Acessibilidade / Reportar erro

O olhar ecocrítico de Boaventura Cardoso em Margens e Travessias

Boaventura Cardoso’s Eco-critical Gaze in Margens e Travessias

RESUMO

Este artigo tem em conta a particularidade da “geografia também [como protagonizadora da] construção romanesca” no romance Margens e travessias de Boaventura Cardoso, pretendendo analisar o seu olhar eco-crítico. Sublinha-se o “crítico” da palavra que se estabeleceu como enunciadora de um conjunto de teorias sobre a relação da literatura com a natureza, para enfatizar a agudeza e acutilância do olhar narrativo num livro em que pouco ou nada escapa no percurso pela História de Angola em que o leitor se vê imerso. Através do percurso dos rios e das descrições da natureza, ligados a um mundo anterior ao colonial e, consequentemente, à exploração capitalista, o verdadeiro intento do livro é o da re-escrita da História e melhor entendimento sobre o passado, convidando o leitor a ter em atenção o diálogo mútuo entre homem e natureza, dominador e dominado, e opressor e vítima, em vista de uma possível política de conciliação no futuro de Angola.

Palavras-chave:
Ecocrítica; História; Memória; Boaventura Cardoso

ABSTRACT

This article takes into account the particularity of “geography also [as the protagonist of] the novelistic construction” in the novel Margens e travessias by Boaventura Cardoso, intending to analyze its eco-critical perspective. The “critical” of the word is highlighted, which established itself as an enunciator of a set of theories about the relationship between literature and nature to emphasize the sharpness of the narrative gaze in a book in which little or nothing escapes in the path through the History of Angola, in which the reader is immersed. Through the course of rivers and descriptions of nature, linked to a world prior to colonialism and, consequently, to capitalist exploitation, the book’s true intention is to re-write History and better understand the past, inviting the reader to have attention to the mutual dialogue between man and nature, dominator and dominated, and oppressor and victim, in view of a possible policy of conciliation in the future of Angola.

Keywords:
Ecocriticism; History; Memory; Boaventura Cardoso

Escritor que certamente dispensa apresentações demoradas, Boaventura Cardoso tem contribuído para a consolidação da literatura angolana da pós-independência desde a década de 1970, com o livro de contos Dizanga dya MuenhuCARDOSO, Boaventura. Dizanga dya Muenhu. Portugal: Edições 70, 1977. , em 1977, a que se seguiram novas coletâneas, como O fogo da fala (1980CARDOSO, Boaventura. O fogo da fala. Angola: União dos Escritores Angolanos, 1980.) e A morte do velho Kipacaça (1987CARDOSO, Boaventura. A morte do velho Kipacaça. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1987.). Publicou, ainda, os romances O signo do fogo (1992CARDOSO, Boaventura. O signo do fogo. Porto: ASA Literatura, 1992.), Maio, mês de Maria (1997CARDOSO, Boaventura. Maio, mês de Maria. Porto: Campo das Letras, 1997. ) e Mãe, materno mar (2001CARDOSO, Boaventura. Mãe, materno mar. Porto: Campo das Letras, 2001. ), ao qual foi atribuído o Prémio Nacional de Cultura e Artes, na área de Literatura. Mais recentemente trouxe a público as obras Noites de vigília (2012CARDOSO, Boaventura. Noites de vigília. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2012. ) e Margens e travessias (2021), esta última alvo de atenção neste artigo. Margens e travessias destaca-se por ter recentemente recebido o Prémio de Literatura dstAngola/Camões (2022).

De acordo com o júri do concurso Literatura dstAngola/Camões, Boaventura Cardoso afirma-se como “um dos melhores prosadores da História da Literatura Angolana [...], constrói um romance que se constitui fundamental para quem queira conhecer a Angola do último meio século,” ao que acrescenta,

Entre o imaginário, o realista, o religioso, o musical (o refrão que percorre uma das principais figuras do seu romance, da sua vida!), Boaventura Cardoso recorre aos mesmos métodos que fizeram dele um dos melhores prosadores da História da Literatura Angolana: uma disciplina férrea, um profundo conhecimento da realidade, uma observação lúcida e inteligente de tudo quanto se vai passando à sua (à nossa...) volta, e constrói um romance que se constitui fundamental para quem queira conhecer a Angola do último meio século. (LUSA, 2022LUSA. Escritor Boaventura Cardoso vence prémio de literatura dstAngola/Camões. RTP Notícias, 15 jul. 2022.Disponível em: https://www.rtp.pt/noticias/cultura/escritor-boaventura-cardoso-vence-premio-de-literatura-dstangolacamoes_n1419972 . Acesso em: 16 jul. 2022.
https://www.rtp.pt/noticias/cultura/escr...
, n.p.).

Essa opinião é corroborada pelos críticos da obra dos quais se destaca Tânia MacedoMACEDO, Tânia. Contracapa. In: CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021. n. p. que, na contracapa do livro, elabora o seguinte comentário: “A literatura angolana finalmente tem um épico que a representa magnificamente. Por meio dos cursos dos rios, portanto da geografia do território, em Margens e travessias, a ficção se constitui em imagem fertilizada pela história” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., n.p.). A crítica destaca ainda

A escrita cativante do livro, o fluxo das águas, dos acontecimentos e das estórias constituem uma aventura literária das mais interessantes e estimulantes, pois, a partir do murmúrio dos rios, ouvem-se as falas dos mais velhos que nos revelam o passado, mas também os discursos dilemáticos do presente, atravessados pela política. (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., n.p.).

Carmen Lúcia Tindó Secco afirma no artigo “De rios e memórias: cartografia histórico-literária de Angola” que Boaventura Cardoso “por intermédio do processo de encaixe, arquiteta um romance em que várias narrativas saem umas das outras, tecendo um amplo panorama histórico de Angola, desde a época colonial até o período da pós-independência” (SECCO, 2022SECCO, Carmen Lúcia Tindó. De rios e memórias: cartografia histórico-literária de Angola. Pressreader, 24 jul. 2022. Disponível em: https://www.pressreader.com/ . Acesso em: 30 jul. 2022.
https://www.pressreader.com/...
, n.p.). A estudiosa afirma igualmente que Margens e travessias, por meio de uma “grafia hídrica e cronotópica, entrelaça rios, tempos, espaços, memórias. É um romance histórico polifônico, em que a geografia também protagoniza a construção romanesca, cujas inúmeras travessias das personagens narradoras penetram margens submersas da história de Angola, ao mesmo tempo que, pelo labor poético, alcançam a ‘terceira margem’ da linguagem” (SECCO, 2022SECCO, Carmen Lúcia Tindó. De rios e memórias: cartografia histórico-literária de Angola. Pressreader, 24 jul. 2022. Disponível em: https://www.pressreader.com/ . Acesso em: 30 jul. 2022.
https://www.pressreader.com/...
, n.p.). Não subestimando a importância da vertente da memória1 1 Não nos esqueçamos de um outro estudo de Carmen Tindó Secco em que a crítica afirma que “atualmente, quando se completam quarenta anos da independência de Angola, observamos que alguns dos romances angolanos contemporâneos se constituem como escritas de memórias que revisitam e colocam em questão os meandros da história do país, ao mesmo tempo que repensam aspectos culturais da sociedade angolana” (SECCO, 2015, p. 46-47). no romance que só por si dava azo a um estudo, quero ter em conta esta particularidade da “geografia também [como protagonizadora da] construção romanesca”, pretendendo neste espaço analisar o olhar eco-crítico de Boaventura Cardoso. Sublinho o “crítico” da palavra, estabelecida como enunciadora de um conjunto de teorias sobre a relação da literatura com a natureza, para enfatizar a agudeza e acutilância do olhar narrativo num livro em que pouco ou nada escapa no percurso pela História de Angola em que o leitor se vê imerso. Como afirma João Melo:

