Acessibilidade / Reportar erro

A “tecnificação” da “alma” 1 1 “Tecnificação” e “alma” ( Seele na versão em alemão) são os termos utilizados pelo próprio Anders. e a bomba: apontamentos sobre a correspondência entre Günther Anders e Claude Eatherly

The “technification” of the “soul” and the bomb: notes on the correspondence between Günther Anders and Claude Eatherly

RESUMO

Explosões atômicas e radiações - os grandes temores da Guerra Fria repropostos com frequência pela literatura e pelo cinema - são temas deste ensaio inspirado pela leitura de Burning conscience (1989; [1961]), coletânea de cartas trocadas entre o filósofo Günther Anders e Claude Eatherly, um dos pilotos responsáveis pela destruição de Hiroshima. Revisito as reflexões de Elsa Morante, João Guimarães Rosa, Albert Camus e Günther Anders, entre outros, sobre as ligações entre tecnologia de guerra e mutações da “alma” humana. A parte central do texto concentra-se na troca de cartas entre Anders e Eatherly e analisa características estilísticas e temáticas dessa correspondência. A parte final do ensaio propõe alguns pontos de reflexão (sobre retórica nacionalista, o tema da guerra na educação, testemunho dos vitimários e tema do perdão) instigados pela leitura de Burning conscience.

Palavras-chave:
bomba atômica; guerra; cartas; literatura e tecnologia; Günther Anders; Claude Eatherly

ABSTRACT

Atomic explosions and radiation - the main fears during the Cold War, often depicted in literature and cinema - are the subject of this essay inspired by Burning conscience (1989; [1961]), a collection of letters exchanged between the philosopher Günther Anders and Claude Eatherly, one of the pilots responsible for the destruction of Hiroshima. I review reflections on the links between technology of war and mutations of the human “soul” proposed by Elsa Morante, João Guimarães Rosa, Albert Camus and Günther Anders, among others. The central part of my text focuses on the exchange of letters between Anders and Eatherly and analyzes stylistic and thematic characteristics of these texts. The final part of the essay proposes points of reflection (on nationalist rhetoric, the topic of war in education, testimonies of executioners and the theme of forgiveness) prompted by the reading of Burning Conscience.

Keywords:
atomic bomb; war; letters; literature and technology; Günther Anders; Claude Eatherly

À memória do médico Gino Strada (1948-2021), fundador de ‘Emergency’ Foi obscenamente dito que é preciso ter um conflito. 2 2 “È stato oscenamente detto che di un conflitto c’è bisogno” (tradução nossa). Todas as traduções de frases de I sommersi e i salvati neste artigo são nossas. ( LEVI, 2007[1986]LEVI, Primo. I sommersi e i salvati. Torino: Einaudi, 2007 [1986]. , p. 164).

A ameaça atômica

O encontro público de uma testemunha apresenta um roteiro previsível: a audiência tende a formular as mesmas perguntas. É essa a impressão partilhada por Primo Levi em uma secção de I sommersi e i salvati (1986LEVI, Primo. I sommersi e i salvati. Torino: Einaudi, 2007 [1986].; em português Os afogados e os sobreviventes), livro fundamental de reflexão sobre Auschwitz e suas repercussões éticas, psicológicas, e existenciais na consciência de um sobrevivente. Uma dessas questões ineludíveis colocadas pela audiência, ligada ao clima de ódio antissemita que gradualmente se ia fortalecendo na Europa nos anos antecedentes à Segunda Guerra Mundial, é “por que não fugiram antes?” 3 3 “perché non siete scappati prima?” ( LEVI, 2007[1986]LEVI, Primo. I sommersi e i salvati. Torino: Einaudi, 2007 [1986]. , p. 131, grifo do autor). Essa pergunta é, para Primo Levi, reveladora de uma grande miopia. Para se explicar melhor, Levi desafia ouvintes e leitores a considerar o contexto da Guerra Fria - estamos nos anos 1980 quando ele afirma isso - e o clima de ameaça atômica que a carateriza. “Quão seguros nós, seres humanos da virada do século e do milénio, vivemos? E, principalmente, nós europeus?” ( LEVI, 2007 [1986]LEVI, Primo. I sommersi e i salvati. Torino: Einaudi, 2007 [1986]., p. 135). 4 4 “Quanto sicuri viviamo noi, uomini della fine del secolo e del millennio? E, piú in particolare, noi europei?” Porque cidadãos europeus dos anos 1980 não tentaram escapar para outros continentes se o perigo atômico para a Europa já fora anunciado e parecia iminente? Hesitação e incredulidade são componentes do ser humano. Levi quer mostrar toda a dificuldade de agir, de abandonar a própria vida para se aventurar para caminhos incertos. “A ameaça”, continua Levi, “[...] é diferente da dos anos trinta: menos próxima, mas mais ampla; ligada, segundo alguns, a um demonismo da História, novo, ainda indecifrável, mas desligada (até agora) do demonismo humano. É dirigida contra todos e, por isso, particularmente ‘inútil’” ( LEVI, 2007 [1986]LEVI, Primo. I sommersi e i salvati. Torino: Einaudi, 2007 [1986]., p. 135). 5 5 “La minaccia è diversa da quella degli anni ’30: meno vicina ma piú vasta; legata, secondo alcuni, ad un demonismo della Storia, nuovo, ancora indecifrabile, ma slegata (finora) dal demonismo umano. È puntata contro tutti, e quindi particolarmente ‘inutile’.” Levi menciona a paranoia atômica do período de Guerra Fria para provocar uma reação emocional na audiência e solicitar uma reflexão sobre a imprevisibilidade do futuro em qualquer época.

É importante considerar como “a bomba” foi, desde os anos 1940 do século passado, tema de preocupação recorrente para filósofos, literatos e intelectuais. Hiroshima e Nagasaki são paradigmas: hoje, como ontem, a simples nomeação deles basta para evocar a catástrofe atômica (6 e 9 de agosto 1945). Bertrand Russell, Günther Anders, Theodor W. Adorno, Max Horkheimer e Albert Camus são apenas cinco entre os eminentes pensadores que expressaram horror e preocupação sobre a sofisticação da tecnologia de guerra e sobre o futuro do planeta. Para esses pensadores, a bomba é o resultado de uma mentalidade que ameaça o mundo, em que instrumentos tecnológicos são cada vez mais vistos como a finalidade. A técnica, os vários gadgets tecnológicos, alimentam uma mentalidade, endereçam para uma rápida e eficiente “solução” de questões e dilemas humanos, perdendo de vista uma postura reflexiva e ética frente à vida. O perigo da veneração da tecnologia levaria, segundo Adorno e Horkheimer, para um “novo gênero de barbárie”, para uma “regressão” ( ADORNO; HORKHEIMER, 2010[1947]ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialettica dell’illuminismo. Tradução de Renato Solmi. Torino: Einaudi, 2010 [1947]. 324 p. , p. 3-5). O processo de transformação do mundo em indústria já está em marcha na modernidade ( ADORNO; HORKHEIMER, 2010 [1947]ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialettica dell’illuminismo. Tradução de Renato Solmi. Torino: Einaudi, 2010 [1947]. 324 p.). Camus reforça essa mensagem afirmando que “As filosofias que colocam a eficiência em cima a todos os valores são, de fato, filosofias de morte” ( CAMUS, 2020CAMUS, Albert. Conferenze e discorsi (1937-1958). Milano: Bompiani, 2020. , p. 120). 6 6 Original em francês. A minha tradução para português está baseada na edição italiana de Conferenze e discorsi (1937-1958): “Le filosofie che pongono l’efficienza in cima a tutti i valori sono infatti filosofie di morte.” E “eficiência” é certamente uma das palavras chaves do nosso tempo.

