Acessibilidade / Reportar erro

Reminiscências da paisagem angolana na pós-memória de “Retornados”: um estudo em Vila Real (Portugal)

Reminiscences of the Angolan Landscape in the Postmemory of the “Retornados”: A Study in Vila Real (Portugal)

RESUMO

Após a queda do Estado Novo português em 1974 e diante da situação de violência relacionada à Guerra Colonial, os países africanos ocupados pela colonização portuguesa passaram a ser declarados independentes. Essa situação conduziu a um súbito abandono de posses e ao retorno de milhares de famílias de origem portuguesa para Portugal, o que causou uma série de problemas de ordem económica e social à antiga metrópole. A questão dos “retornados”, como foram nomeados os indivíduos procedentes de África nesse contexto, constitui um ponto presente e sensível na sociedade portuguesa que vem sendo trabalhado sob diferentes abordagens. A presente investigação objetiva analisar como a paisagem angolana é rememorada pelos filhos de “retornados” de Angola estabelecidos na região transmontana do Concelho de Vila Real (Portugal). A metodologia da pesquisa é de natureza aplicada, exploratória quanto aos objetivos, qualitativa no que concerne à abordagem, e bibliográfica e documental quanto aos procedimentos técnicos. Considera três conjuntos de fontes principais: fontes literárias, empíricas locais escritas e a história oral, estas analisadas à luz dos conceitos de história ambiental, pós-memória e memória ambiental. Os resultados permitem inferir a reminiscência da paisagem e de aspectos naturais de Angola na transmissão geracional relacionada ao trauma do retorno e na (re)construção da identidade de “retornados”.

Palavras-chave:
Paisagem; Angola; Retornados; Pós-Memória

ABSTRACT

After the fall of the Portuguese Estado Novo in 1974 and considering the situation of violence related to the Colonial War, the African countries occupied by Portuguese colonization began to be declared independent. This situation led to a sudden abandonment of possessions and the return of thousands of Portuguese families to Portugal, which caused a series of economic and social problems in the former metropolis. The issue of the “retornados”, as individuals returning from Africa named in this context, constitutes a present and sensitive point in Portuguese society that has been analyzed using different approaches. The present research aims to analyze how the Angolan landscape is remembered by the children of “retornados” from Angola established in the Trás-os-Montes region, namely in the Municipality of Vila Real (Portugal). The research methodology is applied, exploratory in terms of objectives, with a qualitative approach, and bibliographic and documentary in terms of technical procedures. It considers three sets of main sources: literary, written local empiric and oral history sources, analyzed in the light of the concepts of environmental history, post-memory and environmental memory. The results allow us to infer the reminiscence of the landscape and natural aspects of Angola in the generational transmission related to the trauma of the return and in the (re)construction of the “retornados”’ identity.

Keywords:
Landscape; Angola; Retornados; Postmemory

Introdução

A expansão colonizadora do território de domínio português iniciada no final do século XV tornou Portugal numa potência econômica mundial detentora de territórios ultramarinos no Atlântico, em África, na Ásia e na América. Os portugueses são considerados os pioneiros da expansão por mar com as Grandes Navegações Marítimas dos séculos XV e XVI, as quais tinham como objetivo ampliar a participação no comércio mundial.

Dada a precoce unificação de seu reino, Portugal dispunha de boa qualidade de portos marítimos, além de localização geográfica favorável à expansão. É de notar que o processo pioneiro de descoberta do “novo mundo”, designado de “descobrimentos”, estava alicerçado no estudo náutico realizado na Escola de Sagres, extremo sul de Portugal, sob o comando de Infante D. Henrique (1394-1460), consagrado navegador português.

Após a independência do Brasil em 1822, a Coroa Portuguesa passou a incentivar a exploração econômica intensiva de outras colônias, voltando as atenções, principalmente, para o território de Angola, cuja ocupação ficou marcada pela resistência da população autóctone. Como estratégia de pacificação e visando garantir a posse lusitana das terras em questão, o Acto Colonial (PORTUGAL, 1933PORTUGAL. Acto Colonial - Decreto-lei nº 22:465. Paços do Governo da República, 11 abr. 1933. 9 p. Disponível em: https://www.parlamento.pt/Parlamento/Documents/acto_colonial.pdf . Acesso em: 3 de out. 2021.
https://www.parlamento.pt/Parlamento/Doc...
) legalizava a subordinação das colônias portuguesas à metrópole, conduzindo à migração de muitas famílias portuguesas para se instalarem em território angolano. Os muitos benefícios concedidos aos portugueses que emigrassem para Angola permitiram a muitas dessas famílias prosperar economicamente e gerar descendentes que nunca tinham estado efetivamente em Portugal.

Em março de 1961, à luz dos movimentos de libertação nacional que se espalhavam pela África, tem início a Guerra Colonial pela independência de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné e São Tomé e Príncipe. Embora o Governo Salazarista não reconhecesse a existência de um conflito armado, optando por classificar os atos de guerrilha como terrorismo, vigorava a designação não oficial de “Guerra do Ultramar” ou “Guerra Colonial”.

A Revolução do 25 de Abril de 1974 pôs fim ao Estado Novo português e aos anos de guerra entre Portugal e os Movimentos de Libertação nos territórios africanos, conduzindo à descolonização portuguesa de África. A independência dos Países Africanos de Língua Portuguesa (Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, e, em especial, Angola e Moçambique), que decorreu nos meses seguintes, fez com que cerca de meio milhão de portugueses (GUEDES, 2016, p. 10), muitos dos quais nascidos em África, fossem forçados a regressar subitamente a Portugal, deixando para trás as suas posses materiais e, muitas vezes, entes queridos.

O retorno massificado de milhares de famílias que, outrora, levavam uma vida organizada e profícua nas antigas províncias ultramarinas, causou em Portugal problemas sociais, econômicos e culturais. Segundo Bruno Machado (2011MACHADO, Bruno. Os filhos dos “retornados”: a experiência africana e a criação de memórias, pós-memórias e representações na pós-colonialidade. 2011. 136 f. Dissertação (Mestrado em População, Sociedade e Território) - Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/6868/1/igotul001402_tm.pdf . Acesso em: 13 nov. 2021.
https://repositorio.ul.pt/bitstream/1045...
, p. 01-02), em Os filhos dos “retornados”: a experiência africana e a criação de memórias, pós-memórias e representações na pós-colonialidade, tratava-se de reconfigurar um país para assimilar aqueles que voltavam a uma pátria, em muitos casos, totalmente desconhecida, trazendo consigo a experiência africana para um território europeu. Por denominação dos veículos de comunicação, essas pessoas passaram a ser chamadas de “retornados”, caracterizando a condição política e jurídica “[...] àquele que, mantendo a sua nacionalidade portuguesa, tendo residido nas ex-colónias, nasceu na ex-metrópole, ou possui ascendentes até ao terceiro grau daí naturais” (MACHADO, 2011MACHADO, Bruno. Os filhos dos “retornados”: a experiência africana e a criação de memórias, pós-memórias e representações na pós-colonialidade. 2011. 136 f. Dissertação (Mestrado em População, Sociedade e Território) - Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/6868/1/igotul001402_tm.pdf . Acesso em: 13 nov. 2021.
https://repositorio.ul.pt/bitstream/1045...
, p. 2).

Os “retornados” enfrentavam a falta de aceitação por parte de portugueses da “metrópole” e a dificuldade de integração numa nova paisagem e em condições adversas. A discriminação sofrida por quem foi forçado a regressar, aliada ao abandono das suas propriedades e posses em Angola, gerou um profundo trauma social que reverbera nas gerações seguintes, inclusive naquelas já nascidas em Portugal.

O presente artigo objetiva analisar como a paisagem angolana é rememorada pelos filhos de “retornados” de Angola estabelecidos na região transmontana do concelho de Vila Real a partir de aspectos ligados à integração social aquando do “regresso”. Para tanto, adota-se a questão de investigação: como a paisagem angolana é rememorada pelos filhos de “retornados” estabelecidos em Vila Real (Portugal)?

A metodologia empregada na pesquisa é de natureza aplicada, exploratória quanto aos objetivos, qualitativa no que concerne à abordagem, e bibliográfica e documental quanto aos procedimentos técnicos. Considera três conjuntos de fontes principais:

1) as fontes literárias A vida verdadeira de Domingos Xavier, de José Luandino Vieira (2003VIEIRA, José Luandino. A vida verdadeira de Domingos Xavier. Lisboa: Caminho, 2003.), e Hotel do Norte, de Rui Ângelo Araújo (2017ARAÚJO, Rui Ângelo. Hotel do Norte. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2017.). A vida verdadeira de Domingos Xavier constitui um texto referência nos estudos de abordagem pós-colonialista que aborda as tensões sociais angolanas na véspera do início da Guerra Colonial, em 1961. Já Hotel do Norte trata do cotidiano de um grupo de “retornados” estabelecidos temporariamente em um empreendimento hoteleiro termal desativado na região transmontana de Portugal, em Vila Real. Ambos os textos foram concebidos a partir de experiências pessoais diretas (no caso do primeiro) ou indiretas (no caso do segundo) e, ainda que ficcionais, constituem importantes fontes no que concerne à descrição das paisagens e temporalidades onde ocorrem as narrativas;

2) as fontes empíricas locais escritas, nomeadamente através da primeira edição da Revista Tellus, publicada pelo Núcleo Cultural Municipal de Vila Real. A edição em questão, de autoria do sociólogo e economista Vilela Borges, data do ano de 1978BORGES, Vilela. Retornados em Trás-os-Montes: um peso ou factor de crescimento? Vila Real: Núcleo Cultural Municipal, 1978., quando o fenômeno de inserção dos “retornados” consolidava-se como uma realidade latente. Manifesta as percepções contemporâneas da sociedade portuguesa transmontana diante do retorno repentino de milhares de pessoas de África;

3) a história oral, conseguida através de entrevistas semiestruturadas, é tomada como principal fonte. Há de se considerar, entretanto, o limiar metodológico entre história oral e etnografia particularmente empregue nesta pesquisa, uma vez que a questão dos “retornados” é presente no contexto familiar do segundo autor, ainda que não em ascendência direta de primeiro grau, e na experiência pessoal e familiar da terceira autora. As entrevistas foram conduzidas no Concelho de Vila Real (Portugal) e os interlocutores selecionados atendendo ao critério de serem filhos de “retornados”, viverem no Concelho e terem nascido em Portugal continental sem nunca terem estado em Angola. Todas as entrevistas foram transcritas e os interlocutores cederam-nas aos autores através de termos de consentimento, no qual mencionam a maneira como gostariam de ser referenciados.

