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Geografia real e imaginal em Grande Sertão: veredas

Real and Imaginal Geography in the Devil to Pay in the Backlands

RESUMO

Propomos uma leitura do “Liso do Sussuarão”, descrito em Grande sertão: veredas, como território imaginal. Face às considerações teóricas de Bolle (2004) sobre a geografia como sistema de pensamento e de Corbin (1976) sobre “mundus imaginalis”, abordamos a questão dos nomes. Concluímos que, no romance, os problemas da linguagem unem-se àqueles dos limites, das fronteiras e do território para formar um mundo intermediário.

PALAVRAS-CHAVE
Literatura; Imaginário; Geografia; João Guimarães Rosa; Grande sertão; veredas

ABSTRACT

We propose a reading of the “Liso do Sussuarão”, described in The Devil to pay in the Backlands, as imaginal territory. In face of Bolle's (2004) theoretical considerations about geography as a system of thought and Corbin's (1976) “mundus imaginalis”, we approach the question of names. We conclude that, in the novel, language problems unite with those of limits, boundaries and territory in order to build an intermediated world.

KEYWORDS
Literature; Imaginary; Geography; João Guimarães Rosa; The Devil to pay in the Backlands

No imaginário da literatura brasileira do século XX, o sertão aparece com muita força na formação da consciência nacional do Brasil. Vidas secas, de Graciliano Ramos, Os Sertões, de Euclides da Cunha e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa são, sem dúvida, três obras-primas da literatura brasileira do século XX. Retratam um Brasil áspero, periférico, selvagem, bárbaro e atrasado, em comparação com o Brasil tropical do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador cujas imagens são divulgadas no exterior, sobretudo por meio da música e do cinema. Nesses romances, o sertão, enquanto paisagem geográfica, é mais do que um lugar onde a vida dos personagens é encenada e onde a narrativa romanesca se desenvolve. Neles, o sertão é um estado de espírito e uma forma de pensamento, uma metáfora dos contrastes e paradoxos do país, mas também do misticismo, do espírito religioso e sincrético das pessoas que nele vivem (Bolle, 2004BOLLE, Willi. Grandesertão.br. O romance de formação do Brasil. São Paulo : Duas Cidades ; Ed. 34, 2004.).

Propomos aqui apresentar a maneira como o escritor Guimarães Rosa fez do sertão um dos personagens centrais de seu romance e, acima de tudo, trabalhar esta noção em seu aspecto imaginário. Veremos, primeiro, como o autor possui um conhecimento detalhado da geografia e da paisagem, e criou um lugar mítico e ficcional que ocupa o espírito e o corpo do narrador e de todos os personagens da narrativa (Bolle, 2004BOLLE, Willi. Grandesertão.br. O romance de formação do Brasil. São Paulo : Duas Cidades ; Ed. 34, 2004.; Viggiano, 2007VIGGIANO, Alan. Itinerário de Riobaldo Tatarana. Geografia e toponímia em Grande Sertão: Veredas. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.). Guimarães Rosa não apenas nasceu no sertão, na cidade de Cordisburgo, como coordenou por muitos anos a Divisão de Fronteiras do Ministério das Relações Exteriores. Além disso, foi assessor da Comissão Nacional de Geografia (CNG), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pretendemos aqui explorar a noção de topologia imaginária, criada a partir da topografia verificável em campo e mostrar que seu processo de criação literária consistiu exatamente em uma liberação do lugar geográfico dos limites da cartografia para transformá-lo em um local que não é nem apenas intelectual, nem apenas sensível, mas mágico e mítico, um mundo intermediário: "mundus imaginalis" (Corbin, 1976CORBIN, H. Imagination créatrice dans le soufisme d’Ibn’ Arabî. Paris: Flammarion, 1976.), onde o poder do pensamento criativo fortalece o poder do lugar e onde a "imaginação ativa" acontece e alimenta a reflexão e a criatividade.

Para Corbin:

Existe para eles [os místicos], "objetivamente" e realmente, um mundo triplo: entre o universo apreensível pela pura percepção intelectual (o universo das Inteligências Querubínicas) e o universo perceptível pelos sentidos, existe um mundo intermediário, o de ideias-imagens, figuras-arquétipos, corpos sutis, "matéria imaterial". Um mundo tão real e objetivo, consistente e subsistente quanto o universo inteligível e o universo sensível, um universo intermediário "onde o espiritual toma forma e onde o corpo se torna espiritual", composto de matéria e extensão reais, embora no estado sutil e intangível em comparação com a matéria sensível e corruptível. É nesse universo que a imaginação ativa é o órgão; é o lugar das visões teofânicas, a cena em que eventos visionários e histórias simbólicas ocorrem em sua verdadeira realidade. (1976CORBIN, H. Imagination créatrice dans le soufisme d’Ibn’ Arabî. Paris: Flammarion, 1976., p.12)

Na segunda parte do nosso trabalho, atentaremos para o relato da travessia do Liso do Sussuarão pelo narrador Riobaldo. Trata-se de uma cadeia desértica no meio do sertão, quase invencível, criada pelo autor. O narrador personagem teve que desistir de atravessá-la uma primeira vez, vencido pelo cansaço e pelo medo, antes de enfrentá-la novamente, após sua transformação e seu (suposto?) pacto com o diabo. Analisaremos hipoteticamente a proximidade entre o nome do lugar “Sussuarão” e o nome de Saussure (Ferdinand de Saussure). Faremos a conexão entre a travessia do deserto e a travessia da linguagem: ambas levando a essa autoconsciência a que o personagem narrador se refere regularmente durante suas aparições e comentários extradiegéticos (Marinho, 2016MARINHO, M. « Traduttore, traditore: a supressão das 65 ocorrências da palavra “arte” nas traduções de GRANDE SERTÃO: VEREDAS”.Revista do GELNE, v. 4, n. 2, p. 1-9, 2 mar. 2016. ).

