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A literatura indígena brasileira diante de Gaia: ensaiando o fim1 1 Pesquisa financiada pela Faperj (edital 25/2021).

Brazilian Indigenous Literature Facing Gaia: An Essay about the End

RESUMO

O termo ecologia foi, provavelmente, cunhado pelo biólogo alemão Ernst Haeckel (1834 - 1919), em 1869, para designar o estudo científico dos organismos no contexto de seus ambientes orgânicos e/ou inorgânicos. A palavra é derivada dos termos gregos oikos, isto é, “casa”, e logos, “estudo”, e sua criação artificial, que remonta à formação de um novo campo de estudos durante o Oitocentos, revela que o desprezo das ciências pelo meio ambiente perdurou por muitos séculos. Os povos indígenas, que jamais estabeleceram uma divisão entre o conceito de desenvolvimento da vida humana (civilização) e natureza, sempre se opuseram à exploração desmedida dos recursos naturais empreendida pelos colonizadores. Sob a ótica europeia, essencialmente desenvolvimentista, esse tipo de discurso foi considerado sinônimo de atraso econômico, sendo, pois, refutado. Contudo, com a degradação, agora notável, do planeta, refletida no aquecimento global e nas sucessivas tragédias ambientais, surge um interesse renovado em ouvir as comunidades originárias e suas lideranças, movimento que se expandiu durante a pandemia de 2020, quando obras nativas sobre o antropoceno se tornaram best-sellers em nosso país. Neste ensaio, busco mostrar como o pensamento ocidental começa a absorver o chamado “pensamento ameríndio”, com base na relação homem/natureza presente nas cosmovisões desses povos, influência perceptível na obra de Bruno Latour (2020). A análise das propostas antropológicas do supracitado autor buscará paralelos na literatura indígena brasileira produzida por diversos escritores, como Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Eliane Potiguara, Marcia Kambeba.

Palavras-chave:
Ecologia; Literatura Indígena Brasileira; Antropoceno; Bruno Latour

ABSTRACT

The word ecology was coined by the German biologist Ernst Haeckel (1834 - 1919) in 1869 to designate the scientific study of organisms in the context of their organic and/or inorganic environments. The word comes from the Greek terms oikos (house) and logos (study) and was created to name a new field in Western sciences. Indigenous peoples, in turn, did not establish any division between the concept of development of human life (civilization) and nature, fighting against the excessive exploitation of natural resources undertaken by the invaders since the beginning of the colonization. From the European perspective, this speech meant backwardness, being, therefore, refuted. However, global warming and successive environmental tragedies have been increasing the world interest on Native leaders’ opinions about the theme. In Brazil, this change became remarkable during the 2020 pandemic, when Indigenous works about the Anthropocene became best-sellers. In this essay, I try to show how the mainstream is absorbing those ideas, linking Bruno Latour’s (2020) worldview with Indigenous cosmogonies presented by several Brazilian authors, such as Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Eliane Potiguara and Marcia Kambeba.

Keywords
Ecology; Brazilian Indigenous literature; Anthropocene; Bruno Latour

O princípio

Ai de nós!
O amanhecer daqui
não veremos
quando o leito da terra
o sol nascente iluminar.

Popol Vuh BAPTISTA, Josely Vianna. Popol Vuh. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Ubu, 2019.

Quando publicou “O direito à literatura”, em 1988 - à época da promulgação de nossa Constituição, portanto -, Antonio Candido (2014CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: LIMA, Aldo de (org.). O direito à literatura. Recife: Ed. UFPE, 2014. p. 17-40.) não podia prever os rumos obscurantistas que a então recém-nascida nova democracia brasileira seguiria. Por conta da recente polarização política, das inúmeras ameaças aos cidadãos situados às margens e, sobretudo, do constante questionamento feito à legitimidade dos direitos humanos por certa parcela da elite nacional, o ensaio supracitado torna-se, hoje, mais atual do que fora em sua primeira edição. É que, ao refletir sobre as garantias indispensáveis a nós e ao próximo, o autor conclui: a literatura (entendida de forma ampla, como “confabulação”) corresponde a uma necessidade universal, convertendo-se, pois, em um direito. O mestre uspiano apontava para a urgência em democratizar o acesso aos bens culturais, questão que, conforme bem sabemos, permanece alarmante no país.

Uma das contribuições trazidas por Candido a tal respeito, nesse texto, refere-se às suas reflexões sobre as relações entre ética e estética, situando a controvérsia da seguinte maneira: para o crítico, não serve apenas a “obra perfeita”; a obra de menor qualidade, ele argumenta, também atua, sendo a literatura composta por obras de alto valor estético e textos mais modestos. Trata-se de concepção praticamente aceita de forma unânime entre os estudiosos da contemporaneidade, que já não desvalorizam obras situadas ou situáveis à margem do cânone, buscando-se, pelo contrário, analisar a literatura de maneira mais abrangente. Em outras palavras, Antonio Candido mostrou-se afinado com nosso tempo, afinal, se é difícil definir o que venha a ser a “literatura contemporânea”, podemos dizer, ao menos, o que ela não é: a ideia de “regras”, “escolas” ou “estilos” pré-definidos, em voga até o Modernismo, não se sustenta na atualidade, prevalecendo, em alguns casos, a ética sobre a estética.

É o que nota Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, em seu estudo sobre a literatura publicada por autores oriundos das periferias urbanas, movimento por ele chamado de “literatura marginal”. Segundo o autor, há, nessas produções, uma busca, sobretudo ética, pela construção de uma sociedade mais democrática e justa, contrapondo-se, assim, a movimentos literários de outrora, quando as obras compartilhavam entre si certos parâmetros estéticos. Nas palavras de Patrocínio (2013), a “[...] ética passa a nortear a seleção dos autores que poderão compor o movimento, tendo como principal premissa a origem marginal.” (PATROCÍNIO, 2013PATROCÍNIO, Paulo Roberto Tonani do. Escritos à margem: a presença de autores de periferia na cena literária brasileira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013., p. 39). Podemos, sem dúvida, estender essa conclusão à literatura indígena brasileira, cujas obras se emparelham mais pelas buscas em comum vivenciadas pelas identidades indígenas do que por critérios de estilo, conforme atesta Graça Graúna (2013GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Maza Edições, 2013.), para quem esse gênero se caracteriza pela presença de denúncia política (sobretudo relacionada com as questões territoriais), além da forte oralidade na escrita.

