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TRAÇOS E RETRATOS DA IMPRENSA ON-LINE SOBRE O USO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO COMO FERRAMENTAS DE SUPORTE AO CRIME ORGANIZADO EM RORAIMA, BRASIL

Traces And Portraits From The Online Press About The Use Of Information And Communication Technologies As Tools To Support Organized Crime In Roraima, Brazil

RESUMO

Nos últimos 30 anos, o Brasil registrou um aumento da violência praticada por jovens ou contra os jovens de 15 a 29 anos, particularmente na região Norte. Novas redes sociais virtuais e os mais variados equipamentos, tecnologias e realidades midiáticas marcam não só o cotidiano juvenil, mas também são recursos na criminalidade violenta. O objetivo deste artigo é discutir o uso, pelo crime organizado, das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) para cometimento de homicídio de adolescentes e jovens no estado de Roraima, Brasil a partir dos traços e retratos apresentados pela imprensa on-line. Trata-se de um estudo exploratório, com enfoque qualitativo, elaborado a partir da coleta e análise de dados em 13 notícias jornalísticas disponíveis on-line sobre casos de violência letal por membros de facções criminosas que vitimou jovens entre 15 e 19 anos. Na análise dos casos, constatou-se a utilização de TDIC no planejamento, na execução e na publicização dos crimes cometidos por ordem das facções criminosas. Assim, em conformidade com a literatura, discute-se o uso das redes sociais e mídias digitais enquanto prática entre o crime organizado, para legitimação no poder, ameaça, cooptação de jovens, estímulo ao sentimento de medo e intimidação de grupos rivais.

Palavras-chave:
adolescente; crime organizado; homicídio; imprensa on-line ; tecnologias digitais de informação e comunicação

ABSTRACT

In the last 30 years, Brazil has registered an increase violence committed by young people or against young people aged 15 to 29, particularly in the North region. New virtual social networks, and the most varied equipment, technologies and media realities mark not only the youth´s daily life but are also resources in violent crime. The purpose of this article is to discuss the use of Information and Communication Digital Technologies - ICT by organized crime to commit teenage murders in the state of Roraima, Brazil. It is an exploratory study, with a qualitative approach, based on data collected by 13 journalistic reports, available online, about lethal cases of violence against young victims from 15 to 19 years old, inflicted by members of criminal factions. Through the discussion of the cases, it was possible to verify the use of ICTs to plan, execute and publicize the crimes committed by criminal factions. Thus, in accordance with the literature, it was noticed that the use of social networks and digital media is a common practice in organized crime to legitimize power, threaten, co-opt young people, cause fear and intimidate rival groups.

Keywords:
adolescent; organized crime; murder; online press; digital information and communication technologies

INTRODUÇÃO

O Brasil vivencia nos últimos anos um cenário de aumento da violência praticada por jovens ou contra os jovens de 15 a 29 anos, que representou, somente entre 2009 e 2019, 53% das vítimas de homicídio no país (CERQUEIRA, FERREIRA e BUENO, 2021CERQUEIRA, D.; FERREIRA, H.; BUENO, S. (Coord.). Atlas da violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf . Acesso em: 3 jan. 2022.
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). Em recente publicação da Secretaria Nacional de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos (Ministério…, 2018), afirma-se que os homicídios são a principal causa de mortes de adolescentes de 16 e 17 anos no Brasil e que os jovens representam mais da metade das vítimas de mortes por armas de fogo. Ao tratar de dados sobre o sistema socioeducativo, o mesmo documento, com base no levantamento anual do Sistema Nacional Socioeducativo - SINASE (CONANDA, 2018), revela que o Brasil possui 476 unidades de internação para adolescentes e que ocorrem, por mês, quatro mortes nas unidades de internação.

Perante o tão elevado número de homicídios envolvendo jovens - 333.330 assassinatos entre 2009 e 2019, Cerqueira, Ferreira e Bueno (2021CERQUEIRA, D.; FERREIRA, H.; BUENO, S. (Coord.). Atlas da violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf . Acesso em: 3 jan. 2022.
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) chegam a afirmar que essa é a geração da juventude perdida, evidenciando que o país passa por uma tragédia humana geradora de consequências no desenvolvimento econômico e social, redundando em substanciais custos para as comunidades, impactando diretamente na saúde pública, na geração de emprego e renda e nas políticas de segurança pública.

O Atlas da Violência 2021 (CERQUEIRA, FERREIRA e BUENO, 2021CERQUEIRA, D.; FERREIRA, H.; BUENO, S. (Coord.). Atlas da violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf . Acesso em: 3 jan. 2022.
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) retrata o longo caminho que o Brasil precisa percorrer para a redução da violência letal juvenil, salientando o peso da desigualdade racial brasileira, da violência armada (70% dos assassinatos do país entre 2009 e 2019 foram cometidos com uso de arma de fogo), contra a pessoa com deficiência, contra mulheres e contra a população LGBTQI+ (Lésbias, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgêneros, Queer, Intersexo e mais gêneros).

Faz-se relevante considerar, sobre as altas taxas de letalidade violenta de jovens por homicídios no Brasil, o registrado no Atlas da Violência: retrato dos municípios brasileiros. Segundo o documento, além da presença de facções criminosas, a situação socioeconômica das regiões Norte e Nordeste do Brasil é um elemento fundamental na análise da mortalidade juvenil, em comparação às demais regiões do país: “em particular, nessas duas regiões, salta aos olhos os maiores índices de jovens entre 15 e 24 anos que não estudam, não trabalham e são vulneráveis à pobreza” (CERQUEIRA e BUENO, 2019CERQUEIRA, D.; BUENO, S. (Coord.). Atlas da violência 2019. Organizadores: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019 . Acesso em: 3 jan. 2022.
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, p. 23).

Os estudos de Oliveira (2017OLIVEIRA, J. V. Retratos da violência urbana e da criminalidade em Boa Vista - Roraima: a capital mais setentrional do Brasil. Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, n. 22, p. 245-270, jan./jul. 2017. e 2018) em torno da violência juvenil em Boa Vista, Roraima, no extremo Norte do Brasil, destacaram a necessidade do aprofundamento deste fenômeno considerando o protagonismo exercido pelas desigualdades socioespaciais geradoras de vulnerabilidades sociais no ingresso dos jovens à delinquência e do papel das fações criminosas nas mortes violentas dos jovens. Enfatiza também que é cada vez mais presente na sociedade roraimense o sentimento de medo e a busca por aparatos pessoais de segurança; isto porque vive-se um tempo de “globalização da violência e especialização das formas em que se estabelecem as ações criminosas” (OLIVEIRA, 2017OLIVEIRA, J. V. Retratos da violência urbana e da criminalidade em Boa Vista - Roraima: a capital mais setentrional do Brasil. Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, n. 22, p. 245-270, jan./jul. 2017., p. 245).

Sobre as mortes violentas, dados recentes do Sistema de Mortalidade - SIM, da Coordenação Geral de Vigilância em Saúde - CGVS, da Secretaria de Estado da Saúde de Roraima - SESAU mostram que, entre os anos de 2017 e 2021 (até outubro), estas representam a maior causa de óbitos de jovens na faixa etária de 15 a 19 anos1 1 A opção do estudo pela faixa etária de 15 a 19 anos se deu, primeiramente, pela intenção em se trabalhar com adolescentes e jovens na maior aproximação possível com o que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA e, em segundo lugar, em razão da possibilidade de comparação com os dados do Sistema de Mortalidade brasileiro, que utiliza como parâmetros de faixa etária, os grupos 15 a 19 anos e 20 a 29 anos. : das 446 mortes de jovens no período citado, 196 (44%) foram causadas por homicídio.

Na atualidade, a análise sociológica sobre este fenômeno constitui uma tarefa desafiadora pela crescente complexificação das experiências sociais numa sociedade marcada por uma crescente digitalização a que as práticas criminais não escapam (ARAÚJO, 2018ARAÚJO, F. L. De perto e de dentro: Globalização, violência e o poder das Facções Criminosas no Brasil. Dissertação (Mestrado) − Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. Universidade de Lisboa, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/17642/1/TRABALHO%20FINAL%20FABIO.pdf . Acesso em: 8 set. 2021.
https://www.repository.utl.pt/bitstream/...
; BERRY, 2018BERRY, M. Technology and organized crime in the smart city: an ethnographic study of the illicit drug trade. City Territory and Architecture, 2018. https://doi.org/10.1186/s40410-018-0091-7
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; CARVALHO, 2019CARVALHO, M. J. L. Delinquência juvenil: um velho problema, novos contornos. In: CALDAS, L. M. (Ed.), Jornadas de Direito Criminal: A Constituição da República Portuguesa e a Delinquência Juvenil (p. 77-106). Lisboa, Centro de Estudos Judiciários. 2019. Disponível em: Disponível em: https://research.unl.pt/ws/portalfiles/portal/16597828/Delinquencia_juvenil_um_velho_problema_novos_contornos.pdf . Acesso em: 31 dez. 2021.
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). Nesta seara, o crime organizado se aproveita das TDIC para agir num espaço virtual (PRIETO et al., 2020), onde as fronteiras inexistem e ações podem ser comandadas de qualquer lugar do mundo para qualquer lugar do mundo, o que aumenta seu poder de mando, a capacidade de realizar negociações para aquisição de armas de fogo e drogas, aliciar pessoas para ingresso em suas estruturas e incitar o medo e a violência em todas as suas formas (BATISTA JÚNIOR; PEREIRA; HENRIQUES, 2021BATISTA JUNIOR, E. S.; PEREIRA, C. R.; HENRIQUES, H. Q. Relação entre facções criminosas e crime cibernéticos. Observatório Militar da Praia Vermelha. Rio de Janeiro, 21 jun. 2021. Disponível em: Disponível em: http://ompv.eceme.eb.mil.br/defesa-cibernetica/guerra-cibernetica/405-fac-cr . Acesso em: 30 set. 2021.
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). Soma-se a isso o fato de que há ainda dificuldade, por parte das autoridades, de restringir a entrada de dispositivos móveis nas penitenciárias, bem como a complexidade existente para bloquear o sinal de dados e de rede de telefonia móvel nas adjacências.

A ampla mediatização destas temáticas influem na construção de crenças e estereótipos na comunidade que reforçam o alarme social e potenciam um maior individualismo (CASTELLS, 2009CASTELLS, M. Communication Power. Oxford University Press, 2009.). Em sociedades fortemente mediatizadas como as contemporâneas, os sistemas simbólicos adquirem uma função primordial na ordenação das questões sociais e das visões coletivas sobre o mundo, sendo parte fundamental da própria realidade (CARVALHO, FERREIRA, SERRÃO, 2009CARVALHO, M. J. L., FERREIRA, L., SERRÃO, J. Delinquência(s) e Justiça. In: PONTE, C. (Ed.), Crianças e Jovens em Notícia, Lisboa, Livros Horizonte, 2009.). Deste modo, na atualidade a imprensa on-line assume um papel relevante enquanto instância de controle social informal ao dar visibilidade, no espaço público, junto de diferentes audiências, ao conhecimento sobre estes problemas sociais (PENEDO, 2003PENEDO, C. O crime nos media: O que nos dizem as notícias quando falam de crime. Lisboa, Livros Horizonte , 2003.).

É justamente neste contexto que se situa este texto, parte integrante de projeto de pós-doutoramento em Ciências Sociais. O objetivo é discutir a utilização das TDIC pelas facções criminosas em Roraima, na região Norte do Brasil, como ferramentas de suporte aos crimes de homicídio de adolescentes e jovens, com base numa análise textual discursiva de reportagens jornalísticas disponíveis em mídias on-line. Trata-se de um estudo exploratório com enfoque qualitativo elaborado a partir da coleta e análise de dados em 13 notícias jornalísticas disponíveis on-line sobre casos de violência letal envolvendo membros de facções criminosas dos quais resultaram vítimas com idades compreendidas entre os 15 a 19 anos.

