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Escrevivência, testemunho e direitos humanos em Olhos d’água de Conceição Evaristo

Escrevivência, Testimony, and Human Rights in Conceição Evaristo’s Olhos d’água

Resumo:

Orientando-se por estudos críticos sobre a literatura dos direitos humanos, a literatura testemunhal, e a narrativa (auto)biográfica, este ensaio apresenta uma análise de contos do volume Olhos d’água (2014) de Conceição Evaristo, visando interrogar o papel da narrativa de ficção como literatura de resistência e testemunho que empresta voz a indivíduos comumente silenciados em um contexto de opressão racial e econômica. A literatura de Evaristo se articula sobre o que ela conceitua como escrevivência, ou seja, uma escrita originada da experiência do sujeito. Este é maiormente a mulher negra e pobre com a qual a voz narrativa estabelece uma íntima identificação, o que confere à obra uma dimensão autográfica e testemunhal, de denúncia sobre a violação dos direitos humanos da população negra brasileira.

Palavras-chave:
Conceição Evaristo; Olhos d’água; direitos humanos; racismo; memória; escrevivência

Abstract:

Informed by critical studies on human rights literature, testimonial literature, and (auto-) biographical narrative, this essay analyzes stories from Conceição Evaristo’s Olhos d’água (2014), with the purpose of examining the role narrative fiction may play as a form of testimony and resistance literature that gives voice to those normally silenced by racial and economic oppression. Evaristo characterizes her work as escrevivência, a type of writing originated from the subject’s personal experiences; this subject is mostly Black poor women with whom the narrative voice identifies. Thus, her work presents characteristics of autographic and testimonial literature that seeks to denounce the violation of Brazil’s Black population’s human rights.

Keywords:
Conceição Evaristo; Olhos d’água; human rights; racism; memory; escrevivência

A escritora mineira Conceição Evaristo é uma das vozes de maior destaque e renome crítico na literatura brasileira contemporânea. Poeta, romancista, contista e ensaísta, Evaristo estreou na literatura em 1990, já aos quarenta e quatro anos, quando publicou seu conhecido poema “Vozes-mulheres” nos Cadernos Negros. Em 1994 participou de Enfim nós/ Finally Us, antologia bilíngue organizada por Miriam Alves e Carolyn Richardson DurhamALVES, Miriam; DURHAM, Carolyn Richardson, orgs. Enfim. . . Nós/ Finally. . . Us. Escritoras negras brasileiras contemporâneas/ Contemporary Black Brazilian Women Writers. Trad. Carolyn Richardson Durham. Boulder, Colorado: Three Continent Press, 1994., a primeira de inúmeras antologias no Brasil e no exterior nas quais comparece com sua poesia e ficção. Em 2003 publica seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio, obra traduzida para o inglês e francês, seguindo-se a ele outro romance, Becos da memória (2006), uma coleção de poemas, e três volumes de contos. O pleno reconhecimento crítico de sua obra acontece na segunda década deste século: em 2015 recebe o prestigioso prêmio Jabuti na categoria contos e crônicas, pelo livro Olhos d’água, de 2014; em 2017 é tema do Projeto Ocupação promovido pelo Itaú Cultural; e em 2019 é homenageada como Personalidade Literária do Ano pelo Jabuti.

Escritora atuante, ativista do movimento negro, Evaristo tem sido presença constante em encontros literários e acadêmicos desde o início de sua carreira literária, onde apresenta e discute não só sua obra criativa como também seu trabalho de pesquisadora e scholar. O elo a unir os dois lados da produção literária de Evaristo-a escrita criativa e a crítica-é sua preocupação com a identidade, a cultura e a ancestralidade dos afro-brasileiros e as experiências de vida deles, em particular as vivências da mulher negra. Sua poesia e ficção apresentam um viés fortemente autobiográfico, no sentido de que a autora busca representar, na poesia e na prosa, material que nasce de suas impressões e “memórias ficcionalizadas;” diz Evaristo: “toda minha criação surge marcada pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira” (Evaristo, 2017, p. 7EVARISTO, Conceição. Entrevista a Ademir Pascale. Conexão literatura v. 24, 2017, p. 5-10. http://revistaconexãoliteratura.com.br. Acessado 5 junho 2017.
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). Ciente do silêncio imposto sobre a mulher negra, na sociedade em geral e, especificamente, na produção literária brasileira onde a mulher negra costumava comparecer somente como objeto estereotipado pelo discurso hegemônico, Evaristo afirma a importância-realmente radical em seu potencial transformador-da escrita de autoria feminina negra, a que ela denomina de escrevivência.1 1 Sobre a representação da mulher negra na literatura brasileira, ver Cristina Ferreira-Pinto, “Female Body, Male Desire,” em Gender, Discourse, and Desire in Twentieth-Century Brazilian Women’s Literature (West Lafayette, Indiana: Purdue University Press, 2004), 8-37. Essa escrita nasce da perspectiva, da memória e das vivências do Eu-mulher-negra e inscreve-se no texto como ficção, poesia e experiência de vida.

Considerando a importância da memória na obra de Evaristo, assim como sua preocupação com a condição social dos afro-brasileiros, especialmente aqueles pertencentes às camadas mais desfavorecidas da sociedade brasileira, apresento neste ensaio uma análise de contos do livro Olhos d’água como exemplos de uma literatura comprometida com a questão dos direitos humanos. Esse compromisso nasce da consciência que a escritora desenvolveu ainda muito jovem sobre sua condição de mulher negra e pobre e de ter sido “lesada em seus direitos fundamentais, assim como todos os seus também há anos vinham. . .” sendo roubados de seus direitos humanos mais básicos (EVARISTO, 2005, p. 201EVARISTO, Conceição. “Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face.” Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. X Seminário Nacional Mulher e Literatura. I Seminário Internacional Mulher e Literatura. Orgs. Nadilza Martins de Barro Moreira e Liane Schneider -. João Pessoa: Ideia; Editora da UFPB, 2005, p. 201-212.).