A análise das fontes foi balizada pelos conceitos teóricos de pós-memória, história e memória ambiental. As seções que seguem estão estruturadas iniciando pelas considerações de ordem teórica e, a seguir, relacionadas com uma sequência cronológica alusiva à emigração, à vida em África e ao retorno. Assim, Paisagens e memórias: articulações teóricas contempla o deslindamento da história ambiental, linha teórica que sustenta esta análise, articulada com a noção de memória ambiental e de pós-memória. A seguir, Emigrar: distintas paisagens, aborda o processo de saída de Portugal e o assentamento dos antepassados dos entrevistados no território angolano, explorando a descrição das paisagens. Prosperar: a transformação da paisagem é uma seção destinada à reflexão sobre a relação dos antepassados dos interlocutores com a paisagem angolana aquando de suas vivências em África. A última parte antes das considerações finais, Retornar: (re)construir seu lugar, trata do retorno a Portugal e da (re)configuração de espaços em função do recebimento dos “retornados” em Trás-os-Montes, destacando a relação de elementos paisagísticos com a identidade desses indivíduos.

Paisagens e memórias: articulações teóricas

Muito além de mera fonte primária de obtenção de recursos naturais, o ambiente onde o ser humano vive, produz e desenvolve a sua cultura, é um elemento relevante na constituição de sua identidade. A história ambiental é um campo historiográfico delineado a partir da década de 1970 que vem se preocupando com o desenvolvimento de estudos que tratem das relações entre seres humanos e a natureza em diferentes contextos temporais e geográficos (PRESTES; PEREIRA, 2017PRESTES, João Dias; PRESTES, Elenita Malta. A primeira aula de História Ambiental na UFRGS: Uma experiência no Ensino de História (2012-2013). Revista do Lhiste, v. 4, n. 6, p. 70-89, jan./dez. 2017., p. 73). Desenvolveu-se em um contexto de crítica ao consumismo e ao otimismo desenvolvimentista que marca o cenário mundial após a Segunda Guerra Mundial, no qual o amplo crescimento econômico proveniente do desenvolvimento da tecnologia era idealizado enquanto “[...] caminho certo e único para a humanidade” (DUARTE, 2013DUARTE, Regina Horta. História e natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 17).

Essa abordagem propõe que os seres humanos e suas sociedades constituem parte integrante do ecossistema enquanto organismos biológicos, capazes de criar culturas e tecnologias. O paradigma inclui as sociedades humanas, mas também reconhece a historicidade dos sistemas naturais, abrindo mão do dualismo cultura e natureza e prezando pela leitura interativa da relação entre ambos, “[...] colocando a sociedade na natureza” (DRUMMOND, 1991DRUMMOND, José Augusto. História Ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 177-197, 1991., p. 185).

Não desconsiderando que o campo da história ambiental surgira de objetivos de ordem moral e tendo por base os compromissos políticos de contenção da degradação ambiental, a reflexão aqui desenvolvida segue pela abordagem enunciada por Edgar Morin (1996MORIN, Edgar. El pensamiento Ecologizado. Gazeta de Antopología, v. 12, n. 1, 1996. Disponível em: https://www.ugr.es/~pwlac/G12_01Edgar_Morin.html . Acesso em: 12 mar. 2021.
https://www.ugr.es/~pwlac/G12_01Edgar_Mo...
, p. 05) em El pensamiento ecologizado de que a história da humanidade é uma história de interação do homem com a biosfera. No cerne da questão desse paradigma está a ideia de paisagem.

Paisagem, para Georg Simmel, em A filosofia da paisagem, constitui um “[...] excerto da natureza como unidade” (2009SIMMEL, George. A filosofia da paisagem. Covilhã: Luso Sofia Press, 2009., p. 6), o que é contraditório, na percepção do autor, uma vez que a natureza representa a unidade de um todo “[...] que expressa continuidade da existência espacial e temporal” (2009SIMMEL, George. A filosofia da paisagem. Covilhã: Luso Sofia Press, 2009., p. 6), a qual não pode ser fracionada. O ponto de vista simmeliano observa haver algo de espiritual e estético relacionado com a perspectiva humana na constituição e delimitação das unidades particulares às quais chamam paisagens (SIMMEL, 2009SIMMEL, George. A filosofia da paisagem. Covilhã: Luso Sofia Press, 2009., p. 7).

Não obstante, Simon Schama apresenta, em Paisagem e Memória a sua percepção da paisagem enquanto “constructo da imaginação” (SCHAMA, 1996SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 70), construindo uma abordagem pela qual toda a paisagem é, antes, cultura: essa é preenchida, venerada, temida, mapeada e transformada pelos seres humanos, compondo a gênese do imaginário de todas as civilizações, em maior ou menor intensidade. Mitos e lembranças vinculadas à paisagem carregam em si duas características principais: longa permanência no tempo e a capacidade de moldar instituições que permanecem na contemporaneidade (SCHAMA, 1996SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 26).

O autor salienta que os hábitos culturais da humanidade incluem o caráter sagrado da natureza. Mesmo os antigos mitos naturais que são negados pelo cientificismo da sociedade contemporânea não desapareceram: toda a tradição da paisagem contemporânea se sustenta a partir de um rico depósito de mitos, lembranças e obsessões que fazem parte de um sistema coletivo que está à nossa volta, ainda que oculto naquilo que a sociedade concebe como imemorial (SCHAMA, 1996SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 24).

Assim, torna-se relevante considerar a existência de elos afetivos entre as pessoas e os lugares enquanto ambientes físicos, segundo as considerações de Yi-Fu Tuan em Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente (TUAN, 1980TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Rio de Janeiro: Difel, 1980., p. 5). Se as paisagens constituem formas de existência de um grupo humano, essas concretizam sentidos e representações através de experiências vividas atreladas ao lugar, sendo que

[...] essa existência do homem, com as inúmeras ações entrelaçadas entre as grafias construídas da paisagem, vividas pela relação dos sentimentos e emoções em sua intensidade com o lugar, proporciona uma real comunicação de símbolos identificadores do ator com o seu espaço. A fusão da materialidade da paisagem retoma difusas simbologias para o homem na construção de seu universo, pela percepção de se sentir construtor do lugar, tornando a paisagem também um elemento material, fecundado pelas emoções vividas com gradientes de densidade, e configurando-se, assim uma formação subjetiva de experiências de vida. Essa relação de paisagem e lugar torna nítida a construção da identidade do homem com o meio, em um sentido de topofilia. (DEUS; ALVES; NOGUEIRA, 2013DEUS, José Antônio Souza de; ALVES, Rahyan de Carvalho; NOGUEIRA, Marly. Homem, lugar & paisagem - topofilia e topofobia: reflexões sobre o patrimônio histórico, arquitetônico e urbanístico de Diamantina-MG. Revista Caminhos da História, v. 18, n.1, p. 13-26, 2013. Disponível em: https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/caminhosdahistoria/article/view/3223 . Acesso em: 5 fev. 2021.
https://www.periodicos.unimontes.br/inde...
, p.15).

A experimentação humana do espaço ocorre através de duas vertentes simultâneas: pela experiência indireta e conceitual, ligada às práticas e manifestações de ordem coletiva; e de maneira direta e íntima, relacionada ao âmbito da subjetividade e da individualidade da efetiva vivência do local (TUAN, 1980TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Rio de Janeiro: Difel, 1980.), considerando-se um emaranhado de experiências no qual espaço, tempo e lugar são conceitos indissociáveis em termos de experiência vívida, sendo sua separação possível apenas pelo recurso da imaginação (TUAN, 2011TUAN, Yi-Fu. Espaço, tempo, lugar: um arcabouço humanista. Geograficidade, v. 1, n. 1 p. 4-15, jun./set. 2011. Disponível em: https://periodicos.uff.br/geograficidade/article/view/12804 . Acesso em: 14 jan. 2020.
https://periodicos.uff.br/geograficidade...
, p. 5). Assim, a ideia de paisagem tem relação, mais do que com uma materialidade concreta, com lembranças, memória afetiva e múltiplas significações.

Na intenção de ampliação da transdisciplinaridade dessas noções, a perspectiva antropológica oferece o conceito de memória ambiental. Segundo Margarete Nunes, Ana Luiza Carvalho da Rocha e João Alcione Figueiredo (2019NUNES, Margarete; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; FIGUEIREDO, João Alcione. Memória do trabalho e memória ambiental: as indústrias de curtume do Vale do Rio dos Sinos/RS. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 173-188, jan./abr. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbeur/a/KWfwG8BzLz4bV7L5r5jvCFB/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2021.
https://www.scielo.br/j/rbeur/a/KWfwG8Bz...
, p. 175) em Memória do trabalho e memória ambiental: as indústrias de curtume do Vale do Rio dos Sinos/RS, o conceito “abarca a compreensão das formas pelas quais a experiência de vida urbana em um determinado território expressa, nos fios do tempo, os saberes e fazeres por meio dos quais os sujeitos interagem com o seu ambiente e a forma como um determinado ecossistema reage a eles” de forma a tratar a “memória enquanto fenômeno reflexivo acerca da dialética temporal relativa às interações dos sujeitos e comunidades nas relações com os territórios onde vivem” (NUNES; ROCHA; FIGUEIREDO, 2019NUNES, Margarete; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; FIGUEIREDO, João Alcione. Memória do trabalho e memória ambiental: as indústrias de curtume do Vale do Rio dos Sinos/RS. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 173-188, jan./abr. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbeur/a/KWfwG8BzLz4bV7L5r5jvCFB/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2021.
https://www.scielo.br/j/rbeur/a/KWfwG8Bz...
, p. 174-175). Trata-se de um conceito concebido a partir das teorias de Henri Bergson e Maurice Halbwachs, à luz das reflexões de Gaston Bachelard sobre a dialética da duração e de Paul Ricoeur sobre tempo e narrativa, no esforço de situá-lo no contexto das modernas sociedades complexas, ainda considerando a influência dos estudos clássicos da antropologia urbana de Gilberto Velho, Ruth Cardoso, Eunice Duhram, entre outros (NUNES; ROCHA; FIGUEIREDO, 2019NUNES, Margarete; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; FIGUEIREDO, João Alcione. Memória do trabalho e memória ambiental: as indústrias de curtume do Vale do Rio dos Sinos/RS. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 173-188, jan./abr. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbeur/a/KWfwG8BzLz4bV7L5r5jvCFB/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2021.
https://www.scielo.br/j/rbeur/a/KWfwG8Bz...
, p. 175).

Em A Memória Coletiva, Maurice Halbwachs (2006HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Centauro, 2006.) defende que a memória é um fenômeno indubitavelmente coletivo, ao contrário de apenas individual, o que durante séculos fora defendido pela filosofia ou a psicologia. O autor entende que a memória é “uma construção social”, criada através da interação do indivíduo e o grupo. E vai mais longe, defendendo que o indivíduo apenas “[...] é capaz de recordar na medida em que pertence a algum grupo social” (RIOS, 2013RIOS, Fábio. Memória coletiva e lembranças individuais a partir das perspectivas de Maurice Halbwachs, Michael Pollak e Beatriz Sarlo. Revista Intratextos, v. 5, n. 1, p. 1-22, 2013. , p. 04).