A análise textual discursiva constitui “uma metodologia de análise de dados e informações de natureza qualitativa com a finalidade de produzir novas compreensões sobre os fenômenos e discursos” (MORAES, GALIAZZI, 2007MORAES, R.; GALIAZZI, M.C. Análise Textual Discursiva. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007., p. XX), sendo que se apresenta em uma lógica interpretativa e de caráter hermenêutico, onde são considerados princípios da análise de conteúdo e da análise de discurso. Optou-se pela amostragem não probalística para a constituição de um corpus de notícias selecionadas entre a imprensa on-line regional, selecionadas por conterem o que se pode chamar de “casos típicos” em função dos critérios preestabelecidas pelas autoras, suportadas na literatura. Neste sentido, trata-se de um estudo não representativo e, portanto, os resultados não podem ser generalizados (SAMPIERI; COLLADO; LUCIO, 2013SAMPIERI, R. H.; COLLADO, C. F.; LUCIO, M. P. B. Metodologia de pesquisa. 5. ed. Porto Alegre: Penso, 2013.).

AS TDIC E A RECONFIGURAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS

O advento das redes sociais on-line nas primeiras décadas do século XXI, além de demarcar um dos maiores acontecimentos relativos ao uso das Tecnologias de Informação e Comunicação - TDIC, constitui uma maneira totalmente nova de se estabelecerem e organizarem as relações sociais (DEURSEN; DIJK, 2019DEURSEN, A.; DIJK, J. The first-level digital divide shifts from inequalities in physical access to inequalities in material access. New Media & Society, v. 21, n.2, p. 354-375, 2019.). Para Pessoa e Branquinho (2017PESSOA, A. S. G.; BRANQUINHO, V. W. C. A quebrada está online: análise do uso das redes sociais por adolescentes com histórico de envolvimento em atos infracionais. Polêm!ca, v. 17, n.3, p. 1-19, jul./set. 2017. Disponível em: DOI: 10.12957/Polêmica 2017.31039. Acesso em: 20 fev. 2021.
https://doi.org/10.12957/Polêmica 2017.3...
, p. 1), as muitas possibilidades de recursos trazidas pelo uso da internet implicaram grandes mudanças nas relações humanas, uma vez que “as redes virtuais têm estabelecido novas configurações nas relações interpessoais e, consequentemente, na maneira de ser do homem em toda sua complexidade individual e social”.

A possibilidade de estabelecer e manter contatos e comunicar-se a todo momento independentemente de sua localização geográfica faz com que, a cada dia, cresça o interesse das pessoas nas redes sociais, cujas ferramentas são diversas e oferecem recursos que se adaptam às necessidades e perfis dos usuários (ROSA; SANTOS, 2013). Esse novo modelo de cultura digital instaura, segundo Casagrande, Costa e Fernandes (2019CASAGRANDE, A. L.; COSTA, A.F.C; FERNANDES, T. Tecnologias digitais, espetáculo e violência na escola: uma análise de “Urso Branco”. Revista Diálogo Educacional, [S.l.], v. 19, n. 62, p. 1023-1041, out. 2019. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/index.php/dialogoeducacional/article/view/25451 . Acesso em: 19 maio. 2021. doi: http://dx.doi.org/10.7213/1981-416X.19.062.DS06.
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, p. 1027), o “conceito da ubiquidade como forma de estar lá e cá ao mesmo tempo”.

Cada vez mais acessíveis [...] com a tela touch screen, o toque com o dedo indicador confere poder a seu usuário. É um aparelho mágico capaz de transportar os espectadores da tela para lugares longínquos, sem que para isso seja preciso sair do lugar. Pequeno e portátil computador de mão, o celular permite uma comunicação multimodal, ajustado ao sistema de comunicação ubíquo, cuja fluidez suspende o tempo da reflexão. Tudo é feito de forma fluida, e se a usabilidade permite navegar no espaço de forma fácil, com dispositivo que tira foto, grava vídeo, interage com jogos, músicas, o usuário “toma a pílula” do piloto automático e se transporta para a Matrix existencial. Nesse sentido, estar conectado por meio do celular é pertencer a um universo que exige a participação virtual nos espaços fluidos da rede (CASAGRANDE; COSTA; FERNANDES, 2019CASAGRANDE, A. L.; COSTA, A.F.C; FERNANDES, T. Tecnologias digitais, espetáculo e violência na escola: uma análise de “Urso Branco”. Revista Diálogo Educacional, [S.l.], v. 19, n. 62, p. 1023-1041, out. 2019. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/index.php/dialogoeducacional/article/view/25451 . Acesso em: 19 maio. 2021. doi: http://dx.doi.org/10.7213/1981-416X.19.062.DS06.
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, p. 1028).

Em sendo a comunicação parte do processo constitutivo dos sujeitos, o uso das redes sociais pode interferir na construção das subjetividades. Isto porque essa nova realidade de vivência virtual é capaz de alterar comportamentos e os modos de vida, leva a novos questionamentos acerca dos valores e da noção das necessidades humanas e pode, inclusive, reconfigurar toda a organização existencial das pessoas.

Partindo desta percepção, um dos desafios impostos aos pesquisadores em ciências sociais é o de compreender os sentidos atribuídos às TDIC nas relações interpessoais e seus impactos na vida e na cultura juvenil, entendendo que o uso das tecnologias e mídias sociais ocupa um lugar cada vez mais amplo na vida de adolescentes e jovens, seja sua utilização voltada exclusivamente à socialização, jogos on-line, trabalho, estudo ou outro motivo (CLARO et al., 2020CLARO, M.; ALFARO, A.; PALMA A.; OCHOA, J. M. A participação de crianças e adolescentes no mundo digital. In: TRUCCO, D.; PALMA, A. (Eds.). Infância e adolescência na era digital: um relatório comparativo dos estudos Kids Online Brasil, Chile, Costa Rica e Uruguai (pp. 77-91). Documentos de Projetos (LC/TS.2020/18/ Rev.1). Santiago: Cepal , 2020.). Neste sentido, é possível perceber que, independentemente da classe social a qual pertence, o advento da internet é capaz de alterar drasticamente a vida das pessoas, pois a cada passo evolutivo das tecnologias digitais aumenta a dependência pelos dispositivos computacionais conectados à internet e suas múltiplas facetas, com aplicativos de troca de mensagens, redes sociais e softwares de compartilhamento de vídeos.

Sobre este aspecto, Silva (2018SILVA, W.A. Tecnologias digitais no processo ensino-aprendizagem: habilidades necessárias para a construção do conhecimento científico no estado de Roraima. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática, Cuiabá, 2018. Disponível em: Disponível em: https://ufmt.br/curso/ppgcienciassaude/userfiles/publicacoes/8d657b7f1cf53d7fa4294dab7702a0c6.pdf . Acesso em: 8 jun. 2021.
https://ufmt.br/curso/ppgcienciassaude/u...
, p. 22) afirma que

[...] as mudanças são constantes, pois a cada novo avanço tecnológico, cada novo produto de software, mesmo um simples aplicativo, pode apresentar uma maneira diferente de experimentar o mundo. Neste novo cenário, ter acesso às tecnologias digitais da informação e comunicação é um diferencial para a aquisição de conhecimentos, pois se estaria incluído na sociedade da informação.

Por sua vez, há que se pontuar que, se por um lado, o acesso às TDIC se configura como um dos elementos capazes de promover a inclusão social, por outro, o não acesso pode aprofundar, para além da exclusão digital, as desigualdades sociais, especialmente em países como o Brasil, que figura entre os mais desiguais do mundo e registrou piora neste ranking nas duas últimas décadas, com 1% da população concentrando 49,6% das riquezas (CREDIT SUISSE, 2021CREDIT SUISSE. Global Wealth Report 2021. Research Institute, June 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.credit-suisse.com/about-us/en/reports-research/global-wealth-report.html . Acesso em: 10 ago. 2021.
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).

Em um estudo sobre as desigualdades de acesso físico e material às TDIC, Deursen e Dijk (2019DEURSEN, A.; DIJK, J. The first-level digital divide shifts from inequalities in physical access to inequalities in material access. New Media & Society, v. 21, n.2, p. 354-375, 2019.) destacam que, embora tenha se pensado, por muito tempo, que o problema da exclusão digital seria resolvido com o aumento das taxas de conexão, sabe-se hoje que os obstáculos são ainda mais complexos, pois envolvem, além do acesso à internet (disponibilidade e velocidade), equipamentos de qualidade, capazes de responder às necessidades dos grupos (a qualidade dos equipamentos afeta a qualidade do uso), os tipos de uso (finalidade, atitudes nas redes, tempo gasto, etc.) e as habilidades pessoais.

Além da diversidade no acesso básico aos dispositivos e periféricos, estes autores destacam que os custos com a manutenção de hardwares, softwares e assinaturas afetam diretamente o uso, tendo efeito direto nos resultados e na inclusão/exclusão social, uma vez que, comprovadamente, ter acesso à internet traz benefícios e não ter pode trazer consequências negativas em diversos aspectos da vida das pessoas, como educação, trabalho e relacionamentos (DEURSEN; DIJK, 2019DEURSEN, A.; DIJK, J. The first-level digital divide shifts from inequalities in physical access to inequalities in material access. New Media & Society, v. 21, n.2, p. 354-375, 2019.).

Ratificando esta ideia, Cabello, Claro e Dodel (2020CABELLO, P.; CLARO, M.; DODEL, M. Modalidades de acesso material à Internet e a sua relação com competências e práticas digitais. In: TRUCCO, D.; PALMA, A. (Eds.). Infância e adolescência na era digital: um relatório comparativo dos estudos Kids Online Brasil, Chile, Costa Rica e Uruguai (p. 41-53). Documentos de Projetos (LC/TS.2020/18/Rev.1). Santiago: Cepal., p. 42) defendem que “o acesso material constitui uma dimensão mais complexa do que simplesmente ter ou não uma conexão no domicílio e que está relacionado à possibilidade de acesso a partir de diferentes pontos e por meio de vários dispositivos”. Para os autores, a articulação dos diferentes níveis de acesso se daria de forma hierarquizada e sequencial, numa ordem crescente de: acesso, utilização, apropriação e resultados, o que permitiria a “cidadania digital plena, entendida como a participação em diversas oportunidades on-line”.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018/2019 - PNAD Contínua (IBGE, 2021INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua - PNAD Contínua: acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2019. IBGE, 2021. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101794_informativo.pdf . Acesso em: 16 set 2021.
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) mostram que, no Brasil, em 2019, a internet estava presente em 82,7% dos domicílios do país, considerando área urbana (86,7%) e área rural (55,6%). Na região Norte, 76% dos domicílios tinham internet, sendo a presença bem mais expressiva na área urbana (86,5%) do que na área rural (38,4%). A pesquisa também mostrou que 77,1% dos homens e 79,3% das mulheres de mais de 10 anos de idade faziam uso de internet em qualquer local. Para ter acesso, 98,6% das pessoas utilizavam aparelhos celulares, 46,2% microcomputadores, 31,9% televisores e 10,9% utilizavam tablets (IBGE, 2021INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua - PNAD Contínua: acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2019. IBGE, 2021. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101794_informativo.pdf . Acesso em: 16 set 2021.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
). Com relação à finalidade do uso, em 2019, a PNAD aferiu que 95,7% dos brasileiros utilizam a internet para enviar ou receber mensagens de texto, voz ou imagens, 91,2% para conversar por chamadas de voz ou vídeo, 88,4% para assistir a vídeos, inclusive programas e séries, e 61,5% enviar ou receber e-mail. Dos que não acessavam internet, 43,8% alegaram não saber usá-la, 31,6% não utilizam por falta de interesse, 11,9% por considerarem que o serviço de acesso à internet é caro, 4,3% por não haver serviço disponível em sua região ou nos locais que costumam frequentar, 6,1% por considerarem caro o equipamento eletrônico necessário para usá-la, e 2,4% por outro motivo, não esclarecido (IBGE, 2021INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua - PNAD Contínua: acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2019. IBGE, 2021. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101794_informativo.pdf . Acesso em: 16 set 2021.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
).

No Brasil, a recém-publicada Base Nacional Comum Curricular - BNCC, do Ministério da Educação - MEC, compreende que o uso das TDIC, além de sua incorporação “às práticas docentes como meio para promover aprendizagens mais significativas, com o objetivo de apoiar os professores na implementação de metodologias de ensino ativas, alinhando o processo de ensino-aprendizagem”, deve ser uma competência desenvolvida na escola, desde a Educação Infantil, sem prejuízo da família e da comunidade. Prevê ainda que os estudantes possam utilizá-las não somente como meio ou suporte para promover aprendizagens, mas que possam também construir conhecimentos com e sobre o uso dessas tecnologias (BNCC, 2018BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC). Ministério da Educação, 2018. Disponível em: Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf . Acesso em: 15 set. 2021.
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).