Por fim, mostraremos o poder místico e mítico dessa região geográfica, que é o sertão no romance de Guimarães Rosa e no imaginário do Brasil, local de pacto com o diabo, de peregrinações e manifestações sobrenaturais, de crenças populares, de espírito messiânico, onde reina a lei do mais forte. O sertão é, sem dúvida, um lugar de religação entre os homens e o mundo, entre os homens e a vida sobrenatural, entre a imanência e a transcendência (Utéza, 1994UTÉZA, Francis. Metafísica do grande sertão. São Paulo: Edusp, 1994.).

Nossa metodologia aqui é a da interpretação teórica, a partir de uma análise da linguagem literária, especialmente dos nomes dos personagens e lugares e do trabalho gráfico realizado nos mapas mas também das voltas narrativas do romance. Fazemos um cruzamento teórico por aproximação entre a linguagem literária do autor e as noções de geografia como “sistema de pensamento” (Bolle, 2004BOLLE, Willi. Grandesertão.br. O romance de formação do Brasil. São Paulo : Duas Cidades ; Ed. 34, 2004.) e como “mundus imaginalis” (Corbin, 1976CORBIN, H. Imagination créatrice dans le soufisme d’Ibn’ Arabî. Paris: Flammarion, 1976.).

Elementos biográficos rumo a mapas e áreas de fronteira

A relação que Guimarães Rosa mantém com a geografia e a paisagem se estabeleceu desde sua infância. Nascido em 1908 em Cordisburgo, uma pequena vila no interior de Minas Gerais, ele tinha seis anos quando a primeira guerra estourou na Europa. Com a ajuda dos religiosos holandeses que viviam na vila, o pequeno “Joãozito”, como todos o chamavam, aprendeu francês e se apaixonou pelos mapas geográficos que o frade franciscano Canísio Zoetmulder lhe mostrava. O padre frequentava sua casa e brincava com o menino de traçar com alfinetes os avanços e os recuos das tropas francesas e alemãs. O aprendizado da geografia e o do francês, primeira língua estrangeira que descobriu, ocorreram simultaneamente.

Mais tarde, tendo estudado Medicina, o jovem Guimarães Rosa decidiu que atuaria no campo e, em 1930, estabeleceu-se na pequena cidade de Itaguara, no meio do sertão mineiro. Ele praticou medicina geral, sem menosprezar o conhecimento popular sobre o uso de plantas e outras técnicas de cura. Por não gostar de ver sangue e, após a morte de um paciente, entre outras razões, decidiu deixar a profissão e ingressar no Itamaraty, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em 1934. Ali, não só se tornou um apaixonado pelo estudo de mapas e pela história da formação do território nacional, como também conheceu, durante sua formação, três personalidades importantes que terão uma forte influência em seu interesse pela geografia: Jaime Cortesão, José Carlos de Macedo Soares e Orlando Leite Ribeiro.

Jaime Cortesão foi médico, político, escritor e historiador. Foi também um dos primeiros professores contratados do recém fundado Instituto Rio Branco (IRBr), criado em 1944-45, na ocasião em que Guimarães Rosa era chefe de gabinete do ministro das Relações Exteriores João Neves da Fontoura (1887-1963). Jaime Zuzarte Cortesão vivia exilado no Brasil desde 1940, devido à perseguição da ditadura de Salazar (1889-1970), que durou de 1932 a 1968. Levando consigo toda a família, Cortesão foi primeiro para a Espanha, depois França, Bélgica e Inglaterra. Por fim, se fixou no Brasil. Foi um dos defensores da ideia de universidades populares e da importância de que os intelectuais se voltassem para os saberes da tradição. Ele mesmo foi responsável pela pesquisa e coleta de cantares populares em Portugal e da defesa de novas metodologias, como a união do teatro com a educação. No recém fundado Instituto Rio Branco (IRBr), Guimarães Rosa assistiu a todos os cursos ministrados por Cortesão sobre a análise de formação territorial brasileira, o Tratado de Tordesilhas, sobre o ‘descobrimento’ e os estudos da cartografia e história do Brasil, no qual Cortesão era um especialista.

Orlando Leite Ribeiro, por sua vez, era membro Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, presidida (no ano do ingresso de Guimarães Rosa como membro efetivo), em 1945, pelo também diplomata José Carlos Macedo Soares. Leite Ribeiro e Macedo Soares estimulavam, no Itamaraty, o interesse pela geografia, convidando jovens diplomatas no assunto a ingressarem na Sociedade, entre eles: Jorge D’Escragnolle Taunay, Roberto Luiz Assumpção de Araújo, Murilo Octacena de Figueiredo Pessoa, Jorge Maria Reis Perdigão e Guimarães Rosa. Vale ressaltar que a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro fora fundada em 1883 por Dom Pedro II, nos moldes da Sociedade de Geografia de Paris (datada de 1821). Além das sessões ordinárias, o lugar oferecia aos associados conferências, preleções, participação em congressos científicos, apoio em pesquisas, viagens, publicações, arquivos, bibliotecas e entradas em museus. A união de forças entre Macedo Soares e Leite Ribeiro provocou mudanças no modo como a Geografia passou a ser vista no Itamaraty e nas escolas públicas brasileiras. Graças aos dois, nasceria a obrigatoriedade do uso físico de mapas em salas de aula.