Está lá tudo, em “Margens e Travessias”: os reinos tradicionais que existiam no atual território angolano, os conflitos e guerras entre eles, assim como os entendimentos e acordos a que eventualmente chegavam; o contacto com os europeus, a partir do século 15; as guerras de resistência opostas pelos diferentes reinos tradicionais à presença dos colonizadores; a implantação do colonialismo; o surgimento do moderno nacionalismo angolano; a guerra pela independência; a guerra civil e as invasões zairense e sul-africana antes da independência; a aventura socialista das primeiras décadas da independência; os conflitos internos no MPLA, partido que proclamou a independência em 1975, nomeadamente a intentona de 27 de maio de 1977 e a sangrenta repressão que se lhe seguiu; a guerra civil pós-independência; o fim do socialismo e a adoção do capitalismo; a corrupção; a securitização do regime; o crescente recurso à religião, como última e aparente tábua de salvação, diante da degradação geral. (MELO, 2021MELO, João. Um grande romance angolano. sinalAberto, 13 dez. 2021. Disponível em: https://sinalaberto.pt/um-grande-romance-angolano/ . Acesso em: 16 jul. 2022.
https://sinalaberto.pt/um-grande-romance...
, n.p.).

O romance leva-nos a refletir sobre o passado colonial que culminou numa longa guerra para a independência de Angola, a posterior guerra civil e as suas heranças no presente do país. Através do percurso dos rios e das descrições da natureza, ligados a um mundo anterior ao colonial e, consequentemente, à exploração capitalista, o verdadeiro intento do livro é o da re-escrita da História e melhor entendimento sobre o passado, convidando o leitor a ter em atenção o diálogo mútuo entre homem e natureza, dominador e dominado, e opressor e vítima, em vista de uma possível política de conciliação no futuro de Angola. Boaventura Cardoso alerta, descolonizando o olhar do leitor, fundando-se em uma visão ecocrítica para as consequências de se esquecer o passado e as relações “harmosiosas” entre homem e natureza. O romance ilumina ainda o que ficou nas sombras da memória histórica e desafia o leitor a interrogar-se sobre a normalização das rasuras deixadas pela memória da História oficial.

De facto, nesse livro, Boaventura Cardoso segue uma longa tradição de escrita e retórica ambiental. No entanto, a especificidade da sua narrativa também a liga a uma importante tradição nas letras africanas. Byron Caminero-Santangelo lembra-nos de que a história de culturas africanas pré-coloniais vistas como naturais e harmoniosas, e o impacto corruptor do colonialismo foram um aspecto proeminente nas mesmas da Negritude que começou na década de 1930 e continua proeminente na poesia, ficção e drama africanos (CAMINERO-SANTANGELO 2014CAMINERO-SANTANGELO, Byron. Different shades of green: African literature, environmental justice, and political ecology. Charlottesville: University of Virginia Press, 2014. ). Essas narrativas têm, normalmente, como finalidade, uma contra-narrativa, ou seja, elas criam histórias que desafiam as representações imperiais de África, nas quais o continente é definido pela negação (ausência de história, desenvolvimento, civilização etc.) e em que a interferência do conquistador europeu é uma necessidade para a ordenação adequada da natureza (selvagem) e educação (civilização) dos seus povos. De acordo com Gayatri Spivak, essas representações fazem parte de uma “‘worlding’ of what is today called ‘the Third World’”2 2 “mundialização do que hoje é chamado de ‘Terceiro Mundo.’” (SPIVAK, 1985, p. 247, tradução nossa). (SPIVAK, 1985SPIVAK, Gayatri. The Rani of Sirmur: an essay in reading the archives. History and Theory, v. 24, n. 3, p. 247-272, 1985., p. 247), em que lugares e povos são colocados numa ordem global hierárquica de acordo com o seu progresso relativo numa linha temporal universal de desenvolvimento. Nesta ordem, a África e os africanos estão sempre na base, sem nenhum histórico de prática agrícola ou ambiental efectiva. Daí que Spivak tenha chamado a atenção para se pensar “of the Third World as distant cultures, exploited but with rich intact heritages waiting to be recovered, interpreted, and curricularized in English translation”3 3 “do Terceiro Mundo como culturas distantes, exploradas, mas com ricas heranças intactas esperando serem recuperadas, interpretadas e curricularizadas em tradução inglesa.” (SPIVAK, 1985, p. 247, tradução nossa). (SPIVAK, 1985SPIVAK, Gayatri. The Rani of Sirmur: an essay in reading the archives. History and Theory, v. 24, n. 3, p. 247-272, 1985., p. 247). No entanto, a solução de Spivak não é a mais eficaz, uma vez que ainda é um discurso protegido por uma certa forma de cumplicidade colonial, à qual a obra de Boaventura Cardoso não se deixa submeter. Margens e travessias torna visível na representação literária o que se tornou invisível na memória histórica, trazendo para plano principal sujeitos históricos subalternos e desvalorizados no contexto da revolução socialista-marxista do pós-independência. Tal é feito, por exemplo, por meio do protagonismo do Soba Kitekulu, que, nas suas epístolas ao Comissário Provincial, se evidencia mais educado e inteligente que este (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021.) e, ironicamente, critica o socialismo científico ao afirmar: “não adianta nada estarmos aqui a pregar [...] enquanto tivermos fome”, e prossegue: “(Vais ver, então, a diferença entre viver no Palácio do Povo e viver aqui. Gostaria que viesses para aqui pregar o tal socialismo e de mãos a abanar, sem trazeres nada; sairia daqui à paulada, que este povo, até nisso, é muito revolucionário)” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 117-118).

Não sendo o primeiro livro a surgir nas literaturas luso-africanas que retratam rios, margens e travessias, a que temos como exemplos O livro dos rios (2006VEIRA, Luandino. O livro dos rios. Lisboa: Caminho, 2006.), de Luandino Veira, e As duas sombras do rio (2003COELHO, João Paulo Borges. As duas sombras do rio. Portugal: Editorial Caminho, 2003. ), de João Paulo Borges Coelho, pode afirmar-se, contudo, e discutivelmente, que Margens e travessias é o que, para além de nele se multiplicarem “os recursos para estabelecer uma ponte entre as matrizes da tradição e as referências da modernidade, equação tão complicada quanto essencial no mapa cultural e literário das sociedades africanas” (CHAVES, 2006CHAVES, Rita. Das águas antigas e dos mapas reiventados em O livro dos rios, de José Luandino Vieira. Via Atlântica, v. 9, p. 249-252, 2006. , p. 251), nos faz pensar sobre as mudanças ambientais reais forjadas pela ideologia e política colonial e pós-colonial e nos benefícios de práticas ambientais e epistemologias indígenas concretamente definidos. Concomitantemente, é ainda em Margens e travessias que nos surge uma plena fusão de homem-natureza simbolizada em alguns dos personagens da obra: tal é o caso de Manimaza, uma espécie de feiticeiro, e do Homem-Mandioca, como veremos em mais detalhe.