Olhos d’água reúne quinze contos, quase todos narrados em terceira pessoa; entretanto, percebe-se sempre uma voz narrativa muito próxima aos personagens e com eles irmanada.2 2 “Olhos d’água,” relato que abre o volume, é narrado em primeira pessoa, enquanto que em “A gente combinamos não morrer,” a voz narrativa em terceira pessoa passa a palavra aos personagens—Bica, Dorvi e Dona Esterlinda—que se alternam externando seus pensamentos em primeira pessoa. Já em “Ayoluwa, alegria do nosso povo,” último conto do livro, a voz narrativa fala por uma coletividade da qual faz parte, relatando os acontecimentos do ponto de vista de “nós.” Desde o início, fica caracterizado o papel da memória individual e coletiva como elemento comum a enfeixar os contos.3 3 Consideramos “memória individual” como o arquivo de recordações de eventos e experiências pessoais que o sujeito leva consigo e que informam a constituição de seu sentido de identidade ou, em outras palavras, de sua consciência de si. “Memória coletiva” é a memória pública, aquela atribuída a um grupo ou sociedade, segundo Maurice Halbwachs. Entretanto, como conclui Paul Ricouer, a memória individual e a coletiva estão profundamente imbricadas, pois o sujeito recorda não só para si, mas também para e com o outro (aqueles próximos a nós; o grupo social; a comunidade): recordar, rememorar é sempre co-memorar, ou seja, rememorar com o outro. Ver Paul Ricouer, Memory, History, Forgetting (Chicago: University of Chicago Press, 2004), em particular o capítulo três, “Personal Memory, Collective Memory.” Estes emprestam voz a indivíduos comumente silenciados no contexto de opressão racial e econômica dos grandes centros urbanos do Brasil contemporâneo. As vivências individuais das protagonistas dizem respeito a um sujeito coletivo, constituindo-se os contos em exemplos de literatura de testemunho e resistência. Desse modo, a leitura dos contos de Olhos d’água se beneficiará de um diálogo crítico com estudos teóricos que enlaçam a narrativa (auto)biográfica ou “autografia,” a literatura testemunhal, e os direitos humanos; esse diálogo, por sua vez, possibilitará uma indagação mais ampla sobre o papel da literatura de ficção em um contexto de conflito social e político.

Existe hoje um vasto corpus teórico sobre o que muitos críticos chamam de literatura dos direitos humanos-ou seja, poesia, prosa de ficção, dramaturgia, etc.-que dá expressão a “the human experience of suffering and redemption through an aesthetic that requires responsibility and action on the reader’s part as well as critical thinking and empathy” (AGOSÍN, 2007AGOSÍN, Marjorie. “Introdução: Writing Toward Hope.” Writing Toward Hope: The Literature of Human Rights in Latin America. Org. Marjorie Agosín. Yale University Press, 2007. p. xv-xxi., p. xix). Essa literatura surge na esteira de eventos catastróficos, casos de genocídio e períodos de exceção política, tais como o Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial, os crimes de guerra no Vietnam, Oriente Médio e África, e as ditaduras civis-militares da segunda metade do século vinte em países como El Salvador, Guatemala, Brasil e o Cone Sul. Só mais recentemente começa-se a refletir sobre a situação do indivíduo negro na diáspora africana como uma questão de direitos humanos, e é por esse viés que interessa examinar as narrativas de Olhos d’água. Os contos de Evaristo compartem com a literatura dos direitos humanos elementos de denúncia, resistência e esperança, colocando-se em contraposição à cumplicidade da sociedade hegemônica, que permanece calada-seja por medo, indiferença ou ideologia-diante de uma situação de crise, qual seja, de violação dos direitos humanos dos afro-brasileiros. Os contos de Olhos d’água podem ser entendidos como literatura testemunhal ao unirem a memória ancestral afro-brasileira a micro-histórias, isto é, histórias pessoais cuja perspectiva particular incide sobre a história nacional.

Pode a literatura de ficção ajudar-nos a compreender um legado histórico traumático? De que modo o pensar a/sobre a literatura informa o processo-individual e coletivo-de relembrar o passado e imaginar o futuro? Refletir sobre estas questões a partir da leitura dos contos de Olhos d’água significa encarar a realidade das violações dos direitos humanos dos afro-brasileiros que a autora desvenda em sua narrativa. É esta a situação de crise e conflito a que Evaristo confere forma e sentido em sua obra. Emprega-se aqui o termo conflito, a partir das colocações de Chris Andrews e Matt McGuireANDREWS, Chris; MCGUIRE, Matt, orgs. Post-Conflict Literature: Human Rights, Peace, Justice. Taylor & Francis Group, 2016. http:/Ebookcentral.proquest.com/lib/wlu. Acessado 21 abril 2017.
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em “Post-Conflict Literature?,” como conceito instrumental de análise com o objetivo de examinar tanto as limitações como as possibilidades que a literatura oferece frente a um contexto de violência social e política e suas sequelas.

O contexto retratado nos contos de Olhos d’água e em toda a obra da autora mineira não resulta de abalos ou mudanças violentas na estrutura política da nação-golpe de estado, ditadura, repressão política-mas sim de estruturas sociais calcadas no legado da escravidão e sustentadas pela aquiescência de nossas instituições públicas e pelo nosso silêncio, ou seja, nossa cumplicidade como cidadãos “brancos.” Entretanto, a noção de conflito, assim também como a de “violência lenta” elaborada por Rob Nixon, compõem um viés crítico que ajuda a entender de forma explícita as estruturas sociais e políticas que sustentam o racismo brasileiro, ou seja, os mecanismos de violação dos direitos humanos de um grande segmento da nossa sociedade.4 4 “Violência lenta” (“slow violence”), segundo Rob Nixon, é “a violence that occurs gradually and out of sight, a violence of delayed destruction . . . an attritional violence that is typically not viewed as violence at all” (Nixon, 2011, p. 2). Nixon refere-se ao impacto social e econômico da destruição do meio-ambiente sobre as camadas populacionais mais pobres; entretanto, tal como definido pelo crítico, esse conceito aplica-se também à opressão e destruição da população negra brasileira ao longo dos séculos, assim como à percepção e aceitação desse processo pelos segmentos da população que se identificam como “brancos.” O espaço de conflito que os contos de Olhos d’água desvendam resulta de uma situação limítrofe, de crise, fronteira em disputa, “zona de guerra” declarada contra a população negra brasileira que se mantém ainda hoje, passados quase um século e meio desde a abolição da escravidão no Brasil. Uma crise que “não existe em abstrato, mas concretamente em nosso cotidiano, nós [afro-brasileiros] a vemos ao olhar da janela, ao parar no sinal, ao entrar em um hospital ou num campo de concentração para pobres indomáveis [i.e., as penitenciárias]” (Rufino dos Santos, 2004SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do social. Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. São Paulo: Global, 2004. , p. 239).