Retomando, portanto, a questão antes posta por Antonio Candido, acrescento que, na contemporaneidade, o “direito à literatura” se expande para além do seu acesso, tangenciando também a democratização de sua produção. Nesse sentido, a literatura indígena brasileira, cuja obra2 2 Trata-se de Antes o mundo não existia, dos dêsanas Umúsin Anlõn e Tomalã Kenhíri, segundo informa KLINGER (2007, p. 71). considerada inaugural foi publicada em 1980, apesar de recente, simboliza a luta histórica desses povos por maior representatividade junto à sociedade civil. Daí comportar a ideia segundo a qual seus textos apresentam caráter pedagógico, conforme defendido por Daniel Munduruku em sua tese de doutorado. Dessa maneira, busca-se, por meio das histórias, educar os não indígenas quanto às culturas e cosmovisões nativas. Ainda segundo o referido autor, a relação entre essas obras e o próprio movimento político indígena é nevrálgica, porque, graças às ações organizadas por esses grupos desde os anos 1970 - a exemplo da União Nacional Indígena e do Povos da Floresta -, o “[...] que antes era visto somente como uma presença genérica passou a ser encarado como um fato real, obrigando a política oficial a reconhecer os diversos povos como experiências coletivas.” (MUNDURUKU, 2012MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970 -1990). São Paulo: Paulinas, 2012. , p. 222)

Seguindo essa perspectiva, os nativos disseminam seus escritos como se plantassem sementes a serem germinadas a longo prazo: fazem uma literatura de resistência, calcada, sobretudo, na divulgação de suas culturas, cuja manutenção depende de forma direta da preservação do meio ambiente. Afinal, política, do ponto de vista das culturas originárias, não se separa da noção de território, isto é, a terra originária, que, apesar de expropriada desde os primórdios da colonização, é sagrada, devendo, por isso, ser salvaguardada, uma lógica em direta oposição à visão capitalista, inclinada a enxergar insumos em toda parte. Desse modo, onde o Capital deseja construir hidrelétricas, as aldeias veem um rio dotado de espírito(s), onde as empresas visam um animal pronto para o abate, as comunidades originárias observam humanidades, e onde governos estabelecem fronteiras, esses povos clamam por Abya Yala, 3 3 Abya Yala é um termo em kuna, usualmente traduzido como “terra madura”. A palavra vem sendo proposta pelas lideranças indígenas para designar o continente como possível substituto para “América”, cuja etimologia está correlacionada à figura do colonizador Américo Vespúcio. Ver: Grondin e Viezzer (2021, p. 204). um território único. Tal realidade torna a literatura nativa duplamente marginalizada, já que, além de associada a “índios”, está diretamente imbricada à ecologia, um tema em geral menosprezado pelo mercado global.

Essa equação, no entanto, é contestada por grupos não indígenas vinculados aos estudos da terra e à preservação dos ecossistemas, movimento que parece crescer desde 2020, quando, durante a pandemia do Coronavírus, se passou a dar maior atenção e credibilidade ao discurso dos povos originários. Esse fato se refletiu na popularidade então alcançada pelos pensadores nativos brasileiros, visto que, naquele período, Ailton Krenak ganhou o Prêmio Juca Pato de intelectual do ano, após se tornar um best-seller com a publicação de suas conferências, que, dentre outros assuntos, abordam questões concernentes à degradação ambiental sob o ponto de vista indígena. Pertencem a essa coleção sobre o antropoceno os volumes Ideias para adiar o fim do mundo (2019), A vida não é útil (2020) e O amanhã não está à venda (2020), fazendo coro à obra A queda do céu (2016), antes publicada pelo ianomami Davi Kopenawa, em coautoria com o antropólogo Bruce Albert.

Não entendendo o reconhecimento dessas publicações pelo público e crítica como um “modismo” ou interesse passageiro, vejo nessa recepção uma tendência à valorização crescente dos povos originários para as discussões referentes às causas ambientais. É preciso assumir que, pouco a pouco, a intelectualidade ocidental vem assimilando algumas ideias do “pensamento ameríndio”, termo que adoto em filiação intelectual ao “perspectivismo ameríndio” de Eduardo Viveiros de Castro (2016CASTRO, Eduardo Batalha Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naif, 2016. ). As pesquisas publicadas pelo próprio supracitado antropólogo brasileiro espelham essa mudança, junto a publicações de diversos outros pensadores, como Bruno Latour e Phillipe Descola. Nesta análise, buscarei relacionar a literatura indígena brasileira às reflexões desenvolvidas por alguns desses pensadores contemporâneos sobre o antropoceno, dando ênfase, no entanto, às conclusões trazidas por Bruno Latour em Diante de Gaia (2020).

O precipício

E as estrelas caíram sobre a terra como figos verdes caem da figueira quando sacudidos por um vento forte. (Apocalipse 6, 13)

Mito poderoso no Ocidente, a imagem de uma humanidade que ruma ao precipício do fim tem início no judaísmo, ganhando maior relevância com o cristianismo, conforme expresso no escatológico Apocalipse, último livro da BíbliaBÍBLIA. Bíblia sagrada. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.. A palavra, que, em grego, significava “revelação”, tornou-se, nas culturas depois cristianizadas, sinônimo de “fim dos tempos”, projetando suas figurações permeadas por anjos e trombetas em obras literárias posteriormente produzidas por autores ocidentais. Esse gênero de inspiração cristã foi criado durante o romantismo, segundo atesta David Wallace-Wells (2019), em um subgênero à época chamado “terra moribunda”, inaugurado por Lord Byron, em 1816, com o poema “As trevas”, sobre a erupção de um vulcão nas Índias Orientais. Esses primeiros alarmes ambientais da Era Vitoriana teriam ecoado em produções similares, a exemplo de A máquina do tempo, obra publicada, em 1895, por H. G. Wells, que retrata um futuro remoto no qual a humanidade estaria quase toda extinta.

Na ficção contemporânea, essa temática tem sido retomada tanto em romances especulativos como em séries, filmes e peças teatrais, um movimento que o supramencionado Wallace-Wells questiona, pois, afinal, qual o sentido em produzir entretenimento com um apocalipse ficcional, quando estamos diante de uma catástrofe real? Para o autor, por meio da ficção, “talvez também estejamos buscando catarse e, coletivamente, tentando nos persuadir de que podemos sobreviver.” (WALLACE-WELLS, 2019WALLACE-WELLS, David. A terra inabitável: uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. , p. 176). Essa conclusão é convergente com aquela apresentada por Maria Manuel Lisboa (2011LISBOA, Maria Manuel. The end of the world: apocalypse and its aftermath in Western culture. Cambridge: Open Book, 2011. ), que, investigando esse topos nas produções especulativas contemporâneas, nota tratarem de um fim quase nunca definitivo: “[...] ao menos um homem, uma mulher, algum animal representativo e plantas específicas são fontes suficientes para garantir uma continuidade.”4 4 No original: “[…] at the very least one man, one woman, some representative animal and plant species and enough resources to sustain them and ensure continuity.” [Tradução nossa]. (LISBOA, 2011LISBOA, Maria Manuel. The end of the world: apocalypse and its aftermath in Western culture. Cambridge: Open Book, 2011. , p. 8). Obra surpreendente no âmbito pós-apocalíptico, segundo sublinha Lisboa na mesma passagem, seria A penúltima verdade, de Philip Dick, romance que, publicado em 1964, descreve o cotidiano de homens a viver no subsolo de uma terra devastada pela Terceira Guerra Mundial, segundo falsas imagens projetadas por um governo, interessado, na verdade, em manter o planeta desfrutável somente para a elite.

O supracitado romance de Dick ajuda a entender que essas narrativas espelham as tensões atuais referentes às questões ambientais, sobretudo no tangente ao real estado do planeta segundo definições científicas. A esse respeito, lembro que o termo antropoceno foi cunhado nos anos 1980 pelo biólogo Eugene Stoemer, ao propor a entrada em uma nova era geológica, caracterizada pelos impactos das atividades humanas sobre a Terra. Contudo, essa ideia, em seguida desenvolvida por Paul Crutzen, químico ganhador do Prêmio Nobel, mas não chancelada pelas chamadas “ciências de prestígio”, é constantemente questionada, visto que proveniente de um amálgama de geociências “cujas certezas foram alcançadas [...] pelo entrecruzamento de centenas de milhares de pequenos fatos [...] dos quais cada prova permanece evidentemente frágil.” (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020., p. 59).

