de quem? São Paulo: Nobel; Edusp, 1991.) e Fania Fridman (1999FRIDMAN, F. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. ) aprofundaram na história urbana brasileira as dimensões do sistema legal que acompanhou o processo de urbanização, com destaque para as formas jurídicas da propriedade urbana. Em paralelo, trabalhos como os de Sarah Feldman (2001FELDMAN, S. Avanços e limites na história da legislação urbanística no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 4, p.33-47, 2001. ) puderam consolidar uma linha de pesquisa sobre a história da legislação urbanística no Brasil. Nesse contexto, entendemos como parte da história da urbanização brasileira a transformação das formas proprietárias urbanas desde o período colonial, evidenciando não só as legislações que definem e garantem as propriedades fundiárias, como também as práticas sociais que condicionam a apropriação do espaço urbanizado.

Entre 1532 e 1822, vigorou no Brasil a concessão de sesmarias: sistema instituído em Portugal em 1375 como forma de combater a diminuição na produção de alimentos e estimular o povoamento, tendo como princípio a obrigatoriedade do cultivo (VARELA, 2005VARELA, L. B. Das sesmarias à propriedade moderna: um estudo de história do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.). Segundo Abreu (2014ABREU, M. A. Apropriação do Território no Brasil Colonial. In: FRIDMAN, F.; HAESBAERT, R. (Org.). Escritos sobre Espaço e História. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 265-198. ), estariam na origem desse sistema os processos de autonomização política e desenvolvimento do poder local realizados no Reino Português após a reconquista, os quais tiveram por consequência a criação de conselhos municipais dotados de um patrimônio territorial próprio, patrimônio concedido pelo Rei ou por outro proprietário local interessado no povoamento. Na colonização do território além-mar, foram transferidos para a colônia não apenas as sesmarias como propriedade rural, mas também o costume de fundar povoados a partir da instituição de conselhos, depois chamados de câmaras, dotados de um patrimônio de terras.

O patrimônio do conselho era concedido às municipalidades a partir da oficialização de um arraial como vila ou cidade. Também conhecido como sesmaria do conselho, bens do conselho ou rossio, o patrimônio possuía dimensões variadas, em geral próximas a meia légua ou a uma légua em quadro, e destinava-se, segundo Silva (2012SILVA, E. M. Práticas de apropriação e produção do espaço em São Paulo: a concessão de terras municipais através das cartas de datas (1850-1890). 2012. Dissertação (Mestrado em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.), a três funções principais: distribuição aos moradores, campos de uso comum ou logradouros públicos e incremento das rendas municipais.

A partilha do rossio por meio das datas de chão, chãos de terra ou datas de terra4 4 Essas expressões designavam a mesma coisa: concessões gratuitas ou onerosas feitas por uma câmara, das terras de seu patrimônio, aos moradores de uma vila ou cidade (MARX, 1991; GLEZER, 2007). foi estudada por Glezer (2007GLEZER, R. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007. ) no sentido da sua caracterização e diferenciação do sistema de sesmarias. Para a autora, as diferenças estavam no caráter da sesmaria, que, como latifúndio orientado para a monocultura, apesar de não exigir o pagamento de foro até o século XVIII, exigia que os proprietários tivessem posses para se tornarem candidatos. Além disso, as sesmarias eram concedidas pelo rei ou pelos donatários das capitanias hereditárias. Já as datas de chão, podendo exigir foro ou não, eram bem menores que as sesmarias e eram concedidas pelas câmaras, sendo inclusive medidas em braças ao invés de léguas. Também, conforme Abreu (2014ABREU, M. A. Apropriação do Território no Brasil Colonial. In: FRIDMAN, F.; HAESBAERT, R. (Org.). Escritos sobre Espaço e História. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 265-198. ), as datas de chão não estavam sujeitas ao dízimo, exigido das sesmarias rurais nos primeiros séculos da colônia.

Os séculos XVIII e XIX implicaram um progressivo aumento do controle das câmaras sobre as concessões e sobre a diferenciação entre os domínios público e privado no espaço urbano. Em algumas cidades, rossios foram demarcados e os processos de alinhamento e demarcação dos logradouros públicos se tornaram mais frequentes. Conhecer e controlar as concessões de datas passou a ser cada vez mais importante não só pela possibilidade de se cobrar efetivamente os foros e laudêmios, como também para reconhecer quais terras continuavam devolutas ou quais concessões teriam caído em comisso, voltando o domínio útil para a câmara. Entretanto, a partir do início do Oitocentos, o poder das câmaras também diminuiu consideravelmente frente ao controle das províncias e do Império, processo que teve como marco a Lei de 1828, quando se expressou uma tentativa de conter a alienação “desordenada” desses patrimônios (MARX, 1991MARX, M. Cidade no Brasil: terra de quem? São Paulo: Nobel; Edusp, 1991.; GLEZER, 2007GLEZER, R. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007. ).

Com relação ao Oitocentos, cabe ressaltar que, ao contrário do que muitas vezes se insinua, a Lei de Terras, promulgada em 1850 e regulamentada em 1854, não representou uma transformação rápida da terra em mercadoria, marcando, na verdade, o início de um processo que aos poucos foi se consolidando e chegando às cidades. Por um lado, já existiam vendas entre agentes privados, mesmo que incipientes, como é o caso de Desterro. Por outro, de acordo com Bueno (2016BUENO, B. P. S. Aspectos do mercado imobiliário em perspectiva histórica: São Paulo (1809-1870). 2. ed. São Paulo: Edusp, 2016., p.120), foram “objeto da atenção da Lei de Terras apenas as terras devolutas, sesmarias e posses circunscritas em áreas exclusivamente rurais, não incidindo nas terras concedidas no perímetro urbano e na zona correspondente ao rossio”. Os primeiros loteamentos urbanos e a figura do “lote de terras” começaram a aparecer a partir da segunda metade do século XIX sem que a prática de concessões e aforamentos tivesse sido automaticamente interrompida. Conforme Abreu et al. (2018ABREU, P. V. L.; LIMA, J. J. F.; FICHER, L. R. C. Aforar, arrumar e alinhar: a atuação da Câmara Municipal de Belém na configuração urbano-fundiária da cidade durante o século XIX. Anais do Museu Paulista, Nova Série, v. 26, p.1-55, 2018.) e Silva (2012SILVA, E. M. Práticas de apropriação e produção do espaço em São Paulo: a concessão de terras municipais através das cartas de datas (1850-1890). 2012. Dissertação (Mestrado em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.), é possível dizer que a absolutização da propriedade percorreu, na verdade, “por dentro” do próprio sistema de aforamentos. A partir do início do século XX, com a promulgação do Código Civil de 1916 e a regulamentação dos processos de parcelamento urbano, foram construídas as bases para que a propriedade urbana titulada se tornasse figura hegemônica no meio urbano. Nesse contexto, o século XIX representou, ao mesmo tempo, a continuidade das concessões de datas de terra e a chegada lenta de outro modelo proprietário.