Para tanto, a BNCC propõe três eixos de atuação no uso das TDIC na escola: Cultura digital (subdividida em letramento e tecnologia digital, tecnologia e sociedade), Tecnologia Digital (trabalha conceitos de hardware, software, comunicação e redes) e Pensamento Computacional (conceitos de abstração, algoritmo, decomposição e reconhecimento de padrões). Para além destes eixos, a BNCC propõe que os docentes sejam mediadores de reflexão crítica sobre o uso responsável das TDIC, trabalhando conceitos relacionados à segurança na rede, cyberbullying, checagem de fatos e informações (BNCC, 2018BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC). Ministério da Educação, 2018. Disponível em: Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf . Acesso em: 15 set. 2021.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
).

Na contramão do acesso às TDIC, o supramencionado aprofundamento da desigualdade social no Brasil, combinado à crescente alta na inflação (IBGE, 2021aINSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Inflação. IBGE, 2021a.Disponível em: Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/inflacao.php . Acesso em: 16 out. 2021.
https://www.ibge.gov.br/explica/inflacao...
) e, consequentemente, ao achatamento do potencial de compra de mercadorias pela maioria da população devido às constantes altas nos preços nos últimos anos (LIMA; GERBELLI, 2021LIMA, B.; GERBELLI, L. G. Inflação no Brasil é a terceira maior na América Latina, atrás somente de Argentina e Haiti. G1. 2021. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/09/07/inflacao-no-brasil-e-a-terceira-maior-da-america-latina-atras-somente-de-argentina-e-haiti.ghtml . Acesso em: 10 out. 2021.
https://g1.globo.com/economia/noticia/20...
) têm impactado diretamente o uso das TDIC. Dados da PNAD (IBGE, 2021INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua - PNAD Contínua: acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2019. IBGE, 2021. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101794_informativo.pdf . Acesso em: 16 set 2021.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
) mostram que, como efeito do rendimento real das famílias, houve declínio no número de domicílios com microcomputadores e tablets, por serem produtos mais caros.

Em contrapartida, registrou-se, no mesmo período, o aumento do número de domicílios que fazem uso exclusivamente de telefone móvel celular - em média 94%. Na região Norte do país, 90,8% dos domicílios possuem telefone celular e 8% utilizam o telefone fixo convencional.

No total de domicílios, aqueles em que havia microcomputador representavam 41,7%, em 2018, e 40,6% em 2019. De 2018 para 2019, este percentual caiu de 46,0% para 44,8% em área urbana, enquanto, em área rural, a diminuição foi de 14,3% para 13,1%.

O tablet é menos comum nos domicílios que o computador. Nos domicílios do País, de 2018 para 2019, o percentual daqueles em que havia tablet passou de 12,5% para 11,3%. Em área urbana, esse indicador passou de 13,8% para 12,5% e, em área rural, de 3,8% para 3,3% (IBGE, 2021INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua - PNAD Contínua: acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2019. IBGE, 2021. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101794_informativo.pdf . Acesso em: 16 set 2021.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
, p. 5).

Embora seja consenso entre os pesquisadores que o uso das TDIC traz inúmeros benefícios diante da diversidade de possibilidades de utilização como ferramenta informativa, pedagógica, de construção e divulgação de conhecimento, propagação de campanhas educativas e voltadas ao combate às violências e violações de direitos humanos, entre outras coisas, é inegável também que sua aplicação se dá em situações inversas, em que seus danos se destacam pelo mau uso a partir da disseminação de notícias falsas (as Fake News), para gerar e alimentar a intolerância e o ódio nas redes sociais. Como exemplo, tem-se as páginas exclusivamente voltadas à divulgação de atos em favor da ditadura militar, de práticas de discriminação e preconceito racial, machismo, xenofobia, homofobia e outras questões relativas ao gênero, para divulgar práticas de bullying, promover cyberbullying etc., além dos atos criminosos envolvendo conteúdo sexual.

O uso das TDIC por organizações criminosas no Brasil

O uso das TDIC, nomeadamente aquelas com acesso à internet, especialmente os smartphones, faz parte do cotidiano das pessoas em todo o mundo e elas têm sido muito utilizadas também por organizações criminosas, como milícias, facções e gangues, se tornando, no caso brasileiro, cada vez mais presentes dentro e fora dos presídios.

Investigações policiais registraram que as facções criminosas brasileiras utilizam as TDIC por inúmeros motivos, entre os quais fortalecer a rede de tráfico de drogas, monitorar as ações de seus membros e simpatizantes, coletar dados pessoais e profissionais de agentes da justiça, da segurança pública e de seus familiares, divulgar e promover ações contra os grupos rivais, projetar ideia de poder e disseminar medo nas redes sociais. Em 2019, uma operação da Delegacia Especializada de Combate ao Crime Organizado - DECO, no estado do Mato Grosso do Sul, região Centro-Oeste do Brasil, destacou que a organização criminosa Primeiro Comando da Capital - PCC mantinha, dentro do presídio, uma “Central de Inteligência” (MELO; RODRIGUES, 2019MELO, T.; RODRIGUES, M. Membros do PCC criavam ‘fakes’ nas redes sociais para monitorar agentes penitenciários. SINDSPEN, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.sindspenmt.com.br/imprensa/cliping/membros-do-pcc-criavam-fakes-nas-redes-sociais-para-monitorar-agentes-penitencirios/2006 . Acesso em: 20 fev. 2021.
https://www.sindspenmt.com.br/imprensa/c...
, on-line).

Os presos encarregados pela inteligência do PCC usavam técnicas avançadas, como investigação social, com pesquisas aprofundadas em redes sociais, como Facebook, Instagram, Twitter, Snapchat, e também, fontes oficiais, entre elas, cadastros de dados publicados em páginas oficiais nos mais diversos órgãos públicos e inclusive, junto as publicações funcionais elencadas em diários oficiais, como dados funcionais, qualificação completa, escalas de serviço, remoções e até mesmo promoções funcionais (MELO; RODRIGUES, 2019MELO, T.; RODRIGUES, M. Membros do PCC criavam ‘fakes’ nas redes sociais para monitorar agentes penitenciários. SINDSPEN, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.sindspenmt.com.br/imprensa/cliping/membros-do-pcc-criavam-fakes-nas-redes-sociais-para-monitorar-agentes-penitencirios/2006 . Acesso em: 20 fev. 2021.
https://www.sindspenmt.com.br/imprensa/c...
, on-line).

Nesse cenário, é inegável que as TDIC aparecem como ferramentas de fortalecimento da atuação das facções criminosas, que se utilizam das mídias sociais e plataformas de mensagens como instrumentos essenciais para dar capilaridade às ações do narcotráfico e instrumentalizar seu comando hierárquico no sentido de que proceda ao recrutamento da mão de obra, acompanhe publicações de seus integrantes nas redes sociais, especialmente os informantes, acompanhe o desfecho de operações policiais em áreas específicas, publique sentenças de morte proclamadas nos “tribunais do crime”, onde seus membros atuam como “juízes, jurados e algozes” (MUGGAH; FRANCISCO, 2020MUGGAH, R.; FRANCISCO, P. A. P. Drug cartels are all over Instagram, Facebook, and TikTok. Foreign Policy, 2020. Disponível em: Disponível em: https://foreignpolicy.com/2020/12/15/latin-american-drug-cartels-instagram-facebook-tiktok-social-media-crime/ . Acesso em: 31 maio 2021.
https://foreignpolicy.com/2020/12/15/lat...
, on-line). Essa instrumentalização permite que se propague o medo e o violência a partir de fotografias e vídeos com conteúdo de práticas de maus-tratos, sequestros, torturas e execuções sumárias, além de ordenar aquisições e vendas de armas e drogas e trocas de comando, entre outros.

Exemplo disso, em 2020, uma operação da Polícia Federal brasileira interceptou mensagens trocadas em grupos de conversa de rede social em que uma facção do estado de São Paulo realizava aliciamento e cadastramento de novos integrantes por aplicativos de celular. De acordo com Coelho e Brasil (2020COELHO, H.; BRASIL, M. Facção Paulista fazia cadastro de novos integrantes por aplicativo e pressionava por recrutamento em presídios do RJ, aponta PF. G1 Rio, 2020. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/08/30/faccao-paulista-fazia-cadastro-de-novos-integrantes-por-aplicativo-e-pressionava-por-recrutamento-em-presidios-do-rj-aponta-pf.ghtml . Acesso em: 15 mar. 2021.
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), havia pressão por recrutamento em presídios de outros estados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco, ou seja, a amplitude da ação ultrapassava os limites da região Sudeste, estendendo-se para o Nordeste do Brasil.

Ainda segundo Coelho e Brasil (2020COELHO, H.; BRASIL, M. Facção Paulista fazia cadastro de novos integrantes por aplicativo e pressionava por recrutamento em presídios do RJ, aponta PF. G1 Rio, 2020. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/08/30/faccao-paulista-fazia-cadastro-de-novos-integrantes-por-aplicativo-e-pressionava-por-recrutamento-em-presidios-do-rj-aponta-pf.ghtml . Acesso em: 15 mar. 2021.
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/n...
), os integrantes da cúpula da facção criminosa realizavam videoconferências com participação de pessoas de diversos estados para pressionar novos cadastros e realizar os “batismos” dos integrantes recém-chegados. Na ficha cadastral, deveria constar informações sobre os três últimos presídios pelos quais passou, data do “batismo” e quem são seus “padrinhos” (faccionados mais antigos), nome completo, apelido que deseja utilizar (vulgo), número de matrícula e localidade de origem.

Plataformas digitais como Facebook, Youtube, Telegram, WhatsApp, Instagram e até as mais recentes, como Snapchat e TikTok, são utilizadas pelos grupos criminosos, uma vez que garantem o anonimato (protegido pela criptografia) e são de simples utilização, proporcionando um grande alcance, sendo de difícil rastreamento.

Sobre o manto da proteção por criptografia, Brainard (2018BRAINARD, A. A Content Analysis of Crimes Posted on Social Media Platforms. Elon Journal of Undergraduate Research in Communications, v. 9, n. 1, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.elon.edu/u/academics/communications/journal/wp-content/uploads/sites/153/2018/05/08_Brainard.pdf . Acesso em: 30 jul. 2021.
https://www.elon.edu/u/academics/communi...
) chama atenção para um elemento fundamental para o debate: a linha tênue entre a liberdade de expressão e o direito penal. Isto porque a mídia tradicional foi cunhada especialmente em países que se dizem democráticos, como o Brasil, no ideário da liberdade de expressão como um direito fundamental, entretanto, o advento das mídias sociais modifica este panorama à medida em que as notícias produzidas, distribuídas e compartilhadas 24 horas por dia, por quem quer que seja, em qualquer lugar do mundo, tomam distância do que é ou não lícito e permitido em termos de conteúdo e violação de direitos.

Mas o uso das tecnologias digitais em atividades ilícitas vai além das redes sociais de plataformas abertas ao público, bastando, para tanto, lembrar da “internet profunda” (deep web) e da “internet obscura” (dark web). Trata-se de recursos há muito tempo utilizados por traficantes de armas, pessoas e órgãos, bem como por indivíduos e organizações em redes de pedofilia, de terrorismo, de extremismo violento, incluindo neonazistas, e outras organizações criminosas, devido ao fato de que são inacessíveis em navegadores comuns, utilizam-se de conexões anônimas para garantir sigilo e/ou esconder os usuários e funcionam como o “mercado livre mundial do crime” (TOLEDO, 2021TOLEDO, M. Deep Web e Dark Web: qual a diferença e como acessar. TecMundo, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/internet/211075-deep-web-dark-web-diferenca-acessar.htm . Acesso em: 10 maio 2021.
https://www.tecmundo.com.br/internet/211...
).

Ao discutirem a presença de gangues latino-americanas nas mídias sociais e plataformas de mensagens, Muggah e Francisco (2020MUGGAH, R.; FRANCISCO, P. A. P. Drug cartels are all over Instagram, Facebook, and TikTok. Foreign Policy, 2020. Disponível em: Disponível em: https://foreignpolicy.com/2020/12/15/latin-american-drug-cartels-instagram-facebook-tiktok-social-media-crime/ . Acesso em: 31 maio 2021.
https://foreignpolicy.com/2020/12/15/lat...
, on-line) revelam ainda outros papéis das mídias sociais para os grupos criminosos, além de “fortalecer o poder e a influência, ameaçar a concorrência, recrutar novos membros, conduzir tráfico sexual e vender drogas e contrabando”. Para os autores, nas Américas (e aqui incluído os Estados Unidos), tanto os chefes dos cartéis quanto seus subordinados utilizam as redes sociais para exposição do gangster lifestyle.