Nesse sentido, a memória individual de cada um está incorporada numa memória mais alargada: a coletiva. Aquilo que é rememorado individualmente é, assim, um fragmento da memória coletiva de uma determinada comunidade, estabelecendo uma relação entre a memória e a tradição. A memória, para Halbwachs, é algo que se mantêm vivo, tangível pelos indivíduos que constroem o grupo coletivo. É algo que perdura e, por isso, é tradicional. Quando a memória se perde, significa que os laços sociais que a mantinham se desfizeram no tempo. “A memória tem caráter seletivo”, uma vez que não é possível transmitir a todos os indivíduos de um grupo, através da memória coletiva, eventos ou acontecimentos do passado. Eles são descortinados e selecionados para transmissão sucedânea (RIOS, 2013RIOS, Fábio. Memória coletiva e lembranças individuais a partir das perspectivas de Maurice Halbwachs, Michael Pollak e Beatriz Sarlo. Revista Intratextos, v. 5, n. 1, p. 1-22, 2013. , p. 9).

Analisando a ideia de memória especificamente no contexto dos “retornados”, Elsa Peralta e Joana Gonçalo Oliveira (2016PERALTA, Elsa; OLIVEIRA, Joana Gonçalo. Pós-memória como herança: fotografia e testemunho do ‘retorno’ de África. Configurações, v. 17, p. 181-197, 2016. Disponível em: https://journals.openedition.org/configuracoes/3290# . Acesso em: 6 mar. 2022.
https://journals.openedition.org/configu...
), em Pós-memória como herança: fotografia e testemunho do “retorno” de África, assinalam que

[...] a memória, longe de poder ser remetida para uma faculdade mental humana, deve antes ser entendida processualmente, ou seja, enquanto processo de enunciação de atos de recordação, assim articulados - em fala - para se tornarem memória. Estes atos de recordação, sujeitos a negociações e submetidos a esquecimentos, têm inevitavelmente uma existência social, pois são culturalmente articulados na e para a transmissão. Assim sendo, na medida em que se articula em fala, a memória constitui passados comuns, de acordo com referentes de imaginação coletiva, que são naturalmente cambiantes no tempo. (PERALTA; OLIVEIRA, 2016PERALTA, Elsa; OLIVEIRA, Joana Gonçalo. Pós-memória como herança: fotografia e testemunho do ‘retorno’ de África. Configurações, v. 17, p. 181-197, 2016. Disponível em: https://journals.openedition.org/configuracoes/3290# . Acesso em: 6 mar. 2022.
https://journals.openedition.org/configu...
, p. 186).

Pós-memória é um conceito delineado por Marianne Hirsch em Family frames: photography, narrative and postmemory (1997HIRSCH, Marianne. Family Frames: photography narrative and postmemory. Harvard: University Press, 1997.) e em A geração da pós-memória (2016HIRSCH, Marianne. A geração da pós-memória. In: ALVES, Fernanda Mota; SOARES, Luisa Afonso; RODRIGUES, Cristiana Vasconcelos. Estudos de memória: teoria e análise cultural. Vila Nova da Famalicão: Edições Húmus, 2016. p. 299-326.), concebido a partir dos estudos da autora com filhos de sobreviventes do Holocausto. Refere-se ao modo como a geração posterior àquela que testemunhou o trauma cultural ou coletivo se relaciona com a experiência referida, considerando a passagem de um passado inter e transgeracional traumático e pessoal para a história.

Trata-se, portanto, da memória daquele para quem o trauma configura-se como uma representação, das narrativas de alguém que

[...] não tem a titularidade da experiência nem é autor do testemunho, mas é herdeiro simbólico de uma ferida aberta sobre a qual elabora uma narrativa - um testemunho possível, um testemunho mediado, um testemunho adotivo [...] - construído a partir de fragmentos das narrativas familiares [...] e por fragmentos retirados de narrativas públicas [...]. A pós-memória ou a memória de segunda geração surge, assim como uma “herança” direta ou indireta de uma experiência traumática que, ainda que vivida por outro, teve reflexo na esfera privada ou familiar e, portanto, pode ser assumida como um legado explícito ou mediado e pode ser reelaborada a partir do “testemunho de um testemunho”. (RIBEIRO; RIBEIRO, 2013RIBEIRO, Margarida Calafate; RIBEIRO, António Souza. Os netos que Salazar não teve: Guerra colonial e memória de segunda geração. Abril, v. 5, n. 11, p. 25-36, 2013. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5616391 . Acesso em: 13 nov. 2021.
https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti...
, p. 30).

Estudos de pós-memória envolvendo comunidades de “retornados” têm sido desenvolvidos no cenário português, entre os quais se destacam os estudos de Bruno Machado em Os filhos dos “retornados”: a experiência africana e a criação de memórias, pós-memórias e representações na pós-colonialidade (MACHADO, 2011MACHADO, Bruno. Os filhos dos “retornados”: a experiência africana e a criação de memórias, pós-memórias e representações na pós-colonialidade. 2011. 136 f. Dissertação (Mestrado em População, Sociedade e Território) - Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/6868/1/igotul001402_tm.pdf . Acesso em: 13 nov. 2021.
https://repositorio.ul.pt/bitstream/1045...
), de Margarida Calafate Ribeiro e António Souza Ribeiro em “Os netos que Salazar não teve: Guerra Colonial e memória de segunda geração” (RIBEIRO; RIBEIRO, 2013RIBEIRO, Margarida Calafate; RIBEIRO, António Souza. Os netos que Salazar não teve: Guerra colonial e memória de segunda geração. Abril, v. 5, n. 11, p. 25-36, 2013. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5616391 . Acesso em: 13 nov. 2021.
https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti...
), os quais são tomados por referenciais. Não menos relevante é a obra intitulada The retornados from Portuguese colonies, organizada por Elsa Peralta (2022PERALTA, Elsa. The retornados from Portuguese Colonies in Africa: memory, narrative and history. New York: Routledge, 2022.), a qual reúne diversos autores e diferentes abordagens envolvendo a experiência do retorno dos territórios africanos, além do já mencionado Pós-memória como herança: fotografia e testemunho do “retorno” de África (PERALTA; OLIVEIRA, 2016PERALTA, Elsa; OLIVEIRA, Joana Gonçalo. Pós-memória como herança: fotografia e testemunho do ‘retorno’ de África. Configurações, v. 17, p. 181-197, 2016. Disponível em: https://journals.openedition.org/configuracoes/3290# . Acesso em: 6 mar. 2022.
https://journals.openedition.org/configu...
).

Emigrar: distintas paisagens

Embora a presença portuguesa em Angola remonte ao século XVI, foi a partir do Acto Colonial de 1933PORTUGAL. Acto Colonial - Decreto-lei nº 22:465. Paços do Governo da República, 11 abr. 1933. 9 p. Disponível em: https://www.parlamento.pt/Parlamento/Documents/acto_colonial.pdf . Acesso em: 3 de out. 2021.
https://www.parlamento.pt/Parlamento/Doc...
e do Governo de Salazar (1933-1974) que famílias portuguesas foram incentivadas a emigrarem para o território angolano e a constituírem, nessas terras, uma vida próspera que garantisse a propriedade (leia-se ocupação) e a exploração econômica por Portugal.

Recuando ao período pré-ditatorial salazarista, no final do século XIX, uma das medidas criadas para impulsionar a migração para África propunha a isenção de taxas de passagem, anos depois da criação avulsa de colónias agrícolas em Angola, e o transporte livre de pagamento de algumas centenas de colonos para este território. Em 1907, o passaporte foi mesmo abolido: a conceção de movimentos migratórios para fora de Portugal fora substituída pela livre circulação de pessoas dentro das fronteiras nacionais. O que antes era tido como uma viagem a outro país, era, a partir de então, considerado como migração dentro dos limites do território português (CASTELO, 2009CASTELO, Cláudia. Migração ultramarina: contradições e constrangimentos. Ler história, n. 56, p. 71-85, 2009. Disponível em: https://journals.openedition.org/lerhistoria/1950 . Acesso em: 22 mar. 2022.
https://journals.openedition.org/lerhist...
, p. 76).

O pico da emigração portuguesa para África (e em particular para Angola) deu-se, principalmente, no pós-Segunda Guerra Mundial, com a criação da Junta de Emigração, no Ministério do Interior. Em 1956, “[...] tiveram início as inscrições (abertas através das Câmaras Municipais) e a seleção das famílias de colonos que partiriam para o ultramar dentro dos planos estabelecidos (colonato da Cela e do Cunene, em Angola, e colonato do Limpopo, em Moçambique)” (CASTELO, 2009CASTELO, Cláudia. Migração ultramarina: contradições e constrangimentos. Ler história, n. 56, p. 71-85, 2009. Disponível em: https://journals.openedition.org/lerhistoria/1950 . Acesso em: 22 mar. 2022.
https://journals.openedition.org/lerhist...
, p. 78).

Nesse período, já estava a decorrer a implementação do primeiro Plano de Fomento, para definir estratégias de investimento por parte do Estado. Esse Plano, instituído entre 1953 e 1958, tinha como principal objetivo criar condições, em áreas como a energia, transportes e comunicações, que facilitassem a circulação de pessoas, bens e capitais, para favorecer o crescimento industrial na província ultramarina (SANTOS, 2012SANTOS, Davide. O Estado Novo na segunda metade do século XX - Economia. Conhecer a história, 29 fev. 2012. Disponível em: http://conhecerahistoria12.blogspot.com/2012/02/o-estado-novo-na-segunda-metade-do.html . Acesso em: 22 mar. 2022.
http://conhecerahistoria12.blogspot.com/...
). Um dos setores que teve maior enfoque foi a agricultura, principalmente se se tiver em consideração uma frase, presente no discurso de Salazar durante a apresentação do primeiro plano, em 1953: “[...] para cada braço uma enxada, para cada família o seu lar, para cada boca o seu pão” (SANTOS, 2012SANTOS, Davide. O Estado Novo na segunda metade do século XX - Economia. Conhecer a história, 29 fev. 2012. Disponível em: http://conhecerahistoria12.blogspot.com/2012/02/o-estado-novo-na-segunda-metade-do.html . Acesso em: 22 mar. 2022.
http://conhecerahistoria12.blogspot.com/...
, n.p.).