Embora a hipótese do antropoceno não seja definitiva do ponto de vista científico, é notável que se venha consolidando como conceito cultural, conforme observado durante a pandemia, quando se replicavam, nos meios de comunicação de massa, imagens de animais retomando os espaços liberados pelos humanos, então em lockdown. Muitas dessas notícias foram depois desmentidas e substituídas por dados pouco animadores: os índices de emissão de CO2 aumentaram durante o período de isolamento decorrente da doença,5 5 Conforme matéria intitulada “Climate crisis: CO2 hits new record despite Covid-19 lockdowns”. Ver: Carrington (2020, n.p.). ficando demonstrado que, graças à mecanização, as indústrias hoje têm condição de funcionar a pleno vapor, independentes das condições humanas. O consumismo, por sua vez, expandiu-se, devido ao aprimoramento de aplicativos de celulares, revelando-nos a dificuldade, no cenário atual, de um retrocesso possível para a destruição dos biomas.

Entre os pensadores da atual geração a abordar essa temática, Bruno Latour destacou-se por sua obra considerada pioneira, conforme revelam alguns dos seus títulos, traduzidos ao português antes de seu recente falecimento: Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia (2019), Júbilo ou os tormentos do discurso religioso (2020) e Onde estou: lições do confinamento para uso dos terrestres (2021). Uma de suas obras mais didáticas sobre as questões ecológicas e que nos servirá de guia para seu pensamento é Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no antropoceno (2020), na qual o pensador analisa os conceitos fundamentais para compreender o que ele considera a maior catástrofe de todos os tempos, isto é, o antropoceno. Ciente de que o instrumental científico hoje à disposição não é capaz de endossar a hipótese em pauta, Latour defende que estamos, de fato, entrando em uma nova época geológica, fenômeno provocado pela gradual destruição do planeta consequente da ação humana.

Para abraçar essa ideia, o autor apresenta uma série de evidências concretas comprovadas em nível empírico, apontando como gênese da destruição ambiental o próprio pensamento ocidental. Bruno Latour afirma que a seção entre natureza e cultura nos levou a certo grau de alienação, tornando possível enxergarmo-nos como outra coisa para além de seres naturais, autorizando, por tabela, a destruição irreflexiva. Essa separação surgiria no século XVII, com a evolução do pensamento moderno, que segmentou ciência e política, inaugurando o mito segundo o qual a natureza funcionaria alheia às ações das sociedades. Seguindo esse raciocínio, o pensador refuta o conceito tradicional de natureza, argumentando tratar-se de uma construção social, cuja definição depende, inclusive, das inúmeras outras naturezas circundantes. Logo, aquilo que se entende por natureza dependerá sempre de um olhar cultural, enquanto, em contrapartida, também as sociedades modificam o meio ambiente no qual se encontram, com base em suas necessidades de sobrevivência, numa relação mutualista. Nesse sentido, Latour propõe o binômio natureza/cultura atuante como categorias inseparáveis, visto que na tradição ocidental “jamais se fala de um sem falar do outro: não há natureza senão esta definição de cultura, e não há cultura senão esta definição da natureza.” (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020., p. 34-35; grifos do autor).

Surge também, dessa constatação, o título da obra Diante de Gaia, pois, refutado o conceito de natureza tomada como algo estanque, Bruno Latour adota a Hipótese de Gaia, proposta por James Lovelock na década de 1970. Biólogo especialista na composição de planetas, Lovelock teorizou que a Terra seria um organismo vivo, um sistema complexo formado pelo conjunto de organismos orgânicos e inorgânicos, responsáveis por sua autorregulação. Refutada por diversos cientistas, essa ideia, contudo, foi fundamental para os estudos da ecologia, uma vez que enxerga o próprio planeta como uma entidade. Embora Lovelock se tenha valido de sua experiência como cientista para criar sua hipótese, existem alguns paralelos entre seu olhar sobre a vida no planeta e as cosmovisões de certos grupos indígenas, conclusão à qual chegamos por meio das pesquisas de Eduardo Viveiros de Castro, quanto ao que denomina perspectivismo ameríndio. 6 6 Na criação desse conceito, nos anos 1990, participou com igual relevância a antropóloga Tânia Stolze Lima, sintetizando elaborações etnográficas antes feitas sobre diversos povos da Amazônia.

Nos estudos que desenvolveu junto aos povos nativos da Amazônia, Viveiros de Castro notou a ausência de hierarquização entre gente e bicho, já que bicho também pode ser gente, conforme a literatura oral dos povos da Amazônia. Nessas narrativas, a forma externa de alguns animais, por vezes, revela-se uma roupa capaz de esconder a forma interna humana, não perceptível a todos:

Tipicamente, os humanos, em condições normais, veem os humanos como humanos e os animais como animais; quanto aos espíritos, ver estes seres usualmente invisíveis é um signo seguro de que as ‘condições’ não são normais. Os animais predadores e os espíritos, entretanto, veem os humanos como animais de presa, ao passo que os animais de presa veem os humanos como espíritos ou como animais predadores. (CASTRO, 2016CASTRO, Eduardo Batalha Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naif, 2016. , p. 350).

Acho importante sublinhar o seguinte: quando “um índio interage com um existente de ‘outra espécie’ - o que, repetimos, inclui os membros de outros coletivos que nós chamaríamos de humanos -, ele sabe que está tratando com uma entidade que é humana em seu próprio pensamento.” (DANOWSKI; CASTRO, 2014DANOWSKI, Deborah; CASTRO, Eduardo Viveiros de. Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins. Florianópolis: Instituto Socioambiental, 2014., p. 96). Em suma, os indígenas, por óbvio, sabem a diferença entre um homo sapiens e um panthera onca, mas entendem que o jaguar se vê como nós, seres humanos, enxergamos a nós mesmos. Além disso, a floresta está habitada por entidades invisíveis, devendo ser vista como um local sagrado e cheio de regras a serem seguidas. Em resumo, persiste a ideia de que o planeta funciona como um sistema interligado, no qual todas as nossas ações devem ser pensadas a fim de se evitar “a queda do céu”. Falando sobre o tema, Davi Kopenawa (2016), seguindo a tradição de seu povo, nomeia os espíritos guardiões da floresta como xapiri, considerados “os verdadeiros donos da natureza”, aos quais os demais habitantes da mata, inclusive os índios, estão sujeitos, demarcando-se, dessa maneira, que a humanidade é pequena diante dos mistérios da Criação.

