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O legado de Francisco de Oliveira: memórias, ideias e reflexões de uma trajetória

The legacy of Francisco de Oliveira: memories, ideas and reflections of a trajectory

BELLO, C. A.; RIZEK, C. S.; BARROS, J.; MELLO E SILVA, L. . (org.). Francisco de Oliveira: questões, diálogos, depoimentos. São Paulo: FFLCH/USP, 2022. 3.173 Kb; PDF. ISBN 978-85-7506-423-8

A resenha apresenta Francisco de Oliveira: questões, diálogos, depoimentos BELLO, C. A. ; RIZEK, C. S. ; BARROS, J. ; MELLO E SILVA, L. (org.). Francisco de Oliveira: questões, diálogos, depoimentos. São Paulo: FFLCH/USP, 2022. , livro organizado por Carlos Alberto Bello (FFLCH/USP), Cibele Saliba Rizek (Fapesp/USP), Joana Barros (IEA/USP) e Leonardo Mello e Silva (FFLCH/USP), publicado em 2022, sob responsabilidade editorial da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, e desenvolvido pelo Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic). Esse livro, redigido em mais de duzentas páginas, faz uma homenagem ao professor Francisco de Oliveira (ou simplesmente Chico de Oliveira), falecido em 2019, um intelectual crítico do planejamento urbano e regional brasileiro. Entre a apresentação dos organizadores do livro, o texto está estruturado tematicamente em quatro momentos: (i) Questão regional e desenvolvimento; (ii) O Brasil ornitorrinco; (iii) Trabalho, economia, política e direitos de cidadania; (iv) Depoimentos. E, entre um recorte e outro, podemos perceber como Chico de Oliveira encarava a “questão regional” no Brasil, ao afirmar que ela se consolidou ao longo do século XX e se metamorfoseou na virada deste século, no início da globalização. Ele argumenta que a questão regional ficou circunscrita ao Norte e ao Nordeste e a seus pesquisadores e cientistas sociais, e que ela era o tema da região que não estava entre as preocupações no polo dominante - vale dizer, o Sudeste, sobretudo São Paulo.

No primeiro momento, “Questão regional e desenvolvimento”, autores como Alexandre Freitas Barbosa (IEB/USP), Elson L. S. Pires (IGCE/Unesp) e Joana Barros (IEA/USP) trazem discussões sobre a questão regional do país. Destaca-se a importância da experiência pessoal e profissional de Chico, e como isso influenciou sua análise da dinâmica capitalista brasileira, sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento econômico-social e às lutas contra a desigualdade social e regional.

No primeiro texto, “Chico de Oliveira, o marxista furtadiano, ou o intelectual que viu o Brasil virar um ornitorrinco”, são desenvolvidas três observações sobre o pensador e sua obra. A primeira é de que ele não existiria sem Celso Furtado, com quem trabalhou por cinco anos na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Chico o chamava de “dr. Furtado” e mencionava com emoção sua experiência de trabalho com ele. No entanto, também o criticou em seu livro Crítica à razão dualista (2003 [1972]) OLIVEIRA, F. de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003 [1972] ., em que aborda a teoria do dual-estruturalismo de Furtado. A segunda observação é de que Chico deu uma contribuição importante para o desenvolvimento da teoria marxista no Brasil. Um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), fez valiosas contribuições para a teoria marxista no que se refere à questão agrária e à formação do Estado brasileiro. Destacou-se igualmente como crítico da teoria marxista tradicional e propôs novas formas de pensar a sociedade brasileira. Por último, foi um intelectual que viu o Brasil virar um “ornitorrinco”. Ele usou esse termo para explicar por que o país não se encaixa em nenhuma das categorias tradicionais, como o capitalismo ou o socialismo. Na opinião dele, o Brasil precisava de uma nova teoria para entender sua realidade social e política.