Estabelecia-se, assim, o plano do Estado Novo de incentivo à emigração de famílias residentes em Portugal para África, estas motivadas pela possibilidade de um futuro melhor e mais próspero. Dentre as diversas formas de incentivo oferecidas, cabe destacar as viagens a custo reduzido ou mesmo isentas de custos; a aquisição a baixo custo de terrenos de elevado potencial agrícola; a oferta de sementes para plantação de produtos locais; animais (para iniciação à produção pecuária ou para auxílio à produção agrícola, como vacas) e alfaias agrícolas. O oferecimento desses incentivos era determinante na decisão de emigrar, conforme mostra a interlocução de Nuno Garcia:

A minha família foi para Angola ao abrigo de um plano de fomento para povoamento e desenvolvimento das antigas colónias. [...] O plano era fornecer terras - dois ou três hectares, alguma infraestrutura e animais (alguns bois, por exemplo, para lavrar a terra, juntamente com as alfaias) a cidadãos portugueses que fossem instalar-se naquela zona. Foi isso que eles fizeram. [...] O objetivo do programa incentivado pelo Estado era precisamente o povoamento das zonas mais isoladas. [...] Na década de 50, Portugal vivia numa profunda crise, as pessoas viviam da agricultura e pouco mais. Havia muita pobreza. Por isso, a expectativa das pessoas era encontrar uma vida melhor em Angola. (GARCIA, 2022GARCIA, Nuno Miguel da Silva. Minha família em África. [Entrevista cedida a] Filipe Ribeiro, em 13 jan. 2022. Vila Real, 2022. 1 arquivo .mp3 (43 min.)., informação verbal).

O seu avô e sua avó paternos, naturais da região de Ligares (norte de Portugal), emigraram para Angola em 1956 com os quatro filhos ainda crianças, tendo a quinta criança já nascido em território africano, alguns anos depois. A família estabeleceu-se na região de Cela (Mapa 1), em Cuanza-Sul, chegando a Angola a partir do Porto de Lobito (Mapa 1).

Cela é uma região apontada como predominantemente agrícola em função das condições climáticas e das características do solo ferralítico. O clima quente e temperado, com média anual em torno dos 20ºC, é marcado pela chuva no verão (média anual pluviométrica de 1132 mm) e por ser moderadamente quente. O inverno, por sua vez, apresenta-se mais seco, porém sem grande variação térmica com relação ao verão (BERNARDO; QUISSIDO, 2021BERNARDO, Félix Capoco; QUISSINDO, Isaú Alfredo Berbardo. Análise espacial de zonas agrícolas em cinco fazendas do município da Cela, Cuanza Sul, Angola. In: Congresso Virtual de Agronomia, 9, 2021, São Paulo, SP. Anais [...]. São Paulo: Convibra, 2021. Disponível em: https://convibra.org/publicacao/26183/ . Acesso em: 5 mar. 2021.
https://convibra.org/publicacao/26183/...
, p. 3). Em termos geomorfológicos, está inserida na zona do Planalto Antigo (DINIZ, 2006 apudHUNTLEY, 2019HUNTLEY, Brian J. Angola, um perfil: fisiografia, clima e padrões de biodiversidade. In: HUNTLEY, Brian J. et al (ed.). Biodiversidade de Angola, ciência e conservação: uma síntese moderna. Porto: Arte e Ciência, 2019. p. 39-74. Disponível em: http://www.unescolifeonland.com/fotos/editor2/BiodiversidadeAngola_.pdf . Acesso em: 5 mar. 2022.
http://www.unescolifeonland.com/fotos/ed...
, p. 46), o qual abrange paisagens onduladas, marcadas pela predominância de savanas com árvores, arbustos e matas tropicais secas (BERNARDO; QUISSIDO, 2021BERNARDO, Félix Capoco; QUISSINDO, Isaú Alfredo Berbardo. Análise espacial de zonas agrícolas em cinco fazendas do município da Cela, Cuanza Sul, Angola. In: Congresso Virtual de Agronomia, 9, 2021, São Paulo, SP. Anais [...]. São Paulo: Convibra, 2021. Disponível em: https://convibra.org/publicacao/26183/ . Acesso em: 5 mar. 2021.
https://convibra.org/publicacao/26183/...
, p. 5).

O litoral angolano se estende por cerca de 1650 quilômetros e representou, historicamente, a principal via de circulação de pessoas (voluntária ou involuntariamente) durante os muitos séculos de colonização. A costa de Luanda é descrita com bucolismo por José Luandino Vieira, referindo-se ao início da década de 1960:

O mar vinha de longe, murmurante, se roçar nos pés na areia. Trazia o bom cheiro da costa angolana, vinha de viagem, saía na Baía dos Tigres, no Kikombo, na foz do Kwanza também, com as águas barrentas do grande rio. O sol já tinha mergulhado, todo o poente era um borrão vermelho em cima das figuras negras dos coqueiros. Na praia, as cubatas dos pescadores se desenhavam na sombra, vivas no piar das galinhas e pintinhos regressando do ciscar diário, muitas vezes mesmo grunhir do pequeno ngulu no quintal. Redes dormiam em baixo da capa das folhas de coqueiros na praia deserta e canoas descansavam das longas viagens nos seus dormentes de mafumeira. Nas águas sempre quentes, monas nus ainda brincavam com um bocado de canoa, dando banho a um cabíri. Mulheres sopravam seus fogareiros de lata, assavam peixe ou cozinhavam panela de feijão. Velhos pescadores cachimbavam nas portas ou filosofavam em grupo. Moças de panos, com cheiro de mar e sol, riam em suas conversas. E, no fim de tarde calmo, o fumo e o murmúrio das falas subiam da sanzala à beira-mar. (VIEIRA, 2003VIEIRA, José Luandino. A vida verdadeira de Domingos Xavier. Lisboa: Caminho, 2003., p. 34).

Também, em 1956, os avós paternos de Sónia Roque estabeleceram-se na região de Cuanza-Norte, provenientes da Campeã, distrito de Vila Real. Já em Angola nasceu o pai dela, no ano de 1961, onde permaneceu até aos 12 anos. Por motivos de saúde do avô, a família regressara a Portugal em 1973, sendo impedida de retornar a Angola, onde estavam seus investimentos e posses, quando da Revolução de 1974.

Na localidade de Quibaxe (Mapa 1), a família de Roque vivia e trabalhava numa propriedade latifundiária produtora de café: “eram campos de café muito grandes. Eram de perder de vista. Era o gênero de uma fazenda [...]. Trabalhavam lá mais portugueses, como o próprio dono, mas também angolanos. Viviam numa zona mais ou menos isolada, longe da capital da província” (ROQUE, 2021ROQUE, Sónia. Minha família em África. [Entrevista cedida a] Filipe Ribeiro, em 15 dez. 2021. Vila Real, 2021. 1 arquivo .mp3 (52 min.)., informação verbal).

A instalação de latifúndios cafeeiros, em especial das variedades Conilon e Arábica, que são predominantes em Angola (NGOLO, 2014NGOLO, Aristides Osvaldo. Zoneamento agroclimático da cultura de café em Angola. 2014. 86 f. Dissertação (Mestrado em Agroecologia) - Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2014. Disponível em: https://www.locus.ufv.br/bitstream/123456789/6676/1/texto%20completo.pdf . Acesso em: 5 mar. 2022.
https://www.locus.ufv.br/bitstream/12345...
, p. 1), estabelecia tênues fronteiras com o domínio de mata onde se misturavam o antropismo e o selvagem, formando sentidos de exotismo na percepção dos colonos. Roque (2021ROQUE, Sónia. Minha família em África. [Entrevista cedida a] Filipe Ribeiro, em 15 dez. 2021. Vila Real, 2021. 1 arquivo .mp3 (52 min.).) conta que mantinham “um animal de estimação que era um macaco. Além disso, havia muitos animais selvagens nas imediações da fazenda. Passava muitas vezes pelos animais selvagens, alguns mais perigosos do que outros, mas que já estavam habituados à presença de humanos”.

Até 1973, o café constituía o principal produto de exportação de Angola, principalmente nas regiões do noroeste e nas bordas ocidentais do planalto, chegando o país a representar o quarto maior produtor em nível mundial. Durante o período de guerra civil instituído na década de 1970, os agentes ligados à cadeia produtiva viram-se obrigados a abandonar as suas atividades, instalações e propriedades em função da instabilidade política e da falta de segurança (ANTÓNIO, 2008 apudNGOLO, 2014NGOLO, Aristides Osvaldo. Zoneamento agroclimático da cultura de café em Angola. 2014. 86 f. Dissertação (Mestrado em Agroecologia) - Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2014. Disponível em: https://www.locus.ufv.br/bitstream/123456789/6676/1/texto%20completo.pdf . Acesso em: 5 mar. 2022.
https://www.locus.ufv.br/bitstream/12345...
, p. 1-2).

Na Portugal rural do século XX, em particular após a Segunda Guerra Mundial (1935-1945), o modo de vida das famílias de pequenas comunidades do interior era extremamente difícil. A frágil economia familiar, de base agrícola, que dependia do minifúndio, era dura, muito exigente do ponto de vista do esforço familiar, e muito pouco rentável.

O livro Portugal Chão (PORTELA; CALDAS, 2003PORTELA, José; CALDAS, João Castro. Portugal Chão. Oeiras: Celta Editora, 2003.), mais precisamente no capítulo “Idosos agricultores em Trás-os-Montes - Modos de vida, razões de permanência em meio rural”, refere que, em meados do século XX, a estrutura familiar no meio rural estava “[...] alicerçada numa exploração - casa agrícola -, quer no que diz respeito ao local de residência, quer ainda no que concerne à base física das suas atividades” (PORTELA; CALDAS, 2003PORTELA, José; CALDAS, João Castro. Portugal Chão. Oeiras: Celta Editora, 2003., p. 324). Como a expectativa de vida, para a maioria dos jovens daquele tempo, não ia além da adquirida pelos seus pais, a emigração era a saída mais provável.

Quando o salazarismo reforçou a ocupação militar de Angola e a imigração de famílias portuguesas intensificou-se, milhares de africanos foram obrigados a sair de suas terras ancestrais e a procurar espaço em áreas já ocupadas por outros grupos. Essa questão gerava, para além do aumento da pressão demográfica e da sobrecarga ecológica, propensão à ocorrência de conflitos civis (SILVA, 2020SILVA, Flora Pereira. Percepções angolanas, meio ambiente e terra: uma ponte entre a crítica pós-colonial e a ecologia política. 2020. 166 f. Dissertação (Mestrado Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional) - Universidade Nacional de Brasília, Brasília, Distrito Federal, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40441/1/2020_FloraPereiradaSilva.pdf . Acesso em: 25 abr. 2022.
https://repositorio.unb.br/bitstream/104...
).

À época, e contrastando com áreas desertificadas e com a paisagem rural, a capital Luanda (Mapa 1) experimentava considerável urbanização, num cenário que dividia largas avenidas asfaltadas com alcatrão escuro com estradas de terra vermelha, estruturas industriais extrativistas donde emanava fumo cinza, “a cidade branca” constituída por áreas residenciais com jardins bem cuidados e “árvores que choravam seiva nos passeios”, musseques e “topos de morros frescos” que circundavam a cidade, conforme descrito por José Luandino Vieira (2003VIEIRA, José Luandino. A vida verdadeira de Domingos Xavier. Lisboa: Caminho, 2003., p. 6-13). A menina dos olhos, nesse cenário, é o Rio Cuanza, que nascia de “um fio de água” no planalto, para além do topo das colinas, e prateava a cidade com suas águas que corriam para o mar (VIEIRA, 2003VIEIRA, José Luandino. A vida verdadeira de Domingos Xavier. Lisboa: Caminho, 2003., p. 20).