O filósofo canadense Michael Pomedli teria notado um fenômeno parecido entre os ojíbuas,7 7 Grupo indígena que ocupa tanto o território dos Estados Unidos como parte do Canadá. em estudo que se concentrou em esclarecer como a figura do animal é lida por esse povo, com base na coleta de relatos orais, bem como na leitura de histórias tradicionais já registradas, chamadas aadizookanag, e consideradas sagradas pela comunidade em questão. Em sua análise, Pomedli argumenta o seguinte: os relatos indiciam a compreensão de que a realidade é uma entidade complexa, isto é, tudo aquilo que é existe não como definição única e estável, mas como entendimentos múltiplos e possíveis, a depender do ponto de vista. Assim, o mundo, partindo da percepção de um observador, é um, mas, fora dela, será de outra natureza. Por exemplo, a forma como um homem enxerga determinado fato não será idêntica à percepção do mesmo fato por um urso. Isso ocorre porque os animais possuem humanidade:

Nesta história de urso, os ojíbuas entendem a afinidade entre animais e humanos no contexto de gênesis ou histórias ancestrais. Conforme tais histórias, os animais no passado tinham características que hoje consideramos exclusivamente humanas. Conforme o tempo passou, porém, os animais perderam muitas destas características. Os animais no passado, portanto, eram humanos ou se assemelhavam a seres humanos; a separação homem-animal ocorreu depois - uma ideia bastante diferente das teorias evolutivas do Ocidente. (POMEDLI, 2014POMEDLI, Michael. Living with animals: Ojibwe spirit powers. Toronto: University of Toronto Press and Toronto Buffalo London, 2014. , p. XV; tradução nossa).8 8 No original: In this bear story the Ojibwe understand the affinity between animals and humans in the context of origins or ancient stories. According to those stories, animals in old times had characteristics that today we consider specifically human. As time passed, however, animals lost most of these characteristics. Animals in the past, then, were humans or human-like; the animal-human separation came later - an idea quite different from Western evolutionary theories.

A “coincidência” entre os estudos de Viveiros de Castro e o canadense Pomedli revela um olhar comum a certas cosmogonias não ocidentais, capazes de integrar as diversas forças existentes no planeta, vendo-as fora do eixo hierárquico europeu que convencionou situar o humano no topo ou, até mesmo, fora desta natureza. No entanto, o avanço da colonização foi, pouco a pouco, varrendo tais compreensões, descredenciando-as sob a perspectiva científica e tornando-as periféricas, conforme reflete a socióloga maori Linda Tuhiwai Smith (2018SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Tradução de Roberto G. Barbosa. Curitiba: Abeu, 2018.), para quem, segundo tal mentalidade, os “povos indígenas foram classificados do mesmo modo que a flora e a fauna; tipologias hierárquicas da humanidade e sistemas de representação foram legitimados” (SMITH, 2018SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Tradução de Roberto G. Barbosa. Curitiba: Abeu, 2018., p. 77), fenômeno que, diz a autora, se tornou hegemônico na Europa durante o Iluminismo. A professora fala, portanto, da secção natureza/cultura estabelecida pelo pensamento moderno e da consequente associação de tudo aquilo que não era humano ‒ então entendido como o homo sapiens europeu ‒ ao “natural”, aí incluídos os povos colonizados, tratados como subumanos.

Ao que tudo indica, assistimos, enfim, a uma reviravolta dessa relação, com o início de uma mudança paradigmática do pensamento ocidental que se volta, pouco a pouco, para outros complexos culturais, a fim de reformular a relação natureza-sociedade. Essa observação é feita por Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, em Há mundo por vir?, ensaio no qual retomam as conclusões de Latour sobre um atual “retorno progressivo às cosmologias antigas e às suas inquietudes, as quais percebemos, subitamente, não serem assim tão infundadas.” (LATOUR, 2012LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020., p. 452 apudDANOWSKI; CASTRO, 2014DANOWSKI, Deborah; CASTRO, Eduardo Viveiros de. Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins. Florianópolis: Instituto Socioambiental, 2014., p. 101). Ainda segundo os autores, se para muitos povos nativos do continente já existia a crença do fim do mundo - a exemplo dos guaranis-nhandeva, para os quais um dia desceria do céu um jaguar azul para devorar o planeta -, em tempos recentes, essas populações passaram a enxergar o fim como uma iminência. E citam, a esse respeito, o testemunho de uma rezadeira guarani-kaiowá, para quem o sinal mais grave dessa aproximação estaria no fato de os galos de seu quintal cantarem em horários inapropriados e as galinhas começarem a conversar como gente. Em resumo, os avanços do antropoceno, se contestados por certos cientistas, são tidos como incontestáveis inclusive por populações isoladas, que notam tanto a ampliação dos perímetros urbanos para próximo da floresta como o avanço da destruição dos rios e mares, elementos essenciais para a sobrevivência dessas comunidades.

Apesar de as narrativas indígenas contemporâneas argumentarem a favor da preservação dos biomas, importa lembrar que essa pauta sempre compôs o discurso dos povos originários, não se podendo falar propriamente em ecologia, mas em cosmovisões que sacralizam o planeta e seus elementos. De todo modo, ressalto que a preocupação com a destruição causada pelo “progresso” se faz profusa na literatura produzida por esses autores, ganhando uma roupagem mais direcionada ao público não indígena, a exemplo de A queda do céu, de Davi Kopenawa, e de Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak. Para além da já mencionada perspectiva cosmogônica, segundo a qual o humano e a natureza mantêm entre si uma relação integrativa, enumero outras características presentes nessas literaturas a serem demonstradas adiante: 1) refutam o modo de produção capitalista, relacionando-o à destruição do planeta; 2) revelam como a desumanização dos biomas segundo o ponto de vista ocidental reverbera na desumanização das populações não europeias; 3) apresentam uma concepção do território como elemento sagrado, porque dotado de anima.

A começar pelo modo de produção ocidental, que tudo coisifica, é notório o estranhamento causado por esse sistema aos povos originários desde os primórdios da colonização. Assim nos revela Jean de Léry, em seu Viagem à terra do Brasil, ao reproduzir certo diálogo que teve com um velho tupinambá. Segundo o religioso francês, o ancião perguntou o porquê de tamanho interesse no pau-brasil, a ponto de os europeus buscarem tal madeira em terras tão distantes. Após explicarem-lhe o mecanismo de acumulação de capital, ouviram a seguinte resposta do nativo:

Agora vejo que vós outros maírs (franceses) sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados. (LÉRY, 1960LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Livraria Martins, 1960. , p. 135).

Vai no mesmo sentido a avaliação de Davi Kopenawa, passados quase quinhentos anos desde o registro de Léry (feito em 1556), o que demonstra a opção de muitos grupos originários pela manutenção de um modo de vida tradicional, apesar dos avanços da “civilização”. Em A queda do céu, o pajé ianomami compara a ânsia do homem branco pela mercadoria com uma espécie de loucura ou doença da alma, pois, afinal, por “quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite. Fechou-se para todas as outras coisas.” (ALBERT; KOPENAWA, 2016ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Companhia das Letras: São Paulo, 2016., p. 407). Em seguida, Kopenawa atribui a essa doença uma das causas para a devastação da Amazônia, já que, por ver tudo como mercadoria, os ocidentais “se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar a terra e a sujar os rios” (ALBERT; KOPENAWA, 2016ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Companhia das Letras: São Paulo, 2016., p. 407). Assim como o ancião tupinambá descrito por Léry, o pajé ianomami não enxerga nenhum sentido na acumulação, porque, pelas tradições de seu povo, todos os objetos de um falecido devem ser queimados para libertar sua alma, não se podendo herdar os bens de um parente ou amigo.

