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Interações entre línguas, linguagens, práticas sociais e formas de vida

O desafio que nos foi proposto pela Revista Gragoatá de organizarmos um dossiê a partir de uma ementa aberta o suficiente para indeterminar as identidades de área e de abordagens foi uma oportunidade para assumirmos a perspectiva do contato, do entre-lugar, dos embates, das interpenetrações, marcadas ou não, explicitadas ou não, que, no fundo, são questões constitutivas da reflexão acadêmica, mas que, de tão tácitas, nem sempre ganham visibilidade como objeto central de investigação.

Deixamos o curso das contribuições delinear o dossiê cuja identidade se mostrou de início opaca, mas que aos poucos foi ganhando tônus e trazendo à luz seus próprios liames de coerência e interligação. Os textos que compõem este número da Gragoatá partem de abordagens distintas e modos diferentes de olhar os fenômenos de linguagem, o que endossa a riqueza da pluralidade de pontos de vista e, ao mesmo tempo, desvela a inteireza do devir subjacente à construção de sentido, organizando direções possíveis e desenhando o mundo e suas formas de vida.

Cada artigo mostrou a potência e a coerência teórico-metodológica de sua abordagem, ao mesmo tempo que deixou patente a vulnerabilidade do que se estabelece como uma circunscrição nítida frente à intrusão dos fenômenos e seu poder de amálgama em favor de uma direção geral.

A palavra “cada” soprou em sua direção e desfez-se no vento. Gerião sempre tivera este problema: uma palavra como cada, quando ele a fitava, desagregava-se em letras separadas e ia embora. (CARSON, 2017CARSON, Anne. Autobiografia do vermelho um romance em versos. São Paulo: Editora 34, 2017.).

A fragilidade dos limites do “cada” frente ao curso do “todo” coletivo tensiona e desafia as abordagens a tomar posição em relação às interpenetrações inerentes a qualquer fenômeno, dotando da devida importância o movimento do ato em realização na definição das identidades, ao mesmo tempo coletivas e individuais, que ganham em complexidade quando observadas pela ótica dos contatos.

O número propõe discutir as interações entre ancoragem cultural e suportes linguísticos, ou seja, as margens ecológicas (adaptação e exaptação, conformação e emancipação) entre práticas sociais e formas de vida. Interações nada mais são do que situações de contato que desafiam e, portanto, tensionam identidades e valores em um processo dinâmico de ajustamento sob o qual se estabelece a coexistência entre uma dimensão coletiva e a esfera individual das trocas. Nesse jogo, há uma relação dialética entre a organização sistêmica das gramáticas e os remendos, remédios e negociações locais aos quais as práticas e formas de vida têm que se submeter para se adaptarem a situações interativas que têm uma complexidade e heterogeneidade irredutíveis à codificação prévia. O hiato crítico entre a gramaticalização processual e a situacionalização nos leva a reconhecer a complementaridade entre as habilidades gerais ou teóricas e as habilidades "de campo". A coletivização de valores é uma tarefa sem fim, razão pela qual a necessidade de comunicação social permanente e a negociação de perfis de identidade em constante mudança se impõem inequivocamente. O dossiê convidou pesquisadores a refletir sobre as interações de diferentes naturezas, sobre os processos de contato e os movimentos de tensão inescapáveis que se estabelecem entre o ato original e o conhecimento tácito, polos entre os quais se desenham graus de permeabilidade e de embate que estão na base da descrição de vários fenômenos de fronteira (ou de interface) descritos e analisados por diferentes esferas do saber.

Nesta introdução, queremos nos concentrar em dois conceitos que receberam pouca atenção na semiótica, o contato e o sincretismo, pelo menos do ponto de vista de uma dialética específica, aquela entre interação e interpenetração.