É nessa paisagem que viveram os pais de Elisabete Pinto, de 1966 a 1974. Naturais de Campanhó e de Tuizendes, norte de Portugal, estabeleceram-se em Vila Alice (Mapa 1), nas proximidades de Luanda. Lá nasceram os três irmãos mais velhos da interlocutora, que tem um irmão caçula, como ela, já nascido após o retorno da família a Portugal, ocorrido na altura da Revolução de 1974. O sustento da família provinha de um café que mantiveram ao longo dos anos.

Mapa 1 -
Áreas de estabelecimento das famílias dos interlocutores em Angola

Prosperar: produzir a partir da terra

O território angolano já era amplamente ocupado por civilizações humanas há milênios. De acordo com Flora Pereira da Silva (2017SILVA, Flora Pereira. Percepções angolanas, meio ambiente e terra: uma ponte entre a crítica pós-colonial e a ecologia política. 2020. 166 f. Dissertação (Mestrado Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional) - Universidade Nacional de Brasília, Brasília, Distrito Federal, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40441/1/2020_FloraPereiradaSilva.pdf . Acesso em: 25 abr. 2022.
https://repositorio.unb.br/bitstream/104...
, p. 28) em Percepções angolanas, meio ambiente e terra: uma ponte entre a crítica pós-colonial e a ecologia política, os povos San, considerados, quiçá, os mais antigos habitantes da região que hoje constitui Angola, baseavam-se em um sistema de subsistência caçador-coletor organizado em comunidades pequenas e descentralizadas que mantinham práticas de gestão da terra baseada na exploração de bens naturais, mas sem fortes tradições de posse ou propriedade da terra. Com a chegada de populações Bantu, grupos humanos com maior quantidade de integrantes e com características culturais mais sedentarizadas, práticas agrícolas e técnicas de fundição do ferro foram introduzidas na região, deslocando as populações mais antigas para áreas áridas e mais escassas de bens naturais a leste e ao sul, onde passariam complementar a caça e coleta com a prática do pastoralismo.

Até ao século XIV, as sociedades ali estabelecidas constituíam sistemas de linhagem matrilinear que contavam com complexas estruturas de governança com ordens sociais bem estabelecidas e sistemas jurídicos, como demonstra Silva (2020SILVA, Flora Pereira. Percepções angolanas, meio ambiente e terra: uma ponte entre a crítica pós-colonial e a ecologia política. 2020. 166 f. Dissertação (Mestrado Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional) - Universidade Nacional de Brasília, Brasília, Distrito Federal, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40441/1/2020_FloraPereiradaSilva.pdf . Acesso em: 25 abr. 2022.
https://repositorio.unb.br/bitstream/104...
):

Sobre o aspecto fundiário, em tais sociedades, de modo geral, a relação com a terra não era de posse individual, mas pertencia a todo o clã, sendo o gerenciamento confiado aos seus líderes, normalmente representados por um ancião, o chefe linhageiro, que regulava a distribuição de terras para o uso familiar ou individual. A base da agricultura era de pousio, ou seja, de cultura de cultivo rotativa. À medida que as colheitas esgotavam o solo das aldeias, novos campos eram abertos em um sistema itinerante. [...] A água, assim como outros bens naturais, também era utilizada sob uma base comunitária. (SILVA, 2020SILVA, Flora Pereira. Percepções angolanas, meio ambiente e terra: uma ponte entre a crítica pós-colonial e a ecologia política. 2020. 166 f. Dissertação (Mestrado Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional) - Universidade Nacional de Brasília, Brasília, Distrito Federal, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40441/1/2020_FloraPereiradaSilva.pdf . Acesso em: 25 abr. 2022.
https://repositorio.unb.br/bitstream/104...
, p. 29).

A relação destes grupos humanos com o ambiente natural baseava-se, ainda, em uma complexa cosmologia referenciada a partir de aspectos da paisagem, como rios, árvores, pedras e serras. Essa integrava as pessoas e o território como uma coletividade única, na qual, muitas vezes, eram etabelecidos os limites dos territórios atribuídos a cada linhagem ao longo de gerações na memória dos mais velhos (SILVA, 2020SILVA, Flora Pereira. Percepções angolanas, meio ambiente e terra: uma ponte entre a crítica pós-colonial e a ecologia política. 2020. 166 f. Dissertação (Mestrado Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional) - Universidade Nacional de Brasília, Brasília, Distrito Federal, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40441/1/2020_FloraPereiradaSilva.pdf . Acesso em: 25 abr. 2022.
https://repositorio.unb.br/bitstream/104...
). Lembrando a figura de Kianda, divindade mitológica relacionada à natureza na capital angolana (soberana dos mares, rios, lagoas, fontes, charcos, outeiros e bosques) e popularizada por Pepetela (1995PEPETELA,-. O desejo de Kianda. Lisboa: Dom Quixote, 1995.) em O desejo de Kianda, obra em que a realidade e o realismo mágico se entrelaçam, Silva (2020SILVA, Flora Pereira. Percepções angolanas, meio ambiente e terra: uma ponte entre a crítica pós-colonial e a ecologia política. 2020. 166 f. Dissertação (Mestrado Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional) - Universidade Nacional de Brasília, Brasília, Distrito Federal, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40441/1/2020_FloraPereiradaSilva.pdf . Acesso em: 25 abr. 2022.
https://repositorio.unb.br/bitstream/104...
, p. 30) assinala que a interação entre as sociedades humanas e o ambiente natural era, no contexto pré-colonial angolano, marcada pela valorização do equilíbrio ecossistêmico e o seu uso racional. Adotava-se uma forma de domesticação do espaço mediante mecanismos integrativos segundo a qual o uso e a distribuição da terra para as populações era realizado com base em crenças sobrenaturais e no direito ancestral. Essa dinâmica seria profundamente alterada a partir da ocupação europeia da região, iniciada no final do século XV, mas tornada mais efetiva a partir do século XVI, aquando dos primeiros assentamentos permanentes portugueses e da escravização da população nativa que alimentou a expansão colonial portuguesa (SILVA, 2020SILVA, Flora Pereira. Percepções angolanas, meio ambiente e terra: uma ponte entre a crítica pós-colonial e a ecologia política. 2020. 166 f. Dissertação (Mestrado Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional) - Universidade Nacional de Brasília, Brasília, Distrito Federal, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40441/1/2020_FloraPereiradaSilva.pdf . Acesso em: 25 abr. 2022.
https://repositorio.unb.br/bitstream/104...
, p. 31) que importava e impunha um modelo de conhecimento agrícola distinto do autóctone e transposto a partir da experiência de outros contextos geográficos ocupados por Portugal.

Ainda que considerando que toda e qualquer sociedade humana modifica o ambiente natural que ocupa em maior ou menor escala (DUARTE, 2013DUARTE, Regina Horta. História e natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.; SCHAMA, 1996SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.) e que, de acordo com Keith Thomas em O Homem e o Mundo Natural (THOMAS, 1988THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500 - 1800). São Paulo: Companhia das Letras , 1998., p. 45), os muitos séculos da história das civilizações humanas ocidentais tenham baseado as percepções sobre a natureza em uma perspectiva antropocentrista que sujeita o mundo natural à revelia humana, é possível afirmar que a visão utilitarista da natureza enquanto fonte inesgotável de recursos fora um pressuposto do sistema colonial português que transformara significativamente a cultura e a paisagem angolana.

A partir do século XIX, quando da independência do Brasil (ocorrida em 1822), a colonização portuguesa de Angola torna-se mais intensa. À época, os arimos, modelo africano de produção agrícola tradicional africano que tinha por base a baixa produtividade, rotativa e extensiva, passaram a coexistir ou iam sendo substituídos por grandes fazendas de monocultoras voltadas ao mercado externo. Esse modelo europeu implantado afetava também os modelos tradicionais de pastorícia. Paralelo a isso, desenvolvia-se um processo de modernização e capitalização que desestruturava profundamente as comunidades tradicionais e seus modos de vida e existência (SILVA, 2020SILVA, Flora Pereira. Percepções angolanas, meio ambiente e terra: uma ponte entre a crítica pós-colonial e a ecologia política. 2020. 166 f. Dissertação (Mestrado Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional) - Universidade Nacional de Brasília, Brasília, Distrito Federal, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40441/1/2020_FloraPereiradaSilva.pdf . Acesso em: 25 abr. 2022.
https://repositorio.unb.br/bitstream/104...
).

Embora os depoimentos considerados nesta pesquisa refiram-se a um período já tardio da colonização de Angola (décadas de 1950 a 1970), a questão da transformação da paisagem como consolidação da ideia de progresso e desenvolvimento pode ser percebida em interlocuções que reforçam a existência de uma visão utilitarista dos recursos naturais, como explica Garcia:

Depois de estarem instalados em África, venderam tudo o que tinham em Portugal para investir em Angola. Ficaram com o terreno cedido pelo Estado Português e ainda compraram cerca de mil hectares, dos quais boa parte era uma floresta que foi derrubada e teve a madeira vendida. Chegaram a ter 200 cabeças de gado, tinham cerca de 20 pessoas (negros) a trabalhar para eles diariamente e produziam muito leite e culturas agrícolas. (GARCIA, 2022GARCIA, Nuno Miguel da Silva. Minha família em África. [Entrevista cedida a] Filipe Ribeiro, em 13 jan. 2022. Vila Real, 2022. 1 arquivo .mp3 (43 min.)., informação verbal).

De acordo com John M. Mendelsohn (2019MENDELSOHN, John M. Alterações paisagísticas em Angola. In: HUNTLEY, Brian J. et al. (ed.). Biodiversidade de Angola, ciência e conservação: uma síntese moderna. Porto: Arte e Ciência , 2019. p. 39-74. Disponível em: http://www.unescolifeonland.com/fotos/editor2/BiodiversidadeAngola_.pdf . Acesso em: 5 mar. 2022.
http://www.unescolifeonland.com/fotos/ed...
) em Alterações paisagísticas em Angola, a perda das florestas constitui a mais evidente alteração paisagística no país, ocasionada, principalmente, pelo desmatamento para a agricultura em pequena ou grande escala, mas também para a produção de lenha, carvão vegetal e extração de madeira. Como resultado, grandes áreas de florestas e de savanas foram transformadas em prados e florestas arbustivas (MENDELSOHN, 2019MENDELSOHN, John M. Alterações paisagísticas em Angola. In: HUNTLEY, Brian J. et al. (ed.). Biodiversidade de Angola, ciência e conservação: uma síntese moderna. Porto: Arte e Ciência , 2019. p. 39-74. Disponível em: http://www.unescolifeonland.com/fotos/editor2/BiodiversidadeAngola_.pdf . Acesso em: 5 mar. 2022.
http://www.unescolifeonland.com/fotos/ed...
, p. 174). Ainda segundo o autor, “[...] é verificável uma perda considerável de área de floresta entre as décadas de 1950 e 1970, particularmente nas florestas de altitude mais elevada, compreendendo áreas do Cuanza-norte, Cuanza-sul e Malanje” (MENDELSOHN, 2019MENDELSOHN, John M. Alterações paisagísticas em Angola. In: HUNTLEY, Brian J. et al. (ed.). Biodiversidade de Angola, ciência e conservação: uma síntese moderna. Porto: Arte e Ciência , 2019. p. 39-74. Disponível em: http://www.unescolifeonland.com/fotos/editor2/BiodiversidadeAngola_.pdf . Acesso em: 5 mar. 2022.
http://www.unescolifeonland.com/fotos/ed...
, p. 175).