A descrição desse processo geral, entretanto, não responde sobre o que teria acontecido com cada patrimônio das câmaras municipais no Brasil. Quando os patrimônios foram demarcados? Qual o conhecimento e interesse da vereação sobre eles? Como e em quais circunstâncias eram divididos? Quais tipos de transformações os atravessaram e o que deles ainda subsiste na configuração de cada município? Neste artigo, busca-se debater algumas dessas questões, reconstruindo elementos da história do patrimônio da Câmara Municipal de Desterro, atual cidade de Florianópolis.

3. Fazendo o sentido das propriedades urbanas: o cadastro de proprietários e o Patrimônio da Câmara de Desterro

A tentativa de ordenar as terras dos conselhos aparece no alvará real de 23 de julho de 1766, em um contexto de reforma no regime de concessões de terras da Coroa portuguesa (MOTTA, 2012MOTTA, M. M. M. Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito:1795-1824. São Paulo: Alameda , 2012.).

2. Item. Para de uma vez cessarem os abusos, que se tem feito dos sobreditos aforamentos, declarando a Ord. liv. 1 tit. 66 § 17, mando que nos cazos em que pareça conveniente aforarem algumas porções dos referidos baldios a pessoas que não sejam as contempladas, nunca possão ser expedidas pelas respectivas camaras, mas só em requerimentos dirigidos a mesa do dezembargo do paço, a qual commeterá as informações aos provedores ou corregedores das comarcadas, ouvindo as camaras e os povos respectivos; ordenando-lhes que com as medições, confrontações e valores dos baldios que se pretenderem aforar e importancia dos foros, que se offerecerem depois de andarem em prégão os dias do estylo interponhão o seo arbitro sobre as utilidades ou prejuizos que de taes aforamentos se podem seguir do progresso e augmento da lavoura, á multiplicação dos lavradores e seareiros e a criação dos gados e arvoredos.

[...]

E todos os aforamentos que por outroa forma se expedirem serão nullos e de nenhum effeito; e os ditos provedores farão incorporar nos conselhos as terras assim nullamente aforadas. (PORTUGAL, 1766 apud ARARIPE, 1885ARARIPE, T. A. Código Civil Brasileiro ou as Leis Civis do Brasil. Rio de Janeiro: H. Laemmert & Cia., 1885. Biblioteca Digital do Supremo Tribunal Federal (STF), Disponível em: https://sistemas.stf.jus.br/dspace/xmlui/handle/123456789/565. Acesso em: 20 out. 2020.
https://sistemas.stf.jus.br/dspace/xmlui...
, p. 219-220, grifo dos autores)

Destaca-se na norma a proibição de outros contratos que não sejam de aforamento, além da necessidade de que esses sejam passados por diversas outras instâncias, sendo também medidos e demarcados. A expressão “para de uma vez cessarem os abusos” deixa evidente o ímpeto de reforma e a consciência de que os bens dos conselhos estavam sendo apropriados de maneira desordenada.

Em Desterro, como aplicação do alvará de 1766, a Mesa do Desembargo do Paço publicou a provisão de 2 de março de 1815, na qual ordenava a medição, a demarcação e o tombo da meia légua quadrada de Patrimônio da Câmara. Não tendo ainda o título de cidade, recebido somente em 1823, Desterro era nesse ano a Vila de Nossa Senhora do Desterro, núcleo oficializado em 1726. Sua história fora marcada pela fundação do povoado na segunda metade do século XVI por um bandeirante vicentista, por uma estratégia de ocupação militar no contexto dos conflitos entre Portugal e Espanha pela Colônia de Sacramento (PELUSO JR., 1991PELUSO JR., V. A. Estudos de Geografia Urbana de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1991.), capitaneada pelo Brigadeiro José da Silva Paes, e por uma política de imigração de açorianos a partir de 1748. Em especial, a vinda dos açorianos foi responsável por intensificar a partilha das terras na vila e em toda a ilha por meio da concessão de sesmarias, da fundação de novas freguesias e da constituição de campos de uso comum.

Da provisão de 1815, é apresentada parte do documento na sequência, reproduzindo a transcrição paleográfica realizada pelo Arquivo Público de Santa Catarina a partir de uma cópia feita pelo escrivão Joaquim José de Souza Medeiros em 1817, que constava em um dos cadastros de proprietários realizados.

Traslado da Provizão do Dezembar- / go do Paço para a medição demar- / cação e Tombo da meia Legoa de / terra quadrada que foi estabele- / cida e designada para Rocio e Pa / trimonio da Camara como a / baixo se declara [...]

[...] ordeno que na forma do Alva / rá de vinte tres de Julho de mil / sete centos e secenta e seis procedeis / sem demora a medição demar- / cação e Tombo da meia Legoa / de terra quadrada que foi esta / belecida e designada para Rocio e Patrimonio da Villa criada / nessa Ilha sem por ora expul- / çar aos que Se axarem entruzos / nella e remetereis a Meza do / Meu Dezembargo do Paço huã / relação circunstanciada de to / dos os possuidores de quais quer / porçoens de terreno da dita / meia Legoa quadrada com ex // [fl.03v] com expecificação dos titulos emo- / tivos porque se achão na mencio / nada posse, ouvindo para esse / fim a cada hum delles por escri / to. Aqui tudo vos Hei por muito / recomendado. (APESC, 2017APESC. Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. Registro de imóveis dos proprietários do campo de manejo - Juízo de Fora (1817). Transcrição Paleográfica. Florianópolis, 2017. , p. 5-6, grifo dos autores)5 5 Nessa e nas demais citações diretas de fontes primárias, optou-se por manter a grafia original dos textos.