A bomba atômica, na sua cruel e rápida destrutividade, foi sem dúvida um instrumento “eficiente.” Autores como Elsa Morante, Salvatore Quasimodo, Eugenio Montale, Vinicius de Moraes, Gregory Corso, Inger Christensen, Wisława Szymborska, Kenzaburō Ōe, José Saramago têm escrito sobre o horror pelas explosões atômicas de Hiroshima e Nagasaki. Na famosa palestra Pró ou contra a bomba atômica de 1965, Elsa Morante afirmava que “[…] a humanidade contemporânea experimenta a tentação oculta de se desintegrar” ( MORANTE, 2017[1987]MORANTE, Elsa. Pró ou contra a bomba atômica. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2017 [1987]. , p. 143), acrescentando que “[...] as famosas bombas […] não são a causa potencial da desintegração, mas a manifestação necessária desse desastre já ativo em nossa consciência” ( MORANTE, 2017 [1987]MORANTE, Elsa. Pró ou contra a bomba atômica. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2017 [1987]., p. 144). Existiria então uma tendência que dirige o ser humano para a sua própria “desintegração?”. Morante acreditava, “freudianamente”, nisso. Contra esse caminho da aniquilação, a arte tem, para Morante, o potencial de ser “ o contrário da desintegração […]” ( MORANTE, 2017 [1987]MORANTE, Elsa. Pró ou contra a bomba atômica. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2017 [1987]., p. 146, grifos do autor). Os escritores, em particular, seriam as “testemunhas” desse “contrário” ( MORANTE, 2017 [1987]MORANTE, Elsa. Pró ou contra a bomba atômica. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2017 [1987]., p. 152). Os autores que ignoram esta ameaça seriam, para Morante, “cúmplices otimistas” e “um péssimo gênero de escreventes” ( MORANTE, 2017 [1987]MORANTE, Elsa. Pró ou contra a bomba atômica. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2017 [1987]., p. 159). 7 7 A tradução do texto de Elsa Morante é de Davi Pessoa Carneiro.

Eugenio Montale ([1975]MONTALE, Eugenio. È ancora possibile la poesia. The Nobel Prize [1975]. Disponível em: Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/1975/montale/25109-eugenio-montale-nobel-lecture-1975/ . Acesso em: 8 jan. 2022.
https://www.nobelprize.org/prizes/litera...
), no seu discurso de aceitação do Prémio Nobel “Ainda é possível a poesia” 8 8 “È ancora possibile la poesia” (tradução nossa). menciona a bomba atômica como “O fruto mais maduro da eterna árvore do mal”. 9 9 “il frutto più maturo dell’eterno albero del male” (tradução nossa). Os poetas Vinicius de Moraes (1954MORAES, Vinicius de. Rosa de Hiroshima. Vinicius de Moraes, 1954. Disponível em: Disponível em: https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/rosa-de-hiroxima . Acesso em: 9 jan. 2022.
https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-b...
) (“Rosa de Hiroshima”), Salvatore Quasimodo (2017[1946]QUASIMODO, Salvatore. Uomo del mio tempo. In: GATTO, Alfonso. Tutte le poesie. Milano: Oscar Mondadori, 2017 [1946]. )(“Uomo del mio tempo”), Gregory Corso ([1958CORSO, Gregory. “Bomb”. Litkicks. [1958]. Disponível em: Disponível em: https://www.litkicks.com/Texts/Bomb.html . Acesso em: 10 jan. 2022.
https://www.litkicks.com/Texts/Bomb.html...
]) (“Bomb”), Wisława Szymborska (2012SZYMBORSKA, Wisława. Scritto in un albergo [Escrito num albergue]. In: SZYMBORSKA, Wisława. La gioia di scrivere: Tutte le poesie (1945-2009). Milano: Adelphi, 2012. ) (“Escrito num albergue”) deixaram versos incisivos sobre esse tema. Inger Christensen, em Alphabet (1981CHRISTENSEN, Inger. Alphabet. Tradução de Susanna Nied. New York: New Directions, 2001 [1981]. ), se descreve no ato de descascar batatas na cozinha. De repente a memória de Hiroshima e Nagasaki quebra a normalidade doméstica dos gestos para deixar espaço à vertigem da lembrança da verdade histórica: “A bomba atômica existe”. Christensen menciona os filhos da geração atingida diretamente pelas bombas e as consequências nos corpos “moribundos” deles. Na crônica “A nova Verónica” de Deste mundo e do outro, José Saramago (2018[1971]SARAMAGO, José. A nova Verónica. In: SARAMAGO, José. Deste mundo e do outro. Porto: Porto Editora, 2018 [1971]. p. 145-146. ) imagina seres alienígenas visitando o planeta Terra e descobrindo a “sombra de um homem” num muro de Hiroshima. “O homem que ali estava absorveu as radiações como uma esponja e serviu de anteparo à onda calorífica que foi chocar contra o muro.” O que ficou do homem, da sua “pequena alegria,” de sua “profunda e irremediável dor” é apenas um resto que faz pensar nas “oportunidades perdidas” pela humanidade ( SARAMAGO, 1971SARAMAGO, José. A nova Verónica. In: SARAMAGO, José. Deste mundo e do outro. Porto: Porto Editora, 2018 [1971]. p. 145-146., p. 146).

O escritor contemporâneo mais engajado com o tema da destruição atômica é o romancista japonês Kenzaburō Ōe, autor de Hiroshima notes, uma coletânea de reportagens e ensaios sobre os efeitos da catástrofe. Ōe (1996ŌE, Kenzaburō. Hiroshima Notes. Tradução de David L. Swain e Toshi Yonezawa. New York: Grove Press, 1996. ) entrevista sobreviventes e reflete sobre a luta com as palavras que substanciam o relato deles. Ōe (1996ŌE, Kenzaburō. Hiroshima Notes. Tradução de David L. Swain e Toshi Yonezawa. New York: Grove Press, 1996. ) nota como nenhuma verbalização do evento é definitiva, e como falta sempre algum aspecto: o sobrevivente quer contar de novo, recomeçar, corrigir. Ele escreve amargamente “Suspeito que os homens que planejaram a bomba atômica [...] confiaram demasiado na força humana de seu inimigo para lidar com o inferno que se seguiria ao lançamento da bomba atômica” ( ŌE, 1996ŌE, Kenzaburō. Hiroshima Notes. Tradução de David L. Swain e Toshi Yonezawa. New York: Grove Press, 1996. , p. 116). 10 10 “I suspect that the A-bomb planners […] trusted too much in the enemy’s own human strength to cope with the hell that would follow the dropping of the atomic bomb” (tradução nossa da versão inglesa de Hiroshima notes). O que a bomba atômica trouxe para a História humana foi algo desconcertante, muito além do preparo psicológico do ser humano.

Essa lista (mínima) de autores que enfrentaram o tema da destruição atômica partilham um ponto: a bomba é o resultado de uma deriva da técnica (e da tecnologia). É esse um tema relegado no passado? A bomba não ficou como peça de antiquário no nosso imaginário. Nas últimas décadas, a bomba atômica (ou o distinto, mas relacionável, tema da contaminação radioativa derivada de explosões em centrais nucleares) deu origem a uma produção cultural relevante, e não apenas literária. Pense-se, por exemplo, no cinema: La rabbia (1963LA RABBIA. Direção: Pier Paolo Pasolini, Giovannino Guareschi. Produção: Gastone Ferranti. Intérpretes: Giorgio Bassani, Renato Guttuso, Carlo Romano, et al. Roteiro: Giovannino Guareschi, Pier Paolo Pasolini. 1963. 1 DVD (104 min), son., p.&b.), de Pier Paolo Pasolini, Dr. Strangelove (1964DR. STRANGELOVE OR: How I learned to stop worrying and love the bomb. Direção: Stanley Kubrik. Produção: Stanley Kubrik. Intérpretes: Peter Sellers, George C. Scott, Sterling Hayden, et al. Roteiro: Stanley Kubrick, Terry Southern, Peter George. Columbia Pictures Corp., 1964. 1 DVD (93 min), son., p.&b.), de Stanley Kubrick, Silkwood (1983SILKWOOD. Direção: Mike Nichols. Produção: Michael Hausman, Mike Nichols. Intérpretes: Meryl Streep, Kurt Russel, Cher, et al. Roteiro: Nora Ephron, Alice Arlen. ABC Motion Pictures, 1983. 1 DVD (131 min), son., color.), de Mike Nichols, o episódio pós-apocalítico “Shelter Skelter” da série Twilight Zone (1987), Dreams (1990DREAMS. Direção: Akira Kurosawa. Intérpretes: Akira Terao, Mitsuko Baisho, Toshie Negishi, et al. Roteiro: Akira Kurosawa. 1990. 1 DVD (119 min), son., color. ), de Akira Kurosawa, o manga Hidashi no Gen, de Keiji Nakazawa (1973-1987)NAKAZAWA, Keiji. Hidashi no Gen. [ S. l.]: [ S. n.], 1973-1987., entre outros. A memória do desastre atômico voltou a ser reatualizada nos últimos anos pelas ameaças de bombardeamento atômico prometido pelo déspota da Coréia do Norte Kim Jong-um e pelo governo da Russia, país invasor da Ucrânia (2022). Numa entrevista concedida ao suplemento “Robinson” do diário italiano “La Repubblica” (16 de julho 2022FRAIOLI, Luca. “Giorgio Parisi. Gli scienziati possono fermare la guerra.” Entrevista em Robinson, suplemento de La Repubblica, 16 jul. 2022. ), o físico prémio Nobel Giorgio Parisi menciona como o “Tratado de não proliferação de armas nucleares” de 1968 foi só parcialmente respeitado; a eliminação completa das bombas atómicas pelas grandes potências continua sendo uma utopia. A ameaça de um novo poderoso arsenal militar atômico e o debate acerca da segurança das centrais nucleares despertam alarmas periodicamente. Qual pode ser a contribuição crítica da literatura e da reflexão escrita em sentido mais amplo? Além da descrição das cenas de explosão e de contaminação, além da advertência para o futuro da humanidade, pode um texto escrito oferecer novos instrumentos de reflexão sobre a bomba? O conjunto de cartas entre um dos pilotos responsáveis pelo bombardeamento de Hiroshima, o cidadão norte-americano Claude Eatherly, e o filósofo Günther Anders é um inesquecível documento para pensar a catástrofe.