Em seu discurso na Sociedade Geográfica do Rio, o escritor falou sobre o vínculo entre geografia e poesia:

De início, o amor da Geografia me veio pelos caminhos da poesia - da imensa emoção poética que sobe da nossa terra e das suas belezas: dos campos, das matas, dos rios, das montanhas; capões e chapadões, alturas e planuras, ipuêiras e capoeiras, caátingas e restingas, montes e horizontes; do grande corpo, eterno, do Brasil. Tinha que procurar a geografia, pois. (Rosa, 2006ROSA, J. G. Discurso de posse na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro de 20/12/1945. « Dossiê Guimarães Rosa », Revista Estudos Avançados, v. 20, n. 58, São Paulo, set./dez., 2006. , p.16)

Nomeado na Alemanha (1938-1942), Colômbia (1942-1944) e França (1948-1951), Rosa experimenta em viagens e descrições, respectivamente, os territórios da Península da Jutlândia, em Hamburgo, do Plátano de Sumapaz, em Bogotá, e da cidade de Paris (além da viagem à Itália). Ele os descreve com exaustividade, da mesma forma que, no Brasil, o faz com as viagens ao Pantanal (1947), ao Sertão de Minas (1952) e da Bahia (1953), entre outras. Toma notas de pessoas, lugares, paisagens, fauna, flora, expressões linguísticas, vestuário, alimentação, relevo, estradas etc. Quando, em 1957, foi nomeado chefe da Divisão de Fronteiras do Itamaraty, assumiu a posição de especialista em geografia e geopolítica, substituindo seu mestre no assunto, Orlando Leite Ribeiro, negociando com o Paraguai as questões do Salto de Sete Quedas.

Para Guimarães Rosa, a viagem etnográfica era um modo de aprendizado da geografia humana e do território, além de obviamente literária; um meio de acessar a um tipo de conhecimento ligado à grandeza das coisas, sobretudo o seu caráter infinito e sublime, que exigia dele um trabalho de autoconhecimento, “conhecimento e imaginação”, como ele preferiu dizer no seu discurso de posse na Sociedade de Geografia, em 1945. “Conhecimento e imaginação” que levavam à poesia. Isso explica-nos por que a topografia era, para Guimarães Rosa, simultaneamente, real e imaginária.

Um exemplo claro disso está na segunda edição de Grande sertão: veredas, publicada em 1958, que será aqui explorada e estudada, a partir do mapa elaborado pelo artista plástico Napoleon Potyguara Lazzarotto, mais conhecido como Poty Lazzarotto (1924-1998). Poty desenha o mapa que aparece na orelha da edição de 1958. A imagem abaixo mostra a edição com, na orelha direita, o leste do sertão, na orelha esquerda, o oeste e, ao meio, a parte interna do livro contendo a história do romance que representa o rio São Francisco. Este rio também dividiu a vida de Riobaldo, narrador herói do romance. Segundo Bolle (2004BOLLE, Willi. Grandesertão.br. O romance de formação do Brasil. São Paulo : Duas Cidades ; Ed. 34, 2004., p. 60): "O livro em pé, com as orelhas abertas, figura a sobreposição do curso desse rio e do discurso do narrador Riobaldo. O traçado oblíquo das linhas de latitude e longitude sugere a coexistência da geografia real e da imaginária”.

Figura 1:
O mapa do Grande Sertão: Veredas, segundo Poty

Uma breve descrição deste mapa, dividido em duas metades, permitirá entender melhor como os elementos geográficos, ilustrativos, imaginários e esotéricos se combinam na topologia do sertão recomposto por Rosa. O estudo do mapa feito por Willi Bolle em seu livro grandesertão.br (2004BOLLE, Willi. Grandesertão.br. O romance de formação do Brasil. São Paulo : Duas Cidades ; Ed. 34, 2004.) nos servirá de base. A maioria das cidades mencionadas no mapa, o rio São Francisco e seu afluente Verde Grande, o relevo indicado pelas montanhas (serras), são representados fielmente. No entanto, Bolle nos informa que alguns elementos geográficos foram removidos, como o rio Traçadal e que uma montanha foi inventada (Serra do Rompe Jibão).

Quanto aos elementos ilustrativos, o sol nascente, os bois, os buritis (que fascinavam Rosa), pássaros, outras árvores e animais, figuras em barcos, cavaleiros etc., dão vida ao mapa e mostram a conexão entre o homem do sertão e a natureza. Outros elementos mais simbólicos também aparecem: rifles cruzados representando a luta, um cavaleiro galopando em direção a uma cruz remetendo à morte, monstros, o diabo em meditação e uma igreja remetendo à religião, dois personagens principais atravessando o rio São Francisco, que relembram a cena da travessia iniciática da história. Finalmente, elementos esotéricos: cruz, pentagrama, signos do zodíaco, letras em círculo (a letra R, inicial de Riobaldo e a letra D, inicial de Diadorim, cada um de um lado do mapa), um conjunto de três letras (V, A e B) que configura o signo de Capricórnio, significando quiçá a zona tórrida localizada geograficamente no norte dos trópicos, quiçá o início do inverno e a mudança de ciclo (Albergaria, 1977ALBERGARIA, C. Bruxo da linguagem no Grande Sertão. Rio de Janeiro : Tempo brasileiro, 1977. ), o símbolo do planeta Saturno ou a melancolia, os símbolos do masculino e do feminino, entre outros.