Em plataformas como Facebook, Youtube, Twitter, Instagram e Telegram, os designados “blogueiros do crime” (ROTTAS, 2019ROTTAS, L. Blogueiros do crime: redes sociais viram plataforma de negociação entre bandidos. Plantão Enfoco. 2019. Disponível em: Blogueiros do crime: Redes sociais viram plataforma de negociação entre bandidos - Enfoco. Acesso em: 30 mar. 2021.) alimentam a curiosidade de seus muitos seguidores com imagens de ostentação, usando “pulseiras incrustadas de diamantes, roupas de grife e um arsenal de armas de fogo” (MUGGAH; FRANCISCO, 2020MUGGAH, R.; FRANCISCO, P. A. P. Drug cartels are all over Instagram, Facebook, and TikTok. Foreign Policy, 2020. Disponível em: Disponível em: https://foreignpolicy.com/2020/12/15/latin-american-drug-cartels-instagram-facebook-tiktok-social-media-crime/ . Acesso em: 31 maio 2021.
https://foreignpolicy.com/2020/12/15/lat...
).

Na Europa, além da ligação com as migrações e o tráfico humano, as mídias sociais têm sido utilizadas por membros mais jovens da máfia italiana para recrutamento de novos membros, especialmente nas regiões da Sicília, sul da Calábria e Puglia (MUGGAH; FRANCISCO, 2020MUGGAH, R.; FRANCISCO, P. A. P. Drug cartels are all over Instagram, Facebook, and TikTok. Foreign Policy, 2020. Disponível em: Disponível em: https://foreignpolicy.com/2020/12/15/latin-american-drug-cartels-instagram-facebook-tiktok-social-media-crime/ . Acesso em: 31 maio 2021.
https://foreignpolicy.com/2020/12/15/lat...
), onde também publicam vídeos expondo carros e motos de luxo, tatuagens, armas etc.

Corroborando estas afirmativas, ao versar sobre a história do crime organizado no mundo, Araújo (2018ARAÚJO, F. L. De perto e de dentro: Globalização, violência e o poder das Facções Criminosas no Brasil. Dissertação (Mestrado) − Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. Universidade de Lisboa, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/17642/1/TRABALHO%20FINAL%20FABIO.pdf . Acesso em: 8 set. 2021.
https://www.repository.utl.pt/bitstream/...
) lembra que são organizações globais e transacionais, que têm se utilizado do sistema de comércio internacional e dos avanços tecnológicos para expandir ainda mais suas fronteiras e seus negócios.

De acordo com o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres - Cedaw, da Organização das Nações Unidas - ONU, em todo o mundo, durante a pandemia de Covid-19, houve a intensificação da utilização de redes sociais para o tráfico de mulheres e meninas (SCAFFIDI, 2020SCAFFIDI, E. Redes sociais têm sido mais usadas por traficantes de mulheres e meninas durante pandemia. ONU News, 2020. Disponível em: Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2020/11/1732552 . Acesso em: 3 ago. 2021.
https://news.un.org/pt/story/2020/11/173...
). Os perigos do ciberespaço, de acordo com Garcia (2020GARCIA, M. F. Tráfico humano: traficantes usam redes sociais para atrair suas vítimas. Observatório do Terceiro Setor, 2020. Disponível em: Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/trafico-humano-traficantes-usam-redes-sociais-para-atrair-suas-vitimas/ . Acesso em: 8 ago. 2021.
https://observatorio3setor.org.br/notici...
), demandam ações das empresas de telecomunicação, das famílias na orientação e acompanhamento dos seus entes, dos governos na redução das injustiças sociais e no combate ao preconceito de gênero, raça e origem, e da sociedade, de maneira geral, já que os números são alarmantes e uma em cada três vítimas do tráfico humano no mundo é criança.

No Brasil, país entre os maiores consumidores mundiais de conteúdo de mídia social, é cada vez mais presente nas mídias sociais a divulgação de ações violentas e criminosas, postadas intencionalmente por indivíduos ou grupos, geralmente ligados a facções, com intenção de espalhar o medo, intimidar a polícia, os inimigos, recrutar jovens e cimentar lealdade dos integrantes (BRASIL..., 2019BRASIL é o 2º em ranking de países que passam mais tempo em redes sociais. Época Negócios. 2019. Disponível em: Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2019/09/brasil-e-2-em-ranking-de-paises-que-passam-mais-tempo-em-redes-sociais.html . Acesso em: 1 jun. 2021.
https://epocanegocios.globo.com/Tecnolog...
).

Numa tentativa de coibir e desestimular a prática e a divulgação de crimes na internet, em 2019, a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados aprovou o texto de proposta2 2 O texto aprovado é o substitutivo de Capitão Wagner ao Projeto de Lei 1307/19. Ele alterou a redação original para garantir que, em todos os casos, não haverá crime quando a divulgação ocorrer no cumprimento do dever legal em decorrência de atividade policial, de investigação criminal, ou em publicações jornalísticas, científicas, culturais ou acadêmicas. É o chamado excludente de ilicitude. que pretende punir a disseminação de conteúdo violento na internet, inclusive por meio de redes sociais. Nesse sentido, caso o autor do crime divulgue a cena, poderá ter seu tempo de pena aumentado e, caso outra pessoa divulgue, ela poderá ser punida por incitar a violência ou fazer apologia ao crime (SIQUEIRA; OLIVEIRA, 2019SIQUEIRA, C.; OLIVEIRA, M. Comissão aprova punição a quem divulga crime em rede social. Agência Câmara de Notícias. Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/uso-das-redes-sociais-por-faccoes-criminosas-exige-resposta-agil-24811754 . Acesso em: 10 mar. 2021.
https://oglobo.globo.com/opiniao/uso-das...
).

Em que pese a relevância da proposta, assim como toda iniciativa similar já apresentada por parlamentares, há o risco de se imporem restrições que ferem frontalmente a liberdade de expressão garantida na Carta Magna de 1988 e “embora o texto tente fazer uma distinção para proteger publicações jornalísticas, científicas, culturais e acadêmicas, na prática nem sempre esse tipo de classificação funciona” (USO..., 2020USO das redes sociais por facções criminosas exige resposta rápida. O Globo, 2020. Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/uso-das-redes-sociais-por-faccoes-criminosas-exige-resposta-agil-24811754 . Acesso em: 5 fev. 2021.
https://oglobo.globo.com/opiniao/uso-das...
, on-line), sendo duvidoso também acreditar que uma atividade exercida ilegalmente sucumbirá a uma lei.

Como se faz notar, as mídias sociais, além de não oferecerem um retrato fiel da população (CURIEL et al., 2020CURIEL, R. P.; CRESCI, S.; MUNTEAN, C. I.; BISHOP, S. R. Crime and its fear in social media. Palgrave Communications, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41599-020-0430-7.pdf . Acesso em: 27 jul. 2021.
https://www.nature.com/articles/s41599-0...
), interferem e alteram substancialmente os modos de ser e agir das pessoas, especialmente da população infanto-juvenil (CLARO et al., 2020CLARO, M.; ALFARO, A.; PALMA A.; OCHOA, J. M. A participação de crianças e adolescentes no mundo digital. In: TRUCCO, D.; PALMA, A. (Eds.). Infância e adolescência na era digital: um relatório comparativo dos estudos Kids Online Brasil, Chile, Costa Rica e Uruguai (pp. 77-91). Documentos de Projetos (LC/TS.2020/18/ Rev.1). Santiago: Cepal , 2020.). Nesse sentido, em sendo o Brasil o segundo país no mundo que mais utiliza rede social (BRASIL..., 2019BRASIL é o 2º em ranking de países que passam mais tempo em redes sociais. Época Negócios. 2019. Disponível em: Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2019/09/brasil-e-2-em-ranking-de-paises-que-passam-mais-tempo-em-redes-sociais.html . Acesso em: 1 jun. 2021.
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), torna-se cada vez mais urgente que sejam realizados estudos científicos, debates, pesquisas acadêmicas e investigações sobre quais os aspectos da vida dos jovens têm sido mais influenciados pelo uso das TDIC e como tem se dado tal influência, inclusive no tocante à relação disto com o cotidiano das famílias, vida escolar e vivências subjetivas entre os grupos de adolescentes3 3 No Brasil, a pesquisa TIC Kids Online, realizada desde 2012, tem como objetivo gerar evidências sobre o uso da Internet por crianças e adolescentes e produz indicadores sobre oportunidades e riscos relacionados à participação on-line da população de 9 a 17 anos no país. A pesquisa adota o quadro conceitual e metodológico desenvolvido pelas redes EU Kids Online e Global Kids Online. Disponível em: https://cetic.br/pt/pesquisa/kids-online/. .

Evidencia-se, portanto, um apontamento para que se avance na empreitada de tentar perceber os traços e retratos que os mídia on-line fazem sobre os homicídios de jovens por crime organizado e quais as dimensões do uso das TDIC apresentado no cometimento desses atos.

METODOLOGIA

Integrando um projeto mais alargado de pós-doutoramento em Ciências Sociais em curso na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade NOVA de Lisboa, em Portugal, o objetivo deste artigo é discutir o uso, pelo crime organizado, das TDIC para cometimento de homicídio envolvendo adolescentes e jovens no estado de Roraima, Brasil, a partir de uma análise exploratória sobre os traços e retratos apresentados em reportagens da imprensa on-line. Entendendo que este é um tema ainda pouco abordado no âmbito acadêmico e que se pretende aprofundar a compreensão do recente fenômeno do uso das TDIC como possíveis ferramentas-chave no contexto da criminalidade juvenil, optou-se por realizar um estudo com enfoque qualitativo, uma vez que a preocupação não se situa na representatividade numérica e sim em desvelar esta nova realidade, específica, de agregação de tecnologias para a prática de atos violentos (SAMPIERI; COLLADO; LUCIO, 2013SAMPIERI, R. H.; COLLADO, C. F.; LUCIO, M. P. B. Metodologia de pesquisa. 5. ed. Porto Alegre: Penso, 2013.).

A constituição do corpus de análise

A constituição do corpus de análise é sempre um momento chave pois da orientação tomada nesta fase dependem, aos mais diversos níveis e dimensões, o tipo e natureza dos resultados (GHIGLIONE, MATALON, 1997GHIGLIONE, R, MATALON, B. O Inquérito. Teoria e Prática. Oeiras, Celta Editora, 1997.). Enquanto atividade de interesse público, os mídias on-line, ao definirem o que é objeto de notícia, moldam a imagem da realidade social validando uns acontecimentos em detrimento de outros na composição dos seus blocos noticiosos. Ao disponibilizarem interpretações próprias sobre os fatos sociais, neste caso, os homicídios de jovens, delimitam, simultaneamente o seu significado. São processos complexos de transformação de ocorrências criminais violentas em narrativas ordenadoras da realidade social. Assim, resulta a produção de uma notícia envolvendo diferentes intervenientes, nomeadamente as fontes de informação. Como a literatura evidencia, a informação e comunicação não são neutras e podem condicionar comportamentos e ações. Neste campo, tanto o receptor (o leitor) como o emissor (os mídia) dão um sentido próprio a uma mensagem, (re)construindo o real sob diferentes configurações (CARVALHO, 2001CARVALHO, M. J. L. Imagens da delinquência juvenil na imprensa. Infância e Juventude, n.º 3, 65-130, 2001.).

Para os fins desta pesquisa, o interesse no levantamento da informação disponibilizada em notícias on-line se deu por dois motivos: o primeiro, porque seria possível ter um maior número de matérias jornalísticas disponíveis para grandes audiências, a partir do estabelecimento de categorias de análise previamente definidas; segundo, porque a pesquisa foi realizada durante o período de pandemia da Covid-19, o que dificultaria o acesso diário a jornais impressos, além de evitar riscos de contaminação por contato.