Contatos e sincretismo

Comparadas a uma interdiscursividade gerenciada à distância e por meio de atos enunciativos de convocação unilateral de uma alteridade em diálogo, as interações entre línguas, linguagens, práticas sociais e formas de vida, ao mobilizarem textos, caracterizam-se pela copresença e são aspectualizadas incoativamente pelo contato. Nesse sentido, para produzir descrições, devemos assumir a tarefa de descrever uma interpenetração progressiva entre instâncias dotadas de organização própria, o que inevitavelmente dá origem a influências mútuas e rearranjos estruturais bilaterais.

O contato tem uma natureza semiótica completamente paradoxal. Por um lado, entre duas entidades em contato, não há mais um meio-termo, um "lugar intermediário" que permitiria um jogo interpretativo e, portanto, uma semiose aberta: deixamos espaço para o contato corpo a corpo (mais ou menos harmonioso ou conflituoso) ou para a sintonia mental. Por outro lado, o contato pode ser visto como o estabelecimento de um possível canal de comunicação, uma estrutura sensível - possivelmente "aumentada" pela tecnologia - favorável ao engajamento em uma interação genuína. Mesmo nessa versão, o contato continua sendo simplesmente uma condição preliminar para o exercício das linguagens, uma noção no limiar da relevância semiótica. No entanto, por trás dessa ambiguidade da noção de contato está o medo das relações com culturas e povos desconhecidos ou totalmente estrangeiros: entrar em contato pode ser a faísca para o conflito ou a oportunidade para trocas que enriquecerão as partes envolvidas.

Se, de um lado, o contato corpo a corpo é sempre investido de aspectos simbólicos, de outro, quanto mais imediatamente disponível o canal, livre de qualquer tecnologia, mais temos a sensação de que os meios semióticos não serão suficientes para resistir ao impacto sensível do encontro com a alteridade. Aqui reside o paradoxo do "contato": brutal demais para ser considerado semiótico, ele revela todo o esforço que as culturas dedicam a concebê-lo e justificá-lo e, por ser muito cercado de preliminares e de suportes para preparar a comunicação, ele se revela já instalado de partida e aberto à superexposição recíproca.

Se o contato é a macro-aspectualização de um confronto que pode levar ao diálogo ou ao enfrentamento, ele também merece uma apreciação processual e uma descrição ancorada nas instâncias envolvidas. Muito já foi dito sobre o contato na dinâmica comunicativa entre instâncias enunciativas, reduzindo-o a um canal de transmissão e a uma função fática, que garante a persistência de um suporte mediador (JAKOBSON, 1963JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique générale. I: Les fondations du langage. Paris: Minuit, 1963.). A conexão sensorial à distância (por exemplo, o contato visual) ainda não é uma interação genuína, na medida em que não há transparência, no acesso ao nível semântico (RASTIER, 1995RASTIER, François. Communication ou transmission?. Césure, n. 8, p. 151-195, 1995.), das questões atualizadas pela copresença. Além disso, o ambiente não é indiferente à possibilidade de "canalizar" eficazmente as comunicações. O fato de que o contato pode levar a um encontro, a um choque ou a uma superexposição indiscreta também depende da configuração do ambiente, das posições actanciais, das práticas e das condições contingentes. As instâncias implicadas também não são redutíveis a posições corporificadas, uma vez que seu espaço de presença se estende muito além das bordas de seus corpos, e as sensações de invasão sofrida ou intrusão realizada começam bem antes de uma aproximação e do estabelecimento de um canal de comunicação funcional. Pensamos imediatamente em cheiros e perfumes que amplificam o corpo em uma esfera de presença, mas a agentividade gestual também é uma bolha íntima de expressividade declarada.

O contato é, portanto, roteirizado dentro de um determinado ambiente e composto por instâncias cujo invólucro de presença é sensibilizado por apostas simbólicas pré-constituídas, plurais e, às vezes, contraditórias, a começar pelo invólucro flutuante que delineia a dinâmica da presença, que é tanto vulnerável quanto estrategicamente desenhado em direção ao outro. A configuração semântica do contato não só não é transparente, como a simples aparência de um suporte válido para um plano de expressão, mas também apresenta uma complexidade que advém das formas de vida, tendo estas últimas várias disposições afetivas, papéis actanciais, faces negativas e positivas (GOFFMAN, 1967GOFFMAN, Erving, Interaction Ritual: Essays on Face-to-Face Behavior. Chicago: Aldine Publishing Company, 1967. ).