Além de fomentar a acumulação dos bens como mola propulsora do seu sistema econômico, o modo de produção capitalista tende a mercantilizar tudo, inclusive pessoas, plantas, minerais, bichos e a própria terra. A esse respeito, Marcelo Grondin e Moema Viezzer (2021GRONDIN, Marcelo; VIEZZER, Moema. Abya Yala! Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários das Américas. Rio de Janeiro: Bambual, 2021.) concluem que o “transporte e a mineração foram dois elementos de grande impacto, tanto para a afirmação branca quanto para o extermínio dos povos indígenas no século XIX.” (GRONDIN; VIEZZER, 2021GRONDIN, Marcelo; VIEZZER, Moema. Abya Yala! Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários das Américas. Rio de Janeiro: Bambual, 2021., p. 183). Ora, não é novidade que a criação das ferrovias norte-americanas durante o período citado compunha o projeto expansionista, integrando a estratégia de colonização das terras e extermínio dos grupos autóctones que ali habitavam. Mas, segundo os autores, o principal motivo à época alegado por empresários, banqueiros e industriais, para que essas estradas cortassem as terras indígenas, era de ordem econômica: os nativos dificultavam o trabalho e o “progresso”. Ou seja, enquanto modelo econômico, o capitalismo lançou mão de uma ideologia capaz de negar não só o sentido de humanidade presente nos animais, rios e mares, como também suprimiu a subjetividade dos próprios seres humanos pertencentes às demais culturas. O índio, entendido como “natureza”, poderia, por conseguinte, ser exterminado. Ver outras etnias como “bestiais”, “desumanas” ou pertencentes a sub-raças favoreceu a desintegração da Natureza e da própria humanidade enquanto Sua criação.

Sobre esse debate, Ailton Krenak (2015KRENAK, Ailton. Encontros. Organização de Sergio Cohn. Rio de Janeiro: Azougue, 2015. ) contra-argumenta : “Quando comecei a ler literatura universal, descobri um pensamento nos homens de outra tradição que me assustou - o pensamento de que o homem é total, de que ele pode submeter a natureza e a história.” (KRENAK, 2015KRENAK, Ailton. Encontros. Organização de Sergio Cohn. Rio de Janeiro: Azougue, 2015. , p. 92). A literatura indígena, em oposição à literatura ocidental, não se concentra no homo sapiens; expande suas visões à humanidade que permeia todo o planeta, aí incluídos outros elementos da natureza. Em O livro das árvores, por exemplo, obra ticuna, de autoria coletiva, as árvores são os personagens principais, junto aos nanatü, seres encantados que “cuidam há milhares de anos de tudo que existe na natureza.” (TICUNA, 2008TICUNA. O livro das árvores. 6. ed. São Paulo: Benjamin Constant, 2008., p. 28), dentre os quais o Wüwürü, o Curupira, o Mapinguari e o Daiyae. Segundo essa narrativa, a floresta está sempre em movimento, e qualquer vida é muita dentro da floresta, isto é, todas as formas de existência, visíveis ou invisíveis, precisam ser respeitadas, recomenda a cosmovisão dos ticunas.

Esse olhar sobre o mundo, compartilhado por diversos outros povos indígenas do continente, entende o território como espaço sagrado, dotado de histórias, tradições e anima, uma vida que decorre das almas, presentes também nas entidades invisíveis que habitam na própria terra. Daí a correlação entre esse perspectivismo ameríndio e o pensamento de Bruno Latour, trazido da leitura que faz da proposta de James Lovelock. Em resumo, como antevisto pelo paganismo greco-romano e em diversas cosmogonias, inclusive ameríndias, Gaia ou a Terra funciona como uma entidade pulsante e inteligente, cujas reações devem ser lidas não como “calamidades vãs”, mas como lições de uma mãe mais velha e mais sábia: “Filho, silêncio. A Terra está falando isso para a humanidade. E ela é tão maravilhosa que não dá uma ordem. Ela simplesmente está pedindo: silêncio.” (KRENAK, 2020KRENAK, Ailton A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020., p. 84). Segundo essa lógica, bem distinta da organização social ocidental, tudo pertence à terra sagrada, não sendo possível vê-la como propriedade, mas como moradia temporária, a ser cuidada para as gerações subsequentes, porque, “[o território] é um espaço verdadeiramente ético, não é um espaço físico como muitos políticos querem impor [...]. Território é cosmologia que passa inclusive pela ancestralidade.” (POTIGUARA, 2004POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global, 2004. , p. 105).

Tal ideia é reiterada pelos autores indígenas, a exemplo dos poemas de O lugar do saber, de Márcia Kambeba, obra que enfatiza a relação natureza/cultura em acordo com as crenças do povo omágua. Vale lembrar que a autora, além de escritora, atua como contadora de histórias, cantora, compositora e performer, enfatizando um sentido de literatura anterior à escrita disseminado entre os povos de tradição oral. No supracitado livro, Kambeba apresenta uma série de composições sobre os avanços do antropoceno na Floresta Amazônica, apresentando, muitas vezes, um eu lírico que fala em primeira pessoa, tal como falariam os espíritos das águas, das matas e das montanhas. Seus poemas também confirmam o ideal de pertencimento à terra mencionado anteriormente, a exemplo de “Iuiria” (“Nosso lugar”), cujos versos espelham a floresta como uma extensão da própria existência do povo:

Com a nossa casa vou sonhar.
Não apague a mata ela é nosso lugar.
[...]
E o solo transformou-se
Em asfalto de trator,
Compactaram seu coração,
Meu verde virou carvão.
Mas a mata é nossa casa,
Uka tana é um clamor.
(KAMBEBA, 2020KAMBEBA, Márcia Wayna. O lugar do saber. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020. , p. 28).

A também poeta Eliane Potiguara dedicou alguns de seus versos a essa questão, relacionando, por sua vez, a expropriação da terra à violência e à impossibilidade de os indígenas reagirem ante a destruição que é tanto da terra como dos povos, conforme lemos no poema “Esperança”:

O que é a vida?
Se sofremos...
Se choramos...
Por que não sorrir?
E deixar o rio de mágoas que nos sufoca.

Secar ao sol da esperança
Da vontade de viver...
Da vontade de nossa terra.
(POTIGUARA, 2004POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global, 2004. , p. 125).

No âmbito da literatura infantojuvenil, gênero no qual diversos autores indígenas do país se têm destacado, cito duas obras de Olívio Jekupé que trabalham com a tensão dos avanços do antropoceno, ainda que de forma subjacente: Saci verdadeiro (2003JEKUPÉ, Olívio. O Saci verdadeiro. Londrina: Eduel, 2003.) e Iarandu, o cão falante (2006JEKUPÉ, Olívio. Iarandu, o cão falante. Ilustrações de Olavo Ricardo. São Paulo: Peirópolis, 2006.). No primeiro, há referência ao Saci Pererê, conhecido “duende” de uma perna só originário da cultura iorubá e muito presente até os dias atuais em nosso imaginário social. Mas, na narrativa em questão, o Saci é, na verdade, Jaci Jaterê, um espírito da cosmologia guarani possivelmente sincretizada pelos iorubás na figura do Saci, hoje mais popular entre os brasileiros. No enredo de Jekupé, a entidade aparece para um jovem nativo deficiente físico, que, nascido com apenas um braço, se vê alvo do preconceito de membros de sua própria aldeia, sentimento neutralizado graças à intervenção do encantado, capaz de dar-lhe um braço invisível. Descobre-se, por fim, uma narradora guarani desaldeada, contando a referida história ao filho, que, por sua vez, consegue ver Jaci, um dom a ser mantido em segredo e jamais revelado aos “homens brancos”.