Segundo pesquisa realizada pelo CNJ (2021CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Mídia, sistema de justiça criminal e encarceramento: narrativas compartilhadas e influências recíprocas. Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap); Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/05/Relatorio_Midia-Sistema-de-Justica-Criminal-e-Encarceramento-1.pdf . Acesso em: 10 set. 2021.
https://www.cnj.jus.br/wp-content/upload...
, p. 57), com base no Altas da Notícia, apenas 7% da imprensa brasileira está situada na região Norte do Brasil, sendo esta, proporcionalmente, a de menor cobertura midiática por número de habitantes, o que aponta “para um problema de distribuição/circulação da informação no Norte do país, colocando os municípios da região nos chamados “desertos de notícias””; os estados de Roraima e Amazonas aparecem na pesquisa com índice de 4 a 8 veículos para cada 100 mil habitantes.

Para a constituição da amostra, concretizada on-line através da delimitação de perguntas chave, construiu-se um guião a que corresponde um conjunto de identificadores:

Figura 1
Quadro de definição de amostra

Foram escolhidas, para um processo interpretativo de análise, 13 reportagens jornalísticas, sendo 12 delas publicadas em 2 jornais on-line com abrangência geográfica estadual em Roraima e uma pela Polícia Civil de Roraima.

Procedimentos de análise

Definida a amostra, passou-se à organização de dados, considerando critérios de rigor, validade e confiabilidade, indicados por Sampieri, Collado e Lucio (2013SAMPIERI, R. H.; COLLADO, C. F.; LUCIO, M. P. B. Metodologia de pesquisa. 5. ed. Porto Alegre: Penso, 2013., 415), quais sejam: “dependência, credibilidade, transferência e confirmação”. Isto porque, a partir daí, foi possível a identificação de conceitos passíveis de interpretação, desenvolvimento de padrões e geração de hipóteses, explicações ou teorias. Procedeu-se ao levantamento da frequência de repetição dos termos em que foram definidas as 3 categorias de análise, a saber:

  1. Facção criminosa, identificada por termos como: membros, integrantes, grupos, rivais, organização, tribunal do crime;

  2. Homicídio, a partir de termos como: assassinato, morte, execução, executado, emboscada, esfaqueado, vítima agressor/homicida;

  3. TDIC, apontada nos seguintes termos: redes sociais, telefone, informação, ligação, videochamada, videoconferência.

A análise textual discursiva, que transita entre a análise de conteúdo e a análise de discurso, assenta num processo em que o pesquisador se assume “intérprete e autor”, numa intensa e rigorosa análise, interpretação e reconstrução dos textos (MORAES; GALIAZZI, 2007MORAES, R.; GALIAZZI, M.C. Análise Textual Discursiva. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007., p. 10). Tratando-se de um estudo exploratório, a intenção posta “não pretende testar hipóteses para comprová-las ou refutá-las ao final da pesquisa; a intenção é a compreensão, reconstruir conhecimentos existentes sobre os temas investigados” (MORAES; GALIAZZI, 2007MORAES, R.; GALIAZZI, M.C. Análise Textual Discursiva. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007., p. 11).

Segundo Moraes e Galiazzi (2007MORAES, R.; GALIAZZI, M.C. Análise Textual Discursiva. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007.), o ciclo da análise textual é composto por três momentos: o primeiro, de desmontagem dos textos; o segundo pelo estabelecimento de relações; e o terceiro da captação do novo emergente. Nesse sentido, a organização e análise dos resultados seguiu um padrão previamente estabelecido: primeiro, realizou-se a desmontagem dos textos das reportagens, envolvendo leitura e interpretação; posteriormente, as ideias foram categorizadas e separadas, numa tentativa de desconstrução; por fim, classificadas e fragmentadas de forma que a singularidade de cada mensagem pudesse ser codificada e reescrita considerando que outros significados foram agregados ao material examinado.

Figura 2
Metodologia da pesquisa: Quadro síntese

RESULTADOS

Das 13 matérias jornalísticas encontradas com a tipologia predefinida nos procedimentos de análise para compor a presente pesquisa, 10 foram publicadas pela Folha Web, no sítio do jornal Folha de Boa Vista, mais antigo e de maior circulação (em formato físico e digital) no estado de Roraima, 2 foram publicadas na página do jornal G1 Roraima (disponível somente no formato digital) e 1 no sítio institucional da Polícia Civil do estado de Roraima.

No processo de desmontagem dos textos das reportagens para posterior categorização, foram elencadas 12 questões centrais que deveriam ser, prioritariamente, observadas em cada uma das matérias jornalísticas. A partir destas, outras foram surgindo, como será possível observar na análise dos resultados da pesquisa.

Figura 3
Desmontagem dos textos: questões centrais

Das 13 reportagens selecionadas, apenas 2 continham identificação de autoria, restando 11 sem assinaturas dos responsáveis pela elaboração das matérias. Uma das implicações trazidas pela ausência de identificação do responsável pela matéria, dado que afeta a qualidade do que está sendo noticiado, diz respeito aos processos de construção da notícia. Esta primeira constatação vai ao encontro da ideia de que “em geral, notícias com apuração dedicada e maior número de fontes são assinadas, enquanto notícias reproduzidas de outros veículos ou diretamente de órgãos públicos e privados não possuem vínculo de autoria” (CNJ, 2021CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Mídia, sistema de justiça criminal e encarceramento: narrativas compartilhadas e influências recíprocas. Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap); Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/05/Relatorio_Midia-Sistema-de-Justica-Criminal-e-Encarceramento-1.pdf . Acesso em: 10 set. 2021.
https://www.cnj.jus.br/wp-content/upload...
, p. 107).

Ainda sobre o perfil da notícia, depreende-se, em conformidade ao apontado pelo CNJ (2021CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Mídia, sistema de justiça criminal e encarceramento: narrativas compartilhadas e influências recíprocas. Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap); Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/05/Relatorio_Midia-Sistema-de-Justica-Criminal-e-Encarceramento-1.pdf . Acesso em: 10 set. 2021.
https://www.cnj.jus.br/wp-content/upload...
, p. 61), que além de não serem assinadas, embora elaboradas em contexto local, as notícias nos jornais da região Norte apresentam, basicamente, natureza factual ou contextual; isto é, “se restringem à descrição de um fato ou assunto objetivo e recente (...) ou explicam um fato ou assunto e as razões que levaram à sua ocorrência, porém, valendo-se de poucas fontes e sem problematização do assunto”. No caso das 13 reportagens pesquisadas, as únicas fontes de informações citadas eram relacionadas à polícia.

Relativo à dimensão das notícias, verificou-se que são compostas, em média, por 8 parágrafos: a menor foi escrita com 3 parágrafos e a maior com 16 parágrafos, além de títulos e subtítulos.

Uma das hipóteses para se tentar compreender esta opção por notícias curtas, vem da 5ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que aponta para a redução da leitura no país, em todas as classes sociais. Quatro principais fatores pesam para esta condição: o primeiro diz respeito ao advento das redes sociais, que tem contribuído para alterar a preferência dos leitores, que tem buscado textos curtos e conteúdos visuais; o segundo fator se refere ao pouco hábito de ler; o terceiro encontra nas dificuldades de leitura um grande entrave; e, finalmente, o quarto aspecto diz respeito ao preço dos livros, que inviabiliza o acesso da maioria da população, a qual já não possui aproximação com as relativamente poucas bibliotecas públicas espalhadas pelo país (TOKARNIA, 2020TOKARNIA, M. Brasil perde 4,6 milhões de leitores em quatro anos. Agência Brasil, 2020. Disponível em: Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-09/brasil-perde-46-milhoes-de-leitores-em-quatro-anos . Acesso em: 13 jun. 2021.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/educaca...
). Outros estudos sobre análise de imprensa sugerem que notícias de crime com jovens tendem a ser essencialmente notícias curtas, tendencialmente narrativas (CARVALHO, 2001CARVALHO, M. J. L. Imagens da delinquência juvenil na imprensa. Infância e Juventude, n.º 3, 65-130, 2001.; CARVALHO, FERREIRA, SERRÃO, 2009CARVALHO, M. J. L., FERREIRA, L., SERRÃO, J. Delinquência(s) e Justiça. In: PONTE, C. (Ed.), Crianças e Jovens em Notícia, Lisboa, Livros Horizonte, 2009.).

Com relação aos títulos das reportagens jornalísticas, pode-se afirmar que 6 foram elaborados de forma a explicitar ou sugerir a participação de adolescentes e o envolvimento de facções criminosas nos crimes e seu modus-operandi (como a realização de tribunais do crime e emboscadas); além disso, uma das reportagens cita, já no título, o papel das TDIC na ação violenta.

Sobre os títulos das matérias jornalísticas, destacam-se:

  1. Adolescente é assassinada por membros de facção criminosa;

  2. Adolescente é morto na frente da irmã após ser atraído para emboscada;

  3. Adolescente que tentou matar namorada em tribunal do crime é apreendido;

  4. Trio é detido por matar adolescente em tribunal do crime, em Boa Vista;

  5. Menor confessa participação em morte de adolescente;

  6. Mulheres integrantes de facção filmam execução de jovem em Boa Vista.

Com relação ao homicídio (crime contra a vida), em algumas das matérias selecionadas, as informações coletadas indicaram para outros crimes cometidos na mesma ação violenta, cujos termos encontrados foram os seguintes: homicídio qualificado por motivo fútil e emboscada; tráfico de drogas e homicídio; homicídio qualificado por motivo fútil, traição ou emboscada, mediante recurso que dificultou a defesa da vítima, por organização criminosa ou tráfico de drogas; sequestro, tortura, estupro, homicídio; tentativa de homicídio e homicídio (no caso de mais de uma vítima na ação criminosa). Embora as reportagens citassem, no corpo do texto, os termos “facção criminosa” ou “grupos rivais”, em nenhuma delas foi encontrada sigla ou nomenclatura que identificasse a qual facção (ou quais) criminosa os textos se referiam. É importante destacar que este fato não significa que haja uma regra sobre tal situação, já que em outras reportagens foi identificada a presença destas informações. Sabe-se tão somente que, no Brasil, a rede de comunicação O Globo possui uma norma que “proíbe a divulgação de nomes de facções” (RAMOS; PAIVA, 2005RAMOS, S.; PAIVA, A. (Coord.) Mídia e violência: como os jornais retratam a violência e a segurança pública no Brasil. CESEC, 2005. Disponível em: Disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/uploads/2011/06/Relat%C3%B3rio-M%C3%ADdia-e-Viol%C3%AAncia2.pdf . Acesso em: 12 jul. 2021.
https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/...
, p. 36), o que pode ser replicado por outras mídias.

Sobre as vítimas citadas nas reportagens, pouco mais de metade (7) são do sexo feminino e as restantes (6) são do sexo masculino, todos na faixa etária de 15 a 19 anos de idade. Destas, é relevante assinalar que cerca de dois terços se situam nos escalões etários dos mais novos, 4 com 15 anos e 5 com 16 anos. Entre os restantes, 2 têm 17 anos, 2 têm 18 e 1 tem 19 anos.

Em 4 notícias não houve identificação dos nomes das vítimas, mas na maioria (9 notícias) as vítimas foram identificadas. Entre as que foram identificadas, 6 vítimas tiveram publicados seus nomes completos e 3 apenas as iniciais de nome e sobrenome.

Em 4 notícias, os adolescentes (vítima e/ou autor) foram identificados pelo termo “menor”. No Brasil, desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 27 set. 1990. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm . Acesso em: 10 mar. 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
), o termo menor foi substituído por adolescente. Isto porque defende-se que este termo tenha sentido vago, pejorativo, estigmatizante e discriminatório e fora, por muitos anos, utilizado como sinônimo de delinquente ao se referir a crianças e adolescentes até 18 anos de idade. Além disso, o termo remete ao longo período dos Códigos de Menores, anteriores ao ECA, de não reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos.

Apesar de já terem se passados mais de 30 anos desde a promulgação do ECA, como se percebe, ainda é possível identificar quem utilize o termo menor como forma de identificar um adolescente em conflito com a lei. Em um dos casos, o fato fica claro logo no título da reportagem: “Menor confessa participação em morte de adolescente”. Percebe-se que, para aquele adolescente autor do crime, é utilizado o termo “menor” e, para a vítima, é usado o termo “adolescente”, ainda que ambos estejam na mesma faixa etária.

Com relação aos autores dos crimes, é possível afirmar que, em todos os casos, houve o envolvimento de jovens e adultos, contudo, não há como descrever para todos as suas idades e sexo, uma vez que nem todas as investigações encontraram desfecho que tenha sido publicado e, em algumas matérias, são informados mais de um agressor e a possibilidade de ainda haver outros participantes, além daquelas pessoas que atuam através das TDIC. Grande parte das reportagens não identifica nomes de agressores, sendo que em uma delas há a identificação de apelido (vulgo) da infratora, adolescente - conhecida como ‘psicopata’.