A narrativa abre com a descrição do rio Ngola, remetendo o leitor para o passado mais distante, o da colonização portuguesa do território angolano, para a exploração e expropriação de terras e matérias-primas além da além da escravidão e tráfico de seres humanos e comercialização de bens entre o continentecontinente africano e as Américas e para o início da luta de libertação. Numa expressão, remonta ao início do capitalismo histórico que, de acordo com John Bellamy Foster et al., “cannot be understood aside from its existence as a colonial/imperialist world system in which the violent exercise of power is an ever-present reality”4 4 “não pode ser entendido à parte de sua existência como um sistema mundial colonial/imperialista no qual o exercício violento do poder é uma realidade sempre presente” (FOSTER et al., 2019, n.p., tradução nossa). (FOSTER et al., 2019FOSTER, John Bellamy; CLARK, Brett; HOLLEMAN, Hannah. Capitalism and robbery. Monthly Review, v. 71, n. 7, 1 dez. 2019. Disponível em: https://monthlyreview.org/2019/12/01/capitalism-and-robbery/ . Acesso em: 25 nov. 2021
https://monthlyreview.org/2019/12/01/cap...
, n.p.). Por outras palavras, o capitalismo levou aos mais brutais sistemas de expropriação que o mundo alguma vez conheceu: “slavery, misogyny (wife selling, burning of witches, the superexploitation of women and children), land grabbing, genocide, and the destruction of the earth, extending to the entire planet”5 5 “escravidão, misoginia (venda de esposas, queima de bruxas, superexploração de mulheres e crianças), roubo de terras, genocídio e destruição da terra, estendendo-se a todo o planeta” (FOSTER et al., 2019, n.p., tradução nossa). (FOSTER et al., 2019 FOSTER, John Bellamy; CLARK, Brett; HOLLEMAN, Hannah. Capitalism and robbery. Monthly Review, v. 71, n. 7, 1 dez. 2019. Disponível em: https://monthlyreview.org/2019/12/01/capitalism-and-robbery/ . Acesso em: 25 nov. 2021
https://monthlyreview.org/2019/12/01/cap...
, n.p.). Esse processo de expropriação, ou o processo de apropriação sem equivalente (ou sem reprocidade), reflecte-se no livro em vários episódios históricos que o “soba” Kitekulu e Manimaza vão descrevendo nas suas “canoagens” por esses rios que enfeitam e cortam a paisagem geográfica de Angola. Num deles, em que o Soba Kitekulu e o seu amigo Manimaza vão desaguar no rio Kunene, revisitam memórias- “relembramentos de vivências vividas ou transmitidas, contadas ou intuídas dos seus antepassados” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 79)- e conversam sobre os antecedentes da célebre batalha do Vau do Pembe, remetendo para o comércio de escravos transatlântico6 6 Como refere João Melo, Boaventura Cardoso “não se esquece também dos angolanos (talvez o mais rigoroso seja dizer “africanos que habitavam o hoje território angolano”) que foram levados como escravos para as américas, sinalizando, por conseguinte, que a dimensão atlântica precisa de ser igualmente convocada, para entender plenamente a angolanidade” (MELO, 2021, n.p.). :

Entre 1885 e 1915 o Sul de Angola fora palco de grandes batalhas. Estavam em jogo interesses dos portugueses e dos alemães que dominavam o então Sudoeste Africano. Os nativos opuseram-se não só aos ocupantes portugueses como também aos comerciantes de várias nacionalidades que, mesmo após a abolição oficial da escravatura em 1878, teimavam em recrutar à força escravos para serem levados para o continente americano. (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 83).

O Soba descreve ainda a percepção dos povos angolanos sobre as investidas portuguesas de “pacificação” e domínio do território, e da necessidade, segundo o régulo Cetekelu, de se travar a batalha do Vau do Pembe:

Tinha chamado seus valentes homens para lhes dizer que, finalmente, a batalha contra os portugueses estava para daí a dias; que todos tinham de combater até ao limite das suas forças; que a batalha do Vau do Pembe era indispensável para se travar a penetração dos homens brancos naquela sagrada terra; que os brancos não vinham por bem; vinham para ocupar as nossas terras e roubar o nosso gado; vinham para mandar em nós e dominar-nos. (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 82).

Numa outra passagem, encontramos também referência à pilhagem de matérias-primas e outros recursos fruto da produção indígena, para além de corpos africanos, pelos comerciantes portugueses no século XIX:

Certo dia, para surpresa de todos, foram surpreendidos por uma extensa caravana que tinha optado daquela vez por tomar um carreiro em plena mata, distante, portanto, da estrada que devia ser tomada. Talvez se devesse ao facto de quem a dirigia quisesse encurtar caminho ou esconder a mercadoria que os carregadores transportavam às costas. Acontecia isso nos anos quarenta do século XIX. Cerca de uma centena de escravos-carregadores, transportavam marfim, mel, cera, borracha, tecidos, missangas, tabaco e pólvora. E vinham também dez a quinze pombeiros que, apesar de negros, trajavam à europeia. Nessa altura, Silva Porto, notável explorador português, era o mais influente comerciante estabelecido no Bié. Aquela caravana estava, certamente, às suas ordens. (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 333).

O silenciamento dos vários níveis de violência que acompanhou o colonialismo é aqui levantado e trazido à luz pela voz daqueles a quem esta foi retirada, desconstruindo mitos como o da “invencibilidade do Exército português” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 88). Tal é possível, como foi já referido, através da voz do Soba, que não se deixa corromper pelo Comissário Provincial no presente narrativo - “‘O tipo pensa que com isso tudo me vai corromper! Puro engano! Direi a verdade e só a verdade. Ele que me envie quantos camiões quiser; ao menos assim o povo não passará por muitas dificuldades. (...)’” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 231) -, o que se traduz numa perniciosa crítica ao governo pós-independência que apenas favorece alguns: “Se interrogou quando é que ele, também antigo combatente, seria bafejado pela sorte e desfrutar dos progressos e avanços que o bom e tão amado socialismo científico tinha trazido ao nosso povo heróico e generoso” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 233).

O Ngola é, contudo, o primeiro rio com que a narrativa começa; descrito ao pormenor, ele aparece como personagem e personificado, retratado como o “guardião da história de todo este mar de povos,” que se “deleitava mais ainda nos voos rasantes e rapinantes que os pássaros faziam para picar peixe no liso-fio das águas” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 9). Ele não só faz parte da parte da paisagem como também é parte integrante das vidas que nas suas margens se alojam, “se possu[indo] de tudo e reflecti[ndo] o modo de ser e de estar de todas aquelas gentes com seus sonhos e poesias em tons de lira” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 9). A descrição do rio poderá metaforica e superlativamente equivaler à maior biblioteca do mundo: “Assim, o Ngola não era, então, um manancial de estórias e histórias, de hábitos, costumes e tradições, de lendas e mitos, de lutas, de vitórias e derrotas? O Ngola era também a memória de um tempo vivido e ido; (...). O Ngola era um repositório de grandes e profundas memórias” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 9). O rio7 7 O rio e as suas águas poderão também ser interpretados como simbolizando “o eterno devir, isto é, uma constante mudança do estado dos ‘objetos’ do mundo, manifestando-se através de variações metamórficas” (CHAVES; MACEDO; MATA, 2005, p. 156). No entanto, nesta obra eles se aproximam mais a guardiães da memória: “Os rios, afinal, guardavam memórias de acontecimentos, de factos, de tragédias e vitórias; os rios falavam do tempo da escravatura em que muitas embarcações sulcaram suas águas levando milhares de escravos negros além-atlântico-mar. As lágrimas dos escravos engrossaram as águas dos afluentes do Ngola. Os rios” (CARDOSO, 2021, p. 17-18). , que vive em harmonia com as gentes ribeirinhas, e “se preparava para o deleite ou para arrotear a terra ou, sendo caso, para arrostar os contra-ventosos-ventos” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 10), carrega também em si o pior da humanidade: a violência, a guerra. É, deste modo, neste dia em que Soba Kitekulu se senta à sua margem que repara que a água vinha vermelha, “primeiro em vagas, depois todo o rio se avermelhando” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 10). Tal se deve às chacinas provocadas pela guerra civil que, em breve, inundariam o rio de “corpos a boiar” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 10). História e rio aparecem assim de mãos dadas, desarmonizando-se este das populações em tempo de guerras: “Analisados os dados disponíveis na ocasião, ordenei que deixassem de consumir água do rio, que recorressem às cacimbas, que mesmo as banhadas no Ngola ficavam suspensas” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 10).