Essa realidade, frequentemente oculta, ignorada ou distorcida pela sociedade que se quer “branca,” é hoje exposta de forma mais frequente e imediata pelas várias plataformas da mídia social: incidentes de discriminação racial, microagressões, violência física, e o assassinato indiscriminado e impune de pessoas negras, particularmente das camadas economicamente menos favorecidas. No entanto, o poder de alcance e o potencial de impacto da literatura sobrepõem-se ao imediatismo da mídia social porque a literatura-em especial a narrativa de ficção-conta uma história, o que implica também uma perspectiva histórica, um olhar sobre a coletividade-família, grupo, sociedade, nação-a partir de uma perspectiva do/sobre o indivíduo. A narrativa de ficção oferece uma forma alternativa de representação da realidade e de repensar criticamente o legado do passado e seu impacto sobre o presente. Segundo Andrews e McGuireANDREWS, Chris; MCGUIRE, Matt, orgs. Post-Conflict Literature: Human Rights, Peace, Justice. Taylor & Francis Group, 2016. http:/Ebookcentral.proquest.com/lib/wlu. Acessado 21 abril 2017.
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, a literatura de ficção apresenta-se como uma forma de discurso alternativo à mídia, tanto os meios de comunicação de massa como as novas plataformas da mídia social, que privilegiam a superficialidade do espetáculo (ANDREWS; MCGUIRE, 2016, p. 1ANDREWS, Chris; MCGUIRE, Matt, orgs. Post-Conflict Literature: Human Rights, Peace, Justice. Taylor & Francis Group, 2016. http:/Ebookcentral.proquest.com/lib/wlu. Acessado 21 abril 2017.
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): “Literature is one of the spaces in which the relationship between ordinary people and . . . political violence is afforded the time, space and attention which are undoubtedly its due” (ANDREWS; MCGUIRE, 2016, p. 2ANDREWS, Chris; MCGUIRE, Matt, orgs. Post-Conflict Literature: Human Rights, Peace, Justice. Taylor & Francis Group, 2016. http:/Ebookcentral.proquest.com/lib/wlu. Acessado 21 abril 2017.
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). Se o imediatismo e o espetáculo caracterizam a mídia social, é o caráter de mediação da literatura que lhe permite possibilidades maiores e mais duradouras de comunicação com o público leitor. Andrews e McGuireANDREWS, Chris; MCGUIRE, Matt, orgs. Post-Conflict Literature: Human Rights, Peace, Justice. Taylor & Francis Group, 2016. http:/Ebookcentral.proquest.com/lib/wlu. Acessado 21 abril 2017.
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apontam certas características da literatura-tais como “literature’s fostering of vicarious experience and protracted attention, its slowing down of time, the imaginative access it grants to what cannot readily be seen . . .” (Andrews e McGuire, 2016, p. 3ANDREWS, Chris; MCGUIRE, Matt, orgs. Post-Conflict Literature: Human Rights, Peace, Justice. Taylor & Francis Group, 2016. http:/Ebookcentral.proquest.com/lib/wlu. Acessado 21 abril 2017.
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)-que instigam uma reflexão crítica por parte do público leitor sobre a realidade retratada, ao mesmo tempo em que possibilitam uma identificação íntima e até emotiva entre esse público e as personagens cujas experiências vemos narradas. Em Olhos d’água, serão as experiências de vida das Marias, Anas, Cidas, Kimbás e outras mulheres, homens e crianças que Evaristo nos relata. Essas personagens são, em sua maioria, pobres, habitantes das favelas ou das ruas; todas vulneráveis à violência que vem de fora, mas muitas delas empoderadas por uma força que nasce de si mesmas (por exemplo, Natalina, do conto que leva seu nome) ou de uma herança ancestral (como a narradora-protagonista de “Olhos d’água”).

Em Human Rights and Narrated Lives (2004), Kay Schaffer e Sidonie Smith discutem a importância do “contar histórias” para o campo dos direitos humanos: “Storytelling . . . accumulates political import. In local contexts, life storytelling constitutes a social action on the part of individuals or communities, resonating through multiple cultural contexts, including the moral, aesthetic, political and legal” (Schaffer e Smith, 2004, p. 4SCHAFFER, Kay, e SMITH, Sidonie. Human Rights and Narrated Lives: The Ethics of Recognition. New York: Palgrave Macmillan, 2004. ). Contadas em forma de depoimento pessoal, poesia, memórias, cartas, narrativa testemunhal, etc., histórias de vida podem originar-se da experiência pessoal ou da coletividade e têm como objetivo ulterior circular além do espaço de origem, para atingir e envolver novas audiências. Evaristo é a contadora de histórias, combinando em seus contos “intenção documental” (Duarte, 2016DUARTE, Constância Lima. “Marcas da violência no corpo literário feminino.” Escrevivências: Identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo. Orgs. Constância Lima Duarte, Cristiane Côrtes e Maria do Rosário A. Pereira. Belo Horizonte: Idea, 2016, p. 147-57., p. 148), lirismo e linguagem oral. De fato, a escritora já comentou, em ensaios, entrevistas e depoimentos, sobre a influência de uma tradição de oralidade a que foi exposta em sua infância. Entretanto, é através de uma escrita consciente e teoricamente embasada que a contadora de histórias “fala” na ficção de Evaristo.