Em uma semiótica das culturas, o contato não pode ser simplesmente o estabelecimento de um canal de comunicação, porque a copresença em um determinado lugar já está enormemente carregada de interesses simbólicos, a tal ponto que, muitas vezes, o contato corpo a corpo começa bem antes de um confronto físico e, às vezes, o espaço para a interpretação mútua pode ser negado mesmo diante de repertórios e competências semióticas compartilhadas. Isso também explica porque a semiótica se opôs com tanto vigor à ideia de "contato mental", em que a compreensão comunicativa é alcançada por meio da coincidência dos estados representacionais dos interlocutores, reduzindo assim as mediações linguísticas a escalas que podem ser descartadas, uma vez que as elevações do pensamento compartilhado tenham sido alcançadas. Pelo contrário, as abduções relativas à possível convergência das dinâmicas representacionais dos interlocutores devem ser consideradas como passíveis de constante exame crítico das posições perceptivas e enunciativas respectivamente imputadas e das manifestações semióticas que são produzidas e interpretadas in vivo.

Se a comunicação é normalmente motivada pela necessidade de renegociar as fronteiras identitárias e pela tentativa de resolver uma assimetria na distribuição e/ou no reconhecimento dos valores implicados nos relacionamentos, o contato deve ser visto como uma situação de copresença que catalisa aspectos simbólicos e não apenas como uma estrutura de apoio para interações que estão simplesmente procurando um canal de expressão. Além disso, a busca por um canal integra e participa da composição de aspectos simbólicos, para além de qualquer perspectiva puramente instrumental de recursos semióticos.

O contato merece uma descrição processual capaz de dar conta da complexidade das dinâmicas que gerenciam a copresença com vistas à coexistência pacífica ou conflituosa. Isso nos convida a encontrar as origens da história relacional que é traçada nas interferências entre os costumes e, acima de tudo, nas influências mútuas entre os sistemas linguísticos mobilizados pelos diferentes grupos envolvidos. O contato pode muito bem ser uma fase incoativa de uma coexistência de formas de vida culturais inicialmente distantes, mas que assume uma espessura durativa assim que passamos para as integrações descendentes: das estratégias de comunicação dos aspectos simbólicos mutuamente reconhecíveis e possivelmente negociáveis, passamos para o processo mais lento de ajuste da coabitação entre práticas copresentes provenientes de tradições distantes. Hibridizações ou resistências produtivas entre as genealogias da produção de objetos e textos são o resultado de processos ainda mais lentos que estão cada vez menos ligados à intencionalidade dos autores e, por fim, são os signos e seus sistemas que registram os empréstimos e as inovações. No nível semiótico mais profundo, o dos sistemas de signos, o contato permanece operacional a longo prazo. Ele, então, se torna uma estrutura para a rearticulação de organizações culturais, a tal ponto que até mesmo a eventual fusão de culturas (totalidade integrada) deixa facilmente uma memória vívida e estratificada de todas as fases da coexistência anterior.

