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Legislação sobre cannabis medicinal nos Estados Unidos: histórico, movimentos, tendências e contra-tendências

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

Nas últimas décadas, os Estados Unidos (EUA), depois de proibir o uso, a posse e a comercialização da planta Cannabis sativa para fins medicinais e sociais por quase um século, embarcou em processos e movimentos de reforma de lei em nível estadual para legalizar a planta, forjando mercados regulamentados para amparar essas mudanças. O objetivo deste estudo foi descrever o histórico da proibição e da eventual legalização, observando os componentes sociais, políticos e econômicos que contribuíram para essa mudança de paradigma.

CONTEÚDO:

Utilizou-se de revisão de literatura, amparada por análise de experiência prática em processos de “advocacy” e construção de mercados regulamentados em substituição a proibição. Foram descritos os processos históricos, sociais e econômicos que compuseram o fim da proibição da Cannabis sativa e sua eventual regulamentação como substância para uso medicinal e social nos EUA.

CONCLUSÃO:

Durante o último século, a Cannabis sativa foi rotulada como droga sem potencial medicinal por motivos puramente políticos e não científicos. Uma série de movimentos da sociedade civil nos EUA levou à legalização da Cannabis sativa devido a suas propriedades terapêuticas. Esses movimentos tiveram êxito ao redefinirem a planta como um remédio ao invés de uma droga, levando em conta também o alto custo social e econômico de sua criminalização.

Descritores:
Aplicação da Lei; Cannabis; Política Pública

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

In recent decades, the United States (USA), after banning the use, possession, and commerce of the CS plant for medicinal and social purposes for nearly a century, has embarked on law reform processes and movements at the state level to legalize the plant, forging regulated markets to support these changes. The present study’s objective was to describe the history of prohibition and eventual legalization, observing the social, political, and economic components that contributed to this paradigm shift.

CONTENTS:

Qualitative research, using observation, literature review, and analysis of practical experience in advocacy processes, law reform, and building regulated markets to replace prohibition. The historical, social, and economic processes that made up the end of the prohibition of CS and its later regulation as a substance for medicinal and social use were described.

CONCLUSION:

CS during the last century has been labeled as a drug with no medicinal potential for purely political and non-scientific reasons. A number of civil society movements in the US led to the legalization of CS due to its therapeutic properties. These movements have succeeded in redefining the plant as a medicine rather than a drug, while also taking into account the high social and economic costs of criminalizing it.

Keywords:
Cannabis; Law Enforcement; Public Policy

DESTAQUES

Histórico da proibição da Cannabis sativa nos Estados Unidos;

Histórico da legalização e regulamentação nos Estados Unidos;

Descrição de tendências e contra-tendências na nova economia norte-americana.

INTRODUÇÃO

A planta Cannabis sativa (CS) permeia a história da sociedade norte-americana desde sua era colonial11 Alexander Campbell King Law Library [Internet]. Georgia: Survey of Marijuana Law in the United States: History of Marijuana Regulation in the United States [cited 2022 June 18]. University of Georgia: School of Law; [about 1 screen]. Available from: https://libguides.law.uga.edu/c.php?g=522835&p=3575350
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, quando o plantio da sua variedade cânhamo industrial era não somente incentivado, mas exigido por algumas colônias, como a Virgínia, para produção de cordas, tecido para vestuário e velas de navios. Presidentes como George Washington e Tomas Jefferson não somente plantavam cânhamo em suas propriedades como também promoviam essa prática de forma ampla22 Vote Hemp [Internet]. Washington, D.C.: Why Hemp? [cited 2022 June 18]. Vote Hemp: Resources [about 1 screen]. Available from: https://www.votehemp.com/re-sources/why-hemp/
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Nessa época, utilizar o cânhamo industrial ou mesmo a variação tradicional da planta com demais canabinoides, como o tetrahidro-canabinol (THC), para fins medicinais, ainda não era comum nos Estados Unidos (EUA), mas, já no final do século XIX, a CS se tornou um ingrediente normal em muitos remédios oferecidos em farmácias nos EUA33 Public Broadcasting Service (PBS) [Internet]. Virginia: Marijuana Timeline [cited 2022 June 18]. PBS [about 1 screen]. Available from: https://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/dope/etc/cron.html
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Entretanto, nos anos de 1900 e 1925, em virtude da grande depressão, da guerra com o México em 1910, e da enorme onda de imigração de mexicanos para os EUA, a percepção da sociedade para com a CS como agente terapêutico ou medicamento mudou. Devido ao comum uso social (antes chamado de recreativo) por parte dessa população imigrante, e do medo de que o norte-americano sentia do desemprego em massa, a substância acabou sendo associada com sentimentos xenófobos e preconceituosos, gerando um movimento político focado em proibir a planta como um todo (inclusive o cânhamo industrial).