Este mapa, assim como o terceiro bloco de elementos que nele aparece, nos sugere o universo místico que Henri Corbin preferiu chamar de “mundo intermediário, o das ideias-imagens, figuras-arquétipos, corpos sutis, matéria imaterial”. Não devemos esquecer que Guimarães Rosa está interessado no tema das fronteiras geográficas e o dos “limites” territoriais. O interesse por este tema fará com que ele redija em um de seus cadernos pessoais, uma lista de sinônimos da palavra limite3 3 “Linda, marca, linha, discrime, discrímen, confins, termo, enclave, fronteira, raia, arraia, fimento, afimento (aut.), contérmino, extrema, extremadela, extremidade, sêsmo (aut.), terminação, barreira, meta, risca, remate, término, órbita, baliza, marco, pinoco, cipó, colunelo, bões (= marcos de pedra), fradépio, mogo, padrão, piquêta, malhão, marco primordial, linha principal, linha divisória, linha divisora, linha demarcatória.” (Rosa, s.d., p.21) . Também não se pode deixar de destacar seu interesse contínuo pelo tema do infinito, algo que se manifestou de variadas maneiras em sua obra, seja pela figuração do símbolo, seja pela composição de listas de palavras, o interesse por línguas ou mesmo apenas a “aspiração à exaustividade” (Maciel, 2009MACIEL, Maria Esther. As ironias da ordem: coleções inventários e enciclopédias ficcionais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. ).

Quanto ao seu conhecimento do sertão, como dissemos, durante quase dez anos, Rosa fez contínuas viagens ao campo, diversas expedições a cavalo na companhia dos vaqueiros, às vezes acompanhando a condução de milhares de bois. Ele não deixou de consultar autores que pensavam o sertão, como José de Alencar, Visconde de Taunay, Humberto de Campos, Afonso Arinos, Virgílio de Mello Franco, Euclides da Cunha e Coelho Neto. Além destes, frequentou os autores naturalistas do século XIX, estrangeiros, especialmente os que viajaram por Minas Gerais como Wied-Neuwied, Saint-Hilaire, Spix e Martius, e Johann Emanuel Pohl. Seu interesse pelo tema do boi e da cultura popular fez com que conhecesse os livros de Amadeu Amaral, Pereira da Costa, Câmara Cascudo, Gustavo Barroso e Sílvio Romero.

Observemos que, a partir da leitura da primeira edição de Grande sertão: veredas, de 1956, antes da inserção do mapa de Poty, o crítico literário Antonio Candido, em um artigo originalmente publicado em 1957, na revista Diálogo, já havia percebido e descrito a relação entre o narrador do romance e a cartografia, apontando as lacunas, os mistérios e o irreal:

Dobrado sobre o mapa, somos capazes de identificar a maioria dos topônimos e o risco aproximado das cavalgadas. O mundo de Guimarães Rosa parece esgotar-se na observação. Cautela, todavia. Premido pela curiosidade o mapa se desarticula e foge. Aqui, um vazio; ali, uma impossível combinação de lugares; mais longe uma rota misteriosa, nomes irreais. (Candido, 1957/2002CANDIDO, A. « O homem dos avessos » In : Tese e antítese : ensaios. 4. Ed. São Paulo : T.A. Queiroz, 2002. , p.124)

Uma das recomposições geográficas feitas por Rosa a partir de dados reais lhe permite, ao apagar alguns rios, criar um imenso espaço desértico, aparentemente intransitável: o Liso do Sussuarão. Veremos a seguir que esse deserto foi recomposto dessa maneira por seu caráter iniciático, constituindo uma espécie de "terceira margem" na vida de um homem. Um homem que tem a vida dividida em dois, por um rio: Riobaldo, que supomos estar lutando com as palavras, para narrar um território misterioso, inacessível ao interlocutor e implícito todo o tempo na história.

O Liso do Sussuarão: uma travessia da linguagem?

O território “imaginal” sobre o qual queremos nos deter agora é o Liso do Sussuarão. Um território “imaginal” é um “universo do qual a imaginação ativa é o órgão; é o lugar das visões teofânicas, a cena em que eventos visionários e histórias simbólicas chegam em sua verdadeira realidade” Corbin (1976CORBIN, H. Imagination créatrice dans le soufisme d’Ibn’ Arabî. Paris: Flammarion, 1976., p.12). O teórico francês chegou a esta definição a partir de seus estudos da mística sufi. O escritor Guimarães Rosa, por sua vez, busca infinitamente significar tal território por meio da linguagem.