Dessa forma, as línguas ficam em contato por um período considerável antes de se dobrarem em formas híbridas e, por fim, se transformarem em uma nova língua dominante. Especialistas em sociolinguística de contato propõem modelos de evolução: por exemplo, Peter Auer (1998AUER, Peter. From code-switching, via language mixing to fused lects: towards a dynamic typology of bilingual speech. Interaction and linguistic structures, n. 6, p. 1-28, 1998.) acredita que o contato entre línguas dá origem a três fases sucessivas: de " code-switching" a " mixing" e depois a " fused lects", todas formando um continuum, com sobreposições e possíveis retrocessos. Além disso, uma língua mista (fused lect) é um resultado alternativo aos casos mais conhecidos de línguas de contato, como pidgins e crioulos, sendo que os primeiros são línguas "emergentes" para a copresença instável de grupos culturais distintos e os últimos já têm algumas formas de institucionalização e falantes nativos. Enquanto os crioulos são vistos como uma possível evolução dos pidgins, os fused lects podem se originar de falantes perfeitamente bilíngues que incorporam simultaneamente duas culturas coexistentes (SCHMID, 2009SCHMID, Stephan. Mescolanza di lingue e lingue miste. In: MORETTI, B. et al. Linguisti in contatto. Bellinzona: Osservatorio Linguistico della Svizzera Italiana, 2009. p. 133-149. ). De fato, ao mobilizar uma fused lect, passamos cada vez mais de uma língua para outra na mesma frase, sem nenhum viés hierárquico e sem a sensação de code-switching.

O exemplo das línguas misturadas e fundidas mostra que os sistemas podem por fim herdar uma copresença que as formas de vida tiveram que administrar por muito tempo nas interações cotidianas (SCHMIDT 2010SCHMIDT, Jürgen Erich, Language and space: The linguistic dynamics approach. Dans: AUER, Peter; SCHMIDT, Jürgen Erich (ed.). Language and Space: Theories and Methods. An International Handbook of Linguistic Variation, Volume 1: Theories and Methods. Berlin, New York: De Gruyter Mouton, 2010.) e, no caso específico, sem alcançar um sincretismo que explore a lógica do enxerto, que normalmente possibilita, em planos de pertinência mais profunda, hierarquizar genealogias culturais, com uma desempenhando o papel de estrutura beneficiária e a outra de estrutura implantada. No caso dos fused lects, os bilíngues que estavam na origem de uma copresença duradoura e finalmente normalizada de duas línguas nos mesmos enunciados parecem ter mobilizado o mesmo "tato" em relação a duas tradições culturais diferentes. Eles transformaram a memória do contato inicial em uma percepção de coexistência (cum-tactus, “com tato”), que não é mais vista como uma fase catalisadora de outros processos, mas sim como uma condição ideal e um fim em si mesmo. Esse caso limite nos faz perceber que as manifestações mais típicas do sincretismo interacional sempre envolvem assimetrias comunicacionais que podem ser transformadas em assimetrias sistêmicas, por exemplo, de acordo com uma lógica de enxerto orgânico - que é, pelo menos, mutuamente "vital" - ou, no pior dos casos, de acordo com uma política de assimilação, típica de empreitadas coloniais. Isso nos mostra como a questão do contato é delicada e como é fácil passar de uma ecologia de formas de vida coexistentes para uma gramática hegemônica e, por fim, para a assimilação sistêmica. Um diagrama (Figura 1) pode nos ajudar a visualizar as tensões semânticas que estão por trás de um sincretismo interactancial, embora dois outros fatores decisivos precisem ser levados em conta: (i) a possibilidade de reverter os papéis assimétricos ou os equilíbrios; (ii) os diferentes aspectos simbólicos que emergem assim que os sincretismos interactanciais são projetados em diferentes planos de pertinência, porque, como vimos, um contato entre sistemas de signos (linguagens) não implica as mesmas condições existenciais e respostas à duração que o contato entre formas de vida.

Figura 1
Diagrama tensivo de sincretismos interacionais

Assim como não há regras absolutas para a mudança linguística, não há "coerções linguísticas absolutas para a mudança induzida pelo contato" (SIMONEN, 2013SIMONEN, Jacky. « Les sociolinguistiques du contact: typologie et contacts de langues ». Dans: SIMONEN, J.; WHARTON, S. (ed.). Sociolinguistique du contact: Dictionnaire des termes et concepts. Lyon: ENS Editions, 2013. p. 419-428., p. 424). Existem apenas políticas para gerenciar o contato, mas os efeitos de longo prazo não são previsíveis. Podemos nos consolar com a ideia de que a miscigenação cultural é, felizmente, uma aventura que escapa à hegemonia, mas isso não nos impede de assumir responsabilidades e recomendar compromissos.