Já o texto “A questão regional e os impasses do desenvolvimento: as pistas de Francisco de Oliveira” é subdividido em três partes, a saber: o método, as origens e a trajetória da questão regional na integração nacional; o poder dos mitos das representações simbólicas na (des)integração econômica nacional; e conformação e possibilidades para a questão regional no limiar do século XXI. São levantadas algumas questões, quais sejam: como a questão regional e o regionalismo aparecem na obra de Francisco de Oliveira? Que lógicas interpretativas ele nos fornece para discuti-los? Como ele pensa a questão regional no processo de integração econômica nacional e mundial? Quais são suas principais proposições para destravar a questão regional? Os autores procuram dar pistas e respostas a essas questões sob a ótica de Francisco de Oliveira. Em suma, conclui-se que a desigualdade regional é um problema mal resolvido na integração econômica nacional, que se reflete nas diferenças socioeconômicas e culturais entre as regiões. A unidade nacional desigual molda a noção de região e identidade regional, de acordo com as necessidades do poder político, e sua resolução requer uma transformação nesse poder, de modo a lidar com a desigualdade territorial da renda e a discriminação inter-regional no Brasil.

No texto “Narrativas do desenvolvimento: a região Brasil e o Nordeste de Chico de Oliveira”, observa-se que o pensamento do homenageado está pautado no materialismo dialético e na crítica à economia política, capaz de colocar em questão as teorias econômicas que explicavam o país como uma enorme falta ou incompletude de integração das bases econômicas, o que inclui as teorias de extração cepalina e explicações etapistas. Por fim, destaca-se que a obra dele não discute apenas a região Nordeste, mas também a expansão do espaço econômico hegemônico do capitalismo no Brasil e o modo como isso afeta as relações de poder e de desenvolvimento regional e nacional. Em suma, o texto oferece uma análise crítica da visão de Chico de Oliveira acerca do desenvolvimento econômico do país, ressaltando a relevância de suas obras para a reflexão crítica tanto sobre a questão regional como sobre a nacional.

No segundo momento do livro, “O Brasil ornitorrinco”, os autores Cibele Saliba Rizek (Fapesp/USP), Paulo Eduardo Arantes (FFLCH/USP) e Wolfgang Leo Maar (UFSCar) trazem interpretações políticas, econômicas e sociais acerca do fantástico animal utilizado por Chico de Oliveira para ilustrar as dinâmicas de desenvolvimento urbano e regional do país. Essa seção trata das questões socioeconômicas e político-ideológicas que envolvem o desenvolvimento nacional e as desigualdades sociais brasileiras. Foram convidados pesquisadores para discutir essas questões e para refletir sobre como a obra de Chico aborda os grandes problemas e dilemas da superação das iniquidades no Brasil.

No primeiro texto, “Do desmanche à exceção: uma pauta de pesquisa”, chama-se atenção para o pensamento crítico de Francisco de Oliveira e suas obras, incluindo O ornitorrinco (2003OLIVEIRA, F. de O Estado e a exceção ou o Estado de Exceção. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 5, n. 1, 2003.), O Estado e a exceção (2003)OLIVEIRA, F. de O Estado e a exceção ou o Estado de Exceção. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 5, n. 1, 2003., Política numa era de indeterminação (2007)OLIVEIRA, F. dePolítica numa era de indeterminação: opacidade e reencantamento. In: OLIVEIRA, F. de; RIZEK, C. (org.). A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007. e Hegemonia às avessas (2010)OLIVEIRA, F. de Hegemonia às avessas. In: OLIVEIRA, F. de; BRAGA, R.; RIZEK, C. (org.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo, Boitempo, 2010.. O autor destaca que o pensamento de Chico identificava um conjunto de forças e entrelaçamentos que se desdobravam num ordenamento por ele denominado dominação sem política, com processos cada vez mais sombrios que presidiam os rumos do país, resultando em encolhimentos, rebaixamentos e inflexões que marcaram o Brasil do século XXI. O ornitorrinco, por sua vez, é visto como um contraponto ao subdesenvolvimento considerado e pensado como singularidade, e não como elo na cadeia do desenvolvimento. O texto mostra como o pensamento crítico de Francisco de Oliveira pode ajudar a pensar os acontecimentos políticos no Brasil e a compreender o país e suas transformações.