A guerra civil é um dos palcos das memórias mais recentes do Soba Kitekulu, que lutara na guerra de libertação e que, após a independência, se tornou responsável por uma Zona de Acção no interior do país, longe de Luanda. Nessa Zona, o povo, durante a guerra civil, foi massacrado, violentado ao extremo, passou fome e ficou isolado. A violência foi de tal forma desmedida que a narrativa compara os acontecimentos da guerra civil aos do ano de 19618 8 Como afirma Maria da Conceição Neto, “No primeiro trimestre de 1961, uma sucessão de revoltas em Angola, com características e resultados diferentes, afastou definitivamente a imagem de uma benévola colonização portuguesa, isenta de tensões raciais, distinguindo-se pela pacífica coexistência de colonizadores e colonizados” (n.p.). Os ataques começam a 4 de Fevereiro, em Luanda, quando cerca de duas centenas de angolanos invadiram cadeias da cidade para soltar presos políticos, a sede da Emissora Nacional e a estação dos correios. Deixou um rasto de algumas dezenas de mortos e feridos entre os assaltantes e membros das forças militares e policiais. Teve várias réplicas, as mais graves ocorridas ainda durante o mês de Fevereiro e resultantes das reacções “coloniais” e “nacionalistas” ao significado e ao sentido, reais ou alegados, do “4 de Fevereiro.” Segundo Fernando Martins, “Os sucessos de 4 de Fevereiro foram descritos como o resultado de uma exemplar urdidura, pensada e posta no terreno pelo MPLA (que aliás reivindicou a sua autoria), e assim interpretados como o início de uma longa e denodada luta armada, levada a cabo por aquele movimento, contra o colonialismo português. Aos acontecimentos de Fevereiro, ter-se-ia seguido uma nova etapa do combate político-militar protagonizado pelo MPLA, centrada agora nas matas de Angola e nas selvas de Cabinda” (n.p.). Ainda de acordo com o historiador, “O ‘15 de Março’ de 1961, por seu lado, tem sido descrito e interpretado, em primeiro lugar, como equivalendo ao tiro de partida que tinha em vista a concretização de um conjunto de acções de ‘guerrilha’ das quais resultaram, além do massacre de populações civis residentes em zonas predominantemente rurais dos distritos do Congo, Quanza Norte e Luanda, uma efectiva, embora temporária, subtracção à soberania portuguesa de parte importante de território e de populações” (2022, n.p.). Desta investida, cuja autoria viria a ser reivindicada pela UPA (futura FNLA), “resultou a morte e a mutilação de centenas de brancos, mestiços e ‘negros bailundos’ (que sazonalmente se deslocavam do centro-sul de Angola para o ‘norte,’ onde trabalhavam nos extensos e densos cafezais), fossem eles homens, mulheres ou crianças. Ficou ainda um rasto de destruição total ou parcial de ‘fazendas isoladas’ e de ‘povoações sem guarnição militar’ localizadas no interior setentrional de Angola” (MARTINS, 2014, n.p.). , durante o período colonial, algo que parecia impensável voltar a acontecer:

O Inimigo tinha voltado a assassinar povos indefesos que marginavam ao longo do rio. Tinham recusado ir com eles para as matas onde - diziam - reinava a paz total; destruíram e queimaram nas cubatas, mataram como quiseram, violaram mulheres, roubaram na criação toda e quem se atreveu a lhes afrontar lhe mataram de tiros na metralhada ou enterraram vivo só-só. Dor e luto era o que era; dordejava a dor nas entranhas; campeava a morte naqueles campos, como em Sessenta e Um, no tempo do colonial tempo. Os mais-velhos não imaginavam que um dia, depois de sermos independentes, o Sessenta e Um, um dia, pudesse voltar novamente; no fundo, se interrogavam sobre se era possível aquele tempo das matanças voltar a acontecer neste tempo. As águas passadas a voltarem novamente no revesso-travesso? Eh! Eh! Eh! (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 10).

A pergunta, seguida de um riso irónico, fica a pairar no ar como que a “espicaçar” os intervenientes de um tempo em que se deixou cair a utopia da libertação em prol do poder, da ganância, da corrupção, do tráfico de influências e de um novo controlo dos povos por meio, por exemplo, da tentativa de criação do Homem-Novo durante as primeiras décadas da independência. Os rios sofrem, assim, com os actos humanos, que se igualam tanto em tempo de dominação como em supostos tempos de liberdade:

Os afluentes do Ngola eram as veias-vasos por onde vazavam suas todas águas vindas das mais distantes paragens, gentes e povos. Eram vasos comunicantes, por isso solidários entre eles. Um problema ou situação que ocorresse em cada um deles vinha desaguar no Ngola. Assim, aquela mortandade nas águas de Sessenta e Um afectou todos os afluentes. Sangue das vítimas corria em todos eles e quando as águas vermelhas chegavam ao Ngola eram as abundantes. O Ngola sofria de muita dor e luto e reflectia o pranto dos povos e gentes por onde passava. Quem lhe olhasse bem via logo que ele tinha perdido muito da sua vivacidade. (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 17; grifos meus).

Os rios encontram-se aqui também associados às tradições culturais e religiosas das várias etnias angolanas, como a crença no mito de Kianda, fazendo parte dos seus rituais: “No final da festa o rio se coloria de muitas flores e regurgitava de comidas e bebidas que o povo lhe tinha ofertado. Alguém garantiu ter ouvido a Kianda arrotar de tanta comestível satisfação. Haka!” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 21). A descrição dos rios, a sua relação com os povos angolanos e a sua personificação em Margens e travessias revela um agudo olhar ecocrítico por parte de Boaventura Cardoso. A narrativa lembra-nos das palavras de Peter Barry, no seu Beginning Theory - An introduction to literary and cultural theory:

For the ecocritic, nature really exists, out there beyond ourselves, not needing to be ironised as a concept by enclosure within knowing inverted commas, but actually present as an ‘entity’ which affects us, and which we can affect, perhaps fatally, if we mistreat it. Nature, then, isn’t reducible to a concept which we conceive as part of our cultural practice.9 9 “Para o ecocrítico, a natureza realmente existe, lá fora, além de nós mesmos, não precisando ser ironizada como um conceito encerrado em aspas invertidas, mas realmente presente como uma ‘entidade’ que nos afeta, e à qual podemos afetar, talvez fatalmente, se nós a maltratarmos. A natureza, então, não é redutível a um conceito que concebemos como parte de nossa prática cultural” (BARRY, 2009, p. 252). (BARRY, 2009BARRY, Peter. Beginning theory: an introduction to literary and cultural theory. Manchester: Manchester University Press, 2009., p. 252).