Na geografia do Grande sertão: veredas, o território imaginado por Guimarães Rosa é um deserto, descrito logo nas primeiras páginas do livro. Ali, a travessia do personagem não chegará ao fim e ele retornará da metade do caminho. A princípio, o confronto com o Liso do Sussuarão ocorre geograficamente. Riobaldo, como os outros homens do bando, luta fisicamente contra a realidade da travessia. Ele confronta a natureza hostil do território e seus medos:

As chuvas já estavam esquecidas, e o miolo mal do sertão residia ali, era um sol em vazios. A gente progredia dumas poucas braças, e calcava o reafundo do areião - areia que escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás. Depois, se repraçava um entranço de vice-versa, com espinhos e restolho de graviá, de áspera raça, verde-preto cor de cobra. Caminho não se havendo. Daí, trasla um duro chão rosado ou cinzento, gretoso e escabro - no desentender aquilo os cavalos arupanavam. [...] Medo, meu medo. Agüentei. [...] Só saiba: o Liso do Sussuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade - feito pessoa! (Rosa, 1994ROSA, João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 62-64)

Segundo Marinho (2016MARINHO, M. « Traduttore, traditore: a supressão das 65 ocorrências da palavra “arte” nas traduções de GRANDE SERTÃO: VEREDAS”.Revista do GELNE, v. 4, n. 2, p. 1-9, 2 mar. 2016. ), o narrador-poeta Riobaldo só consegue atravessar o Liso do Sussuarão para atacar a propriedade de Hermógenes depois de ter se transformado em crótalo (Urutu Branco), no dia seguinte ao pacto com o “demônio”. Curiosamente, os sons da palavra crótalo nos lembram os de Crátilo - o personagem encenado por Platão em seu trabalho sobre a origem das palavras. Em Crátilo, Hermógenes é aquele que assume e defende a natureza arbitrária do signo.

Vamos observar o estratagema de Guimarães Rosa ao atribuir os nomes dos personagens em seu romance:

  • Riobaldo. 'R' de Rosa, 'io' ou 'je em italiano' e ‘bardo’ ou poeta (Marinho, 2016MARINHO, M. « Traduttore, traditore: a supressão das 65 ocorrências da palavra “arte” nas traduções de GRANDE SERTÃO: VEREDAS”.Revista do GELNE, v. 4, n. 2, p. 1-9, 2 mar. 2016. ); Riobaldo é o poeta narrador confrontado com a humanidade indescritível de sua própria história. Ao longo do romance, o personagem narrador expressa sua dificuldade de encontrar as palavras para melhor construir sua narração. Sua linguagem é um verdadeiro idioleto, ao mesmo tempo imaginário, dialetal, onomatopeico, portanto, oral, mas também rebuscado, imagético; é acima de tudo a expressão constante da contradição do real e da consciência, de um terceiro termo entre as contradições. Vejamos, por exemplo, os comentários de Riobaldo sobre o sertão:

Por que era que eu estava procedendo à-toa assim? Senhor, sei? O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. (Rosa, 1994ROSA, João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p.85)

Ou ainda este: “Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na paridade. O demônio na rua...” (Rosa, 1994ROSA, João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p.439).

  • Urutu Branco. Depois de uma noite inteira na encruzilhada a invocar o diabo para fazer um pacto com ele, Riobaldo retorna ao seu bando (os jagunços como são chamados no sertão) e recebe seu novo nome: doravante, seu nome será Urutu Branco.

  • Crótalo. Urutu Branco é uma espécie de cobra do sertão, da família da cascavel. Se a serpente Urutu é um crótalo, a que elimina Hermógenes corresponde a Crátilo, o personagem que se opõe a Hermógenes no texto de Platão intitulado Crátilo, sobre o nascimento da linguagem e a motivação do signo. Crátilo é um personagem heraclitiano, defensor da correção natural dos nomes. Ele propõe que as coisas na natureza têm um significado apreensível nos seus nomes, cujo sentido escapa aos homens, porque tudo está em um fluxo perpétuo. Já Hermógenes acha que as palavras só podem ser atribuídas às coisas de maneira convencional.

  • Hermógenes. No romance, o descendente de Hermes, sem dúvida, hermético (embora sem asas nos pés) ou mercuriano (não filosófico, mas animado, regressivo, involutivo), cujo discurso é convincente e cuja voz é perturbadora. É responsável pela morte do pai de Diadorim, que deseja vingança. O narrador, ao tratar dos chefes de bando, o apresenta da seguinte forma: “Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim” (Rosa, 1994ROSA, João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 16). Riobaldo e Diadorim pretendem atravessar o Liso do Sussuarão para pegar Hermógenes e seu bando de surpresa e, assim, matá-lo.

Voltemos ao deserto. O local a ser atravessado é descrito pelo narrador da seguinte maneira:

Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Sussuarão, é o mais longe - pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que quando a gente entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um é que dali não avança, espia só o começo, só. Ver o luar alumiando, mãe, e escutar como quantos gritos o vento se sabe sozinho, na cama daqueles desertos. Não tem excrementos. Não tem pássaros. (Rosa, 1994ROSA, João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p.41)

É um deserto intransitável. A linguagem? Mas não uma linguagem qualquer, se julgarmos pela grafia e as sonoridades do nome que lembram claramente as de Saussure (Sussuarão: aqui o som final 'ão' é um aumentativo, que amplia o aspecto repulsivo do deserto). De fato, há uma conexão a ser feita com Ferdinand de Saussure, o grande responsável pela concepção moderna de signo enquanto significante e significado, cujo referente lhe é exterior. Essa concepção entra em choque com a de Crátilo e parece mais próxima da de Hermógenes, em Platão. O deserto da língua saussuriana seria, portanto, na percepção de Rosa, infrutífero e estéril?