A “tecnificação” da alma

Burning conscience não é apenas um documento sobre os fatos, sobre as motivações que levaram os Estados Unidos a desencadear dois gigantescos infernos atômicos no Japão na fase terminal do segundo conflito mundial. As bombas que massacraram as populações civis de Hiroshima e Nagasaki - resultado de um “prodigioso salto tecnológico” fruto da colaboração dos mais eminentes físicos nucleares, destinado a ser utilizado para justificar as enormes despesas materiais da sua fabricação ( VIOLA, 2000VIOLA, Paolo. Storia moderna e contemporanea. Vol. IV. Il Novecento. Torino: Einaudi, 2000., p. 239) - atormentaram a consciência do piloto Eatherly para o resto da vida dele. Não se pense numa platitude: outros militares norte-americanos que tinham participado do evento se conformaram no papel de heróis nacionais.

Num texto introdutório a Burning conscience escrito por Robert Jungk, “O efeito de ‘ação retardada’ dessas armas de destruição de massa não é, como reconhecido, de natureza física, mas moral e mental” 11 11 “The ‘delayed action effect’ of these weapons of mass destruction is, admittedly, not of a physical, but rather of a moral and mental nature” (tradução nossa). Todas as traduções do inglês para português do livro Burning conscience são nossas. ( JUNGK, 1989JUNGK, Robert. Foreword. In: ANDERS, Günther; EATHERLY, Claude. Burning conscience. New York: Paragon House, 1989. p. xi-xxiii., p. xi). De regresso para os Estados Unidos, e celebrado publicamente, Eatherly sente toda a gravidade humana e histórica do seu gesto (“Eu era o comandante do avião líder chamado Straight Flush12 12 “I was the commander of the lead plane, named the Straight Flush.” escreverá numa carta, p. 80), e, animado por um desejo de autopunição, começa a praticar atos criminosos que o levariam preso e internado num hospital psiquiátrico em Waco, no Texas. O filósofo alemão Günther Anders, já muito ativo na reflexão teórica sobre a bomba atômica e engajado em campanhas de sensibilização antimilitar, informado sobre o estranho caso do piloto Eatherly, decide enviar-lhe uma carta (3 junho 1959): “O que poderia acontecer amanhã connosco, já aconteceu na realidade com você” escreve Anders para Eatherly, “[...] nós podemos aprender com você, e somente com você, o que seria de nós se tivéssemos sido você, se fôssemos você no futuro” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 1-2). 13 13 “What could happen to us tomorrow, has actually happened to you. [...] we can learn from you, and only from you, what would become of us if we had been you, if we would be you.”

Retoricamente bem construída - o filósofo anula de imediato qualquer barreira existencial e sociocultural entre si e o piloto (Eatherly é exatamente “um de nós”, um “irmão”, um “mestre”) - e animada por um espírito pacifista, a primeira carta enviada por Anders não oferece nem “perdão” nem consolação para Eatherly. Para Anders, carregar todo o peso da culpa pela monstruosidade cometida no Japão é a única possibilidade digna para o piloto: “Você está tentando continuar sua vida como aquele que cometeu isso. E é isso que nos consola” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 4, grifos do autor). 14 14 “You are trying to go on as the one who has done it. And that is what consoles us.” A essa primeira carta, seguirão a primeira resposta escrita por Claude Eatherly. A correspondência entre o piloto e o filósofo vai continuar nos dois anos seguintes.

Nessa relação epistolar, a “alma” do sujeito contemporâneo (pós-bélico) é colocada sob o refletor. Como se chegou a utilizar uma arma tão radical? Como entender a execução de uma ordem tão insensata por parte dos pilotos? Anders traça uma progressão histórica: algo aconteceu a priori dentro do ser humano ocidental com um avanço tecnológico cada vez mais sofisticado e onipresente. Poderíamos resumir os três estágios da nova transformação antropológica propostos por Anders:

O pensamento “eficiente”, a linguagem repetitiva, os avanços tecnológicos (aceitados acriticamente) modificaram o ser humano

A guerra, por consequência, se transformou, tornando-se também mais “eficiente”

A eficiência da guerra se traduziu em asséptica indiferença em relação à dor das vítimas

Anders fala de “tecnificação do nosso ser” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 1). 15 15 “technification of our being” “Não temos que lutar só contra a maldade, mas contra a estupidez também, no sentido de falta de fantasia. Esta é a nossa tarefa: despertar e educar a capacidade de imaginação das outras pessoas” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 63). 16 16 “It is not only meanness which we have to fight, but also stupidity, in the sense of lack of fantasy. Here lies our task; to awaken and to educate other people’s capacity of imagination.” Como vimos, Elsa Morante também considerava a bomba a “manifestação necessária” e extrema de um processo em curso a nível profundo no homem ocidental. O ponto de partida é a mentalidade, o que aconteceu dentro do pensamento, por etapas. Na Dialética do iluminismo (1944), Adorno e Horkheimer, referências teóricas centrais para pensar os riscos de uma racionalidade desprovida de sensibilidade e de ética, tinham desvendado novas formas de “barbárie” ( ADORNO; HORKHEIMER, 2010[1947]ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialettica dell’illuminismo. Tradução de Renato Solmi. Torino: Einaudi, 2010 [1947]. 324 p. , p. 3) e de “regressão” ( ADORNO; HORKHEIMER, 2010 [1947]ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialettica dell’illuminismo. Tradução de Renato Solmi. Torino: Einaudi, 2010 [1947]. 324 p., p. 5) escondidas no domínio absoluto do cálculo e da eficiência.

Contistas e romancistas como João Guimarães Rosa e o italiano Giuseppe Bonaviri tentaram denunciar e contrastar, através de uma língua literária cintilante e surpreendente, capaz de estimular a quebrar lugares-comuns cristalizados, a tendência à mecanização linguístico-psíquica dos falantes nativos do português e do italiano, respectivamente. Uma língua reduzida, redundante, e estéril é também a manifestação de uma visão do mundo obtusa e manipulável. A falta de imaginação é território fértil para a implantação de um estilo de pensamento repetitivo, preguiçoso, mecanizado (e belicista), recetivo só daquilo que é racional, esquemático e pragmático. Adotando imagens parecidas, Guimarães Rosa se refere a um “mundo maquínico” (“As margens da alegria”), Bonaviri a uma “sociedade feitas de máquinas” (BONAVIRI apud ZANGRILLI, 1998ZANGRILLI, Franco. Sicilia isola-cosmo: Conversazione con G. Bonaviri. Ravenna: Longo, 1998., p. 68) de “[...] influência neoiluminista. Essa, infelizmente, está substituindo o mito da deusa-razão pelo mito da máquina” (BONAVIRI apud ZANGRILLI, 1998ZANGRILLI, Franco. Sicilia isola-cosmo: Conversazione con G. Bonaviri. Ravenna: Longo, 1998., p. 58). 17 17 “società fatta di macchine.” [...] “influenza neoilluministica. La quale, purtroppo, al mito della dea-ragione va sostituendo quello della macchina [...]” (tradução nossa). A adoção de maneiras esquemáticas de pensar apresenta um perigo para a humanidade e é a antecâmera para aberrações. Numa famosa entrevista, Guimarães Rosa defendeu a importância do escritor como mestre da imaginação do ser humano: ele “[...] não deve se transformar em um computador […] A lógica, prezado amigo, é a força com a qual o homem, algum dia, haverá de se matar” ( LORENZ, 2009[1963]LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: ROSA, João Guimarães. Ficção completa. Organização de Eduardo F. Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009 [1963]. p. 31-65. 1 v. , p. 57-8) .