Em “O ornitorrinco virou um monstro: e agora, Chico?”, subdividido em três tópicos, são discutidas as semelhanças entre dois textos clássicos da tradição crítica brasileira: Fim de século (1999)SCHWARZ, R. Fim de século. In: SCHWARZ, R. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 155-162., de Roberto Schwarz, e Crítica à razão dualista (2003, [1972]), de Chico de Oliveira. Exploram-se os caminhos intelectuais paralelos desses dois autores e argumenta-se que eles convergiram no início do século XXI. Também se discute o debate sobre o dualismo da sociedade brasileira e como Schwarz e Oliveira chegaram a conclusões semelhantes sobre isso, embora não conhecessem o trabalho um do outro. Esses dois pensadores criticaram ao mesmo tempo a ideia de dualismo no Brasil e propuseram caminhos diferentes para o país. O artigo sugere que o texto de Oliveira foi um epitáfio para a visão dualista do Brasil e uma certidão de nascimento para uma nova possibilidade de superação. A analogia do ornitorrinco, um animal simpático e grotesco, é usada para representar nossa complexa realidade social e econômica. No texto em foco, apresenta-se um estudo comparativo dos dois textos clássicos e a conclusão de que eles contribuíram significativamente para o desenvolvimento do pensamento crítico brasileiro.

Por fim, o autor do texto “A Dialética de um Mestre” destaca o mérito da obra de Oliveira em decifrar os nexos entre humanos que fazem a história brasileira, mas que são limitados pelas imposições legadas do passado. Ele ainda menciona a “dialética magistral” de Chico, que se concentra na dinâmica da realidade social em sua efetividade. A dialética negativa é o ponto central da abordagem, que se concentra na ausência de determinação positiva do desenvolvimento da luta de classes, impedindo a transformação das relações de produção. Também se discorre sobre “Hegemonia às avessas” (OLIVEIRA, 2010OLIVEIRA, F. de Hegemonia às avessas. In: OLIVEIRA, F. de; BRAGA, R.; RIZEK, C. (org.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo, Boitempo, 2010.), que surge quando situações que se contrapõem não se transformam em uma contradição nova e superior, mas são, em vez disso, resolvidas com soluções precárias e regressivas. Enfatiza-se a ideia de que a sociedade brasileira é uma forma social desprovida de remissão endógena, o que pode levar a uma regressão da dinâmica social.

No terceiro e penúltimo momento do livro - ainda de cunho teórico - “Trabalho, economia, política e direitos de cidadania”, autores como Carlos Alberto Bello (FFLCH/USP), Leonardo Mello e Silva (FFLCH/USP) e Graça Druck (CRA/UFBA) buscam estabelecer diálogos entre as diversas dimensões desses temas presentes na obra de Chico, destacando especialmente sua participação no Cenedic, onde o marxismo oliveiriano dialogou com abordagens da sociologia política. Além disso, a seção aborda a ascensão dos direitos nos anos 1980, seu desmanche nos anos 1990 e as trajetórias complexas dos anos 2000. O objetivo é destacar a fecundidade do olhar multidisciplinar de Chico de Oliveira.

Três tópicos sintetizam o texto “As inovações e ousadias de Francisco de Oliveira” e também resumem tópicos importantes explorados por Chico, a saber: (i) a era da indeterminação, caracterizada pela ruptura da possibilidade de uma dinâmica política capaz de ligar classes, interesses e representação. Ainda, a aceitação acrítica da supremacia ideológica do neoliberalismo, apesar da ocorrência de instabilidade monetário-financeira e de crises econômicas, sociais e políticas recorrentes desde 1994. Para lidar com essas crises, foi constituído um Estado de exceção, com uma sucessão incessante de movimentos ad hoc da política econômica. (ii) No tópico do lulismo, a ruptura das relações que ligavam classes, interesses e representação fez com que a esfera política deixasse de ser um espaço em que os segmentos mais fracos pudessem se contrapor aos mais fortes, mas as crises podem mudar esse quadro: a crise econômica de 1999 abalou o governo FHC e permitiu a eleição de Lula, cujo governo se submeteu ao poder de influência do mercado, não fomentando a perspectiva de combate à pobreza e à desigualdade; o que se aponta é que as crises podem mudar esse quadro. Por fim, em (iii) “Hegemonia às avessas” (OLIVEIRA, 2010OLIVEIRA, F. de Hegemonia às avessas. In: OLIVEIRA, F. de; BRAGA, R.; RIZEK, C. (org.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo, Boitempo, 2010.) aborda-se a avaliação do impacto do lulismo nas classes populares e no ideário do PT. O autor concorda com o mestre Oliveira, ao afirmar que o lulismo produziu passividade nas classes populares e enfraqueceu o ideário petista construído desde os anos 1970. No entanto, ele acrescenta que essa conclusão não é antagônica à hipótese de Chico, que destaca o reforço à dominação burguesa.