Nesse cenário pintado por Olívio Jekupé, vemos uma floresta mutilada, sobrevivente na condição de memória. O indígena está desterrado do território que é também a sua própria identidade cultural, conseguindo um lugar no mundo graças ao conhecimento ancestral que possui, alheio àqueles que não pertencem à sua etnia. Esse tema se repete em Iarandu, o cão falante, cujo enredo trata de um garoto guarani que consegue conversar com um cachorro, dom escondido até mesmo dos seus parentes, sob pena de perder a “magia” sobrenatural que alimenta aquela amizade. Ao fim da narrativa, revela-se que a aldeia onde a história se ambienta fica perto de um centro urbano, restando pouco espaço físico disponível aos nativos, dado o rápido avanço da “civilização”. O choque cultural entre os “brancos” e os “indígenas” ocorre, conforme explicitam as duas obras, sobretudo no lidar com a natureza: sacralizada, para os povos originários, e banalizada pelo Ocidente.

Nas histórias de Olívio Jekupé, em semelhança aos mitos de diversos povos originários do continente, animais, pessoas e entidades espirituais habitam o mesmo mundo, em oposição ao que vemos na tradição mito-filosófica ocidental, segundo a qual “tendemos a conceber a animalidade e a natureza em geral como remetendo essencialmente ao passado. Os animais são arquefósseis vivos [...] porque a espécie humana tem sua origem em espécies ancestrais cada vez mais próximas.” (DANOWSKI; CASTRO, 2014DANOWSKI, Deborah; CASTRO, Eduardo Viveiros de. Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins. Florianópolis: Instituto Socioambiental, 2014., p. 89). Tais diferenças culturais se espelham no léxico das línguas indígenas, nas quais palavras como “natureza” e “ecologia” têm sentido próprio, referindo-se ao próprio modus vivendi das sociedades tradicionais, conforme atesta Davi Kopenawa:

Omama tem sido, desde o primeiro tempo, o centro das palavras que os brancos chamam de ecologia. É verdade! Muito antes de essas palavras existirem entre eles e de começarem a repeti-las tantas vezes, já estavam em nós, embora não as chamássemos do mesmo jeito. Eram, desde sempre, para os xamãs, palavras vindas dos espíritos, para defender a floresta [...]. Os brancos, que antigamente ignoravam essas coisas, estão agora começando a entender. É por isso que alguns deles inventaram novas palavras para proteger a floresta. Agora dizem que são a gente da ecologia porque estão preocupados, porque sua terra está ficando cada vez mais quente. (ALBERT; KOPENAWA, 2016ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Companhia das Letras: São Paulo, 2016., p. 479-480).

A fala de Kopenawa reitera certo movimento já mencionado neste ensaio: estamos diante de uma reformulação do pensamento ocidental, que, pouco a pouco, se volta para as filosofias nativas em busca de respostas para os problemas planetários, enfim entendendo os imbricamentos inextinguíveis entre economia e ecologia. Essa consciência se amplia após a pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, em 2020, porque, se “durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados da ruptura ou da extinção do sentido da nossa vida, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar nossa demanda.” (KRENAK, 2020KRENAK, Ailton A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020., p. 79). Nesse panorama, Ailton Krenak ganha destaque entre a intelectualidade brasileira, tornando-se best-seller sua obra antes publicada Ideias para adiar o fim do mundo, composta de uma série de conferências proferidas pelo pensador sobre o antropoceno. Sem mencionar Bruno Latour, o pajé traz, no supracitado livro, conclusões sobre o tema que vão ao encontro das ideias formuladas pelo filósofo francês: “[...] fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza.” (KRENAK, 2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. , p. 10).

Retornando à proposta filosófica de Bruno Latour (2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020.), quando “se sustenta que existem, de um lado, um mundo natural e, de outro, um mundo humano, propõe-se simplesmente dizer, após o fato, que uma porção arbitrária dos atores será despojada de toda ação e que outra parte [...] será dotada de uma alma.” (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020., p. 101). Diante dessa proposição, compreende-se que a dicotomia natureza-cultura feita pelo pensamento ocidental categorizou os povos nativos junto à natureza, desumanizando-os. A discussão sobre a existência ou não de alma entre os “negros da terra”, vigente durante os primórdios da colonização, deu origem à bula papal Sublimis Deus (ALCIDES, 2009ALCIDES, Sérgio. F, L e R: Gândavo e o ABC da colonização. Revista Escritos, ano 3, n. 3, p. 39-53, 2009., p. 48), assinada pelo Papa Paulo III, em 1537, na qual se dizia que os nativos eram capazes de compreender a fé cristã, não devendo, portanto, ser escravizados. Apesar da definição formal proferida pelo Vaticano, a discussão sobre o tema demoraria a findar, assim como a escravização e o genocídio dos nativos permaneceriam práticas correntes atestadas pelos documentos de autoria jesuítica. Em tais relatos, os religiosos apregoam a humanidade dos indígenas mais para justificar a necessidade do clero nas colônias ibéricas em prol da catequese do que pelo reconhecimento de suas diferenças, afirmando-se o status quo e inferiorizando-se os saberes locais em detrimento da cultura europeia. No dizer de João Adolfo Hansen (1998HANSEN, João Adolfo. A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro. In: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 347-373.) a esse respeito, os textos dos padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta sobre os nativos brasileiros, “quando classificam o novo objeto com as metáforas ‘animal’, ‘gentio’, ‘selvagem’ e ‘bárbaro’, também evidenciam a positividade prescritiva da universalidade de ‘não-índio’, ou seja, o ‘civilizado’, branco, católico, de preferência fidalgo e letrado.” (HANSEN, 1998HANSEN, João Adolfo. A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro. In: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 347-373., p. 352).

Com base nas vivências dos autores e de tais memórias ancestrais mantidas pelos seus grupos étnicos, a literatura indígena testemunha as convergências entre o antropoceno e a violência social promovida pelos mecanismos colonizadores. Correlaciono tal constatação à sistematização feita por Boaventura de Sousa Santos no ensaio “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes.”. Segundo o sociólogo, o pensamento ocidental defende a premissa de sua superioridade em relação às demais formas de saber, lançadas abaixo de uma linha imaginária da invisibilidade, que ele denomina “abissal”. Daí que a zona colonial seja “por excelência o universo das crenças e dos comportamentos incompreensíveis, que de forma alguma podem ser considerados como conhecimento e por isso estão para além do verdadeiro e do falso.” (SANTOS, 2007SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estudos CEBRAP, n. 79, p. 71-94, 2007. DOI: DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004 . Acesso em: 23 out. 2022.
https://doi.org/10.1590/S0101-3300200700...
, p. 75). O pensador propõe, sob essa ótica, uma “ecologia de saberes”, assim entendida a legitimação da pluralidade de conhecimentos (inclusive científicos), a fim de construirmos uma sociedade de interconhecimentos.