Fundamental como elemento estruturador da literatura da autora é a escrevivência, termo que ela mesma cunhou e tem discutido em várias ocasiões. Segundo Evaristo, escrevivência designa uma escrita originada das vivências, das experiências de vida dela mesma e de outros, pessoas que ela encontra e observa em seus cotidianos silenciosos (silenciados) e invisíveis (invisibilizados). Essa escrita origina-se também das memórias que a escritora guarda da infância e juventude, tendo ela se criado em um espaço de exclusão e pobreza, mas marcado por mulheres fortes e decididas: “Foi daí, talvez, que eu descobri a função, a urgência, a dor, a necessidade e a esperança da escrita” (Evaristo, 2007, p. 17EVARISTO, Conceição. “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita.” Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces, org. Marcos Antônio Alexandre. Belo Horizonte: Mazza, 2007, p. 16-21.). Esta afirmação deixa bastante clara a estreita relação entre sua obra e os direitos humanos, especificamente os direitos humanos dos afro-brasileiros. Como literatura dos direitos humanos, tanto a poesia como a ficção de Evaristo realizam papéis múltiplos-mediação da realidade, registro da memória, de histórias e da história-além de cumprir a “[função] de denunciar e provocar a conscientização” de seus leitores (Duarte, 2016DUARTE, Constância Lima. “Marcas da violência no corpo literário feminino.” Escrevivências: Identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo. Orgs. Constância Lima Duarte, Cristiane Côrtes e Maria do Rosário A. Pereira. Belo Horizonte: Idea, 2016, p. 147-57., p. 155). Desse modo, a literatura representa um veículo de resistência, um ato de rebeldia e “um modo de ferir o silêncio imposto” (EVARISTO, 2005, p. 201EVARISTO, Conceição. “Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face.” Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. X Seminário Nacional Mulher e Literatura. I Seminário Internacional Mulher e Literatura. Orgs. Nadilza Martins de Barro Moreira e Liane Schneider -. João Pessoa: Ideia; Editora da UFPB, 2005, p. 201-212.) sobre o sujeito negro brasileiro.

Em Olhos d’água, Evaristo volta-se principalmente para a vivência das mulheres negras em sua “dupla condição, que a sociedade teima em querer inferiorizada” (EVARISTO, 2005, p. 205EVARISTO, Conceição. “Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face.” Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. X Seminário Nacional Mulher e Literatura. I Seminário Internacional Mulher e Literatura. Orgs. Nadilza Martins de Barro Moreira e Liane Schneider -. João Pessoa: Ideia; Editora da UFPB, 2005, p. 201-212.). Quase todas as protagonistas do volume, porém, são marginalizadas também devido a seu status econômico, o que faz desses relatos uma clara representação da tripla discriminação de gênero, econômica e étnico-racial que Gayatri Chakravorty Spivak examina em seu conhecido ensaio “Can the Subaltern Speak?” (1988SPIVAK, Gayatri Chakravorty. “Can the Subaltern Speak?” Marxism and the Interpretation of Culture. Orgs. Cary Nelson e Lawrence Grossberg. Champaign, Illinois: University of Illinois Press, 1988. p. 271-313.). Coincidentemente, Nixon usa o advérbio “triplamente” ao afirmar que os países pobres africanos são “triply discounted” pelos poderes hegemônicos do “Primeiro Mundo” em decisões que afetam gravemente àqueles: “discounted as political agents, discounted as long-term casualties . . . , and discounted as cultures . . .” (Nixon, 2011, p. 2NIXON, Rob. Slow Violence and the Environmentalism of the Poor. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2011.). Em poucas palavras, o poder hegemônico procura extirpar dos grupos considerados inferiores-sejam eles países pobres da África ou a população negra brasileira-sua agência e subjetividade.

Ocupando uma posição de exclusão, as protagonistas de Olhos d’água representam o Outro para a sociedade hegemônica branca, e é a alteridade de suas personagens que fundamenta cada um desses contos; alteridade relativa, não se deve esquecer, pois a voz narrativa, na qual reconhecemos a perspectiva da própria escritora, estabelece claramente sua identificação com as personagens, compartilhando com elas essa alteridade. Estes contos aliam-se à proposta de resistência e afirmação identitária negra ou afro-brasileira constante na obra de Evaristo. Enquanto o legado escravocrata que persiste na sociedade brasileira promove o aniquilamento do corpo negro-já seja através da invisibilidade que amordaça e humilha, já seja através da violência física e o extermínio sistemático-a autora dá testemunho desse mesmo corpo discriminado, amordaçado, humilhado e violado, mas ao mesmo tempo sujeito que relembra, sonha, resiste e luta.

Devem-se apontar aqui algumas características comuns às quinze narrativas que compõem o volume Olhos d’água. Primeiramente, destaca-se o fato de que a perspectiva narrativa privilegiada é a da mulher negra e a da criança ou adolescente, sendo a maioria destes uma menina. Nos contos em que o protagonista é um menino (“Di Lixão,” “Lumbiá”) ou um homem jovem (“Ei, Ardoca,” “Os amores de Kimbá”), fica evidente a ausência-presença da mãe na narrativa e a importância dela ou de outra figura feminina para o protagonista e para o sentido de subjetividade por ele ansiado. Este aspecto remete ao tema da maternidade e ao protagonismo da mulher mãe relevantes em outros contos do volume, aspectos que serão discutidos adiante.

Outro elemento importante comum aos relatos de Olhos d’água é a presença do tropo olhos em toda sua riqueza metafórica: olhos d’água, minadouro, nascente de água, origem, raiz, mas também espelho, reflexo, visão, olhar e lágrimas. Este é um leitmotiv que acentua certos temas recorrentes nestes contos, tais como as origens e ancestralidade das personagens; suas raízes ou seu desenraizamento; o deslocamento do sujeito; a oposição entre a identidade do Eu e as máscaras sociais, entre outros. Estes temas, tais como explorados nestes relatos, estão profundamente ligados às experiências de violência, carência e vulnerabilidade vividas pelas personagens, as quais representam breves quadros da situação de crise e conflito enfrentada pela população afro-brasileira hoje.

Por fim, outro aspecto comum aos contos é o tratamento que a escritora empresta ao tempo cronológico da narrativa vis-à-vis o tempo subjetivo da protagonista. O tempo, tal como Evaristo o constrói, raramente é linear, mas sim se desacelera e se faz infinito, correndo em direção ao passado e a uma linhagem de mulheres fortes, lutadoras, mas também vitimadas, como no conto título ou em “Duzu-Querença.” Ou projeta-se em direção ao futuro e suas promessas, à esperança representada por cada criança-seja ela personagem ou a criança ainda por nascer, como em “Quantos filhos Natalina teve?”