O texto “Direitos da cidadania e seu fundamento materialista” apresenta uma reflexão sobre a relação de Chico de Oliveira com os direitos de cidadania, destacando sua abordagem em relação ao Welfare State. A discussão aborda a ideia de que tais direitos representam o reconhecimento de atores coletivos em um contexto de capitalismo que socializa cada vez mais a riqueza pública, mesmo que sua apropriação privada seja desigualmente distribuída. O fundo público é um componente fundamental da iniciativa privada em condições de capitalismo do pós-guerra. Esse texto também destaca a problemática da nova gestão das empresas baseada na economia de custos e a terceirização, o que significa uma nova relação do trabalhador com seu trabalho, desorganizando a visão do antagonismo de classe que opunha patrões e empregados. Nesse sentido, é apresentado o verdadeiro problema: a simultaneidade de dois tempos diferentes, a temporalidade do Centro e a temporalidade da Periferia. No Centro, o avanço do fundo público havia deitado certas raízes na sociedade, enquanto, na Periferia, nunca houve de fato uma norma coletiva criada com base em um critério dialógico de contrato. Ressalta-se ainda que, para lidar com as incertezas e os ciclos curtos do capitalismo, é preciso criar uma visão estratégica que aceite certas perdas momentâneas com vistas a um resultado material mais satisfatório no longo prazo. Entretanto, as classes dominadas sempre depararam com uma pauta das urgências, sem uma visão estratégica. Portanto, é necessária a adaptação a uma nova norma que inclua a cidadania do fundo público e seja adequada a uma sociedade “intransparente”.

Em “O ‘totalitarismo neoliberal’, o trabalho e as classes sociais hoje: algumas notas a partir do legado de Chico de Oliveira”, discute-se a crise múltipla que o mundo vem enfrentando, intensificada pela pandemia de Covid-19, que expôs a centralidade do trabalho e a falência das políticas neoliberais. Além disso, a pandemia evidenciou a desigualdade econômica, social, racial e de gênero. O texto aborda a crise do neoliberalismo, que se alimenta das crises e impõe uma mercantilização sem limites, levando a uma precarização social do trabalho, que passa a ser uma estratégia de dominação do capital. De acordo com o texto, a precarização social do trabalho é uma estratégia política e ideológica do neoliberalismo, que se tornou hegemônico na sociedade. Daí a importância das políticas públicas e da intervenção do Estado social para lidar com a crise e combater a desigualdade social e econômica.

No final do livro, são dados diversos depoimentos, destinados a Chico como uma espécie de homenagem à memória de seu legado, com uma mistura do pessoal e do teórico. Dentre eles, estão os de Edson Miagusko (PPGCS/UFRRJ), Luiz Roncari (FFLCH/USP), Ruy Braga (FFLCH/USP), Ana Amélia da Silva (FFLCH/USP), Laymert Garcia dos Santos (PPGCS/Unicamp), Lena Lavinas (PPGECO/UFRJ) e Leonardo Mello e Silva (FFLCH/USP).

O livro, instigante e provocativo, segue essa linha de diálogo, e as seções se comunicam, apesar da dificuldade de separar analiticamente os temas. Nele, os autores ressaltam a importância da produção intelectual de Chico de Oliveira desde os anos 1950 até seus últimos dias de efetiva intervenção literária.

Referencias

  • BELLO, C. A. ; RIZEK, C. S. ; BARROS, J. ; MELLO E SILVA, L. (org.). Francisco de Oliveira: questões, diálogos, depoimentos. São Paulo: FFLCH/USP, 2022.
  • OLIVEIRA, F. de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco São Paulo: Boitempo, 2003 [1972] .
  • OLIVEIRA, F. de O Estado e a exceção ou o Estado de Exceção. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 5, n. 1, 2003.
  • OLIVEIRA, F. dePolítica numa era de indeterminação: opacidade e reencantamento. In: OLIVEIRA, F. de; RIZEK, C. (org.). A era da indeterminação São Paulo: Boitempo, 2007.
  • OLIVEIRA, F. de Hegemonia às avessas. In: OLIVEIRA, F. de; BRAGA, R.; RIZEK, C. (org.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo, Boitempo, 2010.
  • SCHWARZ, R. Fim de século. In: SCHWARZ, R. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 155-162.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2023
  • Aceito
    02 Jun 2023
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