Nas reportagens em que foram citados locais dos crimes, por exemplo onde as vítimas permaneceram sob tortura ou em cativeiro, ou foram levadas para julgamento dos “tribunais do crime” ou mesmo onde seus corpos foram abandonados há um elemento comum: as localidades (bairros) citadas são todas pertencentes à área urbana, situadas na zona Oeste da capital Boa Vista. Num estudo envolvendo violência urbana e vulnerabilidade social de adolescentes em Boa Vista - Roraima, Oliveira e Costa (2018OLIVEIRA, J. V.; COSTA, M. C. L. Vulnerabilidade social dos adolescentes em conflito com a lei em Boa Vista - Roraima. Revista de Direito da Cidade, v. 10, n. 1, p. 33-77, jan. 2018. ISSN 2317-7721. Disponível em: Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/29587/23335 . Acesso em: 02 nov. 2021. doi: https://doi.org/10.12957/rdc.2018.29587.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
, p. 66) concluíram que 87,8% dos adolescentes em conflito com a lei residiam na zona Oeste da capital. A partir de informações do Censo Demográfico, demonstraram que nesta região é onde se concentra “maior densidade demográfica, a menores taxas de alfabetização, menor rendimento nominal e maior número de domicílios”, o que fortalece o entendimento da intrínseca relação entre a vulnerabilidade social e a violência urbana.

Outro elemento que compõe as matérias jornalísticas são as imagens. No caso das reportagens utilizadas na pesquisa, 10 continham imagens (uma ou mais), restando 3 elaboradas somente com texto. Sampieri, Collado e Lucio (2013SAMPIERI, R. H.; COLLADO, C. F.; LUCIO, M. P. B. Metodologia de pesquisa. 5. ed. Porto Alegre: Penso, 2013., p. 443), ao trabalharem com dados coletados em documentos, registros, materiais e artefatos, defendem algo que pode ser utilizado no tratamento de imagens. Segundo os autores, nestes casos, “existem questões inevitáveis”, quais sejam: Quem foi o autor? Como, quando e onde foi produzido? Qual o seu significado no contexto da matéria? Que interesses e tendências ele tem? Quão direta é a relação com os fatos? Partindo destes questionamentos, destaca-se o conteúdo de 9 imagens contidas nas reportagens jornalísticas:

  1. aglomeração de populares e policiais (carro) onde estava sendo retirado o corpo da vítima;

  2. dois adolescentes, fotografados de costas, algemados, numa delegacia de polícia;

  3. duas vítimas com roupas sujas de terra, sentadas no chão, em uma área de mata, sendo que uma delas possui manchas na cabeça que parecem ser de sangue;

  4. fachada da unidade socioeducativa - Centro Socioeducativo “Homero de Souza Cruz Filho”;

  5. fotografias de vítimas do sexo feminino;

  6. grande quantidade de entorpecentes em pequenos papelotes enrolados em saco plástico e amarrados com uma linha - característica de tráfico;

  7. mulheres que cometeram o crime posando para fotos usando luvas, com cabelos e rostos tampados por tecidos (apenas olhos aparentes), segurando aparelho celular e portando faca e facão;

  8. policiais fortemente armados;

  9. veículo do Instituto Médico Legal - IML, da Polícia Civil de Roraima.

Apenas duas imagens foram assinadas por repórteres fotográficos; as demais trazem como fonte a assessoria de comunicação da Polícia Civil, divulgação da Delegacia Geral de Homicídios - DGH, divulgação do Grupo Tático Municipal - GTAM e, em todas as outras, as informações de foto ilustrativa, divulgação e arquivo, o que não esclarece como, quando e onde foram produzidas e nem se têm relação direta com aquele fato que está sendo noticiado e seu significado naquele contexto. Ao refletir sobre os interesses e tendências da publicação daquelas imagens nas reportagens, todos os cenários parecem emitir uma única mensagem, para reforçar um conteúdo bastante usual nas falas da população brasileira: “os únicos caminhos para a criminalidade são a cadeia ou o caixão”. Isto porque, ao analisar seu conteúdo, tem-se a exposição de corpo de vítima de homicídio, policiais fortemente armados, veículo de transporte de cadáveres, fachada da unidade socioeducativa (local de apreensão de adolescentes e jovens em conflito com a lei) e fotografia de vítima (rosto e corpo).

Destaca-se que, em todas as reportagens, há a presença de texto que trata da atuação policial. Para a população, ler ou visualizar fotografias de policiais armados e adolescentes e jovens algemados em delegacias pode transmitir a ideia de que está sendo feito justiça, aliada a uma sensação de segurança, confiança e crédito no trabalho da polícia.

Ao destacarem os reconhecidos avanços no tratamento da mídia nas coberturas de polícia e segurança pública, como a redução, por jornais e emissoras de TV, de recursos sensacionalistas e apelativos, como fotos explícitas, Ramos e Paiva (2007RAMOS, S.; PAIVA, A. Mídia e violência: novas tendências na cobertura de criminalidade e segurança no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007. Disponível em: Disponível em: http://dhnet.org.br/dados/livros/dh/livro_midia_violencia.pdf . Acesso em: 12 ago. 2021.
http://dhnet.org.br/dados/livros/dh/livr...
, p. 15) citam que “historicamente, a reportagem policial tem sido um dos setores menos valorizados nos jornais, e costumava ser delegada a profissionais menos experientes ou menos preparados do que os de setores considerados ‘sérios’, como o da cobertura política”.

Em Roraima, percebe-se que estes avanços citados pelas autoras chegam a passos lentos, já que o que se percebe é a utilização de estratégias sensacionalistas (utilizando-se, para tanto, títulos e imagens, inclusive estampando a primeira página das publicações) para chamar a atenção do público para as notícias, um dos artifícios para o consumo da mercadoria, neste caso, a notícia. Isto porque, como mercadoria, a notícia precisa ser vendida para que se sustente o modelo de negócio, seja ele relativo às mídias tradicionais ou às mídias digitais que, por sua vez, servem-se da ideia do oferecimento do conteúdo sem custo para alavancar suas visualizações, quando é sabido que os custos estão embutidos, entre outras coisas, na comercialização de espaço de propaganda e coleta e distribuição (venda) de dados dos usuários.

Pode-se dizer que há consenso sobre a relevância da comunicação de massa para a sociedade contemporânea. Várias pesquisas apontam o papel ativo da mídia na disseminação e perpetuação de violação de direitos, em razão da forma como são construídos reportagens e programas no tema da violência. A mídia tem sido apontada como responsável direta por exposição indevida de pessoas, desrespeito à presunção de inocência, violação do direito ao silêncio, exposição indevida de famílias, incitação à desobediência às leis ou às decisões judiciárias, ao crime e à violência, identificação de adolescentes em conflito com a lei, discurso de ódio ou preconceito e até tortura psicológica ou tratamento desumano ou degradante e, por conta de seu alcance, pode ter forte impacto na percepção social da violência, além de pressão sobre os atores do sistema de justiça (CNJ, 2021CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Mídia, sistema de justiça criminal e encarceramento: narrativas compartilhadas e influências recíprocas. Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap); Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/05/Relatorio_Midia-Sistema-de-Justica-Criminal-e-Encarceramento-1.pdf . Acesso em: 10 set. 2021.
https://www.cnj.jus.br/wp-content/upload...
, p. 18).

Outro dado importante para análise diz respeito ao uso de armas no cometimento dos crimes estudados. Auferiu-se que as armas brancas estão presentes em 90% dos casos, tendo as vítimas sido atacadas e mortas por golpes de facas, facões, pedradas na cabeça, golpes de perna manca. Os outros 10% dizem respeito à utilização de arma de fogo.

Em todos os casos estudados, foi citada mais de uma arma sendo utilizada pelos criminosos. Em alguns, as vítimas foram mortas com golpes de faca e pedrada na cabeça, em outro, golpes de perna manca e faca.

Dados do Sistema de Mortalidade - SIM, da Coordenação Geral de Vigilância em Saúde - CGVS, da Secretaria de Estado da Saúde de Roraima - SESAU mostram que, dos 196 óbitos de adolescentes entre 15 e 19 anos, por homicídio, ocorridos entre 2017 e 2021, 91 (46%) foram cometidos por disparo de arma de fogo ou outro disparo não especificado, 70 (36%) foram agressões por objeto cortante ou penetrante (como facas e facões), 20 (10%) foram por agressões por objeto contundente (como pedras e paus), 6 (3%) homicídios foram cometidos por enforcamento, estrangulamento ou sufocação, 5 (2,5%) casos foram cometidos por disparo de arma de fogo de mão, 3 (2%) foram por agressões não especificadas e 1 (0,5%) agressão por outro meio não especificado.

Combinado a isso, destaca-se a crueldade na atuação das facções criminosas. Em uma das reportagens, onde o crime foi gravado e as imagens distribuídas em rede social com o objetivo de espalhar medo e “impor respeito”, criminosas colocam panos na boca da vítima, a derrubam no chão, esfaqueiam dezenas de vezes nas costas e, após, cortam o pescoço. Em outro caso, perfuram cabeça e pescoço e, em outro, amarram os braços, perfuram a cabeça da vítima e desfiguram seu rosto.

Figura 4
Óbitos por homicídios na faixa etária de 15 a 19 anos - Roraima (2017 - 2021)

O USO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO REPORTADO NA IMPRENSA ON-LINE

Sobre o papel das TDIC nos crimes de homicídio identificados, na análise das notícias extraiu-se que, a partir do uso de aplicativos com criptografia (especialmente WhatsApp) instalados em aparelhos celulares, integrantes de facções criminosas:

  1. aliciaram adolescentes ao cometimento de crimes;

  2. contrataram transporte por aplicativo para levar as vítimas para os locais do crime;

  3. definiram locais de cativeiros;

  4. distribuíram imagens e vídeos em redes sociais

  5. filmaram e fotografaram crimes;

  6. marcaram encontros e reuniões;

  7. monitoraram membros da própria facção e de facções rivais;

  8. ordenaram crimes como sequestros, torturas e execuções dentro e fora do estado de Roraima;

  9. organizam e realizaram “tribunais do crime”, por aplicativo de videoconferência ou por chamadas telefônicas de vídeo;

  10. organizaram a rede de distribuição de drogas (pontos de venda ou “bocas de fumo”, como são chamadas);

  11. organizaram emboscadas;

  12. utilizaram redes sociais para vigiar e atrair as vítimas.

A partir destas informações e, utilizando-se da análise textual discursiva, as autoras destacaram 3 casos, por considerá-los emblemáticos, que foram classificados, fragmentados e reescritos, para melhor compreensão do significado e diferentes dimensões associadas ao uso das TDICs como ferramentas de apoio ao planejamento e execução de crimes.

O primeiro fato envolve, como vítima, um adolescente de 15 anos, encontrado morto no dia 16 de novembro de 2020, com mãos e pés amarrados, “com corte profundo no pescoço e nos braços” (ADOLESCENTE..., 2020), em um terreno baldio localizado no bairro Santa Tereza, zona Oeste de Boa Vista. Segundo a polícia, a vítima foi morta com golpes de perna-manca e faca (POLÍCIA..., 2020POLÍCIA Civil esclarece assassinato de adolescente e prende envolvidos. Polícia Civil. 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.pc.rr.gov.br/noticias/item/718-policia-civil-esclarece-assassinato-de-adolescente-e-prende-envolvidos . Acesso em: 20 fev. 2021.
http://www.pc.rr.gov.br/noticias/item/71...
). Para esclarecer o assassinato, a Delegacia Geral de Homicídios - DGH prendeu 3 jovens (21, 18 e 17 anos), mas estima-se que 7 pessoas tenham participado do crime, sendo 2 mulheres e 5 homens (TRIO..., 2020TRIO é detido por matar adolescente em tribunal do crime, em Boa Vista. G1 Roraima. 2020. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2020/11/19/trio-e-detido-por-matar-adolescente-em-tribunal-do-crime-em-boa-vista.ghtml . 18 fev. 2021.
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/...
). Foram apreendidos na operação policial aparelhos celulares e papelotes de drogas, sendo que um dos presos assumiu ser traficante.