A maquinaria bélica de morte da Segunda Guerra Mundial está no centro de alguns textos (os “contos alemães”; ver GINZBURG, 2012GINZBURG, Jaime. Guimarães Rosa e o terror total. In: GINZBURG, Jaime. Crítica em tempos de violência. São Paulo: USP, 2012. p. 215-221.) de João Guimarães Rosa. Armas cada vez mais eficazes e destrutivas “refazem” o homem. Em Grande sertão: veredas ( ROSA, 1994[1956]ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 [1956]. ), armas antigas (canhões) se misturam a uma panóplia de mausers, fuzis Winchester. Riobaldo reflete sobre o poder quase supernatural que essas armas possuem: “bala faz o que quer” ( ROSA, 1994 [1956]ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 [1956]. , p. 21), “bala raciocina” ( ROSA, 1994 [1956]ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 [1956]. , p. 221), e, de maneira pseudoteológica se pergunta: “Deus é um gatilho?” ( ROSA, 1994 [1956]ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 [1956]. , p. 484). Enquanto Riobaldo parece manter o controle em suas armas “Dono de qualquer cano de fogo […] acerto natural assim é de Deus, dom dado […] devo de, noutra vida, por certo em encarnação, ter trabalhado muito em mira em arma” ( ROSA, 1994 [1956]ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 [1956]. , p. 223), o inimigo Hermógenes considera as armas um meio para incitar a violência e comprar outros jagunços. Como Riobaldo narra: “Aí, o Hermógenes me presenteou com um nagã, e caixas de balas. Estive para nem aceitar. Eu já possuía revólver meu, carecia algum daquele, de tanto só cano, tão enorme? Por insistências dele, mesmo, com aquilo fiquei. Cuspi, depois” ( ROSA, 1994 [1956]ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 [1956]. , p. 258). Evidentemente, o mundo da bomba atômica é extrâneo ao sertão de Rosa, embora se possa ver na personagem de Hermógenes uma figura capaz de cometer atos de violência ainda não experimentados, além dos limites, contra seres inocentes do sertão, como no episódio da matança de cavalos: “Não se podia ter mão naquela malvadez. Não havia remédio. À tala, eles, os Hermógenes, matavam conforme queriam, a matança, por arruinar” ( ROSA, 1994 [1956]ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 [1956]. , p. 480). No conto “A tribo com os olhos para o céu” (1993), Italo Calvino (2022CALVINO, Italo. “La tribù con gli occhi al cielo”. Agarana. Disponível em: Disponível em: http://www.sagarana.net/anteprima.php?quale=768 . Acesso em: 8 jan. 2022.
http://www.sagarana.net/anteprima.php?qu...
) imaginou um futuro em que tribos humanas vivem em cabanas de lama esperando pela “Grande Hora” em que “[...] mísseis atômicos dirigidos pelo controle remoto, tão altos e rápidos que você não os poderia ver ou ouvir” (s.p.) destruirão tudo. 18 18 “missili atomici telecomandati, tanto alti e veloci che nemmeno più si vedono o si odono.” O título original do conto de Calvino é “La tribù con gli occhi al cielo” (tradução nossa). No conto de Calvino, a bomba é comandada a distância, ela é como um videogame. E, de fato, as “novas guerras” do futuro, conforme nos informam os expertos, serão combatidas por drones teleguiados por homens ou pela “inteligência artificial”. 19 19 Para uma genérica e inquietante amostra dessas armas, ver o artigo “A guerra do futuro”. Disponível em: https://istoe.com.br/a-guerra-do-futuro/. Acesso em: 9 an. 2022.

Como esses textos literários nos mostram, fugir da complexidade imaginativa e da empatia se traduz em empobrecimento mental e ético. Uma bomba lançada por aviões cancela uma humanidade desde uma grande distância, sem que os corpos queimados e destroçados apareçam à vista. É possível, então, que do anonimato de massa das vítimas se passe a uma conceção “assética” da guerra: sem cheiros, sem gritos, sem sangue. Interiorizar essa visão da guerra é transformador.

Com as recentes guerras no Iraque e no Afeganistão, o ataque militar pelos drones já entrou no nosso imaginário coletivo. Quando o objetivo militar é distante e sem vulto, a distinção entre guerra real e espetáculo da guerra se torna mais tênue.

A “eficiência” dessa nova estratégia militar parece estar ligada a seu caráter “cirúrgico” (embora isso seja negado pela ocorrência dos cinicamente chamados “danos colaterais”) e ao suposto menor impacto emotivo para a psique dos militares à distância. Pelo menos, afirmam alguns, os soldados não deverão lidar em seu regresso para casa com imagens intrusivas de violência e de sangue. O terrível estresse pós-traumático dos ex-soldados terá assim uma ocorrência mais limitada, afirmam. A existência dessa argumentação sobre o uso de uma tecnologia mortífera conveniente, prática, “menos suja”, é, pelo contrário, um dos problemas éticos do nosso tempo já previsto por Anders. Na correspondência com Eatherly, Anters elogia a inquietude do piloto enfrentando com dor “a magnitude de seus atos”. 20 20 “the magnitude of your acts” Se confrontados com a responsabilidade pela morte de 200.000 seres humanos, “[...] a dor e o arrependimento permanecem inadequados [...] os efeitos são demasiado grandes para nossa imaginação e a força emocional à nossa disposição” ( ANDERS,1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 3-4). 21 21 “pain and repentance remain inadequate […] the effects are too big for our imagination and the emotional forces at our disposal” Anders prevê, acertando, que à sofisticação dos instrumentos da guerra irá corresponder uma progressiva distanciação emocional do agente de morte em relação às suas vítimas. Em anos mais recentes, Robert Jay Lifton - psiquiatra norte-americano que encontrou e estudou sobreviventes da guerra do Vietnã, dos campos de extermínio nazi e de Hiroshima - sublinha a importância crucial da “experiência pós-traumática” numa entrevista concedida a Cathy Caruth. Lifton (2014) coloca ênfase na experiência das vítimas de Hiroshima, no efeito de “dormência” 22 22 “numbing” (todas as traduções de Lifton são nossas) ocorrido depois de um acontecimento radicalmente novo (“[...] nunca recebemos algo sendo completamente desprovidos de informação [...] tinha muitas poucas imagens que pudessem permitir às pessoas assimilar a experiência de Hiroshima, o evento de uma arma arrasando, aparentemente, uma cidade inteira” ( LIFTON, 2014LIFTON, Robert Jay. Giving death its due. In: CARUTH, Cathy (org.). Listening to Trauma. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2014. p. 3-24., p. 9), 23 23 “[…] we never receive anything nakedly […] there was precious little prior imagery that could enable people to take in the Hiroshima experience, the event of a weapon apparently destroying an entire city” mas suas considerações parecem significativas para descrever o valor da experiência pós-traumática para todos os protagonistas, vítimas e vitimários: “[...] a luta na experiência pós-traumâtica consiste em reconstituir o ‘self’ em um único ‘self’, reintegrando-se ( LIFTON, 2014LIFTON, Robert Jay. Giving death its due. In: CARUTH, Cathy (org.). Listening to Trauma. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2014. p. 3-24., p. 12). 24 24 “[…] the struggle in the post-traumatic experience is to reconstitute the self into the single self, reintegrate itself” Além do aspeto de “reconstituição” pessoal, a exposição pública de uma má consciência pessoal recobre um papel ético relevante para a causa pacifista.