Cabral (1950CABRAL, O. R. Juízes de Fora: Nossa Senhora do Desterro. Florianópolis: IOESC, 1950.), citando uma representação feita pela Câmara em 30 de junho de 1815 ao Príncipe Regente, descreve que, segundo os vereadores, o presidente da Câmara teria articulado para que o tombo dos bens do conselho, que estavam em estado de “confusão e desaproveitamento” (p. 51), fossem medidos sem a expulsão dos intrusos. De fato, assim aparece na provisão de 1815, que, além de não exigir essa expulsão “por ora”, ainda pede uma “relação circunstanciada de todos os possuidores”.

Por conta desses documentos, sabe-se que no início do século XIX chegou a Desterro a orientação de reordenar o patrimônio da Câmara e os aforamentos realizados nessas terras, garantindo os direitos dos posseiros que já haviam se instalado, de modo a evitar conflitos com os moradores da vila. Essas posses poderiam ser fruto de sesmarias não registradas, simples apossamentos ou aforamentos efetuados anteriormente de forma irregular. A Câmara, de acordo com Cabral (1950CABRAL, O. R. Juízes de Fora: Nossa Senhora do Desterro. Florianópolis: IOESC, 1950.), teria tido pouca ou nenhuma capacidade técnica e administrativa de conhecer seus próprios bens ou de compreender os direitos de propriedade envolvidos e a necessidade de registrar as concessões feitas até aquele momento.6 6 Cabral (1950) ainda relata que desde de 1752, por conta da distribuição de terras aos açorianos, o Governador da Capitania solicitou à Câmara a medição do rossio, mas não foi atendido.

O levantamento dos possuidores dentro do patrimônio da Câmara foi iniciado em 1816 pelo segundo Juiz de Fora da Vila de Nossa Senhora do Desterro, o dr. Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, nomeado para o cargo nesse mesmo ano após ter sido Juiz de Fora na cidade de Mariana (CABRAL, 1950CABRAL, O. R. Juízes de Fora: Nossa Senhora do Desterro. Florianópolis: IOESC, 1950.). Além do Dr. Ovídio, trabalharam no cadastramento o escrivão da Câmara Joaquim José de Souza Medeiros, o piloto José Maria Pinto e o ajudante de corda Joaquim Francisco de Fraga. Pelo que conta Cabral (1950CABRAL, O. R. Juízes de Fora: Nossa Senhora do Desterro. Florianópolis: IOESC, 1950.), o cadastro foi realizado para diversas ruas da cidade e seus documentos constavam no Arquivo Histórico do Município de Florianópolis (AHMF). O próprio autor, entretanto, afirma que teriam sido extraviados. Ao longo da pesquisa que originou este artigo, foram encontrados dois conjuntos pertencentes a esse levantamento, sendo um para o Campo do Manejo e outro para a Rua da Pedreira. Do Campo do Manejo, sabe-se, pelos levantamentos de Oswaldo Cabral, que as terras pertenciam ao patrimônio da Câmara e foram doadas pelos primeiros foreiros à Ordem Terceira de São Francisco em meados do século XVIII. Posteriormente, parte da terra foi tomada pelo Governo da Capitania para o manejo das tropas, ganhando, assim, seu nome característico (SOUZA, 2021SOUZA, G. R. F. A. As Propriedades da Terra Urbana em Desterro no século XIX. 2021. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2021. ). Para análise neste artigo, optou-se pelo foco no cadastro da Rua da Pedreira (Figura 1), que apresenta informações mais completas.

Figura 1
Localização da Rua da Pedreira (1876)

Cabe destacar algumas informações básicas sobre a Rua da Pedreira: hoje conhecida como Victor Meirelles, ela pertence ao conjunto mais antigo do centro fundacional da atual Florianópolis, a leste da atual Praça XV de Novembro, sendo provavelmente mais recente que as ruas Augusta (atual João Pinto) e da Cadeia (atual Tiradentes), já que não aparece nas cartografias feitas no século XVIII. Era assim chamada porque conduzia a uma formação rochosa nas proximidades do Rio da Bulha, enquanto Pedreira acabou se tornando o nome de um “bairro” conhecido por abrigar as camadas mais pobres da população no século XIX (VEIGA, 2010VEIGA, E. V. Florianópolis: Memória Urbana. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 2010.).

Antes de passarmos às declarações dos proprietários, vale apontar como se estruturava o cadastro. Iniciava com uma apresentação do juiz responsável e do serviço que seria feito; a provisão de 1815 era então transladada e seguia um exame de demarcação, que apontava as dimensões do terreno e seus confrontantes. Por fim, fazia-se uma conclusão formal do serviço e registrava-se a declaração do proprietário quanto ao título que tinha sobre o terreno. Quando havia algum tipo de registro, como um contrato de venda, era anexado ao cadastro.

Foram 16 proprietários cadastrados e, de início, chama a atenção que nenhum deles tenha apresentado um registro de foreiro à Câmara da Vila. Apenas um deles, o Tenente Coronel José Luis do Livramento, encaminhou como anexo um ofício da Provedoria da Fazenda Real confirmando que havia recebido as terras de outro foreiro à mesma Provedoria, por isso, deveriam ser transpassadas.7 7 O transpasse era a transferência de parte ou de toda a propriedade para um novo proprietário. Nesse caso, as terras na rua da Pedreira estavam sendo consideradas como terras de marinha. Quanto aos outros cadastrados, seis não anexaram nenhum documento e apenas mencionaram na declaração que ou não tinham títulos, ou haviam recebido por herança, ou haviam comprado as terras e perdido a escritura. Um deles, inclusive, mencionou que, mesmo não tendo os títulos, havia recebido as terras de seus falecidos pais, “uns dos primeiros povoadores” da Ilha de Santa Catarina.

Ao analisar os nomes dos proprietários e confrontantes, nota-se um número considerável de militares, sendo um brigadeiro, três capitães, um tenente e um alferes, algo representativo acerca da importância dos militares na construção da vila. Metade dos cadastrados apresentou escritura pública de venda fixa como forma de comprovar a propriedade. Como é ainda hoje, quando contratos de compra e venda servem de “registros de propriedade” para muitos posseiros, os tabeliães da vila, existentes pelo menos desde 1799 em Desterro, registravam as transações imobiliárias como forma de garantir as propriedades. Nas escrituras, registrava-se inclusive o pagamento da siza, uma espécie de Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), aos cofres municipais. Quanto às dimensões dos terrenos, variavam desde nove braças (19,2 metros), no caso do tenente-coronel, até duas (4,4 metros) ou uma braça e um quarto de braça (2,75 metros).