Os presos foram “autuados em flagrante por homicídio qualificado por motivo fútil, traição ou emboscada, mediante recurso que dificultou a defesa da vítima, por organização criminosa e tráfico de drogas” (POLÍCIA..., 2020POLÍCIA Civil esclarece assassinato de adolescente e prende envolvidos. Polícia Civil. 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.pc.rr.gov.br/noticias/item/718-policia-civil-esclarece-assassinato-de-adolescente-e-prende-envolvidos . Acesso em: 20 fev. 2021.
http://www.pc.rr.gov.br/noticias/item/71...
). Os adultos foram encaminhados para a Audiência de Custódia e tiveram suas prisões em flagrante convertidas em prisão preventiva pela Justiça Estadual. O adolescente apreendido foi encaminhado para internação provisória no Centro Socioeducativo “Homero de Souza Cruz Filho”, única unidade socioeducativa de privação de liberdade no estado de Roraima.

Segundo a reportagem, chamou a atenção da polícia a frieza com que os criminosos detalharam o crime, num claro sentimento de banalização da vida (POLÍCIA..., 2020POLÍCIA Civil esclarece assassinato de adolescente e prende envolvidos. Polícia Civil. 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.pc.rr.gov.br/noticias/item/718-policia-civil-esclarece-assassinato-de-adolescente-e-prende-envolvidos . Acesso em: 20 fev. 2021.
http://www.pc.rr.gov.br/noticias/item/71...
).

Este caso se destaca por uma combinação de situações que explicitam a ação do crime organizado a partir do uso das TDIC, como pode-se perceber nas linhas que se seguem, extraídas de uma das notícias que fazem referência ao caso. Diz a reportagem que “a vítima foi submetida a um tribunal do crime por integrantes de uma facção e a ordem de execução partiu de um criminoso que vive em outro Estado” (POLÍCIA..., 2020POLÍCIA Civil esclarece assassinato de adolescente e prende envolvidos. Polícia Civil. 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.pc.rr.gov.br/noticias/item/718-policia-civil-esclarece-assassinato-de-adolescente-e-prende-envolvidos . Acesso em: 20 fev. 2021.
http://www.pc.rr.gov.br/noticias/item/71...
, on-line, grifos nossos).

Ao se analisar este primeiro trecho da informação, fica perceptível que o planejamento da ação criminosa envolve pessoas distantes geograficamente, mas que, em virtude do uso de telefone celular conseguem estabelecer a comunicação, a manutenção da hierarquia do comando e, a partir disso, praticar o crime obedecendo ao modus operandi da facção criminosa, o que não deixa de ser uma forma de tentar afirmar alguma noção identitária aos seus integrantes e à sociedade de modo geral, uma vez que, a partir de atos violentos onde, na prática, se repetem as fórmulas, cria-se uma sensação, para os faccionados, de pertencimento àquele modo de resolução de problemas e, ao mesmo tempo, gera na comunidade uma sensação de medo daquele grupo, que tende a exigir respeito por ser e agir como tal, em troca de uma pseudo proteção dos indivíduos.

A matéria retrata ainda que “por meio de uma mensagem encaminhada para o telefone celular de um familiar pela própria vítima, os policiais identificaram que ele marcou um encontro com uma mulher, ainda não identificada” (POLÍCIA..., 2020POLÍCIA Civil esclarece assassinato de adolescente e prende envolvidos. Polícia Civil. 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.pc.rr.gov.br/noticias/item/718-policia-civil-esclarece-assassinato-de-adolescente-e-prende-envolvidos . Acesso em: 20 fev. 2021.
http://www.pc.rr.gov.br/noticias/item/71...
, on-line, grifos nossos).

Interessante destacar que um dos aspectos mais estudados pelos pesquisadores do tema juventude e tecnologias digitais diz respeito à acessibilidade aos recursos tecnológicos e redes sociais. Em sua pesquisa, Pessoa e Branquinho (2017PESSOA, A. S. G.; BRANQUINHO, V. W. C. A quebrada está online: análise do uso das redes sociais por adolescentes com histórico de envolvimento em atos infracionais. Polêm!ca, v. 17, n.3, p. 1-19, jul./set. 2017. Disponível em: DOI: 10.12957/Polêmica 2017.31039. Acesso em: 20 fev. 2021.
https://doi.org/10.12957/Polêmica 2017.3...
, p. 8) avaliaram se os adolescentes dispunham desses recursos e os resultados apontaram que 100% deles faziam uso de redes sociais, majoritariamente em “equipamentos particulares, como computadores instalados nas próprias residências, celulares próprios ou de pessoas próximas aos adolescentes, especialmente das mães”, dado que se aproxima do caso do adolescente brutalmente assassinado.

Os referidos pesquisadores auferiram ainda que os adolescentes pesquisados utilizavam diariamente dispositivos eletrônicos, variando somente a frequência do acesso a redes sociais, devido à disponibilidade de conexão com a internet. Em alguns casos, os familiares controlavam o uso, intercalando com outras atividades socioculturais, mas, na maioria deles, a questão central não é o controle familiar e sim situações como pacotes de dados móveis disponibilizados pelas operadoras ou o deslocamento aos locais de acesso gratuito à internet - como casas de amigos ou familiares, praças e outros locais com rede sem fio wifi disponibilizada pelo poder público. Quando há essa disponibilidade, a utilização desses dispositivos toma, segundo os adolescentes, grande parte da rotina (PESSOA; BRANQUINHO, 2017PESSOA, A. S. G.; BRANQUINHO, V. W. C. A quebrada está online: análise do uso das redes sociais por adolescentes com histórico de envolvimento em atos infracionais. Polêm!ca, v. 17, n.3, p. 1-19, jul./set. 2017. Disponível em: DOI: 10.12957/Polêmica 2017.31039. Acesso em: 20 fev. 2021.
https://doi.org/10.12957/Polêmica 2017.3...
).

Retomando à análise do primeiro fato, um outro ponto que chama a atenção é justamente a forma com que o ato violento se desencadeou. Toda a ação foi orquestrada via telefone, seguindo uma lógica de tribunal do crime, como são chamados os julgamentos das facções, podendo ser destacados dois momentos em que isso fica perceptível:

As investigações da Polícia Civil apontam que a vítima caiu em uma emboscada. A mulher com quem ele marcou um encontro o atraiu até o local do crime, uma residência próxima ao terreno baldio em que seu corpo foi encontrado, onde foi “julgado” e “sentenciado” à morte.

[...] Os acusados fizeram uma espécie de “conferência” com um integrante da facção de outro Estado, que deu a ordem para a execução da vítima, que foi morta a golpes de faca e pauladas com uma perna-manca. Depois, o corpo foi arrastado e jogado no terreno baldio. (POLÍCIA..., 2020POLÍCIA Civil esclarece assassinato de adolescente e prende envolvidos. Polícia Civil. 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.pc.rr.gov.br/noticias/item/718-policia-civil-esclarece-assassinato-de-adolescente-e-prende-envolvidos . Acesso em: 20 fev. 2021.
http://www.pc.rr.gov.br/noticias/item/71...
, on-line, grifos nossos).

Um primeiro retrato mediático que dá visibilidade a diferentes dimensões de usos das TDIC no crime organizado.

O segundo fato tem como vítima um adolescente de 17 anos, cujo corpo foi encontrado pela polícia numa área de lavrado, próximo a uma lagoa, no bairro Airton Rocha, zona Oeste de Boa Vista, com ajuda de familiares da vítima. Conforme relatos da família do adolescente, ele foi atraído por um amigo, que inclusive já havia morado em sua residência, para uma "casinha" (emboscada) para morrer. Foi achada no local uma faca grande de açougueiro com a lâmina quebrada, que teria sido usada para matar o adolescente, e um par de sandálias da vítima. Segundo a polícia, 6 pessoas são suspeitas de envolvimento no crime, sendo 2 adolescentes de 15 e 17 anos, e 3 jovens, um de 21 anos e 2 de 18 anos. Durante a ação, o proprietário de uma picape de luxo também foi apreendido. O dono do carro possuía antecedente na justiça com mandado de prisão em aberto e teria utilizado seu carro para carregar a vítima até o local onde foi jogado.

[...] foi levado pelo "amigo" para uma emboscada e foi submetido a um tribunal do crime, feito pelos suspeitos detidos e outros indivíduos que estão sob investigação. A reportagem apurou que todos os suspeitos são da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). [...]

Segundo a mãe do adolescente, ele foi executado por supostamente ser da facção rival Comando Vermelho (CV). A mulher disse à polícia que o filho teria sido apontado como integrante depois que publicou uma foto em rede social fazendo o símbolo da sigla da facção (CV). Por isso, foi condenado a morrer pelos integrantes do PCC. (SUSPEITOS..., 2020SUSPEITOS de matar adolescente que estava desaparecido são detidos e liberados. Roraima em Tempo. 2020. Disponível em: Disponível em: https://roraimaemtempo.com/ultimas-noticias/suspeitos-de-matar-adolescente-que-estava-desaparecido-sao-detidos-e-liberados,361351.jhtml . Acesso em: 15 fev. 2021.
https://roraimaemtempo.com/ultimas-notic...
, on-line, grifos nossos).

Nota-se que tanto este fato como o primeiro anteriormente descrito estabelecem vários pontos em comum: as vítimas são adolescentes do sexo masculino, atraídas para emboscada por membros de facção criminosa e mortos após a realização de tribunais do crime. Além disso, há a marcante presença de outros adolescente como autores do crime, bem como do envolvimento de adultos, provavelmente sendo estes os mandantes, de acordo com a hierarquia das facções e as regras das organizações para entrada e permanência de jovens em suas bases. Outra similaridade diz respeito ao porte e uso de armas brancas para praticar a violência: em ambos os casos, foram utilizadas facas.

Adentrando aos detalhes deste segundo fato, são dois pontos que especialmente chamam a atenção e merecem destaque: o primeiro diz respeito à guerra entre facções criminosas, e a outra situação diz respeito ao uso das TDIC pela vítima e pelos autores. No caso da vítima, foi utilizada uma rede social, onde este postou uma foto, supostamente fazendo as letras ‘C’ com todos os dedos de uma das mãos e ‘V’ com os dedos indicador e médio da outra, que foi interpretado por membros da organização Primeiro Comando da Capital - PCC como sendo um sinal de que o adolescente pertencia à facção rival, o Comando Vermelho - CV. Esta atitude ratifica a premissa de que as facções se utilizam das redes sociais para acompanhamento, rastreamento e fiscalização das ações de seus membros, bem como de seus rivais.

Estes casos, em particular, refutam a ideia da possibilidade do anonimato na internet, já que, para pertencer a um grupo criminoso, deve-se seguir regras rígidas e manter seus contatos expostos. Embora não haja números que detalhem esse tipo de motivação criminosa, empiricamente é possível apontar para um aumento exponencial no número de casos de violência letal envolvendo jovens e facções criminosas, com suas práticas violentas, abusivas e invasivas, em que a motivação para o crime gira em torno de exposição de símbolos, fotos ou imagens em mídias sociais. Destaque-se que são, não raras vezes, as mídias sociais as mais importantes fontes de relacionamento interpessoal construídas pelos jovens.

Em torno dessa ideia, em sua pesquisa, Pessoa e Branquinho (2017PESSOA, A. S. G.; BRANQUINHO, V. W. C. A quebrada está online: análise do uso das redes sociais por adolescentes com histórico de envolvimento em atos infracionais. Polêm!ca, v. 17, n.3, p. 1-19, jul./set. 2017. Disponível em: DOI: 10.12957/Polêmica 2017.31039. Acesso em: 20 fev. 2021.
https://doi.org/10.12957/Polêmica 2017.3...
) relatam que, entre as relações mediadas pelas redes sociais, encontram-se aquelas em que os relacionamentos ocorrem entre os pares por motivos diversos e outras, de cunho afetivo-sexual. Para alguns adolescentes, o que impede a instalação de programas em celulares, bem como dos aplicativos para utilização de redes sociais, é o fato de que alguns dispositivos são incompatíveis por serem equipamentos desatualizados e os programas requererem outros mais modernos.

Não raras vezes essa possibilidade de interação via redes sociais se apresentou, na pesquisa supramencionada, como sendo permeada por relatos de violência (provocações, cyberbullying, conflitos) e utilizada para delineamento e preparação de práticas violentas, inclusive atos infracionais e outros comportamentos ilícitos, como aquisição de drogas, ainda que para consumo próprio (lembre-se ainda do fato de que há, neste caso, a presença de um traficante), implicações que são aprofundadas pela ausência de atividades de cultura e lazer voltadas para os jovens, especialmente aqueles em situação socioeconômica mais vulnerável e a possibilidade da comercialização de substâncias psicoativas por intermédio das redes sociais.