Estilos, palavras

Como afirma o médico de guerra Gino Strada no seu discurso de aceitação do prémio Right Livelihood, em 2015STRADA, Gino. Discurso de aceitação. Right Livelihood Award, 2015. Disponível em: Disponível em: https://rightlivelihood.org/speech/acceptance-speech-gino-strada-emergency/ . Acesso em: 9 jan. 2022.
https://rightlivelihood.org/speech/accep...
,

No século passado, a percentagem de vítimas civis aumentou dramaticamente de cerca de 15 % na Primeira Guerra Mundial para mais de 60 % na Segunda Guerra Mundial. E nos 160 e mais grandes conflitos que o planeta experimentou após do fim da Segunda Guerra Mundial, que tiraram a vida a mais de 25 milhões de pessoas, a percentagem de vítimas civis tem sido consistentemente por volta de 90 por cento do total ( STRADA, 2015STRADA, Gino. Discurso de aceitação. Right Livelihood Award, 2015. Disponível em: Disponível em: https://rightlivelihood.org/speech/acceptance-speech-gino-strada-emergency/ . Acesso em: 9 jan. 2022.
https://rightlivelihood.org/speech/accep...
). 25 25 “In the past century, the percentage of civilian casualties had dramatically increased from approximately 15 percent in WWI to more than 60 percent in WWII. And in the 160 and more major conflicts the planet has experienced after the end of WWII, that took the lives of more than 25 million people, the percentage of civilian victims has consistently been around 90 percent of the total […]” (Tradução nossa).

Em 1959, na sua primeira carta a Eatherly, Anders escreve: “O fato é que você deixou 200.000 mortos para trás. E como se pode mobilizar uma dor que abrange 200.000? Como alguém pode se arrepender de 200.000? Nem você nem nós podemos fazer isso, ninguém pode fazer isso” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 3). 26 26 “You happen to have left 200,000 dead behind you. And how should one be able to mobilize a pain which embraces 200,000? How should one repent 200,000? Not only you cannot do it, not only we cannot do it, no one can do it” A partir desse tom direto, duro e participante, começa o diálogo a distância entre o piloto e o filosofo alemão.

Além das cartas entre Anders e Eatherly, o livro inclui: um prefácio por Bertrand Russell, uma introdução por Robert Jungk, o ensaio teórico por Günther Anders (“nós, vivendo em um mundo que consiste exclusivamente em instrumentos, agora somos manipulados por instrumentos [...] tratamos nossos semelhantes não de acordo com nossos princípios e motivos pessoais, mas de acordo com o tipo de tratamento encarnado nesses instrumentos” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 18); 27 27 “we, living in a world that consists exclusively of instruments, are now being dealt with by instruments […] we treat our fellow men not according to our own principles and motives, but according to the mode of treatment incarnated in those instruments” uma carta enviada a Eatherly e assinada pelas “moças de Hiroshima” (“Todas nós somos meninas que felizmente escaparam da morte, mas recebemos feridas em nossos rostos, membros e / ou corpos por causa da bomba atômica [...]” 28 28 “We are all girls who escaped death fortunately but received injuries in our faces, limbs, and/or bodies from the atomic bomb […]” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 25) e portadora de um gesto de grande humanidade (“Aprendemos a ter por você um sentimento de solidariedade, pensando que você também é uma vítima da guerra como nós” 29 29 “We have learned to feel towards you a fellow-feeling, thinking that you are also a victim of war like us” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 26) e um conjunto de cartas que Anders e Eatherly escrevem (separadamente) para outras figuras públicas (um juiz, um medico psiquiatra, um padre, entre outros). A correspondência entre Eatherly e Anders, iniciada em 3 de junho 1959, termina em 11 de julho 1961. O livro é fechado por um “ Post scriptum para o leitor americano”, em que Anders afirma que Eatherly

[...] é o modelo e a encarnação da consciência em um mundo cujos milhões são confortados por serem convencidos, e acreditarem, que os efeitos de seus atos não são de sua conta, que eles não estão agindo, mas apenas 'trabalhando', e que seu trabalho, seja qual for o seu alvo, o seu objetivo, o seu resultado direto ou mais indireto, non olet, nunca fede. 30 30 “He is the model and the incarnation of conscience in a world whose millions are comforted by being told, and believing, that the effects of their acts are none of their business, that they are not acting but just ‘working,’ and that their work, whatever its aim, its purpose, its direct or most indirect outcome, non olet, never stinks.” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 138).

Nessas linhas, podemos reconhecer semelhanças com a reflexão de Hannah Arendt sobre a “banalidade do mal”: a execução acrítica das ordens do poder. Anders caracteriza “milhões” como facilmente manipuláveis por poderes superiores. Por um lado, a ação de convencimento exercido pelo poder; por outro, a aceitação do “eticamente inaceitável” junta ao convencimento de sermos inocentes na prática de uma barbárie que já foi naturalizada.

As cartas entre Anders e Eatherly ocupam o maior número de páginas de Burning conscience. Organizando os materiais do livro, Anders quis enfatizar o caráter “exemplar” e “pedagógico” desse projeto. Para alcançar essa “exemplaridade”, Eatherly é apresentado através de suas próprias palavras, mas é também analisado como “caso,” como personalidade “trágica.” Como puderam dois homens de formação cultural tão diversa como Anders e Eatherly se comunicar de maneira tão íntima? Que uso da língua caracteriza e distingue essas duas vozes? As palavras de Anders, pela franqueza, força, e precisão, convencem imediatamente Eatherly a querer começar uma comunicação epistolar com ele (“Eu recebo muitas cartas, mas acho impossível responder à maioria delas, mas à sua carta me senti no dever de responder […] sinto que você me entende como mais ninguém, exceto meu médico e amigo pode” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 6-7). 31 31 “I receive many letters, but I find it impossible to answer most of them, but to your letter I felt compelled to answer […] I feel that you have an understanding about me that no one else, except my doctor and friend may have.” Anders usa uma linguagem acessível, mas retoricamente trabalhada, para estabelecer uma conexão intelectual, mas sobretudo emotiva, com o ex-piloto. Desde a primeira carta, Anders manifesta querer se colocar “ao lado” de Eatherly:

Pensando em seus sofrimentos, nós o fazemos como se fôssemos seus irmãos; como se você fosse um irmão a quem realmente aconteceu a infelicidade de fazer o que cada um de nós poderia ser constrangido a fazer amanhã; como irmãos que esperam evitar esta calamidade como você, tão terrivelmente, e inutilmente espera que pudesse tê-la evitado [...] podemos aprender com você, e só com você, o que seria de nós se tivéssemos sido você, se fôssemos você. Veja, você é muitíssimo importante para nós, até mesmo indispensável. Por assim dizer, nosso mestre. 32 32 “When thinking of your sufferings, we are doing it as brothers; as if you were a brother to whom the misfortune has actually occurred to do that which each of us could be compelled to do tomorrow; as brothers who hope to avoid this calamity as you so terribly, futilely hope that you could have avoided it. […] we can learn from you, and only from you, what would become of us if we had been you, if we would be you. You see, you are terribly important for us, even indispensable. So to say, our teacher.” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 2, grifo do autor).