Na amostra das propriedades urbanas de Desterro localizada na Rua da Pedreira, ficam patentes a ausência de registros de propriedade e a tal “confusão” relatada pelo Presidente da Câmara em relação ao patrimônio fundiário. Fica evidente, também, que, mesmo sem os devidos títulos, as propriedades já eram comercializadas desde, pelo menos, fins do século XVIII.

Apesar do cadastro das propriedades ter sido iniciado em 1816, o patrimônio de vila de Desterro só foi efetivamente medido e demarcado em 1823, e por um novo Juiz de Fora. Esses dois procedimentos eram necessários para, com o tempo, a Câmara realizar o tombamento das terras, regularizando as posses via aforamentos e conseguindo, assim, saber quando cada concessão havia sido feita e sob quais cláusulas. Os detalhes do processo de medição e demarcação puderam ser consultados, pois o tombo desses documentos foi publicado na forma de resolução municipal em 1903FLORIANÓPOLIS. Resolução n. 3. Tombo do Patrimônio da Câmara. Biblioteca Pública Estadual de Santa Catarina. , estando entre as publicações de leis e resoluções municipais existentes na Biblioteca Pública Estadual. Tomou-se conhecimento dessa documentação pelo trabalho de Schinke (2017)SCHINKE, G. O Golpe da “Reforma Agrária”: fraude bilionária na entrega de terras em Santa Catarina. Florianópolis: Insular, 2017. . Antes de tratar sobre a espacialização do polígono, serão apresentadas algumas informações sobre o processo de medição.

Os responsáveis pela medição foram o terceiro Juiz de Fora de Desterro, Francisco José Nunes, o piloto Tenente José Coelho Peniche e o ajudante de corda Alexandre José Varela.8 8 O piloto carregava uma agulha, espécie de bússola para medição dos azimutes. Já o ajudante de corda carregava um “cadarço branco de linho” com 10 braças de comprimento para a realização da medição. Dias antes de iniciada a medição, foram realizadas duas audiências públicas, em 11 e 15 de julho de 1822, para a apresentação da Carta de Éditos aos Eréos9 9 Na carta de éditos, ou edital, eram apresentadas as autoridades, os profissionais responsáveis e as bases jurídicas para realização do processo. Os eréos confinantes são os proprietários de áreas dentro do patrimônio que poderiam ter alguma objeção ao processo de medição e demarcação. confinantes e dos instrumentos que seriam utilizados na medição e demarcação, além da louvação do piloto e do ajudante de corda. A medição iniciou-se em 23 de julho de 1822, indo até agosto desse mesmo ano, quando foi suspensa. Retomada em outubro de 1823, foi finalizada em novembro daquele ano. Ao longo do processo, eram registrados os azimutes e a distância percorrida em braças. Os termos de medição presentes no tombo correspondem a uma contagem de “derrotas”, nome que representava o conjunto de medições realizadas em um dia de trabalho. Além desses, constam termos relativos à colocação de marcos de pedra para garantir as referências físicas da delimitação do polígono. Em todo o processo, foram realizados 23 termos de medição e colocados cinco marcos de pedra.

Mesmo sem acesso aos documentos originais de medição, buscou-se aqui fazer uma estimativa da área demarcada, tendo como base os autos da medição publicados na resolução e uma espacialização do patrimônio da Câmara feita pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU) em agosto de 2011, possivelmente no contexto de demarcação das terras de marinha na Ilha de Santa Catarina (SCHINKE, 2017SCHINKE, G. O Golpe da “Reforma Agrária”: fraude bilionária na entrega de terras em Santa Catarina. Florianópolis: Insular, 2017. ; SPU, 2011SECRETARIA DO PATRIMÔNIO DA UNIÃO (SPU). Meia légua em quadro x LPM/1831 - Homologada + Presumida. Cartograma. Florianópolis, 2011.).10 10 Segundo Bispo (2018), desde 2003, a SPU/SC vem realizando a demarcação dos terrenos de marinha na Ilha de Santa Catarina com o objetivo de regularizar as posses existentes. A demarcação exige a definição e homologação da Linha Preamar Média de 1831, conforme definição do Decreto-Lei 9760/1946. Disponível em: https://ndmais.com.br/noticias/spu-vai-notificar-moradores-de-florianopolis-em-areas-de-marinha-em-2019/. Acesso em: 22 jan. 2023. O polígono elaborado pela SPU considerou os ângulos, distâncias e as referências espaciais descritas nos mesmos autos, com algumas correções. Na Figura 2, o polígono é sobreposto a alguns elementos vetorizados da Planta Topográfica de Desterro de 1876 (LAGO; SCHLAPPAL,1876LAGO, A. F. P.; SCHLAPPAL, C. O. Planta Tophográfica da Cidade do Desterro, 1876.). Na sobreposição, percebe-se como a área demarcada era consideravelmente maior do que se conhece hoje por “triângulo sede” em Florianópolis e representava aproximadamente 1.073 hectares, valor muito próximo a meia légua em quadro, que correspondia a 1.089 hectares.

Figura 2
Estimativa do Patrimônio da Câmara medido em 1823

Pela medição, fica claro que os bens do Conselho iam muito além da área urbanizada da vila e de seus arrabaldes mais próximos, alcançando todo o maciço central e algumas áreas por “trás do morro”, bairros hoje conhecidos como Trindade e Saco dos Limões. O que efetivamente poderia ser aforado a particulares, no entanto, era menor que a área total, já que é preciso descontar os logradouros públicos, as terras comunais, os próprios provinciais e imperiais, as propriedades das instituições religiosas e, a princípio, os terrenos de marinha.11 11 A fins do século XIX, houve um imbróglio quanto às terras de marinha: se pertenciam ou não ao patrimônio municipal.