O que faz, então, Riobaldo, o Urutu Branco, para conseguir atravessar esse deserto infernal na terceira parte do romance? Sabemos que ele foi à encruzilhada para invocar o diabo e fazer um pacto. No entanto, nem o leitor nem o narrador estão certos desse pacto, tendo em vista que o diabo não apareceu para Riobaldo, ficando assim, o jagunço, ao longo da história, em uma incerteza permanente, que o atormentará por toda a vida. Desde o início de sua história autobiográfica, Riobaldo questiona seu interlocutor:

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! - é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco - é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso - por estúrdio que me vejam - é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela-já o campo! (Rosa, 1994ROSA, João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p.7)

Não é peculiar ao Maligno negar a própria existência? Se ele existe é que não existe. Contradição intrínseca à natureza complexa do mal, que Guimarães Rosa parece ter decidido enfrentar por meio de uma proeza de linguagem.

De fato, será o pacto de Riobaldo, realmente, um pacto com o diabo dos cristãos? Com aquele que não deve ser nomeado? “Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele - dizem só: o Que-Diga. Vote! não... Quem muito se evita, se convive” (Rosa, 1994ROSA, João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p.4). Animado pelo Crátilo e se tornando o Urutu Branco, parece até que Riobaldo fez um pacto com o “daimon” grego da linguagem. De fato, Rosa cria uma nova linguagem falada, um idioleto, feito de fragmentos de várias línguas, de palavras encontradas, recompostas, mas também de canções, melodiosas e sonoras. Expressão do real, experiência do “território imaginal”, essa língua imaginada e recriada à medida das necessidades do dizer: a terceira margem, espaço entre coisas e palavras, onde é estabelecido o significado do que ainda não sabemos, exige de todos um esforço de compreensão. Este espaço é significado pela vereda.

Vejamos como a travessia do Liso do Sussuarão é descrita por Riobaldo / Uturu Branco, na segunda parte do romance:

A fortes braços de anjos sojigado. O digo? Os outros, a em passo em passo, usufruíam quinhão da minha andraja coragem. Rasgamos sertão. Só o real. Se passou como se passou, nem refiro que fosse difícil-ah; essa vez não podia ser! Sobrelégios? Tudo ajudou a gente, o caminho mesmo se economizava. As estrelas pareciam muito quentes. Nos nove dias, atravessamos. Todos; bem, todos, tirante um. Que conto (Rosa, 1994ROSA, João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 727).

O Mundus Imaginalis ou a topologia do pacto literário

Em nossa análise, a compreensão de um pacto com a linguagem requer observar os vários elementos do Liso do Sussuarão como um "Mundus Imaginalis". Vamos começar com o título original do romance: Grande sertão: veredas.

O imaginário do “grande”, a princípio, abriga o espaço magno do aberto, do imenso e do infinito, imensidão não só otimizada em quantidade espacial, mas também em qualidade ampliadora, por sua vez, da palavra “sertão”, cujo aumentativo “ão” agiganta ainda mais o sentido de “grande”. Riobaldo/Crátilo busca, muito além das convenções de uso, a natureza das palavras, o que significa que, a partir do nome correto, se estabelece o sentido, aquilo que é anterior, nem intelectual, nem sensível: a matéria imaterial "imaginal" das coisas como elas são. As palavras só podem ser o resultado de uma profunda experiência de vida, acompanhada pela experiência reflexiva que leva a um mundo intermediário. O mundo real? Lembremos a definição dada por Corbin de "Mundus Imaginalis":

Um mundo tão real e objetivo, consistente e subsistente quanto o universo inteligível e o universo sensível, um universo intermediário "onde o espiritual toma forma e onde o corpo se torna espiritual", composto de matéria e extensão reais, embora no estado sutil e intangível em comparação com a matéria sensível e corruptível.

Nos limites geográficos da região sudeste e centro-oeste do Brasil, onde está localizado o sertão de Rosa, as veredas são pequenos riachos no meio de uma área semideserta cercadas por buritis, palmeiras despenteadas, verdes e brilhantes que anunciam a presença de água e um pouco de frescor. Eles são como oásis em pleno deserto. Rosa tinha grande admiração e curiosidade por essas palmeiras.

Será ali, nas veredas estreitas que reside a fonte vital que permite o acesso ao mundo imaginal? As águas são portais para os domínios espirituais, já o sabemos. E são precisamente essas águas que o verde dos olhos de Diadorim evoca para Riobaldo. Ele deseja atravessá-los mas seu desejo é tão intenso e incompreensível que ele se cala. Escuta Diadorim exortá-lo à batalha, com raiva no coração, com sua sede de vingança a afiar a lâmina de seu punhal. Diadorim é, de uma só vez, o medo e a coragem de Riobaldo. Ele o paralisa ao mesmo tempo em que o impele à batalha. Contradição. Apenas um terceiro termo pode resgatar Riobaldo desse impasse sentimental. E Riobaldo pressente que o terceiro termo é aquático.

Figura 2:
Buritis - In : Rosa, João Guimarães. Diadorim, 2006ROSA, J. G. Discurso de posse na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro de 20/12/1945. « Dossiê Guimarães Rosa », Revista Estudos Avançados, v. 20, n. 58, São Paulo, set./dez., 2006. .

Entre a vastidão do grande sertão solar e as estreitas veredas aquáticas, os dois pontos: materialização gráfica da zona intermediária, local de demarcação entre dois territórios ; o infinitamente grande e o infinitamente pequeno. Os dois pontos representam o anúncio e o destaque para a passagem, a travessia e a terceira margem do romance. É a zona intermediária que parece permitir um acesso, uma abertura, o ir e vir do grande ao pequeno, do detalhe à imensidão e do material ao imaterial. Da transcendência à imanência? Se o místico é aquele que atravessa o deserto de sua própria consciência, o segredo do escritor está na linguagem. Na transcendência imanente dos signos e das palavras certas, na estrutura narrativa recursiva, demarcada pela repetição e o infinito.