Embora em termos coletivos e políticos a inserção de culturas agrícolas e pastoris intensivas, a construção de infraestruturas e a transformação da paisagem sejam pressupostos ligados à ideia de prosperidade da colônia e relacionadas com a ocorrência de impactos ambientais, em termos individuais ou, mais precisamente, no que concerne à consideração dos núcleos familiares que embasaram esta reflexão, é possível perceber que a transmissão geracional da memória sobre a paisagem angolana é repleta de afetividade e de intimidade, demonstrando um sentimento topofílico com relação à terra deixada em África:

O meu pai [...] lembrava-se bem da vida em Angola, tal como a minha mãe, com muita nostalgia. Falavam muito nisso. Têm boas recordações de lá. O clima era extremamente quente e úmido. Quando chovia muito, eles lembram-se do cheiro da terra molhada, que era diferente daqui. As frutas que cresciam o ano todo… (PINTO, 2022PINTO, Elisabete. [jan.2022]. Minha família em África. Entrevista concedida e Filipe Ribeiro em 19 de janeiro de 2022. Vila Real, 2022. 1 arquivo .mp3 (58 min.)., informação verbal).

De acordo com Tuan (1980TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Rio de Janeiro: Difel, 1980., p. 11), o sentido olfativo, no ser humano, extrapola uma questão instintiva. Tem o poder de evocar memórias vívidas, carregadas de emoção e de cenas do passado, trazendo à tona um complexo de sensações que evocam os demais sentidos, como a projeção de uma imagem, a sensação do tato, a nostalgia de um gosto. Constitui, assim, um importante meio de evocação de intimidade e de afeto.

Ainda sobre a questão da terra, a pós-memória dos entrevistados mostra-se construída a partir do reforço da noção da fertilidade e da prosperidade, a exemplo dos dois excertos que seguem: “A terra era muito fértil, muito rica e produtiva. Praticamente tudo crescia por lá.” (GARCIA, 2022GARCIA, Nuno Miguel da Silva. Minha família em África. [Entrevista cedida a] Filipe Ribeiro, em 13 jan. 2022. Vila Real, 2022. 1 arquivo .mp3 (43 min.)., informação verbal); “Uma coisa que o meu pai falava muito era dos coqueiros, das bananeiras, das frutas que cresciam rapidamente. Algumas variedades que para nós, aqui, são exóticas. Ele gosta, ainda hoje, dessas frutas, que cresciam por lá com grande facilidade, como a manga” (ROQUE, 2021ROQUE, Sónia. Minha família em África. [Entrevista cedida a] Filipe Ribeiro, em 15 dez. 2021. Vila Real, 2021. 1 arquivo .mp3 (52 min.)., informação verbal).

Tanto a questão da posse de terra como a disputa acerca de bens naturais vieram a se tornar importantes pontos aquando da explosão dos movimentos de independência e durante o agravamento da guerra civil em Angola (1961-1974) (SILVA, 2020SILVA, Flora Pereira. Percepções angolanas, meio ambiente e terra: uma ponte entre a crítica pós-colonial e a ecologia política. 2020. 166 f. Dissertação (Mestrado Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional) - Universidade Nacional de Brasília, Brasília, Distrito Federal, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40441/1/2020_FloraPereiradaSilva.pdf . Acesso em: 25 abr. 2022.
https://repositorio.unb.br/bitstream/104...
, p. 27). O direito à terra tornou-se um dos pilares do movimento de independência e foi decisivo para que grande parte da população rural simpatizasse de forma mais direta com as ideias nacionalistas e com a luta armada que se delineava (SILVA, 2020SILVA, Flora Pereira. Percepções angolanas, meio ambiente e terra: uma ponte entre a crítica pós-colonial e a ecologia política. 2020. 166 f. Dissertação (Mestrado Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional) - Universidade Nacional de Brasília, Brasília, Distrito Federal, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40441/1/2020_FloraPereiradaSilva.pdf . Acesso em: 25 abr. 2022.
https://repositorio.unb.br/bitstream/104...
, p. 48).

Retornar: “o maldito clima do norte”2 2 Araújo (2017, p. 146).

A Guerra Colonial eclodiu em 1961. Segundo Peralta e Oliveira (2016PERALTA, Elsa; OLIVEIRA, Joana Gonçalo. Pós-memória como herança: fotografia e testemunho do ‘retorno’ de África. Configurações, v. 17, p. 181-197, 2016. Disponível em: https://journals.openedition.org/configuracoes/3290# . Acesso em: 6 mar. 2022.
https://journals.openedition.org/configu...
, p. 182), os movimentos de libertação nacional angolanos tinham começado a se estruturar já a partir da década de 1950: o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola, fundado em 1956), a UPA/FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola, cuja origem remonta à União das Populações do Norte de Angola de 1954) e a Unita (União Nacional para a Independência Total de Angola, fundada em 1966). As autoras salientam que no decorrer dos anos em que durou o conflito armado nas colônias portuguesas (1961-1974), as populações colonas não demonstraram a intenção de regresso à metrópole (Portugal Continental), o que passa a ser verificável no período posterior ao 25 de Abril de 1974:

O futuro das colônias não era então ainda claro, embora dois meses após a mudança de regime em Portugal, alguns tivessem já cautelosamente tomado a iniciativa da partida. A grande vaga migratória acontece, porém, apenas a partir de meados de 1975, quando as lutas pelo poder entre os diferentes movimentos armados em Angola criam uma situação de colapso da ordem pública e de violência arbitrária. (PERALTA; OLIVEIRA, 2016PERALTA, Elsa; OLIVEIRA, Joana Gonçalo. Pós-memória como herança: fotografia e testemunho do ‘retorno’ de África. Configurações, v. 17, p. 181-197, 2016. Disponível em: https://journals.openedition.org/configuracoes/3290# . Acesso em: 6 mar. 2022.
https://journals.openedition.org/configu...
, p. 183).

A saída, o abandono passou a ocorrer principalmente através de uma ponte aérea envolvendo o exército e a aviação civil portuguesa, com o apoio da aviação norte-americana, russa, britânica, belga e alemã. Foram evacuados 260 mil indivíduos de Angola para Portugal entre meados de julho e novembro de 1975 (PERALTA; OLIVEIRA, 2016PERALTA, Elsa; OLIVEIRA, Joana Gonçalo. Pós-memória como herança: fotografia e testemunho do ‘retorno’ de África. Configurações, v. 17, p. 181-197, 2016. Disponível em: https://journals.openedition.org/configuracoes/3290# . Acesso em: 6 mar. 2022.
https://journals.openedition.org/configu...
, p. 184). Para Barros (2015BARROS, Eurico. Os retornados - agentes da interculturalidade colonial. E-Revista de Estudos Interculturais do CEI - ISCAP, n. 3, p. 1-40, maio 2015. Disponível em: https://parc.ipp.pt/index.php/e-rei/article/view/3912 . Acesso em: 10 de fev. 2022.
https://parc.ipp.pt/index.php/e-rei/arti...
, p. 6), “nas fugas deixava-se tudo o que levara anos a construir. Fugia-se sem se olhar a meios, pelas matas, de dia e de noite. O importante era fugir e chegar a Luanda para sair de Angola, sem saber bem o que fazer depois de estar no avião ou no barco”.

Considerar o trauma do retorno ocasionado de maneira massificada, um retorno que “[...] encobre identidades estilhaçadas e subjetividades divididas” (PERALTA, 2019PERALTA, Elsa. A integração dos “retornados” na sociedade portuguesa: identidade, desidentificação e ocultação. Análise Social, v. 54, n. 231, p. 310-337, 2019. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/n231_a04.pdf . Acesso em: 6 ago. 2022.
http://analisesocial.ics.ul.pt/documento...
, p. 312), marcado pela violência e pela nostalgia, é também considerar o abandono forçado de uma terra e de uma paisagem com as quais haviam constituído uma relação topofílica, íntima e pessoal. No romance Hotel do Norte (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, Rui Ângelo. Hotel do Norte. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2017.), a questão da identidade dos “retornados” perpassa de maneira acentuada pela questão da terra e dos recursos naturais deixados para trás. A inserção no cenário físico e geográfico transmontano fazia com que uma das personagens se sentisse transformada “[...] em outra pessoa desde que tinha saído de África. Sentia-se perdida como se lhe faltassem elementos de referência na paisagem, um chão estável que pisar” (ARAÚJO, 2017, p. 38), demonstrando que a partida do território de afetos contribuiu para a “fratura identitária” (PERALTA, 2019PERALTA, Elsa. A integração dos “retornados” na sociedade portuguesa: identidade, desidentificação e ocultação. Análise Social, v. 54, n. 231, p. 310-337, 2019. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/n231_a04.pdf . Acesso em: 6 ago. 2022.
http://analisesocial.ics.ul.pt/documento...
, p. 312).

O contraste entre a nostálgica paisagem angolana e a transmontana constitui parte do processo de (re)estabelecimento de “retornados”, que, para além do trauma concernente à violência e ao abrupto abandono de suas posses, se viam inseridos em um contexto físico que lhes era estranho, como descrito por Araújo (2017ARAÚJO, Rui Ângelo. Hotel do Norte. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2017.):

O sol nascia com atraso [...]. A localidade ficava num vale pouco largo entre duas pequenas localidades montanhosas. Quando, naquele outono, os primeiros raios banharam a terra em dias de céu descoberto, passava já das nove da manhã [...]. As folhas demoravam a cair e o arvoredo de copas densas lançava vastas zonas de sombra por todo lado. O Hotel do Norte, agora habitado por gente que na sua maior parte vivera em planícies, demorava a acordar. (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, Rui Ângelo. Hotel do Norte. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2017., p. 40).