O uso da palavra “ecologia” em um contexto sociológico revela a simbiose inevitável entre sociedades e meio ambiente, bem como constata que a ciência, embora epistemologia útil para promover diversos avanços, falhou, sobretudo, em salvaguardar as múltiplas formas de vida do planeta. Conforme reconhece o autor, “a preservação da biodiversidade [foi] possibilitada por formas de conhecimento camponesas e indígenas, que se encontram ameaçadas justamente pela crescente intervenção da ciência moderna.” (SANTOS, 2007SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estudos CEBRAP, n. 79, p. 71-94, 2007. DOI: DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004 . Acesso em: 23 out. 2022.
https://doi.org/10.1590/S0101-3300200700...
, p. 88). Em suma, tendo em vista que não podemos distinguir natureza de cultura, conforme a proposição de Bruno Latour antes mencionada, a política permeia de maneira inevitável as relações humanas junto aos biomas circundantes. Dessa forma, a violência física praticada contra os povos colonizados caminha de mãos dadas com a destruição dos ecossistemas promovida pelo avanço civilizacional. Compõe também o modus operandi colonizador aquilo que Boaventura de Souza Santos denomina “epistemicídio”, isto é, a eliminação gradual dos conhecimentos dos povos colonizados, aí incluídos os conhecimentos sobre o meio ambiente e sua manutenção. Mas a violência sistêmica cometida contra Gaia e alguns de seus filhos começa a atingir, por inevitável, todas as humanidades que Nela habitam...

Antes do fim

E assim acaba o mundo
Não com uma explosão, mas com um soluço.

T.S. Eliot 9 9 No original: “This is the way the world ends/ Not with a bang but a whimper”. Trata-se dos últimos versos do poema “The hollow men” (Os homens vazios). Ver: Eliot (2011, p. 56-59). [Tradução nossa].

Iniciei o presente ensaio refletindo sobre as ideias expostas por Antonio Candido em “O direito à literatura”, propondo que, na contemporaneidade, surge uma ânsia não apenas pelo acesso à literatura como também à sua produção, conforme ilustram as obras recentes escritas por sujeitos periféricos, dentre os quais diversos autores indígenas. Ora, é esperado que a noção do que venha a ser um determinado direito se expanda, como, aliás, vem acontecendo com os direitos humanos, estendidos, em certas decisões recentes, a elementos naturais. Cito, a esse respeito, um julgamento de 2017 que considerou o rio Whanganui, na Nova Zelândia, uma pessoa jurídica, encerrando-se, assim, uma disputa legal iniciada ainda no século XIX pelos maoris, para os quais o local é uma entidade única e indivisível.10 10 Conforme matéria intitulada “This river in New Zealand is legally a person. Here is how it happened”. Ver: Hollingsworth (2020, n.p.). Do mesmo modo, o pensamento ocidental tem-se alargado, abrindo-se, pouco a pouco, para as visões trazidas pelos povos nativos, outrora vistos como primitivos, selvagens e subumanos.

Nesse cenário, a literatura indígena emerge como instrumento que propõe mudar a mentalidade ocidental, dada a sua notável busca de ordem ética referente à preservação das culturas originárias. A manutenção dessas culturas não se dá sem que sejam também salvaguardados os biomas de pertencimento de suas aldeias, pois, afinal, segundo as cosmovisões desses povos, tudo está vivo e animado. Tal percepção foi explicada por alguns pesquisadores não indígenas, dentre os quais destaquei, no panorama brasileiro, o perspectivismo ameríndio, “nome que T. S. Lima e E. Viveiros de Castro escolheram para designar uma noção muito difundida na América indígena, segundo a qual cada espécie de existente vê-se a si própria como humana.” (DANOWSKI; CASTRO, 2014DANOWSKI, Deborah; CASTRO, Eduardo Viveiros de. Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins. Florianópolis: Instituto Socioambiental, 2014., p. 95). A humanidade é, portanto, uma condição universal, segundo os olhares trazidos por esses povos, tocando, para além do homo sapiens, tudo aquilo que há no planeta. Tal proposta ancestral ecoa na recente Hipótese de Gaia, de James Lovelock, biólogo para quem a Terra atua como um organismo vivo.

É com base na hipótese de Lovelock que Bruno Latour desenvolve seu Diante de Gaia, apontando o pensamento ocidental como fator incontestável para a promoção do antropoceno desde a modernidade. Segundo essa lógica, as forças econômicas dominantes no planeta teriam atribuído “capacidades, dimensões, uma moralidade e até uma política que a Natureza não estava moldada para suportar.” (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020., p. 71). Um dos principais pontos da doxa ocidental questionados pelo filósofo é a divisão entre natureza e cultura, notável no discurso europeu produzido ainda nos primórdios da colonização, quando os povos indígenas, à semelhança dos animais e plantas, foram vistos como seres sem alma. Essa correlação entre a violência cometida contra os povos colonizados e a destruição massiva dos ecossistemas é inquestionável, visto que decorrente de um mesmo modus operandi expansionista. Desse modo, segundo a professora maori Linda Tuhiwai Smith, o imperialismo foi também de ordem ecológica, devido à introdução de diversas espécies endógenas nos territórios ocupados, fenômeno que, segundo ela, “gerou a eventual extinção de diversos pássaros e outros animais.” (SMITH, 2018SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Tradução de Roberto G. Barbosa. Curitiba: Abeu, 2018., p. 80).

Vemos, então, que a filosofia de Bruno Latour é concordante com aquela apresentado pela socióloga indígena neozelandesa, o que revela a influência do pensamento ameríndio na formação de uma nova consciência ocidental. Para além de Bruno Latour, observo essa tendência nos estudos antropológicos de outros autores, dentre os quais Mashall Sahlins, Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro. Herdeiros do legado de Claude Lévi-Strauss, os mencionados pesquisadores enfatizam a inexistência da secção natureza-cultura entre os nativos do continente americano. Essa constatação, perceptível nos mitos e narrativas orais desses povos, repete-se na literatura escrita por eles em tempos mais recentes, na qual a fusão entre homem e natureza é corriqueira, dada a recorrente aparição dos transmorfos ou tricksters (como preferem chamar os teóricos norte-americanos), figuras que ora assumem a forma humana, ora a roupagem de animais. Eis, aí, o já citado perspectivismo ameríndio, que se faz presente na literatura indígena, habilitando essas obras como verdadeiras cartilhas para a educação do homem não indígena.

Visto que segundo as cosmogonias ameríndias tudo é natureza, o conceito de ecologia ocupa outro sentido no imaginário dessas comunidades, integrando uma forma de viver, e não um campo de saber isolado a ser ensinado nas escolas. Dessa maneira, ao enfatizar que ecologia e política caminham juntas, Bruno Latour conclui que também as sociedades tradicionais do continente sempre foram políticas no sentido da conservação e da manutenção de seus territórios. Cito, a esse respeito, o estudo de Andre Prous, para quem os saberes indígenas devem ser avaliados sem romantismos, afinal, também entre os povos tradicionais houve possíveis equívocos quanto à preservação dos ecossistemas. Nas palavras do autor:

[...] em substituição ao mito (felizmente em declínio) do homem pré-histórico bruto, ignorante e infeliz, está ressurgindo, entre os “intelectuais”, outro mito: o do “bom selvagem” - hoje com matizes “ecológicos”[...] Manejo intenso da floresta amazônica (que perdeu sua virgindade há muitos milênios por obra dos seus “primitivos” habitantes), queima de matas por grupos que preferem o cerrado; guerras para raptar mulheres e crianças, ou para capturar inimigos a serem sacrificados ou incorporados à tribo; conquista de territórios - todos esses fenômenos ocorreram, mesmo que de uma forma original em relação à história europeia, o que não significa que não tenhamos nada a aprender com os indígenas. (PROUS, 2007PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros: a pré-história do nosso país. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. , p. 123-124).