Interações e formas de vida

As interações não se aproveitam dos contatos, mas dão a eles uma forma e oportunidades de chegar a acordos que, por sua vez, permitem a preservação de algo que pode ser compartilhado em níveis mais profundos e estáveis das organizações culturais envolvidas. A circularidade do processo é clara, pois a forma dada ao contato cultiva a esperança de que contatos sucessivos produzam algo que vá além da memória interindividual de experiências anteriores, em outras palavras, estratégias confiáveis, gramáticas da práxis, textos normativos e sistemas de signos.

As interações face a face temem seu caráter episódico e de difícil de sistematização. Elas são enquadradas por sistemas sociais, mas dedicam seu tempo a colocar esses sistemas em perspectiva crítica. Os contatos das interações com as instituições proporcionam catalisadores específicos, porque ou as primeiras conseguem problematizar, ou até mesmo desmantelar as gramáticas e os papéis codificados a fim de reabrir as questões de sentido, ou as últimas enquadram e, em última análise, reabsorvem os enunciados dentro das pertinências e dos valores de seu próprio domínio.

A "distância" entre instituições e entre domínios sociais, motivada pela busca progressiva de uma autonomia, mostra que, de maneira recursiva, surge uma "mistura", emerge uma heterogeneidade no espaço social e os "pidgins" de registros e modos de conversação cruzam espaços culturais, cada um sendo um pouco estranho em seu próprio país de origem.

Gostamos da fluidez da conversa e dos rituais de cumprimentar nossos vizinhos apenas para escapar um pouco do sincretismo dos papéis e da heterogeneidade dos lugares institucionais, já que eles regulam os contatos entre formas de vida diversas. A homogeneização é deixada, em profundidade, para as linguagens e normas da práxis, mas as figuras interacionais entram em uma cena que sempre contém origens controversas. Além disso, a principal razão de ser da semiótica como disciplina é a disseminação e o gerenciamento de sincretismos, de linhas de contato que são paradoxalmente remanejadas com base em processos de singularização de atores, de formação de novas associações e de tendências à autonomização de domínios sociais.

As interações concebidas principalmente a partir de frentes comunicativas distintas revelam, na verdade, toda uma série de coalescências, cooperações, compartilhamentos de recursos semióticos e coenunciações. Além disso, a dialética entre contato e distanciamento é reproduzida no interior dos ambientes psíquicos e na pluralidade de instâncias internas que, às vezes, nos convidam a "voltar a entrar em contato com nós mesmos".

Entre as interações promovidas e as interpenetrações vividas, as formas de vida se encontram implicadas em atividades enunciativas mais ou menos concentradas ou difusas, o que torna necessário enfatizar as reivindicações de iniciativa, bem como as demarcações e dissociações. Quem está (in)disponível para assumir modulações tensivas, já catalisadas pela copresença, prontas para serem transformadas na predicação de uma frente modal de oposição, e quem está mais inclinado (ou não) a se emancipar e reestruturar sincretismos de acordo com descolamentos, "privatizações" não conflitantes? Os atores estão sempre em contato com forças modais e modulações subjacentes, e sua subjetividade é realizada no discurso de maneira concessiva, como resistência e possivelmente emancipação.

Separados porque estão em contato, ou em contato porque estão separados, os atores sociais estão constantemente redesenhando os compromissos a que essa dialética quiasmática os força. Assim como os movimentos de assimilação e dissimilação que são prototípicos para a semântica, os processos de dissociação e associação revelam as questões em jogo nas formas de vida que estão tanto em comunicação quanto em simbiose no mesmo ambiente (até mesmo a autocomunicação exige uma frente crítica interna, ou seja, uma pluralização de instâncias e, portanto, de perspectivas, que coabitam em um ambiente psíquico).