Mas a discriminação não era exclusiva aos latinos. Ela era e continua sendo perversa também com os negros. A “Guerra às Drogas”, como foi chamada, foi uma ferramenta política racista para atingir negros e pardos. Harry Anslinger, então diretor do Federal Bureau of Narcotics coordenou uma campanha de sucesso para disseminar falácias como “quem usa cannabis comete crimes”, “quem faz jazz e usa cannabis tem caráter maligno”; tanto que o FBI investigou o famoso músico Louis Armstrong por seu proclamado uso medicinal.

Em 1931, 29 estados já tinham proibido a CS. O seu uso como medicamento diminuiu muito nesse período também devido ao aumento de popularidade de sintéticos e de drogas derivadas do opium44 Grinspoon L. History of Cannabis as a Medicine [Internet]. California: MAPS; 2005. [cited 2022 June 19]. Available from: https://maps.org/research-archive/mmj/grinspoon_history_cannabis_medicine.pdf
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Em 1937, uma medida tributária em nível federal, a Marijuana Tax Act de 1937, pela primeira vez, através de altíssima taxação, efetivamente proibiu a venda e a posse de CS. A Marijuana Tax Act de 1937 foi a medida que impulsionou essa tendência que nas décadas seguintes caracterizaram uma série de leis e políticas públicas com foco em tornar a CS uma droga ilícita, apagando por quase 100 anos da história seu potencial e suas propriedades terapêuticas e, eventualmente, impedindo qualquer possibilidade de pesquisa científica na área.

Entre 1952 e 1956, as leis chamadas Boggs Act e Narcotics Control Act, respectivamente, passaram a impor sentenças criminais severas para a posse de uma variedade de substâncias, incluindo a CS. Em 1970, o congresso norte-americano passou a lei chamada de Controlled Substances Act, a qual criou categorias de diferentes substâncias ou drogas, como essas foram rotuladas, de acordo com uma avaliação totalmente não-científica e arbitrária, no que diz respeito a suas propriedades medicinais, assim como seu potencial de abuso por usuários. As drogas da categoria 1, que incluem a CS, foram caracterizadas como agentes sem nenhuma aplicação medicinal, e com alto nível de potencial de abuso55 Siff S. The Illegalization of Marijuana: A Brief History [Internet]. Ohio: Origins: Current Events in Historical Perspectives, 2014 [cited 2022, June 19]. Available from: https://origins.osu.edu/article/illegalization-marijuana-brief-history?language_content_entity=en
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Entretanto, enquanto os governos e essas leis eminentes buscavam de toda forma aniquilar as propriedades medicinais da memória e da opinião pública norte-americana, outras forças estavam em andamento na sociedade. Em 1972, a comissão Shafer, um corpo de estudos científico criado pelo Presidente Nixon, recomendou que a posse e o uso de CS não fossem mais considerados um crime, e que esta fosse retirada da categoria 1 do Controlled Substances Act, recomendação esta que foi rejeitada pelas autoridades, as quais mantiveram (e ainda mantêm) a planta nessa definição de droga ilegal e sem propriedades medicinais a nível federal.

CONTEÚDO

O começo do fim da proibição

A Guerra do Vietnã era o foco do debate social nos anos 1970, e o movimento contra-cultura que nasceu dos protestos pelos jovens contra essa guerra era simbolizado por toda uma geração que consumia CS e, por meio de observação e experiência, não via esse mesmo efeito nocivo e periculoso ditado pelas autoridades. Começando por um incidente em Ann Arbor, no Michigan, em 1971, onde o líder estudantil John Sinclair foi sentenciado a 10 anos de prisão pela posse de dois cigarros de CS, a sociedade começou a questionar essas leis, primeiro em nível municipal, depois estadual. Através de advocacy, protestos, educação pública e plebiscitos, muitas localidades começaram a descriminalizar a planta e seu uso e posse. Nessa década de 1970, vários estados, como Oregon, Alaska e Maine seguiram essa tendência.