Daqui resulta ainda uma outra questão que se prende com a alteridade no contexto ecocrítico. Esta encontra-se ligada à oposição binária humano/não-humano. Em Letteratura e ecologia, Niccolò Scaffai trabalha dois paradigmas que, segundo o crítico, devem estabelecer um compromisso: o paradigma holístico, que anula a distinção entre humano e não humano, e um paradigma separatista, que coloca a humanidade como dominadora da natureza. Como afirma Nicola BiasioSCAFFAI, Niccolò. Letteratura e ecologia: forme e temi di una relazione narrativa. Roma: Carocci, 2017., “A proposta de Scaffai constrói um paradigma distintivo que transforma a distância entre o ‘eu’ e o mundo em um recurso cognitivo e artístico que baseia a sua perspectiva da realidade e da literatura no efeito de estranhamento, que joga, nos textos literários, com uma inversão de papéis e olhares, e que desconstrói a visão antropocêntrica através de uma inversão de planos entre humano e animal, entre natural e artificial, sem, contudo, propor hierarquias” (BIASIO, 2021BIASIO, N. Diálogo da natureza e um pirata: a ecocrítica por uma perspectiva descolonizadora em A visão das plantas de Djaimilia Pereira de Almeida. Abril, v. 13, n. 27, p. 137-149, 2021., p. 141).

A anulação de hierarquias entre o humano e o não humano é ainda proposta por Serenella Iovino que trabalha a noção de “pós-humano,” ou seja, um ser sem “habitação,” sem fronteiras:

[…] situated by definition in a mobile space of matter and meanings, the posthuman does not seem so prone to dwell. In fact, it moves, relentlessly shifting the boundaries of being and things, of ontology, epistemology, and even politics. And these boundaries, especially those between human and nonhuman, are not only shifting but also porous: based on the-biological, cultural, structural-combination of agencies flowing from, through, and alongside the human, the posthuman discloses a dimension in which “we” and “they” are caught together in an ontological dance whose choreography follows patterns of irredeemable hybridization and stubborn entanglement. (IOVINO, 2016IOVINO, Serenella. Posthumanism in literature and ccocriticism. Relations, v. 4, n .1, p. 11-20, 2016. , p. 11).

Fayaz Chagani em “Can the Postcolonial Animal Speak?” alerta, perspicazmente, para a falha dos estudos pós-coloniais em reconhecer a subjectividade dos animais não humanos, continuando a aceitar, talvez perversamente, a sua exclusão do universo moral reservado aos humanos. Esse equívoco da crítica pós-colonial leva a que esta não seja imune às consequências da sua própria proposta crítica, ou seja, que participe, porventura inconscientemente, na violência simbólica e física cometida contra os animais. A percepção das contradições da teoria pós-colonial conduzem-nos, desse modo, a um entendimento mais profundo do aspecto vanguardista de uma obra como Margens e travessias. Deste modo, Chagani afirma que o campo dos estudos pós-coloniais

has been preoccupied with questions of difference and agency but has not thus far included other sentient beings in its purview. It also has not been open to ‘our’ similarities, to the vulnerability that humans share with nonhuman animals. Part of the reason for this (...) is the (post)colonial practice of linking animals and racialized groups. But if a resistance to cross-species comparisons is to some extent warranted, it is also true (...) that in its failure to confront the suffering and subjectivity of nonhuman animals, postcolonial criticism perpetuates both epistemic and corporeal violence against them. In doing so, it has foreclosed on the possibility of a broader form of affective and political community that transcends the species boundary. (CHAGANI, 2016CHAGANI, Fayaz. Can the postcolonial animal speak? Society & Animals, v. 24, p. 619-637, 2016., p. 620).

Boaventura Cardoso anula fronteiras não apenas entre um “eu” e “outro” humanos, descontruindo, por exemplo, o binómio colonizador-colonizado10 10 Em Margens e travessias, o autor inclui os europeus que se angolanizaram e elabora uma insistente crítica às autoridades governamentais que gerem o país de forma não muito diferente da administração colonial. , como também aponta para o mundo espiritual angolano que se corporiza no mundo animal, e, num passo mais à frente, funde humano e natureza. Tal acontece com a personagem Manimaza, amigo do Soba Kitekulu, um kimbanda, ou seja, um curandeiro conhecedor dos costumes e tradições dos povos ribeirinhos. Com noventa anos de idade, Manimaza parece, no entanto, atravessar os tempos e os espaços de Angola, e “as pessoas que o procuravam para se aconselhar diziam que ele era ou estava para ser um santo” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 22). Ele é “filho” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 22) e senhor das águas, esposo de Kianda, divindade angolana dos mares e rios. A sua relação com a água é também ela mítica, podendo ser considerado, segundo Carmen Tindó Secco, “um duplo do rio Ngola” (SECCO, 2022SECCO, Carmen Lúcia Tindó. De rios e memórias: cartografia histórico-literária de Angola. Pressreader, 24 jul. 2022. Disponível em: https://www.pressreader.com/ . Acesso em: 30 jul. 2022.
https://www.pressreader.com/...
, n.p.):

Quem lhe viu ficou sem saber como que o velho tinha conseguido permanecer tanto tempo no fundo do rio, se entreaguando, as águas na superfície em constante fluxo e refluxo. Eh! Quem com ele convivia diariamente já se habituara lhe ver desaparecer nas águas aqui e aparecer acolá, minutos depois. Até mesmo para pescar, Manimaza dispensava a rede, se-mergulhava fundo e depois ressurgia com peixes na mão. Às vezes, entreaguado, ficava por lá a ver o fundo das águas, as algas e os moluscos, para depois reaparecer sempre sorridente. Não havia dúvidas de que ele era um homem-anfíbio. (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 22; grifos meus).

Tanto Soba Kitekulu quanto Manimaza “canoam” águas e rios, revisitando memórias e tempos passados “com os rios dentro deles” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 34). É raro encontrarem-se obras literárias em que um personagem se encontre em tão perfeita sintonia com a natureza a ponto de com ela se confundir e de nunca falhar no seu entendimento: “[...] todos percebiam que o velho tinha uma relação muito estreita com o rio, que podia prever os seus estados de ânimo. Assim, Manimaza pressentia quando as águas do rio estariam boas para a navegação, ou quando era totalmente desaconselhável se aventurar a em nelas navegar. [...] Quando aquela matança tinha acontecido na Zona, Manimaza tinha pressentido” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 23). O kimbanda é não só um homem-anfíbio como está igualmente em sintonia com os animais: “[...] sabia, através do miar dos gatos, do latir dos cães à noite, do mugir dos bois, do cacarejar dos galos e do falar de outros animais, mesmo slevagens, o que é que estaria para acontecer” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 23).