Como disse Bolle (2004BOLLE, Willi. Grandesertão.br. O romance de formação do Brasil. São Paulo : Duas Cidades ; Ed. 34, 2004.), a história, assim como o sertão, é labiríntica. Feita para se perder e andar. O sertão serve para entender o funcionamento complexo da mente do narrador, que não é linear. Como a matéria do seu relato é a memória, ele trabalha a todo momento, interrompendo a narrativa com conjecturas sobre o sertão, o diabo, a existência, homens, mulheres, jagunços, a moral, as crenças etc. Apesar dessa característica labiríntica, se percebida linearmente, contudo, a história dá voltas que permitem ir e voltar na história que une Riobaldo e Diadorim:

  1. Na primeira grande volta narrativa, Riobaldo faz, com um enigmático « Menino » (com letra maiúscula no texto), cuja delicada beleza o fascina, a travessia do rio São Francisco; uma verdadeira iniciação durante a qual o narrador enfrenta seus medos: medo do rio e suas águas profundas e atormentadas? Medo de seu sentimento diante do Menino que o encanta? Medo de expressar aquilo que sente e de realizar na linguagem, o desafio da sua própria história de amor? Mais tarde, ele reencontra o jovem, sob o nome de Reinaldo, em um bando de jagunços com o qual ele também se envolve. Ele fica sabendo, ainda, que seu nome verdadeiro é Diadorim. Com o bando, Riobaldo e Diadorim tentam atravessar o Liso do Sussuarão, mas a primeira tentativa é frustrada. Eles dão meia volta e a narrativa também.

  2. Na segunda grande volta narrativa, Diadorim recebe a notícia da morte de seu pai, assassinado em uma batalha por Hermógenes. Riobaldo faz seu « pacto com o diabo » e assume o comando do bando de jagunços. O Liso do Sussuarão é, finalmente, atravessado por Riobaldo/Urutu Branco e Diadorim. Durante o ataque a Hermógenes, no final do romance, Diadorim morre.

  3. Na terceira grande volta, no final da história, uma anagnórise nos permite voltar a todo o romance e revê-lo sob nova perspectiva. Riobaldo descobre o corpo de seu amigo/amor Diadorim, agora morto, e percebe que é um corpo de mulher. A história toda pode ser relida a partir deste momento. As dúvidas de Riobaldo sobre seus sentimentos em relação a Diadorim e sobre o caráter do próprio Diadorim podem ser relidos de maneira diferente. Outras interpretações em torno de Diadorim podem ser feitas. Os lugares podem ser resignificados.

  4. O romance, dedicado a Aracy Moebius (!), esposa de Guimarães Rosa, termina com uma última abertura, o símbolo do infinito :

Figura 3:
Sem título - Extraído de Imagens do Grande Sertão por Arlindo Daibert (1998DAIBERT, A. Imagens do Grande Sertão. Belo Horizonte : UFMG / Juiz de Fora : UFJF, 1998.)

Ao longo do romance, um leitmotiv que ainda não citamos aqui e que, no entanto, atravessa a narrativa, desaparecendo e reaparecendo a todo momento, é a imagem: "o diabo na rua, no meio do redemunho". O imaginário do turbilhão diabólico representa esse "lugar do nada" onde Riobaldo pensou ter feito seu pacto com o diabo. Uma indicação, no final do romance, nos permite entender que o lugar do pacto (primeiro chamado « Veredas-Tortas », depois « Veredas-Mortas », que o narrador impele o interlocutor a nunca pronunciar) chama-se, em realidade, « Veredas-Altas ». O « meio do redemunho » é, portanto, ascendente e o pacto parece ter conduzido Riobaldo para as alturas, ao assumir o comando do bando. « O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia” (Rosa, 1994ROSA, João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 875).

Figura 4:
Sem título - Trecho de Imagens do Grande Sertão, de Arlindo Daibert (1998DAIBERT, A. Imagens do Grande Sertão. Belo Horizonte : UFMG / Juiz de Fora : UFJF, 1998.)

Para concluir: o imaginal ou a terceira margem

Neste artigo tentamos demonstrar como as noções de território e de nomes presentes no romance não estão dissociadas de uma ideia de geografia como sistema de pensamento (Bolle, 2004BOLLE, Willi. Grandesertão.br. O romance de formação do Brasil. São Paulo : Duas Cidades ; Ed. 34, 2004.) e de um «mundus imaginalis» (Corbin, 1976CORBIN, H. Imagination créatrice dans le soufisme d’Ibn’ Arabî. Paris: Flammarion, 1976.). Trabalhamos a topologia do sertão e, mais detidamente, a do « Liso do Sussuarão », e, de forma mais ampla, o próprio Grande sertão: veredas como um livro que discute em seu interior os problemas da linguagem.

Os problemas da linguagem unem-se àqueles dos limites, das fronteiras, e dos territórios. Neste sentido, o interesse de Guimarães Rosa pelo tema da geografia não pode ficar desconectado da questão da língua e da linguagem. Tanto num como noutro, o aspecto do real e do imaginário, estão ancorados na realidade física/metafísica, material/imaterial e real/imaginal (do sertão e do dizer/narrar). O trabalho de linguagem do autor é tal que ele constrói romances no romance (Llosa, 2006LLOSA, M. V. Préface. In: Rosa, J. G. Diadorim. Trad. Maryvonne Lapouge -Pettorelli. Paris: Albin Michel, 2006., p. 13), contos dentro do romance (Galvão, 1972GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. São Paulo : Perspectiva, 1972. ) e territórios dentro de territórios.