Nessa época, surge o primeiro grupo de militância ou advocacy focado em reformar as leis injustas que regiam a CS, chamado de National Organization for the Reform of Marijuana Laws (NORML). A NORML surge como força de mudança em níveis municipal e estadual, criando oportunidades para ativismo, educação e transformação dessas leis obsoletas. Outros grupos vieram depois, como Marijuana Policy Project, sediado na Califórnia e Americans for Safe Access e Drug Policy Alliance, ambos em Washington, DC.

Amparados no conceito legal constitucionalista norte-americano da autonomia dos Estados da União de mudarem suas leis locais sem a permissão do governo federal, esses grupos unidos à sociedade civil usaram de educação para gerar uma mudança de opinião pública sobre a planta, ao mesmo passo que se utilizavam de artefatos legais como plebiscitos dentro do conceito da autonomia estadual para mudar leis municipais como forma de alavancar esses processos. Descriminalizar foi a primeira etapa, seguida, mais tarde, de regulamentações estado por estado.

Nos anos 1990, em plena crise da síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS), seguindo essa tendência, a Califórnia aprova a proposta de lei 215 de 1996, que previa acesso à CS para pacientes de HIV-AIDS e câncer, criando o primeiro mercado medicinal em nível estadual nos EUA. Outros estados seguiram o mesmo precedente a partir de 1998: Oregon, Washington, Nevada e Alaska. Em 1999 foi a vez do estado de Maine. E em 2000 Colorado e Hawaii. Nos anos que se seguiram, um verdadeiro efeito dominó fez com que vários outros estados seguissem a mesma tendência, sendo atualmente permitido o uso medicinal da planta em 38 estados66 Eddy M. Medical Marijuana: Review and Analysis of Federal and State Policies. [Internet]. Washington, DC: Congressional Research Service, 2010. [cited 2022, June 19]. Available from: https://medicalmarijuana.procon.org/wp-content/uploads/sites/37/medicalmarjiuanastatepolicies040210.pdf
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Nos anos 2000, além dessa onda de regulamentação medicinal que tomou os EUA, ativistas especificamente focados em reintroduzir o cultivo e uso de cânhamo industrial nos EUA conseguiram avançar essa causa através da Hemp Farm Bill de 2005, por meio de uma série de ações litigiosas que culminaram na regulamentação do cânhamo industrial pela Farm Bill de 2018.

O extrato de cânhamo importado da Europa vinha sendo usado como fonte de matéria prima para se obter canabidiol (CBD), sendo este usado para fabricação de remédios em solo americano há anos. Mas os norte-americanos queriam plantar cânhamo. Essa decisão estratégica de se distinguir, para fins políticos, o cânhamo industrial da CS tradicional, a qual por convenção oferece mais que o limite de 0,3% de THC contido no cânhamo, apesar de não científica, foi de muito êxito, pois permitiu avanços na lei de cânhamo industrial antes mesmo que a sociedade conseguisse avançar as leis da CS tradicional, ou melhor, da planta inteira, como todos seus demais canabinoides. De todo modo, para a ciência, o cânhamo é sim uma simples variação da mesma planta, a CS.

Alguns anos depois, em outubro de 2009, o Departamento de Justiça dos EUA publicou o memorando Ogden, uma diretriz que orientava os promotores públicos a não utilizarem recursos públicos federais para prender pacientes e provedores de cannabis medicinal que estivessem de acordo com as leis medicinais de seus estados77 National Cannabis Industry Association (NCIA). [Internet]. Washington, DC: NCIA’s Historical Timeline. [cited 2022 June 18]. NCIA [about 1 screen]. Available from: https://thecannabisindustry.org/about-us/history/
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. Ao se pronunciar publicamente tolerante à desobediência civil desses estados para com a União, o governo federal havia enviado uma mensagem aos estados: que estes poderiam prosseguir com este grande experimento, desde que as leis locais fossem respeitadas.

Em 2012, motivados pelo crescimento dos mercados medicinais, os estados do Colorado e de Washington se tornaram os primeiros dois estados a regulamentar o uso adulto ou anteriormente chamado de recreacional, por via de plebiscito. A ideia era regulamentar não somente o uso e a posse por indivíduos maiores de 21 anos, similar à abordagem ao álcool, mas também a produção e a comercialização mediante taxação. A principal diferença desses dois primeiros estados foi que as regras do Colorado permitiam que qualquer maior de idade sem antecedentes criminais pudesse também cultivar até seis plantas em casa para uso pessoal. Demais estados seguiram: atualmente, são 20 estados com mercados totalmente legalizados e regulados para uso adulto.