Enquanto o clima da região transmontana de Portugal é refletido pelo ditado que anuncia “nove meses de inverno e três de inferno”, referindo-se às temperaturas amenas que predominam do final de setembro ao final de junho, em contraste com o calor que prevalece nos meses de verão, o clima angolano é assinalado pela ocorrência de duas estações climáticas bem definidas: a chuvosa e a seca, a segunda conhecida como estação do cacimbo. A estação chuvosa, que é mais úmida e quente, vai de setembro a abril, enquanto a estação seca abrange os meses de maio a agosto (NGOLO, 2014NGOLO, Aristides Osvaldo. Zoneamento agroclimático da cultura de café em Angola. 2014. 86 f. Dissertação (Mestrado em Agroecologia) - Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2014. Disponível em: https://www.locus.ufv.br/bitstream/123456789/6676/1/texto%20completo.pdf . Acesso em: 5 mar. 2022.
https://www.locus.ufv.br/bitstream/12345...
, p. 5).

Baixas temperaturas não fazem parte do clima das planícies angolanas e este elemento recebe atenção na obra de Araújo e também nas narrativas dos entrevistados, como refere Roque:

[...] o meu pai lembra-se das praias, das grandes avenidas, das palmeiras e do clima muito quente. Ele diz que entrava na água do mar e quando saía ficava logo seco, nem de toalha precisava. Lembro-me que falavam muito do clima, muito diferente do que encontraram em Portugal, quando regressaram. Já não estavam habituados. Não usavam muita roupa, porque pouco chovia, mas quando chovia era a sério. Quase como uma chuva torrencial. (ROQUE, 2021ROQUE, Sónia. Minha família em África. [Entrevista cedida a] Filipe Ribeiro, em 15 dez. 2021. Vila Real, 2021. 1 arquivo .mp3 (52 min.)., informação verbal)

Na obra ficcional, os personagens haviam chegado à região de Trás-os-Montes no verão e à medida que os meses iam passando e aproximava-se o início da época característica das temperaturas mais baixas, narra-se o sentimento de uma das personagens que “[...] receava o inverno. Não o experimentara ainda, mas conhecia as histórias [...] que mencionavam ventos cortantes, chuva de pedras de gelo, neve que durava dias, cobertores de cama rígidos com a geada” (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, Rui Ângelo. Hotel do Norte. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2017., p. 83).

A região do norte de Portugal, para além de apresentar aspectos geomorfológicos e fitotípicos distintos dos de Angola, tem sua paisagem densamente antropizada, principalmente nos últimos três séculos. A engenharia da terra empregada no cultivo de vinhas faz com que as montanhas quase nuas pareçam onduladas. Os imbondeiros, ali, não existem. Amendoeiras, castanheiras, oliveiras, sombreiros e pinheiros bravos delineiam o cenário agrícola que no outono é pintado em tons de castanho, junto do amarelo das mimosas que florescem e do alaranjado dos dióspiros que envergam os galhos das árvores. Caracterizado por uma geografia que alterna súbitas elevações a zonas de vales, a formação de nevoeiros confunde-se com o fumo emitido pelas chaminés das habitações, levando ao amanhecer tardio no outono e no inverno:

O sol de outono rompera finalmente o nevoeiro [...]. A vegetação era agora baixa, giestas, urze, e havia aflorações graníticas, superfícies arredondadas com manchas de musgo. [...] No fundo da encosta prolongada e despida que subia até onde umas antenas assinalavam o cume, parecia uma terra bonita, vista dali. (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, Rui Ângelo. Hotel do Norte. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2017., p. 103).

O retorno súbito desses milhares de pessoas de África exigira do Estado Português uma série de medidas para a integração econômica e social dos “retornados”. Um dos esforços preocupava-se em distribuí-los no território respeitando o historial geográfico de sua ascendência em Portugal (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, Rui Ângelo. Hotel do Norte. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2017., p. 146). Na região de Trás-os-Montes, estima-se que, em 1976, a população de “retornados” superasse as 18 mil pessoas, o equivalente a cerca de 10% da população local (BORGES, 1978BORGES, Vilela. Retornados em Trás-os-Montes: um peso ou factor de crescimento? Vila Real: Núcleo Cultural Municipal, 1978., p. 12).

Embora especificamente (mas não exclusivamente) nesse recorte geográfico, muitas famílias portuguesas abrigassem os seus parentes provenientes das colônias portuguesas em África, construções desabitadas passaram a ser utilizadas como residências temporárias, a exemplo de estruturas turísticas. Foi o caso de Pedras Salgadas e Vidago, duas estâncias termais do interior de Trás-os-Montes. Os empreendimentos tiveram alguns dos seus estabelecimentos hoteleiros que se encontravam fechados à época ocupados por grupos de “retornados”, estes alocados de acordo com a procedência geográfica de seus antepassados, mas que, à ocasião do retorno, já não dispunham de retaguarda familiar que lhes possibilitassem outro tipo de abrigo.

Noutras localidades do distrito, como Vila Real, Vila Pouca de Aguiar e Chaves, foram improvisados, nas periferias de aglomerados populacionais, bairros residenciais com acesso a materiais precários, de baixo custo, resultado de uma doação em massa por parte de uma organização norueguesa chamada NORAD, acrónimo para Norwegian Agency for Development Cooperation. Com fins solidários, a Agência Norueguesa para o Desenvolvimento Cooperativo (em tradução livre) diligenciou, no pós-25 de Abril, alojar centenas de milhares de pessoas que regressavam, em massa, das ex-colônias africanas. Hoje, há centenas de Bairros NORAD (posteriormente reconstruídos) por todo o país, fruto da iniciativa solidária do país escandinavo. Assim, placas de madeira contraplacadas, chapas de metal, entre outros materiais que pudessem servir como componentes para a construção precária e, sobretudo, célere de casas com mínimas condições de habitabilidade (algumas não possuíam, sequer, banheiros), faziam parte da nova configuração da paisagem que se delineava no norte de Portugal.

Na tentativa, muitas vezes gorada, de reinserção social dessas pessoas em suas regiões de origem familiar, criaram-se programas de integração destes grupos no mercado de trabalho, em especial na Função Pública. De facto, os “retornados”, através do Quadro Geral de “Adidos”, um programa especial de contratação, ficaram em posição de prioridade em concursos que promoviam a empregabilidade na Função Pública.3 3 O Quadro Geral de Adidos era figura legal que permitia aos funcionários públicos nas ainda colônias pedirem a transferência para Portugal (MATOS, 2015).

Ao nível local, em Vila Real, o impacto sentiu-se sobretudo na constituição do Instituto Politécnico de Vila Real (IPVR), hoje Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), entre 1975 e 1976. Esta nova instituição, à época, mais necessitada por isso de recursos humanos, beneficiou dos quadros superiores (entre outros) que regressaram de Angola e de Moçambique e que desempenharam funções nas duas grandes universidades das ex-colónias: a de Luanda e a de Lourenço Marques.

O fenômeno notou-se, inclusive, noutras regiões e noutros setores da economia, não sendo exclusivo do setor público. Bruno Faria Lopes, em artigo publicado na Revista Sábado (LOPES, 2019LOPES, Bruno Faria. Como os Retornados Mudaram Portugal. Revista Sábado, 3 nov. 2019. Disponível em: https://www.sabado.pt/vida/detalhe/20191103-1101-como-os-retornados-mudaram-portugal . Acesso em: 1 abr. 2022.
https://www.sabado.pt/vida/detalhe/20191...
), escreveu que os portugueses provenientes das antigas colónias “criaram empresas, hospitais e universidades”, “revolucionando os costumes e as artes”. Tal é justificado, em parte, pelo nível de escolaridade dos “retornados”, muito superior em comparação à população residente, um fenômeno mais acentuado na região transmontana.

Considerações finais

As considerações que fazem Ribeiro e Ribeiro (2013RIBEIRO, Margarida Calafate; RIBEIRO, António Souza. Os netos que Salazar não teve: Guerra colonial e memória de segunda geração. Abril, v. 5, n. 11, p. 25-36, 2013. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5616391 . Acesso em: 13 nov. 2021.
https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti...
) sobre a questão da pós-memória acerca da Guerra Colonial vão ao encontro de muitas das percepções que essa investigação suscitou. A paisagem angolana, na memória dos interlocutores, é representada a partir de “[...] fragmentos dispersos de narrativas [...], da ressignificação e da concomitante projeção ao espaço público de memórias muitas vezes antes vividas apenas na esfera privada” as quais, “[...] longe de limitadas à transmissão linear de um conhecimento sobre o passado, se constituem como uma rede discursiva multifacetada” (RIBEIRO: RIBEIRO, 2013RIBEIRO, Margarida Calafate; RIBEIRO, António Souza. Os netos que Salazar não teve: Guerra colonial e memória de segunda geração. Abril, v. 5, n. 11, p. 25-36, 2013. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5616391 . Acesso em: 13 nov. 2021.
https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti...
, p. 34-35).

Criadas a partir das narrativas familiares topofílicas que evocam o exotismo da paisagem, a ligação com a fertilidade da terra e o clima tropical, a memória dos filhos dos “retornados” não conjuga uma mera reprodução de memórias transmitidas: é atravessada por experiências pessoais, por obras ficcionais, por meios de comunicação e pela própria opinião pública.

A análise das entrevistas permite refletir sobre a forma como o sistema colonial apresenta dissonâncias nas esferas coletiva e particular: a transformação da paisagem e a implementação de um modelo de exploração de terras estranho à realidade nativa, requisito apregoado para a prosperidade da colônia, não impede a criação de um sentimento de ligação das famílias de colonos com a paisagem de Angola. O sentimento em questão extrapola o mero interesse econômico de constituição de condições financeiras e de status social para consolidar uma intensa nostalgia com relação à paisagem forçosamente deixada. As narrativas evocam o olfato, o paladar e o tato, sentidos íntimos relacionados à rememoração dos elementos paisagísticos que ficaram para trás, provando que a relação de afetos com o território angolano se transmite como pós-memória.

A ausência desses elementos reflete-se no estranhamento à paisagem transmontana aquando das “migrações da descolonização” (PERALTA, 2019PERALTA, Elsa. A integração dos “retornados” na sociedade portuguesa: identidade, desidentificação e ocultação. Análise Social, v. 54, n. 231, p. 310-337, 2019. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/n231_a04.pdf . Acesso em: 6 ago. 2022.
http://analisesocial.ics.ul.pt/documento...
, p. 311). Mais do que isso, a chegada dos portugueses das ex-colônias ocasiona, em si, a necessidade de reconfiguração dos espaços e da paisagem do norte de Portugal. Os impactos dessa nova configuração, do trauma ocasionado e as muitas memórias e pós-memórias envolvidas são assuntos que estão sendo investigados pelo segundo autor em sua tese de doutoramento.