Em cada conto, a voz narrativa, em primeira ou em terceira pessoa, oferece-nos um testemunho, e esse caráter testemunhal intensifica-se devido à identificação que existe entre autora e personagens. Evaristo é testemunha e é a contadora de histórias; ela observa, conta, diz “presente” por aqueles que não o podem fazer por si, e dessa forma afirma a importância da narrativa de ficção para o campo dos direitos humanos. Os relatos de Olhos d’água, assim como outras narrativas da escritora, aproximam-se da literatura testemunhal, posto que as experiências individuais de cada protagonista representam as experiências de uma coletividade, qual seja, a população negra brasileira.5 5 Literatura testemunhal ou, em espanhol, testimonio, como tornou-se conhecido esse gênero narrativo autobiográfico principalmente a partir da recepção crítica ao livro de Rigoberta Menchú, Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la consciência (1983). Entretanto, críticos latino-americanos já vinham elaborando uma definição teórica do gênero desde o final da década de 1960, seguindo-se à publicação de obras como Biografía de un cimarrón (1966), do antropólogo cubano Miguel Barnet. A literatura testemunhal propõe-se retratar uma situação de opressão, ao mesmo tempo em que procura resgatar a agência e subjetividade da voz narrativa e/ou das personagens retratadas (Smith e Watson, 2010, p. 282SMITH, Sidonie, e WATSON, Julia. Reading Autobiography: A Guide for Interpreting Life Narratives. 2a. ed. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010.). Embora o termo “literatura testemunhal” normalmente refira-se a narrativas não ficcionais, algumas de suas características estão presentes na ficção testemunhal de Evaristo.

Ao dar testemunho das experiências de vida das personagens, os contos de Olhos d’água representam a história com h maiúsculo a partir de um olhar íntimo sobre eventos “menores,” olhar que privilegia a perspectiva daqueles vitimados pelo poder hegemônico. Narra-se portanto a história a contrapelo, ou uma “counter-history,” segundo Paul Ricoeur. Schaeffer e Smith também assim caracterizam narrativas “coming from the margins,” ou seja, histórias que emergem “in part out of the formerly untold tales [of those at] the margins of cultural production and circulation” (Schaffer e Smith, 2004, p. 17SCHAFFER, Kay, e SMITH, Sidonie. Human Rights and Narrated Lives: The Ethics of Recognition. New York: Palgrave Macmillan, 2004. ). Assim caracteriza-se o conto “Maria,” relato em que a autora alcança grande economia de linguagem enquanto tece uma extensa rede de significados e emoções. Empregada doméstica, Maria retorna no fim do dia à casa e aos filhos, levando-lhes sobras de comida de uma festa na casa dos patrões. O tempo desacelera-se e a voz narrativa permite-nos compartir o fluxo de consciência da protagonista, seu cansaço, preocupações e expectativas. No ônibus em que viaja do bairro rico para a favela estão dois assaltantes, um deles seu ex-companheiro e pai de um de seus filhos. O reencontro dos dois desperta em Maria uma série de lembranças e sentimentos, mas, após o assalto, ele foge com o parceiro. Tão rápida como o assalto é a reação dos passageiros, violados não só pela ação dos ladrões, mas também pelo seu cansaço diário, a falta de perspectivas, a fome e a insegurança. Revoltados, voltam-se contra Maria, acusando-a de cúmplice, unidos todos pela necessidade de vingança e catarse: “Lincha! Lincha! Lincha!. . .” (Evaristo, 2015EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2015., p. 42). O tempo cronológico do assalto e o tempo interior de Maria parecem alternar-se até o final do conto e a morte violenta da personagem:

Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado e as frutas rolavam pelo chão. Será que os meninos iriam gostar de melão?

Tudo foi tão rápido, tão breve, Maria tinha saudades de seu ex-homem. Por que estavam fazendo isso com ela? . . . . Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo da mulher estava todo dilacerado, todo pisoteado.

Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia mandado um abraço, um beijo, um carinho. (Evaristo, 2015EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2015., p. 42)

Podemos imaginar aqui uma cena comum banalizada pela imprensa: o corpo morto de uma mulher negra e pobre e ninguém para velá-lo ou exigir justiça para ela. Entretanto, a voz narrativa convoca-nos a ser testemunhas comprometidas com a personagem, ao aportar à cena um tom distinto, ausente ele do retrato supostamente objetivo que a televisão apresenta ou do espetáculo imediatista oferecido pela mídia social. Esse é o tom que caracteriza o contar de histórias, a nota afetiva que envolve narrador/a, personagem, texto e audiência. Portanto, através de sua escrevivência e de um estilo narrativo que reúne precisão e poeticidade, Evaristo estabelece entre cada participante do processo narrativo uma relação de afeto e até mesmo de identificação. Assim, fica caracterizado mais uma vez o aspecto testemunhal do conto, pois tal como no testimonio, “Maria” não permite a passividade do público leitor, mas sim exige dele uma reação e uma posição de juízo frente à situação de conflito narrada.

A protagonista de “Maria” transita fragilmente entre espaços opostos: por um lado, o espaço exterior-a labuta diária e a casa da patroa, onde ela é o sujeito subalterno e humilhado, o ônibus e a rua, onde ela é o sujeito anônimo vulnerável a todo tipo de violência; e, por outro lado, o espaço interior e íntimo do seu lar, por mais pobre que esse seja, dos filhos e dos sonhos de futuro. Nesse espaço seu, que ela carrega consigo, seu papel de mãe e sua relação com os filhos concedem-lhe uma identidade que lhe é negada no espaço que a subalterniza.

As personagens negras que são mães ocupam uma posição de grande importância na obra de Evaristo e não por acaso, pois a escritora já observou a falta de representação da mulher negra como mãe na literatura brasileira. Segundo ela, a literatura e a cultura ocidental tradicionalmente caracterizam a mulher dentro de determinados parâmetros e símbolos, positivos e negativos: “. . . [numa] dialética do bem e do mal, do anjo e do demônio, cujas figuras símbolos são Eva e Maria; e [em] que o corpo da mulher se salva pela maternidade....” (EVARISTO, 2005, p. 202EVARISTO, Conceição. “Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face.” Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. X Seminário Nacional Mulher e Literatura. I Seminário Internacional Mulher e Literatura. Orgs. Nadilza Martins de Barro Moreira e Liane Schneider -. João Pessoa: Ideia; Editora da UFPB, 2005, p. 201-212.). A representação da mulher negra na literatura dita canônica obedece à repressão e exploração de seu corpo desde o período da escravidão; ademais, a ausência de personagens negras mães, representadas em sua relação com seus próprios filhos-e não tão-somente como mães-de-leite do sinhozinho, babás, empregadas, ou a mulher hiper-sexualizada-corresponderia, segundo Evaristo, a uma tentativa de “apagamento . . . . de uma matriz africana na sociedade brasileira” (EVARISTO, 2005, p. 202EVARISTO, Conceição. “Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face.” Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. X Seminário Nacional Mulher e Literatura. I Seminário Internacional Mulher e Literatura. Orgs. Nadilza Martins de Barro Moreira e Liane Schneider -. João Pessoa: Ideia; Editora da UFPB, 2005, p. 201-212.).