4. Posses e aforamentos do patrimônio da Câmara no século XIX

Tendo conhecido as dimensões do rossio e o seu processo de medição e cadastramento de ocupantes, busca-se agora analisar os aforamentos desse patrimônio ao longo do século XIX. Como já mencionado, conceder títulos de aforamento era uma forma de regularizar as posses e garantir o pagamento do foro e do laudêmio, receitas importantes para os cofres municipais. A situação dos aforamentos em Desterro no início do século XIX, como demonstrado para o caso da Rua da Pedreira, era caótica. Não só porque diversos posseiros haviam recebido concessões não registradas à época da vinda dos açorianos, mas também porque alguns governadores da capitania, em especial Xavier Curado, o primeiro dos Oitocentos, haviam concedido terrenos dentro do patrimônio da Câmara em nome da Coroa, como se fossem terrenos de marinha (CABRAL, 1950CABRAL, O. R. Juízes de Fora: Nossa Senhora do Desterro. Florianópolis: IOESC, 1950.). Essas concessões, quando pagavam o foro, o faziam à Provedoria da Fazenda Real, implicando prejuízo à receita da Câmara Municipal de Desterro. Em março de 1838, num ofício enviado pelo Presidente da Província de Santa Catarina à Câmara Municipal de Desterro, percebe-se como o não pagamento dos foros seguia sendo um problema mesmo após a medição de 1823. E o problema parece se arrastar, já que em outro ofício, de 8 de outubro de 1852, o Presidente da Província de Santa Catarina volta a solicitar informações sobre esse assunto:

Para satisfazer o que exige a Assembleia Legislativa Provincial em ofício de hoje, cumpre que Vossas Mercês me informem com urgência: 1º por que causa o título dos terrenos ocupados pertencentes ao patrimônio dessa Câmara, sobre os quais entram Vossas Mercês em dívida no cumprimento do art. 11 da Lei Nº 5 do ano passado, não tem pago os respectivos foros, 2º se tal motivo procede unicamente por não haver-se promovido em tempo algum a sua arrecadação[...]. (Of. do Presidente da Província de Santa Catarina para a Câmara Municipal de Desterro de 27 de março de 1838)

[...] que várias pessoas estão de posse de terrenos pertencentes ao patrimônio da Câmara, sem pagarem [?], nem darem obediência a Câmara, dispondo deles como se fossem próprios[...]. (Of. do Presidente da Província de Santa Catarina para a Câmara Municipal de Desterro de 8 de outubro de 1852)

A falta de receita proveniente dos foros e o baixo controle sobre as posses existentes demandaram esforços da Câmara em dois sentidos: por um lado, era necessário fazer um novo tombamento, medindo as posses e oficializando os aforamentos; e, por outro, era preciso começar a fazer as concessões da forma correta. A partir de 1828, por conta da Lei de 1º de outubro BRASIL. Lei de 1º de outubro de 1828. 1828. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-1-10-1828.htm. Acesso em 20 de março de 2023.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, tal forma era passar todos os aforamentos pela Assembleia Legislativa Provincial (ALP), sendo também demarcados. Os ofícios de 13 e 15 de julho de 1837 trocados entre o Presidente da Província de Santa Catarina e a Câmara Municipal de Desterro sugerem ao menos a tentativa das duas instituições em seguir esse procedimento para as novas concessões. Outras requisições mostram como a Câmara Municipal de Desterro tinha a responsabilidade de informar ao Presidente da Província de Santa Catarina se determinados pedidos eram possíveis, se conflitavam com outro título existente ou mesmo com logradouro público. Em 1843, por exemplo, a ALP solicitou que a Câmara prestasse informações sobre um terreno “no alto da praça”, nas proximidades do largo do palácio (atual Praça XV de Novembro), e, em resposta, a Câmara Municipal de Desterro informou não existir “título algum do referido terreno, o qual contudo está encravado na meia legoa de terra do seu patrimônio”.12 12 Ofício da Câmara Municipal de Desterro para o Presidente da Província de Santa Catarina de 14 de março de 1843.

Quanto às tentativas de regularização das posses, a primeira delas após a medição de 1823 foi realizada possivelmente em meados da década de 1840. Um ofício do juiz municipal enviado ao presidente da Câmara,13 13 Esse ofício está anexado a outro ofício enviado pela Câmara Municipal de Desterro ao Presidente da Província de Santa Catarina em 9 fevereiro de 1841. no início daquela década, atestou para as complexidades e custos de se fazer um novo tombamento. O mesmo juiz argumentou que nenhum dos regimentos existentes até aquele momento dava conta de orientar o processo. Em razão disso, em 21 de abril de 1841, a ALP aprovou a Lei n.154, que regulamentava como realizar o tombamento dos bens dos conselhos:

Artigo 1. As Câmaras Municipais para o tombamento, e aforamento de todos os seus bens, inclusive os logradouros públicos [...] convencionaram uma quantia certa por cada dia de trabalho com o Dermarcador, e ajudante de corda, os quais se obrigarão a avaliar no mesmo ato o foro que se deverá pagar pelos terrenos que não forem isentos deste ônus.

[...]

Artigo 4. Findo o tombamento, fará o Demarcador uma planta do terreno, onde se desenhará toda a sua configuração, classificando as propriedades aforadas, e não aforadas; o lugar dos marcos, e o mais que se puder figurar, a qual será junto ao processo do tombo por este trabalho terá o demarcador[...]. (SANTA CATARINA, 1841SANTA CATARINA. Lei Provincial n. 154 de 1841. Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. )

Ainda que não tenha sido possível descobrir se esse novo tombamento foi realmente realizado, a leitura dos ofícios e correspondências enviados pela Câmara Municipal de Desterro e pelo Presidente da Província de Santa Catarina mostra um esforço articulado de regularização fundiária e correção nos procedimentos de concessão. Em verdade, um esforço que tinha apoio da Câmara, mas que era levado por pressão da Província. Exemplo disso foram as circulares de 1856 e 1857, nas quais o Presidente da Província de Santa Catarina ordenava a todas as câmaras municipais que informassem com urgência quais terrenos formavam seu patrimônio. Na segunda delas, pedia inclusive que mandassem “cópia dos títulos, e declarando quais os artigos de Lei Geral Provincial em que funda o direito aos terrenos”.14 14 Circular do Presidente da Província de Santa Catarina às Câmaras Municipais de 27 de agosto de 1857. A Câmara Municipal de Desterro respondeu às duas circulares informando: “nada mais consta a semelhante respeito que constitui hoje o Patrimônio desta Camara, que o terreno compreendido dentro da meia legoa medida” em 1823, não encaminhando nenhum título de comprovação. O ofício de 1857 contém ainda uma declaração adicional que sugere a tolerância da Câmara para com os posseiros: “mas ainda quando for um título não legal, esta camara sempre se julgaria com algum direito ao terreno pela antiguidade de sua posse [...]”.15 15 Ofício da Câmara Municipal de Desterro para o Presidente da Província de Santa Catarina de 10 de dezembro de 1857.