O conjunto de escritos de Anders e a trajetória de sua produção intelectual sugerem uma personalidade íntegra, fortemente engajada e sensível. Afirmar que Anders adoptou uma língua sapientemente retórica não quer sugerir que o filósofo quisesse “manipular” Eatherly. Errar o tom dessa primeira comunicação teria significado perder a oportunidade de se comunicar com Eatherly para sempre; isso deve ter condicionado a construção retórica da carta. Anders escolhe então a forma plural (“ we”) para se apresentar a um indivíduo isolado e vulnerável. O filósofo não é apenas o porta-voz de uma comunidade de amigos, mas um “irmão” da grande família internacional do pacifismo. Todos, escreve Anders, podem cair na armadilha em que caiu Eatherly; o que lhe aconteceu foi “azar””. 33 33 “misfortune” Ao vínculo de irmandade, Anders acrescenta uma apreciação para o “mestre” Eatherly, declarando-se discípulo dele. Com esse gesto retórico, o filósofo subverte a relação entre eles de maneira não convencional: o verdadeiro conhecimento, mais que dos livros, deriva do conjunto de emoções e reflexões ligadas à experiência direta da guerra. Em toda a correspondência, Anders mostra coerência e participação ao processo de verbalização da experiência por parte de Eatherly. O filósofo solicita o ex-piloto a ler as Confissões de Agostinho ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 40), a escrever um livro autobiográfico buscando as palavras certas que o possam representar melhor (“[...] você deveria tentar sozinho, porque é a sua vida, a sua dor, as suas esperanças, e a sua coragem o tema do livro” 34 34 “you should try it alone, because it is your life, your pain, your hopes, and your courage which are the subject of the book” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 40, grifos do autor) e a não se deixar desencorajar pela inexperiência (“Logo que o primeiro parágrafo estiver no papel, este mesmo parágrafo irá te ajudar” 35 35 “Once a first paragraph is on paper, this very paragraph will help you […]” ) ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 35, grifo do do autor).

Anders tenta proteger Eatherly das ofertas de Hollywood, dos oportunistas, de quem quer controlar as palavras dele (“[...] se existe alguém que deva decidir o que e quanto deveria ser divulgado sobre Eatherly, essa pessoa é o próprio Eatherly” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 44), 36 36 “If there is anybody who has to decide what and how much should be divulged about Eatherly, it is Eatherly himself.” continuando a reforçar a importância do sentimento de culpa como uma luz (“Eichmann e você - vocês são os dois exemplos da nossa época. E se não fosse por você, o antípoda dele, não teríamos direito ou razão para esperar [...] você insistiu na sua própria culpa” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 126-127). 37 37 “Eichmann and you-you are the two examples of our age. And if it were not for you, his antipode, we would have no right and no reason to hope. […] you insisted on your guilt […]” Anders enfatiza, mais uma vez, a dimensão plural: “Para as boas pessoas é muito difícil aprender a desconfiar. Mas temos que aprender” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 86); 38 38 “For good people, it is very difficult to learn distrust. But we have to” “Espero que você tenha tanto cuidado quanto eu em não ser relacionado com um país em particular [...] mas com seu trabalho por uma causa. É a única maneira para ter sucesso. Não se deixe associar a nenhuma organização, por favor” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 90). 39 39 “I hope you are as careful as I not to be typed with any one country but […] working for a cause. That is the only way we can succeed. Don’t get hooked up with an organization, please” Frases como “Nossa amizade nunca vai acabar” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 77), 40 40 “Our friendship will never end” “podemos mostrar ao mundo que nenhuma diferença de idade, país, formação, experiência, ou religião desempenha um papel decisivo quando duas pessoas ardem do mesmo fogo” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 98), 41 41 “we can show the world that no difference of age, country, background, experience, or religion plays a decisive role as long as two people are burning with the same fire” “agora você se tornou meu trabalho em tempo integral” 42 42 “now you have become my full time job” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 100) resultam insólitas e hiperbólicas, sobretudo considerando que Anders nunca encontrara Eatherly ao vivo. Numa carta de 15 de junho 1960, Anders se define uma “testemunha do coração” 43 43 “heart-witness” do piloto ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 63).

Comparadas à retórica de Anders, as cartas de Eatherly se rivelam mais diretas, simples, descritivas. Elas desvendam emoções (“Você nunca vai saber o quanto eu precisava de alguém como você para me manter vivo... e essa união fraterna é a recompensa” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 61). 44 44 “You will never know how much I needed someone like you to keep me alive… and brotherhood is the reward” Através de seu percurso de expiação e de seu ativismo, e apesar de sua vontade, Eatherly acaba por reafirmar o valor de um poderoso mito norte-americano ligado à “sobrevivência”, à “redenção”, e às “segundas oportunidades”. Dentro desta narrativa norte-americana, quem se salva de uma dependência, de um luto, de uma guerra ou de outro trauma pode ter uma segunda chance e se tornar o mensageiro de ideais “altos” (uma outra versão da figura do “herói”, de fato). É um mito que liga queda, metamorfose pessoal e “missão” salvífica. Eatherly aceita colaborar com Anders “para promover o amor e a compreensão entre todas as pessoas” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 30). 45 45 “to promote love and understanding among all people” Embora a força militar seja vista como quase inquebrantável nos Estados Unidos (“É quase impossível ir contra os militares” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 99), 46 46 “It is nearly impossible to go against the military.” Eatherly quer encarnar a resistência para a difusão de sentimentos de paz. Um dos elementos que mais surpreende nas cartas de Eatherly é a convicção dele possuir uma “filosofia”. O piloto escreve para uma autoridade religiosa: “Sinto-me honrado que você queira saber mais sobre minha filosofia e convicções de vida” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 80). 47 47 “I am honored that you wish to know more about my philosophy and convictions on life […]”

Em vários momentos da correspondência, Anders sai do papel de “amigo” para observar e descrever Eatherly como “caso”. Em uma interessante nota “psico-filologica” sobre o estilo e a pontuação do piloto ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 7-8). Anders afirma que as cartas escritas alguns dias antes do aniversário da bomba de Hiroshima mostram exemplos evidentes de deterioração da escrita do seu correspondente: “a desordem sintática foi regularmente acompanhada por uma diminuição da qualidade da caligrafia de Eatherly” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 8). 48 48 “the syntactical disorder was regularly accompanied by a lowering of the ‘level of Eatherly’s handwriting” Eatherly chega a encarnar um “paradigma da resistência” (“Claude tornou-se um pioneiro da nova era […]” ( ANDERS, 1989 [1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]., p. 138). 49 49 “Claude became a pioneer of the new age.” Paradoxalmente, Anders acaba substituindo a narrativa oficial sobre “o herói Eatherly” com outra construção retórica de excecionalidade. O piloto já não é um “herói”, mas um “pioneiro”, outra figura poderosa do imaginário norte-americano.

Ler Burning conscience hoje

A leitura de Burning conscience solicita uma reflexão sobre quatro aspetos principais que aqui colocarei em forma de pergunta: 50 50 Cada um destes pontos mereceria um aprofundamento. Meu objetivo aqui é mostrar a potencialidade de um texto como Burning conscience para estimular debates dentro e fora da sala de aula.

Como é que uma nação justifica seus atos de violência extrema?

Essa questão se refere à construção narrativa que um país (nesse caso os Estados Unidos) produz e dissemina para fortalecer sentimentos nacionalistas e se colocar do lado da liberdade, da justiça, dos grandes valores. O uso da bomba atômica foi um ato de violência desproporcionada às ameaças reais por parte do Japão ( VIOLA, 2000VIOLA, Paolo. Storia moderna e contemporanea. Vol. IV. Il Novecento. Torino: Einaudi, 2000.), um “delírio” (ŌE apud TODOROV, 2004, [2000]TODOROV, Tzvetan. Memoria del male, tentazione del bene: Inchiesta su un secolo tragico. Tradução de Roberto Rossi. Milano: Garzanti, 2004 [2000].), uma barbárie. Porém, como Robert Jay Lifton afirma, “[...] você não pode matar um grande número de pessoas, exceto com a alegação de virtude. Matar em grande escala é sempre uma tentativa de afirmar o poder vital do próprio grupo” ( LIFTON, 2014LIFTON, Robert Jay. Giving death its due. In: CARUTH, Cathy (org.). Listening to Trauma. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2014. p. 3-24., p. 14). 51 51 “you cannot kill large numbers of people except with a claim to virtue. Killing on a large scale is always an attempt at affirming the life power of one’s own group” (tradução nossa). As razões industriais e econômicas que levaram ao uso da bomba atômica ( VIOLA, 2000VIOLA, Paolo. Storia moderna e contemporanea. Vol. IV. Il Novecento. Torino: Einaudi, 2000.) precisaram de uma razão de ordem superior, ético-política (salvar o mundo, a democracia, os valores da ameaça das forças do mal) ou de uma afirmação de (auto)defesa ( TODOROV, 2004 [2000]TODOROV, Tzvetan. Memoria del male, tentazione del bene: Inchiesta su un secolo tragico. Tradução de Roberto Rossi. Milano: Garzanti, 2004 [2000].). As narrativas ligadas aos episódios de Hiroshima e Nagasaki são claramente representadas - lembra-nos Todorov apoiando-se em estudos de John Dower - de maneira opostas nos Estados Unidos e no Japão ( TODOROV, 2004 [2000]TODOROV, Tzvetan. Memoria del male, tentazione del bene: Inchiesta su un secolo tragico. Tradução de Roberto Rossi. Milano: Garzanti, 2004 [2000].).