A regulamentação dos mercados adultos é extremamente relevante para uso medicinal porque a ciência canábica emergente teoriza que todo uso é terapêutico. Seja para o controle do estresse, da insônia, da dor crônica ou da ansiedade, a população norte-americana, confrontada pela crise dos opiáceos, cada vez mais se volta para planta CS como alternativa dentro da perspectiva de redução de danos/harm. De acordo com uma pesquisa do Gallup, 68% dos norte-americanos apoiam a sua legalização plena88 Gallup Institute. [Internet]. Washington, DC: Politics. [cited 2022 June 19]. NCIA [about 1 screen]. Available from: https://news.gallup.com/poll/356939/support-legal-marijuana-holds-record-high.aspx
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Foi justamente essa gradual, mas também drástica mudança de opinião pública que contribuiu para esse cenário complexo atual de lei, em que 38 estados permitem o uso medicinal, dos quais 20 também permitem o uso adulto. Quase 78% dos norte-americanos têm acesso a algum tipo de cannabis legalizada. Porém, em nível federal, ela continua sendo uma droga ilegal dentro da Categoria 1 do Controlled Substance Act, ou seja, sem nenhum uso medicinal e com alto potencial de abuso.

Mas, o que isso significa na prática? A CS se tornou um produto amplamente disponível nesses mercados e, em várias formas, desde a planta in natura até comestíveis, bebidas, tinturas, cremes tópicos, extrações concentradas para fins de vaporização, adesivos dérmicos para dores musculares, cápsulas, entre outros. Mas, devido à ilegalidade federal, pacientes, usuários e a comunidade médico-científica continua limitada e incapaz de conduzir pesquisas para realmente entender a fundo como a planta age no organismo, as dosagens recomendadas, os possíveis efeitos em longo prazo de seu uso, as aplicações sobre as mais diversas doenças, as interações farmacológicas etc.1010 Martin S. A Brief History of Marijuana Law in America. TIME Magazine, 2016, April 20. Available from: https://time.com/4298038/marijuana-history-in-america/
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. Mesmo assim, uma simples busca na base de dados Pubmed resulta em mais de 20 mil artigos sobre o tema. Nos últimos anos, o Canadá, por ter legalizado de forma federal em 2018, e Israel, por ter um mercado medicinal comprometido com a pesquisa, tem produzido os estudos clínicos que os EUA não podem ainda livremente produzir.

A nova economia norte-americana

Apesar da principal motivação por trás da regulamentação da CS ter sido de cunho humano, não há dúvida de que ela só sucedeu por motivos econômicos. Por muito tempo, pacientes e ativistas visitaram os gabinetes de deputados e senadores federais para exigir acesso à planta, mas não foi até o advento dos primeiros mercados de uso adulto, e de dados socioeconômicos que suas vozes foram ouvidas. Em vez de ouvirem a história de superação de famílias e seus pacientes, o que os políticos ouviram para depois finalmente agir e apoiar as propostas mudanças na lei, foram os dados econômicos pós-regulamentação.

Figura 1
Mapa da legalização da Cannabis sativa nos Estados Unidos99 Berke J, Gal S, Lee YJ. Marijuana legalization is sweeping the US. See every state where cannabis is legal [map]. New York: Business Insider, 2022. Available from: https://www.businessinsider.com/legal-marijuana-states-2018-1#washington-dc-21
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Cada ano que se passava, as autoridades viam mais atividade econômica sendo gerada por essa nova economia. Em 2021, a indústria legal de cannabis totalizou US$ 25 bilhões em vendas. A expectativa até o final de 2022 é de US$ 33 bilhões, um aumento anual de 32%, percentual de crescimento que tem se mantido constante anualmente desde a legalização. A indústria hoje já criou 520 mil empregos e se espera que esse número chegue a 800 mil até 20261111 Morris C. Legal marijuana sales in the U.S. expected to hit $33 billion this year. Fortune Magazine, 2022, April Available from: https://fortune.com/2022/04/11/legal-marijuana-sales-33-billion-2022/
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Acima de tudo, mercados regulamentados geram riqueza para os cofres públicos em forma de taxação. De acordo com um estudo da New Frontier Data, uma legislação federal resultaria em US$128.8 bilhões em impostos, e 1,6 milhões de novos empregos1212 Krane, K. Cannabis Legalization Is Key To Economic Recovery, Much Like Ending Alcohol Prohibition Helped Us Out Of The Great Depression. Forbes Magazine, 2020, May 26. Available from: https://www.forbes.com/sites/kriskrane/2020/05/26/cannabis-legalization-is-key-to-economic-recovery-much-like-ending-alcohol-prohibition-helped-us-out-of-the-great-depression/?sh=19c236cb3241
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Foi munido desses dados econômicos que ativistas representando a iminente indústria canábica foram capazes de regulamentar o uso adulto pleno em vinte estados, número esse que tende ainda a se expandir, especialmente em estados onde já existe um mercado medicinal e onde ativistas e sociedade se organizam para mudar as leis.