Protagonistas mães, o tema da maternidade e do desejo materno aparecem na maioria dos contos de Olhos d’água. O desejo e amor da mãe por seus filhos e filhas, e o desejo e anseio destes pela mãe, são uma constante e aparecem como contraponto a outro leitmotiv que percorre estes relatos: o tema do pertencimento/não-pertencimento. Em “Di Lixão,” nome do menino de rua que protagoniza o conto, a ausência materna dá origem à carência de afeto e ao sentimento de não-pertencimento que se somam ao sofrimento físico do menino, agravando-o: “Ele era uma dor só. As dores haviam se encontrado. Doía o dente. Doíam as partes de baixo. Doía o ódio” (Evaristo, 2015EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2015., p. 78). Embora o fluxo de consciência do protagonista sugira a raiva que ele sente pela mãe, fica claro também o desejo dele por ela, por um afeto que o pudesse consolar, alguém em quem pudesse se aninhar na hora da morte. Seu corpo machucado simboliza o corpo social doente, marcado pela desigualdade e o descaso; no entanto, no meio de tanta dor física sobressai a dor da solidão e da ausência materna.

Como em “Maria,” a morte do protagonista é um evento profundamente solitário: enquanto “os primeiros trabalhadores passavam apressados” (Evaristo, 2015EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2015., p. 79), Di Lixão retoma “a posição de feto,” criança aguardando “o rabecão da polícia [que] veio recolher o cadáver” (Evaristo, 2015, 80EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2015.). Em sua breve experiência de vida, ninguém nunca se importou com ele, menino de rua entre tantos outros numa calçada qualquer de uma grande cidade brasileira, estorvo enquanto vivo, monturo na hora da morte, a ser sempre evitado a todo custo. Entretanto, a autora, através da voz narrativa, o menino e reclama também a atenção dos leitores, outorgando-lhe o reconhecimento simbólico de sua existência e identidade enquanto rejeita categoricamente nossa indiferença. Em “Di Lixão,” “Maria” e outros contos que retratam a violência diária nas vidas da população afro-brasileira, a voz narrativa mantém sempre um tom sombrio, lírico, mas desprovido de sentimentalismo. A própria Evaristo afirmou: “A cada morte, nas circunstâncias em que essas se dão, fica um dilema para quem lê resolver. Não um dilema policial, mas um dilema diante da própria vida, ou melhor, um questionamento sobre o direito à vida” (Evaristo, 2014, p. 32EVARISTO, Conceição. “Nos gritos d’Oxum quero entrelaçar minha escrevivência.” Arquivos femininos: literatura, valores, sentidos. Org. Constância Lima Duarte et al. Florianópolis: Editora Mulheres, 2014, p. 25-33.). Neste comentário da autora fica registrado “o que pode a literatura”: conclamar um posicionamento por parte dos leitores, potencializando a conscientização social e a ação política.

Há nos contos de Olhos d’água uma dialética terrível, o contraponto entre esperança e desespero; vida e morte. Enquanto em contos como “Di Lixão” e “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos,” as personagens infantis têm suas vidas ceifadas pela violência do cotidiano, outros relatos terminam em uma nota de esperança que reside principalmente na criança e no potencial de realizações que o futuro poderá trazer. Neste sentido, destacam-se “Olhos d’água,” “Duzu-Querença” e “Quantos filhos Natalina teve?” Nestes, não só a maternidade aparece como tema central, mas também a evocação de uma linhagem feminina definida pela força e resistência. Em contraponto à literatura hegemônica branca, em que a mulher afrodescendente é objeto e não sujeito do discurso, e sua representação é feita “ainda ancorada nas imagens de seu passado escravo” (EVARISTO, 2005, p. 202EVARISTO, Conceição. “Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face.” Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. X Seminário Nacional Mulher e Literatura. I Seminário Internacional Mulher e Literatura. Orgs. Nadilza Martins de Barro Moreira e Liane Schneider -. João Pessoa: Ideia; Editora da UFPB, 2005, p. 201-212.), a autora resgata e privilegia a figura materna negra. Essa decisão autoral tem grande significação histórica e política: por um lado, era comum no período da escravidão que as famílias trazidas como escravas fossem separadas e os filhos arrancados a suas mães; e, por outro lado, como sequela da escravidão e da hipercriminalização do homem negro na sociedade brasileira, não é incomum que seja a mulher negra o único sustentáculo econômico e emocional da família. Neste sentido, Evaristo afirma: “. . . a família representou para a mulher negra uma das maiores formas de resistência e de sobrevivência. . . . Mães reais ou simbólicas . . . . foram e são elas, muitas vezes sozinhas, as grandes responsáveis não só pela subsistência do grupo, assim como pela manutenção da memória cultural” (EVARISTO, 2005, p. 203EVARISTO, Conceição. “Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face.” Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. X Seminário Nacional Mulher e Literatura. I Seminário Internacional Mulher e Literatura. Orgs. Nadilza Martins de Barro Moreira e Liane Schneider -. João Pessoa: Ideia; Editora da UFPB, 2005, p. 201-212.).