É provável que essas circulares, da mesma forma que o ofício do Presidente da Província de Santa Catarina para a Câmara Municipal de Desterro de 22 de julho de 1868, tenham sido consequência direta do Decreto 1.318 de 1854BRASIL. Decreto 1.318, de 30 de janeiro de 1854. Manda executar a Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1318-30-janeiro-1854-558514-publicacaooriginal-79850-pe.html. 1854. Acesso em: 20 abr. 2021.
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/dec...
, que regulamentava a Lei de Terras em 1854, e do entendimento expresso no Aviso de 12 de outubro de 1854, que orientava a aplicação dos artigos 77 e seguintes do referido decreto, considerando a necessidade de solicitar informações às Câmaras sobre a ocupação dos patrimônios municipais (VASCONCELLOS, 1860 VASCONCELLOS, J. M. P. de . Livro das terras ou Collecção da lei: regulamentos e ordens expedidas a respeito desta matéria até o presente seguido da forma de um processo de medição organizado pelos juízes comissários, e das reflexões do Dr. José Augusto Gomes de Menezes, e de outros que esclarecem e explicam as mesmas leis e regulamentos. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1860.).

Em ofício de 1º de outubro de 1872, a Câmara Municipal de Desterro respondeu novamente aos ofícios encaminhados, enviando ao Presidente da Província um “quadro demonstrativo dos terrenos que constituem seu patrimônio”. Desse documento, nota-se que a Câmara deu apenas algumas informações sobre os limites do patrimônio e a medição de 1823, mas deixou em branco a parte sobre os terrenos que haviam caído em comisso e não deu informações sobre os títulos existentes. De novo, fica patente o pouco conhecimento da edilidade sobre a propriedade das terras urbanas.

Nesse mesmo período, a Câmara Municipal de Desterro pareceu se esforçar para tentar resolver a questão. Atendendo ao artigo 2º da Lei Provincial 319 de 1855SANTA CATARINA. Lei Provincial n. 319 de 1855. Arquivo Público do Estado de Santa Catarina., que solicitava às Câmaras para que passassem títulos de aforamento aos posseiros de seus patrimônios, a vereação de Desterro publicou dois editais, em 1869 e 1884, tentando concluir o tombamento dos terrenos.16 16 Os editais foram publicados na edição de 24 de julho de 1869 do jornal O Despertador e na edição de 30 de agosto de 1884 do jornal A Regeneração. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Entretanto, em ata da Câmara Municipal de Desterro de agosto de 1871, publicada no jornal O Dia em 1917, ao comentarem um requerimento de dispensa do laudêmio, os vereadores afirmavam que a suplicante em questão não aproveitava a circunstância de os terrenos não terem sido tombados, o que informa sobre a baixa efetividade dos editais.17 17 Edição do jornal O Dia de 18 de abril de 1917. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Conclui-se que, apesar das exigências imperiais e provinciais, o patrimônio da Câmara de Desterro passou boa parte do século XIX sem ser completamente regularizado por meio de títulos de aforamento. Algumas concessões, de fato, parecem ter passado pelo procedimento correto, mas se mostraram casos pouco numerosos. Talvez seja por isso que, ao invés de um grande conjunto documental destinado às concessões de terras,18 18 Como foram poucos os termos encontrados e não foi possível fazer uma pesquisa exaustiva no AHMF, considera-se ainda necessário pesquisar a fundo a existência desses termos para conseguir dimensionar o quanto da terra era efetivamente aforada por termos passados pela Câmara Municipal de Desterro. foram encontradas apenas duas cartas de aforamentoCARTAS de aforamento. Termos de Arrendamento de Terrenos nos Campos Baldios (1852-1884). Florianópolis: Arquivo Histórico do Município de Florianópolis. da Câmara Municipal de Desterro, sistematizadas no Quadro 1, e uma única lei provincial de 188119 19 SANTA CATARINA. Lei Provincial n. 932 de 5 de abril de 1881. Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. Foi identificada menção a mais uma lei autorizando aforamentos, mas esta não foi encontrada. autorizando um aforamento dentro do patrimônio da Câmara.

A análise desses escassos materiais permite alguns comentários sobre a prática do aforamento das terras camarárias em Desterro. O primeiro é que, a julgar pelas datas, a Câmara Municipal de Desterro seguiu concedendo aforamentos ao menos até a penúltima década do século XIX, o que confirma a hipótese de que a prática de concessões ocorria mesmo muito tempo depois da Lei de Terras. O segundo ponto é que as cartas continuavam imprecisas quanto aos fundos dos terrenos e confrontações, ainda que, pelo menos desde 1841, a Câmara Municipal de Desterro estivesse orientada a expedir plantas dos terrenos. Por fim, nota-se que as cartas de aforamento eram capazes de estipular condições diferentes em cada caso, quanto ao tempo de contrato,20 20 Apesar do decreto imperial de 1854 orientar aforamentos perpétuos, no aforamento autorizado pela Lei Provincial 932, o tempo autorizado é de 20 anos. valor do foro ou exigências de cercamento e utilização. Essas condições, vale dizer, eram complementares àquelas já previstas nas posturas municipais, o que reforçava a ideia de uma propriedade da terra condicionada, principalmente pela utilização. Nos Códigos de posturas de 1888, 1896 e 1898, é possível conhecer algumas dessas condições:21 21 Todos os artigos citados aparecem nos três Códigos de posturas.

Art. 217. Nenhum terreno será concedido pela Camara para edificação sem a cláusula de ser levantado o edifício no prazo de 12 mezes, contados da data da concessão, sob pena de conceder-se a outrem o terreno. Entende-se edificado o predio logo que esteja coberto de telha e fechado na frente da rua.

[...]

Art. 219. O concessionario de terrenos pertencentes a Camara para edificação, que não cumprir qualquer das clausulas da carta de aforamento, fica sujeito a multa de 40$000 a 30$000 reis. Na mesma pena incorrerá aquele que vender terrenos depois de esgotado o tempo para edificação sem ter edificado, pois considera-se caduca a concessão; além da multa será annullada a venda.

Art. 220. Feita a concessão de terrenos para edificação ou para lavoura, o concessionário é obrigado a tirara carta de aforamento no prazo de doze meses e não poderá entrar no goso do terreno antes desta formalidade. Pena de ser multado em 5$000 reis pela mora, e considerar-se caduca a concessão se o retardamento em tirar carta eceder a 6 mezes. [...]

[...]

Art. 222. O foreiro de terreno da Camara que não pagar foro até o dia 31 de de Dezembro de cada ano, será multado em 2$000 réis, além da importância do foro.