O fato de as línguas possibilitarem o gerenciamento de uma terceira significação oferece uma comensurabilidade entre os movimentos de dissociações/associações de frentes externas e internas. É uma comensurabilidade de atitudes, de tratamentos, o que significa que o resultado nunca é uma homogeneização. Isso explica porque precisamos colocar o acento nas formas de sincretismo, um conceito que pode ser investigado pela semiótica, essencialmente, como contato.

Quando pensamos no canal de comunicação, as modalidades sensoriais envolvidas, os suportes técnicos compartilhados, as faces identitárias em questão estão em sincretismo, mas sua coabitação não pode encontrar uma solução em uma integração definitiva. O mesmo se aplica ao sincretismo de linguagens no mesmo texto. Almejamos um plano de significação no qual todas as contribuições possam convergir, mas, na realidade, cada componente significante pode "entrar" criticamente na coabitação heterossemiótica para interpretá-la em um sentido associativo ou dissociativo (por exemplo, a música de filme tende a criar sua própria forma de vida na trilha sonora de obras cinematográficas).

Projetamos nas formas de vida dos objetos a mesma possibilidade de manter juntos epicentros exclusivos de enunciação (iniciativa discursiva concentrada) e participações enunciativas difusas. A mesma obra de arte pode promover uma diferença quase aurática e, ao mesmo tempo, exemplificar padrões intencionais que caracterizam toda uma cultura. Idioletal e socioletal ao mesmo tempo, a obra de arte é bilíngue e reivindica tanto uma zona de contato quanto de distanciamento, uma cultura envolvente e uma emancipação tensiva.

De modo mais geral, os sincretismos nos convidam a pensar nas interações como sempre bilaterais e sem nenhuma resolução hierárquica definitiva: o que está definindo pode se tornar instrumental e vice-versa, o que está envolvendo pode ser envolvido, o que interpreta um texto pode ser reinterpretado por ele.

As interações precisam ser consideradas dentro de uma configuração de dinâmicas mais ampla, na qual o contato face a face é apenas uma figura possível, em grande parte instável e impulsionada pelas tentações de hierarquização e pelas situações de interpenetração a serem reestruturadas. Em vez de imaginar os "contatos" como alinhados de acordo com uma maximização da eficiência comunicativa (contato sensorial, medial, cultural, mental) que ofereceria uma estrutura referencial unívoca e compartilhada, a semiótica descobre e analisa sincretismos imperfectivos que sinalizam a necessidade de recorrer a outras composições de formas de coabitação, entre interação e interpenetração, contato e distanciamento, implicação e emancipação.

Uma incursão pelas contribuições científicas dos autores

Os textos reunidos deste dossiê atestam a fertilidade dos contatos, das interações (e eventuais interpenetrações?) e das implicações entre perspectivas diversas, acentuando a reflexão imperfectiva e, por isso mesmo, plena de vitalidade, ao mesmo tempo que desenvolvem algumas das questões que acabamos de discutir.

Abrimos o presente número da Revista Gragoatá com o artigo Os tipos temáticos dos esquemas da prática e a topologia antropossemiótica, de Jacques Fontanille (traduzido para o português por Gustavo Henrique Rodrigues de Castro e Matheus Nogueira Schwartzmann), que procura prefigurar os conteúdos temáticos das práticas semióticas em contato a partir do que chamou de uma topologia centrada ou antrópica, tomando como base o inventário temático oferecido pelo antropólogo Philippe Descola, assim como a topologia etnossemiótica de Von Uexküll, as zonas antrópicas de François Rastier e a topologia subjetal de Jean-Claude Coquet. Diante de um conjunto temático vasto e sintético (a troca, a predação, a doação, a produção, a proteção e a transmissão), que caracterizam para Descola (2005DESCOLA, Philippe. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.) as práticas e interações individuais e coletivas, Fontanille matiza seus conteúdos ao projetar sobre eles a diferença entre as propriedades de quatro zonas entrópicas: endotópica, peritópica, paratópica e utópica. Assim, a tipologia temática ganha uma profundidade que vai do mais próximo, a identidade do actante operador, passa pelo seu objetivo, que ocupa as proximidades, pelas distâncias e limites do “mundo”, que concretiza sua existência particular, até o “além do horizonte”, a da zona utópica que rompe e modula seu próprio modo de existência.