Em “Olhos d’água,” conto que se acerca muito à experiência autobiográfica da autora, a voz narrativa ressalta a imensa significância não só de sua mãe como também de tias e outras parentas e de toda uma linhagem feminina que remonta à África: “. . . já naquela época [a infância] eu entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a vida com as próprias mãos, palavras e sangue” (Evaristo, 2015EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2015., p. 18). Ao longo do conto, a narradora-protagonista tenta relembrar a cor dos olhos da mãe, e esse esforço por lembrar-se traz-lhe à memória eventos da infância, a fome que a família passava e, principalmente, o amor, o carinho e as brincadeiras da mãe tentando distrair as filhas e fazê-las esquecer as panelas e estômagos vazios. O afeto das personagens contagia a narrativa, construída a partir de uma linguagem poética que, entretanto, não tenta dissimular a privação em que viviam. As várias tentativas da narradora de recordar os olhos da mãe expressam-se em forma de refrão, como se todo o texto fosse um longo poema: “de que cor eram os olhos da minha mãe?” (Evaristo, 2015, p. 15, 16,17EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2015.). A resposta vem ao final do conto, quando a narradora-protagonista relembra: “A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum” (Evaristo, 2015, p. 18-19EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2015.). Fica caracterizada, desse modo, a descendência direta da orixá afro-brasileira. Associada à maternidade e fertilidade, mas também à sexualidade feminina, Oxum representa características fortes e positivas, opostas às imagens estereotipadas e reducionistas da mulher negra criadas pelo discurso branco hegemônico. “Olhos d’água” representa assim uma linhagem de mulheres fortes que continua através da própria narradora e de sua filha, que por sua vez lhe pergunta: “Mãe, qual é a cor tão úmida dos seus olhos?” (Evaristo, 2015, p. 19EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2015.).

Conceição Evaristo é hoje a escritora negra brasileira de maior êxito crítico e editorial, e o espaço conquistado por ela é relevante não só porque faz jus à realização estética de sua obra, mas também pelo que esta diz respeito à questão dos direitos humanos da população negra brasileira. A produção, circulação e recepção de uma obra literária formam parte das condições que possibilitam ou restringem o testemunho e a narração de histórias de vida e sua circulação através do tempo e do espaço (Schaffer e Smith, 2004, p. 5SCHAFFER, Kay, e SMITH, Sidonie. Human Rights and Narrated Lives: The Ethics of Recognition. New York: Palgrave Macmillan, 2004. ), permitindo a difusão de histórias que precisam ser contadas, de vozes que devem ser ouvidas. Aqui trata-se não só da questão de se o subalterno pode ou não falar, mas também do problema de acesso ou não aos canais de divulgação da produção literária e cultural.6 6 Sobre esta questão em relação ao âmbito brasileiro, há que apontar-se a pesquisa que Regina Dalcastagnè vem fazendo sobre a presença/ausência de vozes de minorias étnicas e socioeconômicas nas páginas da nossa literatura. Em ensaio de 2016, Dalcastagnè examina também o problema da falta de acesso aos canais editoriais por parte de escritores e escritoras negros ou das periferias. Ver “A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004 (Estudos de literatura brasileira contemporânea 26, 2005, p. 13-71) e “Como folhas espalhadas pelo vento: o local na literatura brasileira contemporânea” (Romance Quartely 63:4, 2016. Número especial sobre literatura brasileira. Org. Cristina Ferreira Pinto-Bailey, p. 167-73) sobre a situação do mercado editorial brasileiro no momento atual.

Também Joel Rufino dos Santos discute as implicações políticas relacionadas à circulação da produção artística (incluindo a literária), e o conceito de cultura como circuito cujo elemento principal é a comunicação (Rufino dos Santos, 2004, p. 201SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do social. Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. São Paulo: Global, 2004. ). Segundo ele, o objeto de arte, o produto cultural, potencializa uma comunicação que frequentemente se faz impossível no plano sociopolítico, simplesmente porque é recusada: enquanto preferimos esquivar-nos do menino de rua esmolambado e sujo, a narrativa de ficção nos envolve e nos leva a encarar uma alteridade que se apresenta em toda sua dimensão, ao mesmo tempo feia e bela, repugnante e atraente. Assim, a relevância da obra de Evaristo é tanto estética e formal como cultural e política, pois através dela a autora expõe e comunica uma realidade que silencia e aniquila o indivíduo negro e pobre, realidade essa normalmente mascarada e ignorada pela sociedade hegemônica branca. Por outro lado, encontra-se aí também a expressão de uma alteridade que resiste e afirma-se como sujeito. Sua obra exemplifica, portanto, aquilo que Rita Felski descreve como “[a unique] openness to pure otherness, that is equipped with momentous political implications” (FELSKI, 2008, p. 5FELKSI, Rita. Uses of Literature. Oxford, Inglaterra: Blackwell, 2008.) e corrobora afirmação de Alzira Rufino: “comunicar é politizar” (em Luana dos Santos, 2010, p. 112SANTOS, Luana Diana dos. “‘Comunicar é politizar’: a Revista Eparrei e a participação feminina na luta contra o racismo no Brasil.” Falas dos outros - literatura, gênero, etnicidade. Orgs. Constância Lima Duarte, Eduardo de Assis Duarte e Marcos Antônio Alexadnre. Belo Horizonte: Nandyala; NEIA-Núcleo de Estudos da Alteridade, 2010. p. 109-116.).

Mas o que pode afinal a literatura? Tal pergunta ramifica-se no questionamento sobre o papel e limites do fazer literário e do fazer crítico, e sobre o ponto onde a literatura e a ação social e política podem ou não convergir. É esta uma questão antiga, e enquanto alguns poderiam alertar para os “perigos” de entender-se a literatura como instrumento político ou ideológico, um grande número de escritores, críticos e teóricos reconhecem que “Writing, whether scholarly or creative, [is] a form of action” (Bammer, 2018, p. 130BAMMER, Angelika. Introduction to “How We Write Now.” Theories and Methodologies. PMLA v. 133.1, 2018, p. 124-31.). Sobre isto, Evaristo não deixa dúvidas, ao concordar que a literatura pode servir de instrumento contra o racismo e a desigualdade social, “. . . [concorrendo] para relações mais humanas entre as pessoas” (Evaristo, 2017, p. 8EVARISTO, Conceição. Entrevista a Ademir Pascale. Conexão literatura v. 24, 2017, p. 5-10. http://revistaconexãoliteratura.com.br. Acessado 5 junho 2017.
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).