Em torno da construção de imagens em redes sociais, será tratado agora o terceiro fato, envolvendo duas jovens de 19 e 16 anos, mortas com crueldade por integrantes de facção criminosa que, durante a execução de uma delas, fizeram filmagens e enviaram o vídeo, via ferramenta WhatsApp, para diversos faccionados, que puderam acompanhar a vítima sendo morta com dezenas de facadas. A outra vítima foi assassinada com pelo menos oito tiros de arma de fogo. Ambas teriam sido sequestradas no dia anterior, sofrido tortura e foram posteriormente executadas (MULHERES..., 2017MULHERES integrantes de facção filmam execução de jovem em Boa Vista. G1 Roraima. 2017. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/mulheres-integrantes-de-faccao-assassinam-jovem-filmam-execucao-com-requintes-de-crueldade-em-boa-vista.ghtml . Acesso em: 15 fev. 2021.
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/...
, on-line).

Ao analisar os motivos que levam indivíduos a publicarem seus crimes online, Brainard (2018BRAINARD, A. A Content Analysis of Crimes Posted on Social Media Platforms. Elon Journal of Undergraduate Research in Communications, v. 9, n. 1, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.elon.edu/u/academics/communications/journal/wp-content/uploads/sites/153/2018/05/08_Brainard.pdf . Acesso em: 30 jul. 2021.
https://www.elon.edu/u/academics/communi...
, p. 92) elenca a necessidade de obter atenção como um deles. Além disso, “os perpetradores (...) utilizaram meios de comunicação sociais para se comunicar com seus espectadores, promovendo o fato de que se orgulhavam de suas ações e não possuíam culpa ao cometer o crime”. A ausência de receio ao publicar seus crimes também foi fato identificado por Araújo (2019ARAÚJO, I. Facções usam a internet na divulgação de seus crimes. Estado. 2019. Disponível em: Disponível em: https://imirante.com/oestadoma/noticias/2019/07/13/faccoes-usam-a-internet-na-divulgacao-de-seus-crimes/ . Acesso em: 10 set. 2021.
https://imirante.com/oestadoma/noticias/...
).

Entre os responsáveis pela prática, está uma adolescente de 14 anos, supostamente namorada de um jovem de 18 anos, motorista do grupo, e outras 2 jovens. O corpo de uma das vítimas (16 anos) estava desaparecido e, ao serem questionados, os autores da ação “disseram que não lembravam onde tinham enterrado o corpo porque o crime ocorreu de noite e elas teriam ingerido bebida alcoólica” (MULHERES..., 2017MULHERES integrantes de facção filmam execução de jovem em Boa Vista. G1 Roraima. 2017. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/mulheres-integrantes-de-faccao-assassinam-jovem-filmam-execucao-com-requintes-de-crueldade-em-boa-vista.ghtml . Acesso em: 15 fev. 2021.
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/...
, on-line). Dias depois, a polícia descobriu que o corpo havia sido ‘desovado’ numa área de lavrado no Anel Viário, nas proximidades da RR-205, estrada que liga Boa Vista ao município de Alto Alegre (MARQUES; COSTA, 2017MARQUES, M.; COSTA, E. Jovem é achada morta em área de lavrado no Anel Viário, em Boa Vista. G1 Roraima. 2017. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/jovem-e-achada-morta-em-area-de-lavrado-no-anel-viario-em-boa-vista.ghtml . Acesso em: 26 fev. 2021.
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/...
, on-line).

As imagens gravadas pelo grupo mostram as criminosas colocando um pano na boca da vítima, que está de joelho. Em seguida ela é derrubada no chão e duas mulheres começam a esfaqueá-la dezenas de vezes nas costas. Uma das suspeitas corta o pescoço da garota.

Durante toda a ação as criminosas usavam luvas. O vídeo dura menos de um minuto. O crime ocorre de noite em um local de mata.

Em outra imagem divulgada pela Polícia Civil, três suspeitas aparecem de luvas posando para uma foto na parte traseira de um carro com uma faca, um facão e os rostos cobertos por panos.

Em uma terceira imagem, as duas vítimas da facção aparecem sentadas sujas em um chão em região de mata. Uma delas possui manchas na cabeça que parecem ser de sangue. (MULHERES..., 2017MULHERES integrantes de facção filmam execução de jovem em Boa Vista. G1 Roraima. 2017. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/mulheres-integrantes-de-faccao-assassinam-jovem-filmam-execucao-com-requintes-de-crueldade-em-boa-vista.ghtml . Acesso em: 15 fev. 2021.
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/...
, on-line, grifos nossos).

Assim como nos demais casos, a motivação para o ato teria sido a guerra entre as facções criminosas, já que as vítimas eram, supostamente, informantes de um grupo rival. Casos como estes não são fatos isolados no Brasil. De acordo com Pauluze (2020PAULUZE, T. Com decretações via rede social, assassinato de meninas dispara no CE. Folha de S. Paulo. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/01/com-decretacoes-via-rede-social-assassinato-de-meninas-dispara-no-ce.shtml . Acesso em: 20 fev. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
), no estado do Ceará, região Nordeste, as decretações de execução por membros de facções criminosas via rede social fizeram aumentar em 43% o número de assassinato de meninas na faixa etária de 10 a 19 anos, entre 2017 e 2018. Como justificativas para as mortes, têm-se respostas como rivalidades locais entre grupos, exposição das vítimas nas mídias e escalada da crueldade. Somente na capital Fortaleza, no mesmo período e faixa etária, houve um incremento de 90% nos óbitos do gênero feminino, o que colocou o Ceará no topo do ranking de estado mais perigoso para elas, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Nas redes sociais, por meio de perfis anônimos, “as ameaças às garotas são frequentes e vem acompanhadas de xingamentos que não se aplicariam a homens” (PAULUZE, 2020PAULUZE, T. Com decretações via rede social, assassinato de meninas dispara no CE. Folha de S. Paulo. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/01/com-decretacoes-via-rede-social-assassinato-de-meninas-dispara-no-ce.shtml . Acesso em: 20 fev. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
, on-line) e “algumas postagens indicam que a morte deve ser ‘sem massagem’, o que significa acrescentar tortura. Seus corpos são expostos antes e depois” (PAULUZE, 2020PAULUZE, T. Com decretações via rede social, assassinato de meninas dispara no CE. Folha de S. Paulo. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/01/com-decretacoes-via-rede-social-assassinato-de-meninas-dispara-no-ce.shtml . Acesso em: 20 fev. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
, on-line).

Nota-se que a violência praticada contra meninas, ainda mais desproporcional e por vezes violenta que contra meninos, aparece como um traço histórico do machismo brasileiro e ganha força com o aprofundamento das vulnerabilidades e desigualdades sociais e, no atual cenário do país, tendem a permanecer por um longo período, uma vez que têm aumentado a pobreza, o desemprego, a evasão escolar de adolescentes e jovens, a gravidez não planejada na adolescência, o uso e abuso de drogas lícitas e ilícitas e, por outro lado, tem sido reduzida a capacidade de atendimento em unidades que executam políticas sociais de proteção à infância, adolescência e juventude.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O século XXI inaugurou um novo modo de ser na vida das pessoas de todo o mundo: trata-se de uma sociedade global, que tem a internet como parte do tecido social e que, cada dia mais, promove a comunicação em massa, produz, distribui, autogera, autosseleciona e recebe informações e conteúdo de diversos canais, sendo os sujeitos, ao mesmo tempo, emissores e receptores de dados. As mudanças culturais trazidas pelo uso crescente das TDIC reordenam o cenário das vivências cotidianas e alteram as formas de pensar o mundo: hoje, tudo parece instantâneo e solúvel no tempo. Observa-se, neste contexto, formas não lineares de observar e pensar o mundo, especialmente para a população juvenil que, entre outros motivos, faz uso das mídias sociais como lócus de construção identitária e disputa por poder.

A violência mediada por tecnologias de informação e comunicação é, há algum tempo, uma realidade nos mais variados tipos de organizações criminosas; sua utilização se dá visando, no caso do objeto de estudo desta pesquisa, legitimação no poder, ameaça, cooptação de jovens, estímulo ao sentimento de medo e intimidação de grupos rivais. Além disso, defende-se a presença de uma narrativa que insinua que os conflitos devem ser midiatizados e seus telespectadores devem julgar, automaticamente, os fatos e escolher um lado para apoiar.

Como os resultados deste breve estudo exploratório revelam, no crime organizado, as tecnologias da informação e comunicação, por meio de suas diversas facetas, vêm sendo utilizadas tanto nas relações simbólicas quanto regulação das funções distributivas, funcionando muitas vezes como um canal de comunicação entre seus membros. Infere-se que a sensação de impunidade de um espaço aparentemente seguro e sigiloso para troca de informações tem incentivado a utilização das TDIC para a promoção dos mais diversos crimes, inclusive para planejar, ordenar e divulgar homicídios.

A partir das categorias de análises apresentadas neste artigo, quais sejam facção criminosa, homicídio e TDIC, foi possível realizar uma discussão mais aprofundada das reportagens jornalísticas selecionadas, o que levou para a conclusão de que, além de uma aparente maior presença do número de meninas envolvidas nos crimes, o uso das TDIC descrito e reconstruído na narrativa midiática on-line - uma visão assente no olhar particular do seu autor ou fonte de informação sobre os fatos criminais-, se assemelha aos atos de terrorismo dos principais grupos extremistas espalhados pelo mundo, já que as execuções das vítimas, neste caso, os jovens, são cada vez mais cruéis, filmadas, fotografadas e distribuídas pela internet, utilizando-se dos diversos recursos disponíveis on-line, inclusive redes sociais.

Com relação à abordagem jornalística, de modo abreviado, a pesquisa aponta para uma persistência dos modelos tradicionais de elaboração de notícias, visto que a maioria delas recorre ao sensacionalismo nas imagens, não atribui identidade ao autor e, geralmente, não problematiza os fatos, apenas os apresenta, de forma resumida, ao leitor, o que aponta para um objetivo meramente mercadológico na cobertura criminal. Limitações que não podem ser ignoradas pelo potencial reforço do alarme social e de difusão distorcida de fatos que encerram especial complexidade na sua análise e devem merecer especial atenção noutras pesquisas.

Embora a violência e o conflito sejam fenômenos construídos socialmente por todas as sociedades, no caso brasileiro, têm ganhado maiores proporções em relação a números absolutos de crimes e de acesso a estas ações, que são multiplicados diariamente, uma vez que, a partir do uso das TDIC, as informações (textos, imagens, vídeos) ganham espaço em velocidade jamais vista; a manutenção deste ciclo de violência tende a permanecer fluida como fica claro na amostra deste estudo, já que as redes sociais têm como uma das principais funções para as organizações criminosas ser um espaço de disputa e manutenção de poder.

REFERÊNCIAS

  • 1
    A opção do estudo pela faixa etária de 15 a 19 anos se deu, primeiramente, pela intenção em se trabalhar com adolescentes e jovens na maior aproximação possível com o que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA e, em segundo lugar, em razão da possibilidade de comparação com os dados do Sistema de Mortalidade brasileiro, que utiliza como parâmetros de faixa etária, os grupos 15 a 19 anos e 20 a 29 anos.
  • 2
    O texto aprovado é o substitutivo de Capitão Wagner ao Projeto de Lei 1307/19. Ele alterou a redação original para garantir que, em todos os casos, não haverá crime quando a divulgação ocorrer no cumprimento do dever legal em decorrência de atividade policial, de investigação criminal, ou em publicações jornalísticas, científicas, culturais ou acadêmicas. É o chamado excludente de ilicitude.
  • 3
    No Brasil, a pesquisa TIC Kids Online, realizada desde 2012, tem como objetivo gerar evidências sobre o uso da Internet por crianças e adolescentes e produz indicadores sobre oportunidades e riscos relacionados à participação on-line da população de 9 a 17 anos no país. A pesquisa adota o quadro conceitual e metodológico desenvolvido pelas redes EU Kids Online e Global Kids Online. Disponível em: https://cetic.br/pt/pesquisa/kids-online/.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2022
  • Aceito
    19 Jan 2022
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