Tendências e contra-tendências

Esse cenário complexo legal nos EUA deve permanecer ainda por alguns anos. Apesar do MORE Act, uma proposta de lei que propõe legalizar a planta em nível federal ter sido aprovada pela câmara de deputados federais, e ter o apoio da indústria de forma geral, ela dificilmente seria aprovada pelo Senado atual. Enquanto isso, a tendência global é que outros países continuem evoluindo e reformando suas leis no que diz respeito à CS, já que a reforma de lei nos EUA fez com que outras sociedades questionassem suas leis mediante a enorme carência de acesso a cannabis medicinal por parte de pacientes das mais diversas doenças.

Continua-se observando a tendência dos mercados medicinais existentes nos EUA expandirem sua abrangência e implementarem modelos de uso adulto, em meio a uma ilegalidade federal. Assim como foi com a regulamentação do álcool na época da grande depressão, deve-se lembrar que nem todos os estados vão regulamentar o uso, seja ele medicinal ou adulto. Estados vão seguir o mesmo conceito de autonomia estadual para determinar se querem ou não ampliar ou implementar novos sistemas regulamentares para reger seu uso.

No que diz respeito à indústria, a qual foi a principal catalista na mudança de lei em nível estadual, sabe-se que as grandes empresas canábicas hoje não querem a regulamentação federal, pois isso significaria que indústrias tradicionais, como a alimentícia e a farmacêutica os engoliram da noite para o dia.

Atualmente, essas empresas maiores do setor canábico pagam lobistas para avançar seus próprios interesses corporativos, e não os da causa da legalização. Isso caracteriza a maior contra tendência do movimento: as ações da própria indústria para sabotar a legalização federal.

O maior benefício econômico da legalização federal tanto para as grandes quanto para as pequenas e médias empresas seria o acesso a serviços bancários e a capital de investimento, ambos ainda muito limitados. Além disso, uma taxação mais justa sobre suas atividades permitiria maiores investimentos em suas empresas e funcionários. No entanto, a tendência econômica é que se continue observando um crescimento anual de 30% a 40% nas vendas de cannabis, sem que a indústria tenha acesso a serviços bancários, ou seja, que ela continue operando na base do dinheiro vivo.

No que diz respeito aos pacientes, o acesso à pesquisa seria o maior benefício de uma regulamentação federal, permitindo que se embarcasse em uma nova era da medicina canábica, a da medicina personalizada, em que, cada indivíduo, junto ao seu médico, poderia avaliar as necessidades únicas de seu sistema endocanabinoide, e determinar quais variedades de planta e dose seriam mais adequadas para sua específica condição. Testes que determinam essas deficiências e necessidades específicas de certos canabinoides já estão em fase de teste no mercado.

Não se pode esquecer do impacto socioeconômico causado pelo encarceramento de pessoas presas diariamente por posse, compra, ou venda sob a ilegalidade federal, os quais são na sua grande maioria negros e latinos. Mesmo que os estados regulamentados não estejam focados em prender usuários e pacientes, ainda são presas 660 mil pessoas por ano por porte de CS nos EUA. A tendência da reparação histórica vai seguir dominando os debates de reforma da lei, pois, como foi visto, a proibição e a própria guerra contra as drogas é uma guerra baseada em preceitos racistas. Ironicamente, o movimento da legalização começou com municípios descriminalizando o uso e a posse, porém, até hoje, mesmo com mercados multibilionários em vigor, a CS ainda não foi descriminalizada em nível federal.

CONCLUSÃO

A Cannabis sativa, durante o último século, foi rotulada como droga sem potencial medicinal por motivos puramente políticos e não científicos. Uma série de movimentos da sociedade civil nos EUA levou a sua legalização devido a suas propriedades terapêuticas. Esses movimentos tiveram êxito ao redefinirem a planta como um remédio em vez de uma droga, considerando também o alto custo social e econômico de sua criminalização.

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2022
  • Aceito
    30 Jan 2023
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