Assim, o que pode a literatura em tempos de conflito e, mais especificamente, frente a situações em que os direitos humanos de todo um segmento da população são violentados? A literatura de ficção apresenta características próprias que se adequam particularmente bem à representação de situações limítrofes, catastróficas ou de crise, como as vividas pelas protagonistas dos contos de Olhos d’água. Ao mesmo tempo, porém, fica claro que a atuação social e política do texto literário só se realiza completamente através do leitor ou leitora, daquele indivíduo que vem complementar a tríade antes mencionada produção-circulação-recepção; a tríade, enfim, sobre a qual se estrutura a literatura como comunicação e a comunicação como politização. Ao abordar o problema dos direitos humanos da população negra brasileira-ou seja, a opressão econômica, marginalização social, racismo, violência judicial e extrajudicial-a ficção de Evaristo retrata uma realidade traumática, tecendo experiências de vida, memória e ficção. Neste tecido encontra-se a composição de sua escrevivência e, se falamos hoje sobre verdade e reconciliação ao discutirmos a literatura pós-ditadura, devemos aqui falar de verdade e reparação, reparação que ativistas negros brasileiros têm reclamado e começam lentamente a alcançar, e que na literatura inicia-se no ato de reparar, observar, notar e anotar, memorizar, testemunhar. Nisto reside tanto o caráter de resistência da literatura de Conceição Evaristo como seu potencial transformador.

REFERÊNCIAS

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  • ANDREWS, Chris; MCGUIRE, Matt, orgs. Post-Conflict Literature: Human Rights, Peace, Justice Taylor & Francis Group, 2016. http:/Ebookcentral.proquest.com/lib/wlu Acessado 21 abril 2017.
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  • BAMMER, Angelika. Introduction to “How We Write Now.” Theories and Methodologies. PMLA v. 133.1, 2018, p. 124-31.
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  • EVARISTO, Conceição. “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita.” Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces, org. Marcos Antônio Alexandre. Belo Horizonte: Mazza, 2007, p. 16-21.
  • EVARISTO, Conceição. Entrevista a Ademir Pascale. Conexão literatura v. 24, 2017, p. 5-10. http://revistaconexãoliteratura.com.br Acessado 5 junho 2017.
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  • SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do social. Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres São Paulo: Global, 2004.
  • SANTOS, Luana Diana dos. “‘Comunicar é politizar’: a Revista Eparrei e a participação feminina na luta contra o racismo no Brasil.” Falas dos outros - literatura, gênero, etnicidade Orgs. Constância Lima Duarte, Eduardo de Assis Duarte e Marcos Antônio Alexadnre. Belo Horizonte: Nandyala; NEIA-Núcleo de Estudos da Alteridade, 2010. p. 109-116.
  • SCHAFFER, Kay, e SMITH, Sidonie. Human Rights and Narrated Lives: The Ethics of Recognition New York: Palgrave Macmillan, 2004.
  • SMITH, Sidonie, e WATSON, Julia. Reading Autobiography: A Guide for Interpreting Life Narratives 2a ed. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010.
  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. “Can the Subaltern Speak?” Marxism and the Interpretation of Culture Orgs. Cary Nelson e Lawrence Grossberg. Champaign, Illinois: University of Illinois Press, 1988. p. 271-313.
  • 1
    Sobre a representação da mulher negra na literatura brasileira, ver Cristina Ferreira-Pinto, “Female Body, Male Desire,” em Gender, Discourse, and Desire in Twentieth-Century Brazilian Women’s Literature (West Lafayette, Indiana: Purdue University Press, 2004), 8-37.
  • 2
    “Olhos d’água,” relato que abre o volume, é narrado em primeira pessoa, enquanto que em “A gente combinamos não morrer,” a voz narrativa em terceira pessoa passa a palavra aos personagens—Bica, Dorvi e Dona Esterlinda—que se alternam externando seus pensamentos em primeira pessoa. Já em “Ayoluwa, alegria do nosso povo,” último conto do livro, a voz narrativa fala por uma coletividade da qual faz parte, relatando os acontecimentos do ponto de vista de “nós.”
  • 3
    Consideramos “memória individual” como o arquivo de recordações de eventos e experiências pessoais que o sujeito leva consigo e que informam a constituição de seu sentido de identidade ou, em outras palavras, de sua consciência de si. “Memória coletiva” é a memória pública, aquela atribuída a um grupo ou sociedade, segundo Maurice Halbwachs. Entretanto, como conclui Paul Ricouer, a memória individual e a coletiva estão profundamente imbricadas, pois o sujeito recorda não só para si, mas também para e com o outro (aqueles próximos a nós; o grupo social; a comunidade): recordar, rememorar é sempre co-memorar, ou seja, rememorar com o outro. Ver Paul Ricouer, Memory, History, Forgetting (Chicago: University of Chicago Press, 2004), em particular o capítulo três, “Personal Memory, Collective Memory.”
  • 4
    “Violência lenta” (“slow violence”), segundo Rob Nixon, é “a violence that occurs gradually and out of sight, a violence of delayed destruction . . . an attritional violence that is typically not viewed as violence at all” (Nixon, 2011, p. 2NIXON, Rob. Slow Violence and the Environmentalism of the Poor. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2011.). Nixon refere-se ao impacto social e econômico da destruição do meio-ambiente sobre as camadas populacionais mais pobres; entretanto, tal como definido pelo crítico, esse conceito aplica-se também à opressão e destruição da população negra brasileira ao longo dos séculos, assim como à percepção e aceitação desse processo pelos segmentos da população que se identificam como “brancos.”
  • 5
    Literatura testemunhal ou, em espanhol, testimonio, como tornou-se conhecido esse gênero narrativo autobiográfico principalmente a partir da recepção crítica ao livro de Rigoberta Menchú, Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la consciência (1983). Entretanto, críticos latino-americanos já vinham elaborando uma definição teórica do gênero desde o final da década de 1960, seguindo-se à publicação de obras como Biografía de un cimarrón (1966), do antropólogo cubano Miguel Barnet.
  • 6
    Sobre esta questão em relação ao âmbito brasileiro, há que apontar-se a pesquisa que Regina Dalcastagnè vem fazendo sobre a presença/ausência de vozes de minorias étnicas e socioeconômicas nas páginas da nossa literatura. Em ensaio de 2016, Dalcastagnè examina também o problema da falta de acesso aos canais editoriais por parte de escritores e escritoras negros ou das periferias. Ver “A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004 (Estudos de literatura brasileira contemporânea 26, 2005, p. 13-71) e “Como folhas espalhadas pelo vento: o local na literatura brasileira contemporânea” (Romance Quartely 63:4, 2016. Número especial sobre literatura brasileira. Org. Cristina Ferreira Pinto-Bailey, p. 167-73) sobre a situação do mercado editorial brasileiro no momento atual.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2020
  • Aceito
    04 Mar 2021
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