O alerta trazido por Prous relembra-nos que todo saber é incompleto, conforme postulado por Boaventura de Sousa Santos, em sua ecologia dos saberes, cuja proposta se calca no convívio entre todos os saberes, inclusive o científico, porque a “incompletude [do conhecimento humano] não pode ser erradicada.” (SOUSA, 2007, p. 88). Assim, as epistemes tradicionais auxiliam a adiar o fim do mundo, na medida em que se refletem em um discurso refratário ao capitalismo. Nesse mesmo sentido, caminha a literatura indígena, cujo teor ecológico nasce das cosmogonias e de fazeres políticos preocupados em 1) denunciar um modo de produção predatório que 2) desumaniza pessoas e biomas, 3) ignorando o sentido de sacralidade atribuído ao território pela tradição. Esses três elementos aparecem nas publicações nativas contemporâneas, conforme exemplificado neste ensaio, mas também são encontradas em registros antigos, dentre os quais destaco a carta escrita pelo chefe Seattle, líder das tribos suquamish e duwamish, ao então Presidente da República dos Estados Unidos, em 1855: “O que fere a terra também fere os filhos da terra. O homem não tece a teia da vida; é antes um de seus fios. O que quer que faça a essa teia, faz a si próprio.” (FULKAXÓ, 2019FULKAXÓ, Nankupé Tupinambá. Entre cartas, crônicas e textos jornalísticos. Salvador: Pinaúma, 2019. , p. 63).

Com a recente disseminação pandêmica do vírus SARS-CoV-2, amplia-se essa consciência trazida, no século XIX, pelo chefe Seattle, segundo a qual a vida pulsa no planeta como uma grande rede interdependente, já que “quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista.” (KRENAK, 2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. , p. 24). Em outras palavras, desanimar, retirar a alma ou anima da natureza implica antecipar o nosso próprio fim, o que os indígenas também enxergam por meio de uma perspectiva diferenciada, pois, para muitas culturas originárias a ausência do homo sapiens no planeta não resultará no extermínio de outras humanidades. Segundo essa lógica, imaginar o fim dos tempos implica uma postura passiva, propondo-se, como solução, a construção de uma nova realidade, pois há mundo por vir, traduzido, nas palavras de Ailton Krenak (2020KRENAK, Ailton A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020., p. 15), como “paraquedas coloridos” a serem construídos.

Dentre os muitos “paraquedas” dispostos a evitar a queda do céu está a literatura indígena, que, diferente da ficção especulativa ocidental, se afasta dos olhares apocalípticos, optando por projetar a memória do passado no futuro. Ao recordar corpos e aldeias queimados, assistimos a um certo fim, ensaiado há séculos, por meio das experiências reais de desumanização dos outros povos. A retrospectiva dos povos originários, se ampliada, leva-nos aos campos de concentração nazistas, às bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, ao acidente nuclear de Chernobyl, à morte da bacia do rio Doce... Diante desse cenário catastrófico, a literatura nativa surge não como espetáculo, mas como utopia de um reencontro possível entre distintas civilizações dispostas a escapar da barbárie, conforme afirma o pajé: “a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.” (KRENAK, 2020KRENAK, Ailton A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020., p. 13). Em suma, naquele sentido de humanidade que reside na literatura, antes notado por Antonio Candido em seu famoso ensaio, está, senão a fórmula para evitar o fim, certamente o segredo para escrevermos uma nova história.

REFERÊNCIAS

  • ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Companhia das Letras: São Paulo, 2016.
  • ALCIDES, Sérgio. F, L e R: Gândavo e o ABC da colonização. Revista Escritos, ano 3, n. 3, p. 39-53, 2009.
  • BAPTISTA, Josely Vianna. Popol Vuh Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Ubu, 2019.
  • BÍBLIA. Bíblia sagrada São Paulo: Edições Paulinas, 1985.
  • CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: LIMA, Aldo de (org.). O direito à literatura Recife: Ed. UFPE, 2014. p. 17-40.
  • CARRINGTON, Damian. Climate crisis: CO2 hits new record despite Covid-19 lockdowns. The Guardian, Environment, 23 de novembro de 2020. Disponível em: https://www.theguardian.com/environment/2020/nov/23/climate-crisis-co2-hits-new-record-despite-covid-19-lockdowns Acesso em: 9 out. 2022.
    » https://www.theguardian.com/environment/2020/nov/23/climate-crisis-co2-hits-new-record-despite-covid-19-lockdowns
  • CASTRO, Eduardo Batalha Viveiros de. A inconstância da alma selvagem São Paulo: Cosac Naif, 2016.
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  • WALLACE-WELLS, David. A terra inabitável: uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • 1
    Pesquisa financiada pela Faperj (edital 25/2021).
  • 2
    Trata-se de Antes o mundo não existia, dos dêsanas Umúsin Anlõn e Tomalã Kenhíri, segundo informa KLINGER (2007KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007. , p. 71).
  • 3
    Abya Yala é um termo em kuna, usualmente traduzido como “terra madura”. A palavra vem sendo proposta pelas lideranças indígenas para designar o continente como possível substituto para “América”, cuja etimologia está correlacionada à figura do colonizador Américo Vespúcio. Ver: Grondin e Viezzer (2021GRONDIN, Marcelo; VIEZZER, Moema. Abya Yala! Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários das Américas. Rio de Janeiro: Bambual, 2021., p. 204).
  • 4
    No original: “[…] at the very least one man, one woman, some representative animal and plant species and enough resources to sustain them and ensure continuity.” [Tradução nossa].
  • 5
    Conforme matéria intitulada “Climate crisis: CO2 hits new record despite Covid-19 lockdowns”. Ver: Carrington (2020CARRINGTON, Damian. Climate crisis: CO2 hits new record despite Covid-19 lockdowns. The Guardian, Environment, 23 de novembro de 2020. Disponível em: https://www.theguardian.com/environment/2020/nov/23/climate-crisis-co2-hits-new-record-despite-covid-19-lockdowns . Acesso em: 9 out. 2022.
    https://www.theguardian.com/environment/...
    , n.p.).
  • 6
    Na criação desse conceito, nos anos 1990, participou com igual relevância a antropóloga Tânia Stolze Lima, sintetizando elaborações etnográficas antes feitas sobre diversos povos da Amazônia.
  • 7
    Grupo indígena que ocupa tanto o território dos Estados Unidos como parte do Canadá.
  • 8
    No original: In this bear story the Ojibwe understand the affinity between animals and humans in the context of origins or ancient stories. According to those stories, animals in old times had characteristics that today we consider specifically human. As time passed, however, animals lost most of these characteristics. Animals in the past, then, were humans or human-like; the animal-human separation came later - an idea quite different from Western evolutionary theories.
  • 9
    No original: “This is the way the world ends/ Not with a bang but a whimper”. Trata-se dos últimos versos do poema “The hollow men” (Os homens vazios). Ver: Eliot (2011ELIOT, Thomas Stearns. The complete poems and plays of T.S. Eliot. Londres: Faber & Faber, 2011., p. 56-59). [Tradução nossa].
  • 10
    Conforme matéria intitulada “This river in New Zealand is legally a person. Here is how it happened”. Ver: Hollingsworth (2020HOLLINGSWORTH, Julia. This river in New Zealand is legally a person. Here’s how it happened. CNN, Asia, 11 de dezembro de 2020. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/12/11/asia/whanganui-river-new-zealand-intl-hnk-dst/index.html . Acesso em: 23 out 2022.
    https://edition.cnn.com/2020/12/11/asia/...
    , n.p.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2022
  • Aceito
    02 Nov 2022
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