Em seguida, ao discutir como a “surpresa” pauta as discussões semióticas desde o projeto greimasiano original, Luiz Tatit, no artigo Apreciação do sentido: o acento e as modulações do conteúdo, refina a noção semiótica de acento, a partir de Ernest Cassirer, e explicita como o modelo tensivo de análise semiótica, desenvolvido por Claude Zilberberg, tece uma reflexão bem embasada da proposta de “prosodização do conteúdo”. O texto discute como os acentos (momentos mais impactantes) e as modulações (momentos tênues) constroem um contínuo sensível, com suas ascendências e descendências, que está subjacente aos mais diversos textos, sejam eles verbais, não-verbais ou sincréticos, o que vem ao encontro da grande demanda sensível imposta pelos textos contemporâneos, ao mesmo tempo que estabelece o liame do contato entre linguagens diversas, um tema relevante para este dossiê e para as análises semióticas atuais.

Em La forme de vie et le motif: comment penser la genealogie des tableaux?, Marion Colas-Blaise aborda conjuntamente as “formas de vida” e os “motivos”, duas questões amplas das teorias da linguagem e dos estudos estéticos, para refletir sobre as filiações entre pinturas, observando as mutações dos seus elementos figurativos e figurais, de modo a compreender como se delimita e se expande a forma de vida de uma pintura. A discussão se fundamenta em contribuições da filosofia (Deleuze, Benjamin, Wittgenstein), da teoria da arte (Panofsky, Goodman), da semiótica (Fontanille, Basso Fossali e Colas-Blaise), e estabelece relação entre o conceito filosófico dos jogos culturais e as formas de vida das linguagens em obras pictóricas. Partindo da análise de obras do pintor francês Georges Laurent, a autora propõe que a renovação dos componentes plásticos, figurativos e figurais da pintura analisada não só revela que as genealogias das pinturas e formas de vida estão ligadas, em sua produção e recepção, a jogos culturais, mas também institui uma reenunciação dos motivos escolhidos, demonstrando que a criação de uma obra oscila entre a singularidade de um gesto de criação e um projeto coletivo, o que desvela uma conexão entre diferentes momentos da história da arte.

No artigo Formas de vida wittgensteiniana e perspectivismo ameríndio: por uma linguística antropológica selvagem, de Ana Paula El-Jaick, há um esforço teórico inicial de estreitamento das relações entre a filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein e as contribuições antropológicas de Eduardo Viveiros de Castro, de modo a correlacionar o conceito de “formas de vida” ao de “perspectivismo” ameríndio, buscando ampliar os horizontes teóricos dos Estudos da Linguagem em uma abordagem interdisciplinar, de forma a estabelecer as bases pragmáticas em que, na linguagem, sujeito e objeto se definem e se interseccionam e dão a forma-base da "Linguística Antropológica Selvagem" que propõe a autora.

O conceito wittgensteiniano de “formas de vida” embasa também a discussão proposta por João Paulo a Silva e Evani Viotti em A semiose como forma de vida: Interações em uma conversa sinalizada. A partir da análise de trechos extraídos de uma conversa em língua brasileira de sinais, o artigo evidencia o processo de semiose que emerge da intercorporealidade e da situabilidade que caracterizam as práticas conversacionais de forma geral, sob uma perspectiva teórica que se debruça sobre o curso de uma interação face-a-face e leva em consideração não apenas os signos verbais (sinais manuais ou não manuais convencionais, por exemplo), mas tudo que o está envolvido nesse processo, como o reuso com transformações e as ações co-operativas, que endossam a ideia inspirada em Ingold (2000INGOLD, Tim. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2000.) e defendida pelos autores de que “todos organismos habitam as ações uns dos outros”.