[...]

§ Unico. Nenhum foreiro de terrenos do patrimônio poderá transferi-los a outrem sem requerer a Camara, apresentando a planta dos mesmos, suas dimensões e confrontações; multa de 3$000 a 6$000 réis. (SANTA CATARINA, 1889 SANTA CATARINA. Lei Estadual n. 1.238, de 22 de outubro de 1888. Aprova o Código de Posturas da Câmara Municipal da Capital. Desterro: Tipografia da Regeneração, 1889. Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. , p. 44-45, grifos dos autores)

Novos esforços do poder local para com os aforamentos podem ser observados em outra legislação já dos últimos anos do século XIX. Em 1899, após o advento da República e a separação dos poderes Executivo e Legislativo na administração municipal, o então superintendente do município de Florianópolis sancionou uma Lei22 22 Lei municipal n. 76 de 19 de abril de 1899. tentando disciplinar novamente os aforamentos no patrimônio da Câmara. Mas, ao contrário dos artigos presentes nos Códigos de posturas, voltados para orientar novos aforamentos, a Lei n. 76 instituiu um “registro obrigatório dos terrenos” (art. 1º). A partir desse momento, todos os foreiros deviam registrar suas propriedades na própria Superintendência e assim receberiam um “título de aforamento” (art. 3º), documento obrigatório para qualquer transferência das propriedades (art. 4º). A lei ainda regulamentou alguns aspectos da cobrança dos foros e laudêmios, mas não mencionou nada em relação à exigência de edificação. Para os aforamentos feitos fora da meia légua quadrada, provavelmente partes das antigas terras comunais e, portanto, não urbanos, ficou condicionada a utilização pelo cultivo como garantia para o direito de propriedade (FLORIANÓPOLIS, 1899FLORIANÓPOLIS. Lei Municipal n. 76 de 1899. Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. ).

Quadro 1
Cartas de Aforamento

Essa escolha dos vereadores é indício de um movimento próximo ao identificado por Abreu et al. (2018ABREU, P. V. L.; LIMA, J. J. F.; FICHER, L. R. C. Aforar, arrumar e alinhar: a atuação da Câmara Municipal de Belém na configuração urbano-fundiária da cidade durante o século XIX. Anais do Museu Paulista, Nova Série, v. 26, p.1-55, 2018.) em pesquisa para a cidade de Belém: ao invés de simplesmente orientar a venda do seu patrimônio, a Câmara Municipal buscou até o fim do século XIX disciplinar o regime de aforamentos, concedendo títulos e exigindo a demarcação das propriedades em planta. A obrigação da utilização, seja para edificação, seja para agricultura, permaneceu na legislação municipal, mas é possível que tenha se tornado cada vez mais “letra morta” diante da absolutização da propriedade.

A efetividade das posturas e leis citadas ainda precisaria ser aprofundada por meio de uma pesquisa mais ampla nos arquivos estadual e municipal. Mesmo que nelas seja possível perceber as intenções e a mentalidade da vereação, é necessário encontrar um registro mais abrangente dos aforamentos para saber como avançou o processo de regularização, quais as condições envolvidas nessas concessões e quem eram os proprietários. De todo modo, um trecho da mensagem do Superintendente Municipal ao Conselho Municipal de 1920, citada anteriormente, oferece alguma pista:

Urge que autorizeis o Poder Executivo a lançar mão de providencias eficazes para o perfeito conhecimento dos imóveis que tradicionalmente venham a ser de propriedade inconteste do Município. Devido a falta, até agora, de uma verificação formal de posse dos atuais proprietários, deixam de ser reconhecidos devolutos, e incorporados ao patrimônio do Município, terrenos cujo período de posse não fora imediatamente conhecido.

Assim, terrenos existem edificados uns, cultivados outros, incultos vários, quiçá miudamente retalhados entre diversos e numerosos posseiros, que poderiam ser, com o intuito de evitar demoradas e dispendiosas ações judiciais, postos, por editais, a venda em concorrência pública, depois de competentemente examinados os títulos e conhecidas as posses legitimadas ou não, dos que se presumem donos, então, a Municipalidade em composição conforme o caso. (Jornal A República, 1920JORNAL A República. Edição de 12 de abril de 1920. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. , grifo dos autores)

A postura do Superintendente enfatiza que as terras do município, mesmo em 1920, não haviam sido plenamente regularizadas e estavam “quiçá miudamente retalhadas entre diversos e numerosos posseiros”, o que reforça a baixa eficácia das políticas de tombamento realizadas até então. Além disso, a proposta de colocar os terrenos à venda, conhecendo as posses legitimadas ou não, indica ainda uma posição em relação aos posseiros e ao aforamento distinta daquela encontrada na vereação do século XIX, que pode representar a definitiva chegada da Lei de Terras na administração municipal. Vale, finalmente, lembrar que a política de venda de lotes privados acontecia nesse período com uma forte participação dos representantes do Estado.

5. Considerações finais

Fundamentado em pesquisa original com dados primários e secundários, este artigo demonstrou que o século XIX significou para o Patrimônio da Câmara de Desterro um período no qual as autoridades buscavam maior controle e conhecimento sobre as suas dinâmicas de apropriação. Permanecia o baixo conhecimento sobre propriedades existentes, enquanto as práticas de concessão e regularização das posses por meio de contratos de aforamento continuavam sendo realizadas. Para além das dificuldades técnicas e administrativas, a não regularização dos aforamentos pode ser um indício do conflito de interesses em torno do reconhecimento da terra como propriedade pública. Ademais, note-se que a comercialização das propriedades já fazia parte da dinâmica social desde o início do século e era oficializada nos contratos de venda fixa. Quanto ao impacto da Lei de Terras, conclui-se que os efeitos a curto e médio prazo desse marco legal para o espaço urbano foram irrisórios. Quando se considera a dinâmica de posses e aforamentos no Patrimônio da Câmara, pode-se dizer que a regulamentação da Lei de Terras feita em 1854 atingiu a cidade como uma demanda a mais pelo controle do Patrimônio da Câmara.

Ainda, as vendas do Patrimônio no início do século XX podem fornecer elementos preciosos sobre os efeitos da alienação do Patrimônio Público na configuração posterior da cidade, na concentração fundiária e na expulsão dos posseiros do centro. O estudo da comercialização das terras e das características dos terrenos a partir da siza e do cadastro da décima urbana pode também ampliar a compreensão sobre a paisagem da época, indo além das descrições sobre as obras de infraestrutura ou a construção dos edifícios importantes.