Se, para Bolle (2004BOLLE, Willi. Grandesertão.br. O romance de formação do Brasil. São Paulo : Duas Cidades ; Ed. 34, 2004.), além de um romance regionalista, Grande sertão: veredas pode ser percebido como um « sistema de pensamento », mediante imagens mentais, que criam um espaço « imaginário », para Corbin, este espaço: "É um mundo suprassensível, na medida em que é perceptível apenas através da percepção imaginativa. Entenda-se, aqui novamente, que não é simplesmente uma questão do que a linguagem cotidiana chama hoje de imaginação, mas de uma visão que é Imaginatio vera.” (Corbin, 2008CORBIN, H. Face de Dieu, face de l’homme, Ed. Entrelacs, 2008., p. 44). Se o misticismo sufi mostrou tal aspecto a Corbin, acreditamos que a problemática da linguagem, o interesse pela metafísica e o imaginário do sertão, nos mostram que Guimarães Rosa, trata de acessar a "outro status da realidade" (Villaça, 2019VILLAÇA, A. Notas sobre “a terceira margem do rio”, Facebook, 2019. Acessível em:< Acessível em:https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=2545199905560202&id=100002106536604 > Acesso em 18/11/2019.
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, s / p.). Villaça entende, ao analisar o conto « A Terceira Margem do Rio », de Primeiras Estórias (1962) que: "O fantástico, para Rosa, é um outro status de realidade e as duas margens se cruzam com a do ambiente que ele cria, e são essas águas que o interessam”.

A terceira margem é sem dúvida a ideia-imagem mais adequada para situar esse « sistema de pensamento » rosiano. É também a melhor forma de compreensão desta geografia real e imaginal que ele desenvolveu ao longo de contos e do seu romance. Ali, Rosa encontrou outra maneira de pensar o território da linguagem e da geografia. Uma forma de pensar que une um problema no outro. O imaginário territorial e aquele da linguagem exigem desafios, idas e voltas, exploração de incertezas e de problemas de definição.

REFERÊNCIAS

  • ALBERGARIA, C. Bruxo da linguagem no Grande Sertão Rio de Janeiro : Tempo brasileiro, 1977.
  • BOLLE, Willi. Grandesertão.br. O romance de formação do Brasil. São Paulo : Duas Cidades ; Ed. 34, 2004.
  • CANDIDO, A. « O homem dos avessos » In : Tese e antítese : ensaios 4. Ed. São Paulo : T.A. Queiroz, 2002.
  • CORBIN, H. Imagination créatrice dans le soufisme d’Ibn’ Arabî Paris: Flammarion, 1976.
  • CORBIN, H. Face de Dieu, face de l’homme, Ed. Entrelacs, 2008.
  • DAIBERT, A. Imagens do Grande Sertão Belo Horizonte : UFMG / Juiz de Fora : UFJF, 1998.
  • GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso São Paulo : Perspectiva, 1972.
  • LLOSA, M. V. Préface. In: Rosa, J. G. Diadorim Trad. Maryvonne Lapouge -Pettorelli. Paris: Albin Michel, 2006.
  • MACIEL, Maria Esther. As ironias da ordem: coleções inventários e enciclopédias ficcionais Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
  • MARINHO, M. « Traduttore, traditore: a supressão das 65 ocorrências da palavra “arte” nas traduções de GRANDE SERTÃO: VEREDAS”.Revista do GELNE, v. 4, n. 2, p. 1-9, 2 mar. 2016.
  • ROSA, J. G. Primeiras Estórias RJ: José Olympio, 1962.
  • ROSA, João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
  • ROSA, J. G. Discurso de posse na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro de 20/12/1945. « Dossiê Guimarães Rosa », Revista Estudos Avançados, v. 20, n. 58, São Paulo, set./dez., 2006.
  • ROSA, J. G. Cadernos de Estudos 19. Manuscrito. Fundo João Guimarães Rosa/IEB/USP, código de referência JGR-CADERNO-19.-s./d.
  • UTÉZA, Francis. Metafísica do grande sertão São Paulo: Edusp, 1994.
  • VIGGIANO, Alan. Itinerário de Riobaldo Tatarana Geografia e toponímia em Grande Sertão: Veredas. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.
  • VILLAÇA, A. Notas sobre “a terceira margem do rio”, Facebook, 2019. Acessível em:< Acessível em:https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=2545199905560202&id=100002106536604 > Acesso em 18/11/2019.
    » https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=2545199905560202&id=100002106536604
  • 3
    “Linda, marca, linha, discrime, discrímen, confins, termo, enclave, fronteira, raia, arraia, fimento, afimento (aut.), contérmino, extrema, extremadela, extremidade, sêsmo (aut.), terminação, barreira, meta, risca, remate, término, órbita, baliza, marco, pinoco, cipó, colunelo, bões (= marcos de pedra), fradépio, mogo, padrão, piquêta, malhão, marco primordial, linha principal, linha divisória, linha divisora, linha demarcatória.” (RosaROSA, J. G. Cadernos de Estudos 19. Manuscrito. Fundo João Guimarães Rosa/IEB/USP, código de referência JGR-CADERNO-19.-s./d., s.d., p.21)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2019
  • Aceito
    13 Dez 2019
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