Em Saudades: toward a sociopoetics of diaspora, migration, & exiled writing, Craig Saper propõe uma incursão radical na dinâmica de contatos, de embates e de constituição de identidades ao trazer as experiências do casal de escritores norte-americanos Bob Brown e Rose Brown em território brasileiro no início do século XX. Ambos, figuras importantes das vanguardas históricas, viveram por mais de 10 anos no Brasil e foram contemporâneos de personalidades como Lévi-Strauss e Oswald de Andrade, tendo diversos temas de interesse comum. O texto abre novas perspectivas de pesquisa sobre a obra de Bob Brown, a poesia de vanguarda e aspectos de etnologia e culinária no Brasil e evidencia a obra dos pensadores e artistas mencionados, mostrando as relações entre suas obras e apontando para possíveis encontros e trocas que poderiam ter acontecido, abrindo um possível campo de investigação da pesquisa no Brasil.

Para investigar semioticamente as interações polêmicas vividas pelos sujeitos no período da pandemia de Covid-19, Marcelo Eduardo da Silva e Sueli Ramos da Silva, em O convívio polêmico em meio à pandemia de Covid-19 - um olhar semiótico discursivo sobre as relações do Si com o Outro, apostam no contato entre as propostas semióticas de Claude Zilberberg e Erik Landowski no intuito de depreender como se dá a relação entre o Si e o Outro, na acepção de Jacques Fontanille, pela análise das gradações do afeto. Os autores tomam como textos de análise reportagens que falam sobre: a entrega de alimentos a pessoas em situação de rua; a confecção de uma cartilha sobre cuidados sanitários no idioma Guarani; uma denúncia feita à Justiça sobre comentários racistas referentes a indígenas; e um projeto de extensão universitária de acolhimento a imigrantes.

No artigo Interação fictiva como exemplificação em discurso direto: ensino-aprendizagem de português como língua estrangeira, Luiz Fernando Matos Rocha e Jéssica da Costa Silva abordam as questões do contato entre as falas docente e discente nas cenas comunicativas do ensino e aprendizagem do português como língua estrangeira, buscando apontar as estratégias de argumentação e de explicação a partir das instâncias de Interação Fictiva (IF). O enquadre do artigo é descritivo, tendo como embasamento de suas reflexões o universo teórico-epistemológico da Linguística Cognitiva, a partir de Talmy, Fillmore, Langacker, Fauconnier, entre outros. O artigo oferece análise rica em insumos para uma didática do português como língua estrangeira.

Herbert Neves e Fábio Alves Prado de Barros Lima, em O tempo e o espaço políticos: a integração entre argumentos marcada por advérbios dêiticos em entrevistas eleitorais, analisam como os advérbios dêiticos de tempo e espaço integram estratégias argumentativas em entrevistas com candidatos à prefeitura de Recife, no primeiro turno eleitoral de 2020. Os autores tomam os fundamentos teóricos oferecidos pela Linguística Textual, com Koch, Bentes, Van Dijk, entre outros, para examinar os advérbios de acordo com as intenções e o contato dos falantes dentro da situação comunicativa. O texto permite entender de que modo a dêixis contribui para a manifestação de propósitos interativos, na medida em que os dêiticos passam a assumir papéis argumentativos e opinativos, manifestando os objetivos interativos de crítica, de concordância ou de redirecionamento discursivo.

Esperamos que os diálogos abertos pela bem-vinda heterogeneidade que constitui o corpo deste dossiê inspirem nossos leitores a buscar novas frentes de trocas produtivas.

References

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Editado por

Editora-chefe dos Estudos de Linguagem:

Bethania Mariani

Editores convidados:

Pierluigi Basso-Fossali, Renata Mancini

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023
Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF) Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, Bloco C - sala 518, CEP 24210-201 - Niterói, Rio de Janeiro, Brasil., Telefone +55 21 2629-2600 - Niterói - RJ - Brazil
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