Na correspondência com Anders, Eatherly se mostra arrependido, sofrido e decidido a divulgar uma versão anti-retórica da guerra. Na carta de 3 de agosto 1960, Eatherly partilha suas preocupações ligadas a um projeto de livro autobiográfico: como pode ele evitar que “todo jovem que lê queira seguir uma carreira militar e tentar se tornar um herói? Como posso destruir esse mito?” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 77). 52 52 “[...] every young person that reads it wants to follow a military career and try to become a hero? How can I destroy that myth?” Apesar disso, a crítica de Eatherly contra o governo e os militares norte-americanos, responsáveis pela manutenção de mitos nacionais, nunca chega a ser radical ou “descomposta”. Quando Eatherly expressa seu repúdio pelos arsenais de guerra do futuro não se refere especificamente à história militar e aos crimes dos Estados Unidos, mas a todas as nações do planeta. Certamente vale lembrar que as cartas de Eatherly, escritas num instituto psiquiátrico do Texas e por isso controladas e censuradas pelas autoridades locais, não podem ser lidas como documentos integrais do pensamento dele.

b) Quais consequências tem a violência para o vitimário?

Na introdução de Burning conscience, Robert Jungk afirma que “as bombas atômicas atacam aqueles que as usam” e que “O efeito de ‘ação retardada’ dessas armas de destruição em massa é, reconhecidamente, não de natureza física, mas sim, moral e mental” ( JUNGK, 1989[1961]JUNGK, Robert. Foreword. In: ANDERS, Günther; EATHERLY, Claude. Burning conscience. New York: Paragon House, 1989. p. xi-xxiii. , p. xi). 53 53 “atom bombs strike back at those who use them [...]”; “The ’delayed action effect’ of these weapons of mass destruction is, admittedly, not of a physical, but rather of a moral and mental nature.” Em ocasião de vários encontros com estudantes em liceus italianos, o artista e intelectual Moni Ovadia (2017OVADIA, Moni. Depoimento oral. Trentino Cultura, 30 jan. 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.cultura.trentino.it/Biblio/Approfondimenti/Moni-Ovadia-riflette-sul-Giorno-della-Memoria-con-gli-studenti-trentini . Acesso em: 9 jan. 2022.
https://www.cultura.trentino.it/Biblio/A...
) quis sublinhar como a prática do mal e da violência acabam destruindo o vitimário, no tempo. “Como fomos capazes de fazer isso connosco, como fomos capazes de transformar nossa nação civil e culturalmente avançada em uma nação de carrascos?” 54 54 “Come abbiamo potuto fare questo a noi stessi, come abbiamo potuto trasformare la nostra nazione civilmente e culturalmente avanzata in una nazione di carnefici?” Disponível em: Acesso em: 9 jan. 2022 . Tradução nossa. é a pergunta que, segundo Ovadia (2017OVADIA, Moni. Depoimento oral. Trentino Cultura, 30 jan. 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.cultura.trentino.it/Biblio/Approfondimenti/Moni-Ovadia-riflette-sul-Giorno-della-Memoria-con-gli-studenti-trentini . Acesso em: 9 jan. 2022.
https://www.cultura.trentino.it/Biblio/A...
), atormentou uma geração de alemães depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Eatherly mostra, através da sua parábola existencial, os efeitos a longo prazo sobre quem colaborou para atrozes atos de destruição.

Num artigo recente, o escritor britânico Will Self (2021SELF, Will. A posthumous shock: how everything became trauma. Harper’s, v. 343, n. 2059, dez. 2021.) afrontou a questão da abrangência de um evento traumático para todos os atores envolvidos. Se do ponto de vista ético é fundamental manter uma distinção entre executores da violência e suas vítimas, existem, porém, memórias traumáticas abrangentes em ambos os grupos ( SELF, 2021SELF, Will. A posthumous shock: how everything became trauma. Harper’s, v. 343, n. 2059, dez. 2021., p. 29). Nem todos os executores de atos violentos carregam dentro de si, porém, uma culpa que os atormenta. É o caso de outros pilotos norte-americanos que aceitaram serem celebrados como heróis da nação ou conseguiram voltar à uma “normalidade.” Anders menciona o caso de Joe Stiborik, operador de radar do Enola Gay, que teria afirmado “Para mim, foi apenas uma bomba maior” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 4). 55 55 “‘For me it was just a bigger bomb.’” Em passagens como essas, nota-se uma caracterização superficial por parte de Anders das vidas destes “outros” pilotos. Anders cria uma galeria de personagens que funcionam como contrários do “extraordinário” Eatherly.

Em Burning conscience, como já mencionei, encontramos uma carta enviada por um grupo de jovens japonesas para Eatherly em que elas expressam piedade: “[...] você também é uma vítima de guerra como nós” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 26). 56 56 “you are also a victim of war like us” Uma mesma palavra - “vítima” - que, porém, deve ser acompanhada sempre pela consciência de uma diferença radical. A má consciência que Eatherly carrega não pode ser equiparada ao destino dos cadáveres de Hiroshima, vítimas integrais e inocentes. “Inocência” é um termo utilizado - problematicamente - por Jungk para caracterizar o jovem Eatherly. Segundo esse crítico, a geração de Eatherly ainda podia acreditar na eficácia das armas para afirmar valores humanitários: “[...] o jovem Eatherly estava justificado em ainda acreditar que a liberdade e a humanidade poderiam ser defendidas através da força das armas” ( JUNGK, 1989[1961]JUNGK, Robert. Foreword. In: ANDERS, Günther; EATHERLY, Claude. Burning conscience. New York: Paragon House, 1989. p. xi-xxiii. , p. xiii). 57 57 “young Eatherly was justified in still believing that freedom and humanity could be defended by force of arms”

Acreditar que a violência armada possa ser exercida para a afirmação de grandes valores na Terra é ainda hoje uma ideia muito poderosa numa certa cultura e opinião pública norte-americanas. Essa crença “inocente” (para recuperar a imagem de Jungk) na bondade do “próprio exército” e das “próprias armas” revela uma ausência de educação humanística? Faltou ao jovem Eatherly o contato com a filosofia? Com as grandes reflexões sobre as consequências nefastas da guerra que a literatura ofereceu ao longo dos séculos? Essa produção literária secular teria sido relevante para que Eatherly pudesse desenvolver um pensamento antirretórico, antinacionalista e antimilitar? É uma ingenuidade pensar isso? Quais foram os discursos que Eatherly escutou quando adolescente? Qual imagem do mundo além dos confins dos Estados Unidos tinha ele? A ideologia exerce um papel fundamental na constituição dos indivíduos, como mostrou Theodor Adorno em seu célebre ensaio “Educação após Auschwitz” (1967). Quais outros fatores contribuíram para que, no dia agosto 1945, o piloto Eatherly mandasse lançar a bomba sobre Hiroshima? Que importância atribuir aos fatores biográficos, históricos, contextuais versus a responsabilidade individual dele?

c) Que espaço de escuta devemos reservar ao testemunho do vitimário?

Na recente literatura global ouvem-se com frequência as vozes de narradores vitimários. Um exemplo paradigmático é o do romance Les bienveillantes de Jonathan Littell (2006LITTELL, Jonathan. Les Bienveillantes. Paris: Gallimard, 2006. 912 p.) em que um ex-oficial das SS toma a palavra para descrever cinicamente a Europa do pós-guerra. Burning conscience não é um texto de ficção, obviamente, mas uma tentativa de expandir a possibilidade de ler o testemunho (não cínico) de uma figura controversa, corresponsável pela morte de uma coletividade. Qual espaço reservar à escuta de autores de atos violentos e cruéis? As cartas de Eatherly mostram a dimensão dramática do confronto com uma consciência pessoal que arde em chamas (para retomar a bela imagem do título do volume: Burning conscience): “A verdade é que a sociedade simplesmente não pode aceitar o fato de minha culpa sem, simultaneamente, reconhecer sua própria culpa muito mais profunda” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 36). 58 58 “The truth is that society simply cannot accept the fact of my guilt without at the same time recognizing its own far deeper guilt.” Lembrar a abrangência e a transversalidade do mal na história humana, os erros irreversíveis que pertencem a todas as nações, fora da retórica nacionalista, e solicitar à escuta crítica da voz do vitimário me parecem pontos cruciais de Burning conscience.