Partindo de um entendimento comumente aceite das características do humanismo, isto é, que entre as diferenças entre os seres humanos existe uma natureza humana que os une, e de uma ideia de humanidade universal ligada à racionalidade, marcada pela linha divisória entre os seres humanos e as outras espécies, e confirmada a partir de Descartes, em que o sujeito humano é a base de todo o conhecimento, produzindo, assim, a impressão de que o “homem” é separado e superior ao mundo “fora” de si mesmo, Chagani (2016CHAGANI, Fayaz. Can the postcolonial animal speak? Society & Animals, v. 24, p. 619-637, 2016.) afirma que, “Far from encapsulating every way of being human or discovering the common sign under which all the world’s peoples are united, the confident claims of the cogito became a strategy for policing human nature, an insidious mechanism for making some human beings more human than others”11 11 “Longe de encapsular todas as formas de ser humano ou descobrir o signo comum sob o qual todos os povos do mundo estão unidos, as reivindicações confiantes do pensamento tornaram-se uma estratégia de policiamento da natureza humana, um mecanismo insidioso para tornar alguns seres humanos mais humanos do que outros” (CHAGANI, 2016, p. 622). (CHAGANI, 2016CHAGANI, Fayaz. Can the postcolonial animal speak? Society & Animals, v. 24, p. 619-637, 2016., p. 622). Reconhecendo ainda a preocupação do pensamento pós-colonial com a hipocrisia e os limites do iluminismo humanista, uma vez que, como premissa universal, o humanismo pode proporcionar uma visão dos outros não ocidentais como inferiores e inumanos, revelando-se como uma ferramenta impeditiva da liberação da opressão e um acessório conveniente ao colonialismo e imperialismo, Chagani aponta as deficiências do mesmo pensamento pós-colonial em superar as falhas do humanismo. Na sua perspectiva, a desumanização toma como garantida a ascendência humana sobre o mundo não humano e, implícita e explicitamente, consente a violência para com os animais, uma vez que nesta visão os humanos não devem ser tratados como animais, mas acima-ou melhor que-(d)estes. Por conseguinte, em Margens e travessias, Boaventura Cardoso consegue trazer-nos, por uma linguagem trabalhada e, muitas vezes, poética, a relação do homem com o seu meio, e fá-lo como se tratando apenas de um livro histórico ou, talvez melhor, sobre a História e a Memória. Uma das passagens que melhor demonstram esse olhar ecocrítico é a descrição da Zona de Acção do Soba Kitekulu onde se vive em harmonia com a natureza desde que o Inimigo não os ataque:

No dia-a-dia na Zona de Acção os homens pescavam, outros iam para as lavras acompanhados das suas mulheres, enquanto as crianças frequentavam as escolas onde aprendiam não só o saber dos livros, como da vida. Tinha mulheres que passavam muitas horas a lavar roupa naquelas águas que eram as, as de todos-os-rios. (...) A vida na Zona de Acção se harmonizava com a natureza, com as maravilhas que o Criador pusera à disposição de todos. Habitantes da Zona comiam tudo natural, frutos da terra e peixes do rio, pelo que eram saudáveis. Quando viesse a Lua iluminar as noites, tocavam batuques, cantavam e dançavam e contavam-se histórias em volta de fogueiras. E as crianças, sobretudo aos sábados, permaneciam acordadas até tarde, sob um céu estrelado, a ouvir os mais-velhos contar estórias fabulosas que elas adoravam. (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 23)

Um dos personagens que percorre toda a narrativa e evidencia esse olhar eco-crítico de Boaventura Cardoso é o denominado Homem-Mandioca, uma representação antropomórfica de um ser descomunal capaz de se dividir em três e, por vezes, em sete, para além de ter a capacidade de se encontrar em vários espaços e percorrer diferentes tempos: um ser eterno. Contudo, e apesar de ser evidência do maravilhoso e do animismo angolano que se encontra presente em outras instâncias na obra, essa personagem leva-nos a pensar numa fusão perfeita entre o homem e a natureza. O Soba Kitekelu parece ser o único capaz de o ver e dele desconfia:

Até ao fim da viagem não parei de pensar no Homem-Mandioca. Comecei a admitir que o tal estranho homem só podia ser mesmo o Inimigo disfarçado; agora o dito cujo dava-se ao luxo de se septuplicar para confundir as autoridades; seja como for, esse quem devia estar a cumprir uma missão especial e muito secreta. Quem sabe não seria um lacaio do imperialismo; (...). O melhor era alertar as autoridades, o que farei imediatamente lá em Luanda. (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 336)

Ao aproximar-se o final da narrativa, o leitor tem a explicação para a existência desse ser descomunal. O Homem-Mandioca nascera Kileba, numa fazenda, filho de escravos, e foi vendido como “peça valiosa” com o intuito de ser exportado para o Brasil. Kileba não se conforma com a ideia e tenta fugir várias vezes. Sendo sempre apanhado, é vítima de represálias violentas que vão de chicoteadas, a ser amarrado a uma árvore e ao corte de uma orelha. Na sua última tentativa de fuga com o escravo Kituxi, os dois vão ao encontro do chefe religioso Kilamba, “muito temido porque tinha artes mágicas de transformar pessoas em animais, pássaros, plantas, pedras monumentais ou em qualquer objecto” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 355). Ao encontrarem-se com Kilamba, Kileba diz-lhe que “gostaria de se transformar em mandioca; um tubérculo com a forma humana, que pudesse andar pelas lavras comendo o que encontrasse; pudesse andar e correr normalmente; esconder-se das pessoas quando não fosse aconselhável que lhe vissem andar como um homem; que, distante dos senhores de escravos, voltasse, então, a ser uma simples mandioca” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 358). E assim nasce o Homem-Mandioca, com a vantagem de ser eterno, “viveria por muitos séculos e séculos; teria sete vidas distintas, podendo estar ao mesmo tempo em sete pontos diferentes; teria a faculdade de viver em qualquer época [...]” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 358). Essas faculdades permitem-lhe assim percorrer a narrativa histórica, observando e estando presente em todos os seus horrores desde a época colonial à do pós-independência. A escolha de uma mandioca não terá, porventura, sido gratuita, uma vez que ela é a base da alimentação angolana. É a violência, a fome, mas também o alimento do povo, simbolizados num ser que, ao atravessar os tempos e lugares, representa uma possível harmonia com o mundo da natureza, da terra que é indispensável à sobrevivência do homem.

A obra termina com o dia do Juízo Final, uma trágica e apocalíptica carnavalização em que real e ficcional se misturam. Nenhuma figura participante em regimes de opressão das várias etnias angolanas se escapa a uma crítica feroz. Só Manimaza sabe o que o povo deve fazer:

Era urgente atravessar todos os rios e riachos para se alcançar o Ngola nas suas abundantes águas. Que cada um trouxesse o que pudesse; os doentes que se arrastassem; os aleijados que se virassem como pudessem devendo, se ainda tempo houvesse, recorrer a kimbandas para lhes ajudarem no bem-andar; que os presos rebentassem as grilhetas e fugissem; quem que pudesse que viesse montado em qualquer animal ou ave; que os profetas não tentassem extorquir dinheiro na hora última da vida, sob pena de serem atirados a um covil onde seriam saudados por feras furiosas; todas as dívidas ficariam saldadas; os projectos cancelados; que todos se sentissem irmanados; que a hora era a hora do caminhar para a eterna harmonia. (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 363; ênfase)

Num livro em que ficção e história aparecem de mãos dadas para nos dar conta da história de Angola, o olhar eco-crítico de Boaventura Cardoso parece apontar para uma visão pouco optimista, em que uma possível política de conciliação no futuro de Angola só será possível num espaço eterno. A frase final com que termina o livro é disso indício: “E todos [Sísifo, oréades, náiades, nereides, danaides, hamadríades, dríades, ogros, súcubos, gnomos, faunos e fadas] comeram e beberam o que havia nos tonéis e dançaram celebrando assim o fim do mundo dos homens” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 370). Possivelmente, só uma melhor compreensão do país e da relação do homem com a natureza e o mundo não humano poderá reverter o caminho dos rios. Boaventura Cardoso mostra assim como a literatura pode oferecer considerações para possíveis formas de reparação cometidas no passado, sejam elas durante o período colonial sejam durante o período que o sucedeu.