Referências

  • ARAÚJO, Rui Ângelo. Hotel do Norte Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2017.
  • BARROS, Eurico. Os retornados - agentes da interculturalidade colonial. E-Revista de Estudos Interculturais do CEI - ISCAP, n. 3, p. 1-40, maio 2015. Disponível em: https://parc.ipp.pt/index.php/e-rei/article/view/3912 Acesso em: 10 de fev. 2022.
    » https://parc.ipp.pt/index.php/e-rei/article/view/3912
  • BERNARDO, Félix Capoco; QUISSINDO, Isaú Alfredo Berbardo. Análise espacial de zonas agrícolas em cinco fazendas do município da Cela, Cuanza Sul, Angola. In: Congresso Virtual de Agronomia, 9, 2021, São Paulo, SP. Anais [...]. São Paulo: Convibra, 2021. Disponível em: https://convibra.org/publicacao/26183/ Acesso em: 5 mar. 2021.
    » https://convibra.org/publicacao/26183/
  • BORGES, Vilela. Retornados em Trás-os-Montes: um peso ou factor de crescimento? Vila Real: Núcleo Cultural Municipal, 1978.
  • CASTELO, Cláudia. Migração ultramarina: contradições e constrangimentos. Ler história, n. 56, p. 71-85, 2009. Disponível em: https://journals.openedition.org/lerhistoria/1950 Acesso em: 22 mar. 2022.
    » https://journals.openedition.org/lerhistoria/1950
  • DEUS, José Antônio Souza de; ALVES, Rahyan de Carvalho; NOGUEIRA, Marly. Homem, lugar & paisagem - topofilia e topofobia: reflexões sobre o patrimônio histórico, arquitetônico e urbanístico de Diamantina-MG. Revista Caminhos da História, v. 18, n.1, p. 13-26, 2013. Disponível em: https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/caminhosdahistoria/article/view/3223 Acesso em: 5 fev. 2021.
    » https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/caminhosdahistoria/article/view/3223
  • DRUMMOND, José Augusto. História Ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 177-197, 1991.
  • DUARTE, Regina Horta. História e natureza Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
  • GARCIA, Nuno Miguel da Silva. Minha família em África. [Entrevista cedida a] Filipe Ribeiro, em 13 jan. 2022. Vila Real, 2022. 1 arquivo .mp3 (43 min.).
  • HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva São Paulo: Edições Centauro, 2006.
  • HIRSCH, Marianne. A geração da pós-memória. In: ALVES, Fernanda Mota; SOARES, Luisa Afonso; RODRIGUES, Cristiana Vasconcelos. Estudos de memória: teoria e análise cultural. Vila Nova da Famalicão: Edições Húmus, 2016. p. 299-326.
  • HIRSCH, Marianne. Family Frames: photography narrative and postmemory Harvard: University Press, 1997.
  • HUNTLEY, Brian J. Angola, um perfil: fisiografia, clima e padrões de biodiversidade. In: HUNTLEY, Brian J. et al (ed.). Biodiversidade de Angola, ciência e conservação: uma síntese moderna. Porto: Arte e Ciência, 2019. p. 39-74. Disponível em: http://www.unescolifeonland.com/fotos/editor2/BiodiversidadeAngola_.pdf Acesso em: 5 mar. 2022.
    » http://www.unescolifeonland.com/fotos/editor2/BiodiversidadeAngola_.pdf
  • LOPES, Bruno Faria. Como os Retornados Mudaram Portugal. Revista Sábado, 3 nov. 2019. Disponível em: https://www.sabado.pt/vida/detalhe/20191103-1101-como-os-retornados-mudaram-portugal Acesso em: 1 abr. 2022.
    » https://www.sabado.pt/vida/detalhe/20191103-1101-como-os-retornados-mudaram-portugal
  • MACHADO, Bruno. Os filhos dos “retornados”: a experiência africana e a criação de memórias, pós-memórias e representações na pós-colonialidade. 2011. 136 f. Dissertação (Mestrado em População, Sociedade e Território) - Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/6868/1/igotul001402_tm.pdf Acesso em: 13 nov. 2021.
    » https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/6868/1/igotul001402_tm.pdf
  • MATOS, Helena. Chamaram-lhe retornados. Observador, Lisboa, 11 abr. 2015. Disponível em: https://observador.pt/especiais/chamaram-lhes-retornados/ Acesso em: 9 jun. 2022.
    » https://observador.pt/especiais/chamaram-lhes-retornados/
  • MENDELSOHN, John M. Alterações paisagísticas em Angola. In: HUNTLEY, Brian J. et al (ed.). Biodiversidade de Angola, ciência e conservação: uma síntese moderna. Porto: Arte e Ciência , 2019. p. 39-74. Disponível em: http://www.unescolifeonland.com/fotos/editor2/BiodiversidadeAngola_.pdf Acesso em: 5 mar. 2022.
    » http://www.unescolifeonland.com/fotos/editor2/BiodiversidadeAngola_.pdf
  • MORIN, Edgar. El pensamiento Ecologizado. Gazeta de Antopología, v. 12, n. 1, 1996. Disponível em: https://www.ugr.es/~pwlac/G12_01Edgar_Morin.html Acesso em: 12 mar. 2021.
    » https://www.ugr.es/~pwlac/G12_01Edgar_Morin.html
  • NGOLO, Aristides Osvaldo. Zoneamento agroclimático da cultura de café em Angola 2014. 86 f. Dissertação (Mestrado em Agroecologia) - Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2014. Disponível em: https://www.locus.ufv.br/bitstream/123456789/6676/1/texto%20completo.pdf Acesso em: 5 mar. 2022.
    » https://www.locus.ufv.br/bitstream/123456789/6676/1/texto%20completo.pdf
  • NUNES, Margarete; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; FIGUEIREDO, João Alcione. Memória do trabalho e memória ambiental: as indústrias de curtume do Vale do Rio dos Sinos/RS. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 173-188, jan./abr. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbeur/a/KWfwG8BzLz4bV7L5r5jvCFB/?format=pdf⟨=pt Acesso em: 22 ago. 2021.
    » https://www.scielo.br/j/rbeur/a/KWfwG8BzLz4bV7L5r5jvCFB/?format=pdf⟨=pt
  • PEPETELA,-. O desejo de Kianda Lisboa: Dom Quixote, 1995.
  • PERALTA, Elsa. A integração dos “retornados” na sociedade portuguesa: identidade, desidentificação e ocultação. Análise Social, v. 54, n. 231, p. 310-337, 2019. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/n231_a04.pdf Acesso em: 6 ago. 2022.
    » http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/n231_a04.pdf
  • PERALTA, Elsa. The retornados from Portuguese Colonies in Africa: memory, narrative and history. New York: Routledge, 2022.
  • PERALTA, Elsa; OLIVEIRA, Joana Gonçalo. Pós-memória como herança: fotografia e testemunho do ‘retorno’ de África. Configurações, v. 17, p. 181-197, 2016. Disponível em: https://journals.openedition.org/configuracoes/3290# Acesso em: 6 mar. 2022.
    » https://journals.openedition.org/configuracoes/3290#
  • PINTO, Elisabete. [jan.2022]. Minha família em África. Entrevista concedida e Filipe Ribeiro em 19 de janeiro de 2022. Vila Real, 2022. 1 arquivo .mp3 (58 min.).
  • PORTELA, José; CALDAS, João Castro. Portugal Chão Oeiras: Celta Editora, 2003.
  • PORTUGAL. Acto Colonial - Decreto-lei nº 22:465 Paços do Governo da República, 11 abr. 1933. 9 p. Disponível em: https://www.parlamento.pt/Parlamento/Documents/acto_colonial.pdf Acesso em: 3 de out. 2021.
    » https://www.parlamento.pt/Parlamento/Documents/acto_colonial.pdf
  • PRESTES, João Dias; PRESTES, Elenita Malta. A primeira aula de História Ambiental na UFRGS: Uma experiência no Ensino de História (2012-2013). Revista do Lhiste, v. 4, n. 6, p. 70-89, jan./dez. 2017.
  • RIBEIRO, Margarida Calafate; RIBEIRO, António Souza. Os netos que Salazar não teve: Guerra colonial e memória de segunda geração. Abril, v. 5, n. 11, p. 25-36, 2013. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5616391 Acesso em: 13 nov. 2021.
    » https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5616391
  • RIOS, Fábio. Memória coletiva e lembranças individuais a partir das perspectivas de Maurice Halbwachs, Michael Pollak e Beatriz Sarlo. Revista Intratextos, v. 5, n. 1, p. 1-22, 2013.
  • ROQUE, Sónia. Minha família em África. [Entrevista cedida a] Filipe Ribeiro, em 15 dez. 2021. Vila Real, 2021. 1 arquivo .mp3 (52 min.).
  • SANTOS, Davide. O Estado Novo na segunda metade do século XX - Economia. Conhecer a história, 29 fev. 2012. Disponível em: http://conhecerahistoria12.blogspot.com/2012/02/o-estado-novo-na-segunda-metade-do.html Acesso em: 22 mar. 2022.
    » http://conhecerahistoria12.blogspot.com/2012/02/o-estado-novo-na-segunda-metade-do.html
  • SCHAMA, Simon. Paisagem e memória São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  • SILVA, Flora Pereira. Percepções angolanas, meio ambiente e terra: uma ponte entre a crítica pós-colonial e a ecologia política. 2020. 166 f. Dissertação (Mestrado Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional) - Universidade Nacional de Brasília, Brasília, Distrito Federal, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40441/1/2020_FloraPereiradaSilva.pdf Acesso em: 25 abr. 2022.
    » https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40441/1/2020_FloraPereiradaSilva.pdf
  • SIMMEL, George. A filosofia da paisagem Covilhã: Luso Sofia Press, 2009.
  • THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500 - 1800). São Paulo: Companhia das Letras , 1998.
  • TUAN, Yi-Fu. Espaço, tempo, lugar: um arcabouço humanista. Geograficidade, v. 1, n. 1 p. 4-15, jun./set. 2011. Disponível em: https://periodicos.uff.br/geograficidade/article/view/12804 Acesso em: 14 jan. 2020.
    » https://periodicos.uff.br/geograficidade/article/view/12804
  • TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Rio de Janeiro: Difel, 1980.
  • VIEIRA, José Luandino. A vida verdadeira de Domingos Xavier Lisboa: Caminho, 2003.
  • 1
    Este trabalho é financiado por fundos nacionais portugueses através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático), Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade; e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) do Ministério da Educação do Brasil no âmbito do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), com a referência ao processo nº 88881.624532/2021-01.
  • 2
    Araújo (2017ARAÚJO, Rui Ângelo. Hotel do Norte. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2017., p. 146).
  • 3
    O Quadro Geral de Adidos era figura legal que permitia aos funcionários públicos nas ainda colônias pedirem a transferência para Portugal (MATOS, 2015MATOS, Helena. Chamaram-lhe retornados. Observador, Lisboa, 11 abr. 2015. Disponível em: https://observador.pt/especiais/chamaram-lhes-retornados/ . Acesso em: 9 jun. 2022.
    https://observador.pt/especiais/chamaram...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2022
  • Aceito
    04 Set 2022
Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF) Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, Bloco C - sala 518, CEP 24210-201 - Niterói, Rio de Janeiro, Brasil., Telefone +55 21 2629-2600 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: gragoata.egl@id.uff.br