Apesar da grande complexidade e escassez de informações para o século XIX, a pesquisa sobre as propriedades urbanas dentro da história urbana brasileira mostra-se produtiva para o entendimento das transformações nas formas proprietárias e da formação territorial das cidades. Só assim será possível desvincular, quando necessário, a compreensão sobre a formação da cidade brasileira de já consagradas interpretações referentes ao mundo rural, garantindo a especificidade que o urbano necessita para ser apreendido corretamente.

Referências - Fontes primárias

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  • BRASIL. Decreto 1.318, de 30 de janeiro de 1854. Manda executar a Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1318-30-janeiro-1854-558514-publicacaooriginal-79850-pe.html 1854. Acesso em: 20 abr. 2021.
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  • CADASTRO de imóveis proprietários na Rua da Pedreira de 1817. Juízo de Fora Florianópolis: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina.
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Referências - Fontes secundárias

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  • 1
    Carlos Marés (2021)MARÉS, C. A função social da terra. Curitiba: Arte e Letra, 2021. aponta como, desde o século XIX, a propriedade pública passa a ser vista como excepcional, como “sobras” das propriedades privadas. Também nesse sentido, as formas de propriedade coletiva, propriedade dividida (enfiteuse) ou de apropriação comum das terras foram consideradas como relações a serem “superadas” e incoerentes com a ordem jurídica liberal.
  • 2
    Em contraponto, busca-se a perspectiva defendida por Rosa Congost (2006)CONGOST, R. Tierras, Leyes, Historia: Estudios sobre “la gran obra de la propiedad”. Barcelona: Crítica, 2007 de uma história da propriedade não linear e que considera a pluralidade das formas proprietárias, analisando não apenas a parte jurídica, mas também suas condições práticas de realização.
  • 3
    Corresponde ao conjunto de historiadores que estiveram à frente da revista fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre, cujo nome inicial era Annales d’Histoire Économique et Sociale.
  • 4
    Essas expressões designavam a mesma coisa: concessões gratuitas ou onerosas feitas por uma câmara, das terras de seu patrimônio, aos moradores de uma vila ou cidade (MARX, 1991MARX, M. Cidade no Brasil: terra de quem? São Paulo: Nobel; Edusp, 1991.; GLEZER, 2007GLEZER, R. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007. ).
  • 5
    Nessa e nas demais citações diretas de fontes primárias, optou-se por manter a grafia original dos textos.
  • 6
    Cabral (1950)CABRAL, O. R. Juízes de Fora: Nossa Senhora do Desterro. Florianópolis: IOESC, 1950. ainda relata que desde de 1752, por conta da distribuição de terras aos açorianos, o Governador da Capitania solicitou à Câmara a medição do rossio, mas não foi atendido.
  • 7
    O transpasse era a transferência de parte ou de toda a propriedade para um novo proprietário.
  • 8
    O piloto carregava uma agulha, espécie de bússola para medição dos azimutes. Já o ajudante de corda carregava um “cadarço branco de linho” com 10 braças de comprimento para a realização da medição.
  • 9
    Na carta de éditos, ou edital, eram apresentadas as autoridades, os profissionais responsáveis e as bases jurídicas para realização do processo. Os eréos confinantes são os proprietários de áreas dentro do patrimônio que poderiam ter alguma objeção ao processo de medição e demarcação.
  • 10
    Segundo Bispo (2018), desde 2003, a SPU/SC vem realizando a demarcação dos terrenos de marinha na Ilha de Santa Catarina com o objetivo de regularizar as posses existentes. A demarcação exige a definição e homologação da Linha Preamar Média de 1831, conforme definição do Decreto-Lei 9760/1946. Disponível em: https://ndmais.com.br/noticias/spu-vai-notificar-moradores-de-florianopolis-em-areas-de-marinha-em-2019/. Acesso em: 22 jan. 2023.
  • 11
    A fins do século XIX, houve um imbróglio quanto às terras de marinha: se pertenciam ou não ao patrimônio municipal.
  • 12
    Ofício da Câmara Municipal de Desterro para o Presidente da Província de Santa Catarina de 14 de março de 1843OFÍCIOS das Câmaras Municipais para o Presidente da Província. Volumes 5, 6, 10 e 15. Florianópolis: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. .
  • 13
    Esse ofício está anexado a outro ofício enviado pela Câmara Municipal de Desterro ao Presidente da Província de Santa Catarina em 9 fevereiro de 1841OFÍCIOS das Câmaras Municipais para o Presidente da Província. Volumes 5, 6, 10 e 15. Florianópolis: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. .
  • 14
    Circular do Presidente da Província de Santa Catarina às Câmaras Municipais de 27 de agosto de 1857REGISTROS das Correspondências da Presidência da Província para Câmaras Municipais. Volumes 1, 4 e 7. Florianópolis: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina.
  • 15
    Ofício da Câmara Municipal de Desterro para o Presidente da Província de Santa Catarina de 10 de dezembro de 1857OFÍCIOS das Câmaras Municipais para o Presidente da Província. Volumes 5, 6, 10 e 15. Florianópolis: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. .
  • 16
    Os editais foram publicados na edição de 24 de julho de 1869 do jornal O Despertador e na edição de 30 de agosto de 1884 do jornal A Regeneração. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
  • 17
    Edição do jornal O Dia de 18 de abril de 1917JORNAL O Dia. Edição de 18 de abril de 1917. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. . Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
  • 18
    Como foram poucos os termos encontrados e não foi possível fazer uma pesquisa exaustiva no AHMF, considera-se ainda necessário pesquisar a fundo a existência desses termos para conseguir dimensionar o quanto da terra era efetivamente aforada por termos passados pela Câmara Municipal de Desterro.
  • 19
    SANTA CATARINA. Lei Provincial n. 932 de 5 de abril de 1881. Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. Foi identificada menção a mais uma lei autorizando aforamentos, mas esta não foi encontrada.
  • 20
    Apesar do decreto imperial de 1854 orientar aforamentos perpétuos, no aforamento autorizado pela Lei Provincial 932, o tempo autorizado é de 20 anos.
  • 21
    Todos os artigos citados aparecem nos três Códigos de posturas.
  • 22
    Lei municipal n. 76 de 19 de abril de 1899FLORIANÓPOLIS. Lei Municipal n. 76 de 1899. Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2022
  • Aceito
    28 Jun 2023
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