Referências

  • BARRY, Peter. Beginning theory: an introduction to literary and cultural theory. Manchester: Manchester University Press, 2009.
  • BIASIO, N. Diálogo da natureza e um pirata: a ecocrítica por uma perspectiva descolonizadora em A visão das plantas de Djaimilia Pereira de Almeida. Abril, v. 13, n. 27, p. 137-149, 2021.
  • CAMINERO-SANTANGELO, Byron. Different shades of green: African literature, environmental justice, and political ecology. Charlottesville: University of Virginia Press, 2014.
  • CARDOSO, Boaventura. Dizanga dya Muenhu Portugal: Edições 70, 1977.
  • CARDOSO, Boaventura. O fogo da fala Angola: União dos Escritores Angolanos, 1980.
  • CARDOSO, Boaventura. A morte do velho Kipacaça Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1987.
  • CARDOSO, Boaventura. O signo do fogo Porto: ASA Literatura, 1992.
  • CARDOSO, Boaventura. Maio, mês de Maria Porto: Campo das Letras, 1997.
  • CARDOSO, Boaventura. Mãe, materno mar Porto: Campo das Letras, 2001.
  • CARDOSO, Boaventura. Noites de vigília Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2012.
  • CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias Lisboa: Guerra e Paz, 2021.
  • CHAGANI, Fayaz. Can the postcolonial animal speak? Society & Animals, v. 24, p. 619-637, 2016.
  • CHAVES, Rita. Das águas antigas e dos mapas reiventados em O livro dos rios, de José Luandino Vieira. Via Atlântica, v. 9, p. 249-252, 2006.
  • CHAVES, Rita; MACEDO, Tânia; MATA, Inocência. Boaventura Cardoso: a escrita em processo. São Paulo: Alameda: Praxis, 2005.
  • COELHO, João Paulo Borges. As duas sombras do rio Portugal: Editorial Caminho, 2003.
  • CONCEIÇÃO NETO, Maria da. Março de 1961 - O início da guerra no Norte de Angola. Público, 22 jul. 2021. Disponível em: https://www.publico.pt/2021/07/22/politica/ensaio/marco-1961-inicio-guerra-norte-angola-1971216 Acesso em: 25 jul. 2022.
    » https://www.publico.pt/2021/07/22/politica/ensaio/marco-1961-inicio-guerra-norte-angola-1971216
  • FOSTER, John Bellamy; CLARK, Brett; HOLLEMAN, Hannah. Capitalism and robbery. Monthly Review, v. 71, n. 7, 1 dez. 2019. Disponível em: https://monthlyreview.org/2019/12/01/capitalism-and-robbery/ Acesso em: 25 nov. 2021
    » https://monthlyreview.org/2019/12/01/capitalism-and-robbery/
  • IOVINO, Serenella. Posthumanism in literature and ccocriticism. Relations, v. 4, n .1, p. 11-20, 2016.
  • LUSA. Escritor Boaventura Cardoso vence prémio de literatura dstAngola/Camões. RTP Notícias, 15 jul. 2022.Disponível em: https://www.rtp.pt/noticias/cultura/escritor-boaventura-cardoso-vence-premio-de-literatura-dstangolacamoes_n1419972 Acesso em: 16 jul. 2022.
    » https://www.rtp.pt/noticias/cultura/escritor-boaventura-cardoso-vence-premio-de-literatura-dstangolacamoes_n1419972
  • MACEDO, Tânia. Contracapa. In: CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias Lisboa: Guerra e Paz, 2021. n. p.
  • MARTINS, Fernando. Angola, 1961: como os independentistas prepararam a guerra. Observador, 23 ago. 2014. Disponível em: https://observador.pt/especiais/angola-1961-como-os-independentistas-prepararam-guerra/ Acesso em: 16 jul. 2022.
    » https://observador.pt/especiais/angola-1961-como-os-independentistas-prepararam-guerra/
  • MELO, João. Um grande romance angolano. sinalAberto, 13 dez. 2021. Disponível em: https://sinalaberto.pt/um-grande-romance-angolano/ Acesso em: 16 jul. 2022.
    » https://sinalaberto.pt/um-grande-romance-angolano/
  • SECCO, Carmen Lúcia Tindó. De rios e memórias: cartografia histórico-literária de Angola. Pressreader, 24 jul. 2022. Disponível em: https://www.pressreader.com/ Acesso em: 30 jul. 2022.
    » https://www.pressreader.com/
  • SECCO, Carmen Lúcia Tindó. A memória como ‘lugar de escrita’ em dois romances angolanos contemporâneos. Via Atlântica, v. 27, p. 45-56, 2015.
  • SCAFFAI, Niccolò. Letteratura e ecologia: forme e temi di una relazione narrativa. Roma: Carocci, 2017.
  • SPIVAK, Gayatri. The Rani of Sirmur: an essay in reading the archives. History and Theory, v. 24, n. 3, p. 247-272, 1985.
  • VEIRA, Luandino. O livro dos rios Lisboa: Caminho, 2006.
  • 1
    Não nos esqueçamos de um outro estudo de Carmen Tindó Secco em que a crítica afirma que “atualmente, quando se completam quarenta anos da independência de Angola, observamos que alguns dos romances angolanos contemporâneos se constituem como escritas de memórias que revisitam e colocam em questão os meandros da história do país, ao mesmo tempo que repensam aspectos culturais da sociedade angolana” (SECCO, 2015SECCO, Carmen Lúcia Tindó. A memória como ‘lugar de escrita’ em dois romances angolanos contemporâneos. Via Atlântica, v. 27, p. 45-56, 2015. , p. 46-47).
  • 2
    “mundialização do que hoje é chamado de ‘Terceiro Mundo.’” (SPIVAK, 1985SPIVAK, Gayatri. The Rani of Sirmur: an essay in reading the archives. History and Theory, v. 24, n. 3, p. 247-272, 1985., p. 247, tradução nossa).
  • 3
    “do Terceiro Mundo como culturas distantes, exploradas, mas com ricas heranças intactas esperando serem recuperadas, interpretadas e curricularizadas em tradução inglesa.” (SPIVAK, 1985SPIVAK, Gayatri. The Rani of Sirmur: an essay in reading the archives. History and Theory, v. 24, n. 3, p. 247-272, 1985., p. 247, tradução nossa).
  • 4
    “não pode ser entendido à parte de sua existência como um sistema mundial colonial/imperialista no qual o exercício violento do poder é uma realidade sempre presente” (FOSTER et al., 2019FOSTER, John Bellamy; CLARK, Brett; HOLLEMAN, Hannah. Capitalism and robbery. Monthly Review, v. 71, n. 7, 1 dez. 2019. Disponível em: https://monthlyreview.org/2019/12/01/capitalism-and-robbery/ . Acesso em: 25 nov. 2021
    https://monthlyreview.org/2019/12/01/cap...
    , n.p., tradução nossa).
  • 5
    “escravidão, misoginia (venda de esposas, queima de bruxas, superexploração de mulheres e crianças), roubo de terras, genocídio e destruição da terra, estendendo-se a todo o planeta” (FOSTER et al., 2019FOSTER, John Bellamy; CLARK, Brett; HOLLEMAN, Hannah. Capitalism and robbery. Monthly Review, v. 71, n. 7, 1 dez. 2019. Disponível em: https://monthlyreview.org/2019/12/01/capitalism-and-robbery/ . Acesso em: 25 nov. 2021
    https://monthlyreview.org/2019/12/01/cap...
    , n.p., tradução nossa).
  • 6
    Como refere João Melo, Boaventura Cardoso “não se esquece também dos angolanos (talvez o mais rigoroso seja dizer “africanos que habitavam o hoje território angolano”) que foram levados como escravos para as américas, sinalizando, por conseguinte, que a dimensão atlântica precisa de ser igualmente convocada, para entender plenamente a angolanidade” (MELO, 2021MELO, João. Um grande romance angolano. sinalAberto, 13 dez. 2021. Disponível em: https://sinalaberto.pt/um-grande-romance-angolano/ . Acesso em: 16 jul. 2022.
    https://sinalaberto.pt/um-grande-romance...
    , n.p.).
  • 7
    O rio e as suas águas poderão também ser interpretados como simbolizando “o eterno devir, isto é, uma constante mudança do estado dos ‘objetos’ do mundo, manifestando-se através de variações metamórficas” (CHAVES; MACEDO; MATA, 2005CHAVES, Rita; MACEDO, Tânia; MATA, Inocência. Boaventura Cardoso: a escrita em processo. São Paulo: Alameda: Praxis, 2005., p. 156). No entanto, nesta obra eles se aproximam mais a guardiães da memória: “Os rios, afinal, guardavam memórias de acontecimentos, de factos, de tragédias e vitórias; os rios falavam do tempo da escravatura em que muitas embarcações sulcaram suas águas levando milhares de escravos negros além-atlântico-mar. As lágrimas dos escravos engrossaram as águas dos afluentes do Ngola. Os rios” (CARDOSO, 2021CARDOSO, Boaventura. Margens e travessias. Lisboa: Guerra e Paz, 2021., p. 17-18).
  • 8
    Como afirma Maria da Conceição NetoCONCEIÇÃO NETO, Maria da. Março de 1961 - O início da guerra no Norte de Angola. Público, 22 jul. 2021. Disponível em: https://www.publico.pt/2021/07/22/politica/ensaio/marco-1961-inicio-guerra-norte-angola-1971216 . Acesso em: 25 jul. 2022.
    https://www.publico.pt/2021/07/22/politi...
    , “No primeiro trimestre de 1961, uma sucessão de revoltas em Angola, com características e resultados diferentes, afastou definitivamente a imagem de uma benévola colonização portuguesa, isenta de tensões raciais, distinguindo-se pela pacífica coexistência de colonizadores e colonizados” (n.p.). Os ataques começam a 4 de Fevereiro, em Luanda, quando cerca de duas centenas de angolanos invadiram cadeias da cidade para soltar presos políticos, a sede da Emissora Nacional e a estação dos correios. Deixou um rasto de algumas dezenas de mortos e feridos entre os assaltantes e membros das forças militares e policiais. Teve várias réplicas, as mais graves ocorridas ainda durante o mês de Fevereiro e resultantes das reacções “coloniais” e “nacionalistas” ao significado e ao sentido, reais ou alegados, do “4 de Fevereiro.” Segundo Fernando Martins, “Os sucessos de 4 de Fevereiro foram descritos como o resultado de uma exemplar urdidura, pensada e posta no terreno pelo MPLA (que aliás reivindicou a sua autoria), e assim interpretados como o início de uma longa e denodada luta armada, levada a cabo por aquele movimento, contra o colonialismo português. Aos acontecimentos de Fevereiro, ter-se-ia seguido uma nova etapa do combate político-militar protagonizado pelo MPLA, centrada agora nas matas de Angola e nas selvas de Cabinda” (n.p.). Ainda de acordo com o historiador, “O ‘15 de Março’ de 1961, por seu lado, tem sido descrito e interpretado, em primeiro lugar, como equivalendo ao tiro de partida que tinha em vista a concretização de um conjunto de acções de ‘guerrilha’ das quais resultaram, além do massacre de populações civis residentes em zonas predominantemente rurais dos distritos do Congo, Quanza Norte e Luanda, uma efectiva, embora temporária, subtracção à soberania portuguesa de parte importante de território e de populações” (2022, n.p.). Desta investida, cuja autoria viria a ser reivindicada pela UPA (futura FNLA), “resultou a morte e a mutilação de centenas de brancos, mestiços e ‘negros bailundos’ (que sazonalmente se deslocavam do centro-sul de Angola para o ‘norte,’ onde trabalhavam nos extensos e densos cafezais), fossem eles homens, mulheres ou crianças. Ficou ainda um rasto de destruição total ou parcial de ‘fazendas isoladas’ e de ‘povoações sem guarnição militar’ localizadas no interior setentrional de Angola” (MARTINS, 2014MARTINS, Fernando. Angola, 1961: como os independentistas prepararam a guerra. Observador, 23 ago. 2014. Disponível em: https://observador.pt/especiais/angola-1961-como-os-independentistas-prepararam-guerra/ . Acesso em: 16 jul. 2022.
    https://observador.pt/especiais/angola-1...
    , n.p.).
  • 9
    “Para o ecocrítico, a natureza realmente existe, lá fora, além de nós mesmos, não precisando ser ironizada como um conceito encerrado em aspas invertidas, mas realmente presente como uma ‘entidade’ que nos afeta, e à qual podemos afetar, talvez fatalmente, se nós a maltratarmos. A natureza, então, não é redutível a um conceito que concebemos como parte de nossa prática cultural” (BARRY, 2009BARRY, Peter. Beginning theory: an introduction to literary and cultural theory. Manchester: Manchester University Press, 2009., p. 252).
  • 10
    Em Margens e travessias, o autor inclui os europeus que se angolanizaram e elabora uma insistente crítica às autoridades governamentais que gerem o país de forma não muito diferente da administração colonial.
  • 11
    “Longe de encapsular todas as formas de ser humano ou descobrir o signo comum sob o qual todos os povos do mundo estão unidos, as reivindicações confiantes do pensamento tornaram-se uma estratégia de policiamento da natureza humana, um mecanismo insidioso para tornar alguns seres humanos mais humanos do que outros” (CHAGANI, 2016CHAGANI, Fayaz. Can the postcolonial animal speak? Society & Animals, v. 24, p. 619-637, 2016., p. 622).
  • 100
    Sandra Sousa é Doutorada em Estudos Portugueses e Brasileiros pela Brown University, Professora Associada no Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da University of Central Florida. Actualmente é pesquisadora do PielaAfrica (CNPq) e do CLEPUL. É autora dos livrosFicções do Outro: Império, Raça e Subjectividade no Moçambique Colonial(Esfera do Caos, 2015),Portugal Segundo os Estados Unidos da América(Theya Editores, 2021), e co-editora do livrosVisitas a João Paulo Borges Coelho. Leituras, Diálogos e Futuros(Colibri, 2017) e The Africas in the World and the World in the Africas: African Literatures and Comparativism (Quod Manet, 2022).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2022
  • Aceito
    04 Set 2022
Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF) Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, Bloco C - sala 518, CEP 24210-201 - Niterói, Rio de Janeiro, Brasil., Telefone +55 21 2629-2600 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: gragoata.egl@id.uff.br