Existe possibilidade de perdão para o vitimário?

Pode um crime contra a humanidade tão gigantesco como o uso da bomba atômica contra uma população ser “perdoado”? Faz sentido utilizar a categoria de perdão? Para muitos, o crime de Eatherly deveria permanecer imperdoável: quem participou desse bombardeamento trouxe para a história humana - “irrevocavelmente para o mundo das coisas que existem” para adotar as palavras que Primo Levi usou para descrever o horror de quem foi responsável por Auschwitz - uma nova possibilidade de existência para o mal radical. 59 59 Primo Levi, La tregua (1963, tradução nossa). Um célebre ensaio de Jacques Derrida (2004DERRIDA, Jacques. Perdonare. Tradução de Laura Otello. Milano: Raffaello Cortina, 2004.), Perdoar, contém a controversa e muito citada afirmação que só o imperdoável pode ser objeto de perdão ( DERRIDA, 2004DERRIDA, Jacques. Perdonare. Tradução de Laura Otello. Milano: Raffaello Cortina, 2004., p. 47). O ensaio de Derrida é interessante por colocar a questão da possibilidade de os vivos puderem oferecer perdão em lugar dos mortos ( DERRIDA, 2004DERRIDA, Jacques. Perdonare. Tradução de Laura Otello. Milano: Raffaello Cortina, 2004., p. 59). Para Anders, as ações militares de Eatherly não podem ser “perdoadas”, mas entendidas como efeitos da poderosa manipulação que Eatherly sofreu (“Pois todos nós temos que viver nesta época em que poderíamos deslizar numa culpa tão enorme” ( ANDERS, 1989[1961]ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience. New York: Paragon House, 1989 [ 1961]. , p. 2). 60 60 “For all of us have to live in this epoch in which we could slide into such a guilt.” Quando Anders sugere a Eatherly para enviar uma mensagem aos familiares das vítimas de Hiroshima não é para pedir um genérico perdão, mas para tornar explícito que ele compreendeu a gravidade de seus atos. Ler textos literários em que narradores de atos cruéis se confrontam com perplexidade sobre as causas da prática do mal, juntamente a um texto não-literário como Burning conscience, texto de desprovido de uma fácil retórica do perdão, é uma ocasião para pensarmos a catástrofe (e as porosidades entre responsabilidade contextual e individual) de maneira complexa.

Considerações finais

Claude Eatherly respirou desde jovem a retórica da guerra salvífica. Mensagens de virilidade, heroísmo e patriotismo ligados à luta (e ao uso das armas) estão ainda hoje muito presentes na cultura norte-americana. Essas mensagens não são sempre evidentes e explícitas. Em vários campuses norte-americanos a retórica do nacionalismo agressivo está disfarçada em imagens de animais ferozes (as mascotas de algumas universidades), em slogans, em vídeos patrióticos disseminados nos comedouros dos estudantes. Discursos sobre o caráter excecional e abençoado dos Estados Unidos são comuns nas plataformas e nos discursos públicos de políticos. Materiais para a reflexão sobre os efeitos da guerra na população existem em bibliotecas, livrarias, cinemas, escolas e universidades , mas misturados com muitos outros estímulos visuais, produtos de entretenimento que são, de fato, propaganda militar. A leitura da correspondência entre Eatherly e Anders pode então servir como instrumento para desenvolver um olhar mais crítico sobre a disseminação e o funcionamento da retórica nacionalista em espaços públicos. Conhecer a voz de Eatherly (embora “editada”) pode suscitar reflexões sobre o funcionamento psíquico e moral de uma sociedade acostumada a projetar e a reconhecer o mal, a barbárie, o caos, somente fora de si.

REFERÊNCIAS:

  • ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialettica dell’illuminismo Tradução de Renato Solmi. Torino: Einaudi, 2010 [1947]. 324 p.
  • ANDERS, Günther ;EATHERLY, Claude . Burning conscience New York: Paragon House, 1989 [ 1961].
  • CALVINO, Italo. “La tribù con gli occhi al cielo”. Agarana Disponível em: Disponível em: http://www.sagarana.net/anteprima.php?quale=768 Acesso em: 8 jan. 2022.
    » http://www.sagarana.net/anteprima.php?quale=768
  • CAMUS, Albert. Conferenze e discorsi (1937-1958) Milano: Bompiani, 2020.
  • CHRISTENSEN, Inger. Alphabet Tradução de Susanna Nied. New York: New Directions, 2001 [1981].
  • CORSO, Gregory. “Bomb”. Litkicks [1958]. Disponível em: Disponível em: https://www.litkicks.com/Texts/Bomb.html Acesso em: 10 jan. 2022.
    » https://www.litkicks.com/Texts/Bomb.html
  • DERRIDA, Jacques. Perdonare Tradução de Laura Otello. Milano: Raffaello Cortina, 2004.
  • FRAIOLI, Luca. “Giorgio Parisi. Gli scienziati possono fermare la guerra.” Entrevista em Robinson, suplemento de La Repubblica, 16 jul. 2022.
  • GINZBURG, Jaime. Guimarães Rosa e o terror total. In: GINZBURG, Jaime. Crítica em tempos de violência São Paulo: USP, 2012. p. 215-221.
  • JUNGK, Robert. Foreword. In: ANDERS, Günther; EATHERLY, Claude. Burning conscience New York: Paragon House, 1989. p. xi-xxiii.
  • LEVI, Primo. I sommersi e i salvati Torino: Einaudi, 2007 [1986].
  • LEVI, Primo. La tregua Torino: Einaudi, 2014 [1963].
  • LIFTON, Robert Jay. Giving death its due. In: CARUTH, Cathy (org.). Listening to Trauma Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2014. p. 3-24.
  • LITTELL, Jonathan. Les Bienveillantes Paris: Gallimard, 2006. 912 p.
  • LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: ROSA, João Guimarães. Ficção completa Organização de Eduardo F. Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009 [1963]. p. 31-65. 1 v.
  • MONTALE, Eugenio. È ancora possibile la poesia. The Nobel Prize [1975]. Disponível em: Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/1975/montale/25109-eugenio-montale-nobel-lecture-1975/ Acesso em: 8 jan. 2022.
    » https://www.nobelprize.org/prizes/literature/1975/montale/25109-eugenio-montale-nobel-lecture-1975/
  • MORAES, Vinicius de. Rosa de Hiroshima. Vinicius de Moraes, 1954. Disponível em: Disponível em: https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/rosa-de-hiroxima Acesso em: 9 jan. 2022.
    » https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/rosa-de-hiroxima
  • MORANTE, Elsa. Pró ou contra a bomba atômica Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2017 [1987].
  • NAKAZAWA, Keiji. Hidashi no Gen [ S. l.]: [ S. n], 1973-1987.
  • ŌE, Kenzaburō. Hiroshima Notes Tradução de David L. Swain e Toshi Yonezawa. New York: Grove Press, 1996.
  • OVADIA, Moni. Depoimento oral. Trentino Cultura, 30 jan. 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.cultura.trentino.it/Biblio/Approfondimenti/Moni-Ovadia-riflette-sul-Giorno-della-Memoria-con-gli-studenti-trentini Acesso em: 9 jan. 2022.
    » https://www.cultura.trentino.it/Biblio/Approfondimenti/Moni-Ovadia-riflette-sul-Giorno-della-Memoria-con-gli-studenti-trentini
  • QUASIMODO, Salvatore. Uomo del mio tempo. In: GATTO, Alfonso. Tutte le poesie Milano: Oscar Mondadori, 2017 [1946].
  • ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 [1956].
  • SARAMAGO, José. A nova Verónica. In: SARAMAGO, José. Deste mundo e do outro Porto: Porto Editora, 2018 [1971]. p. 145-146.
  • SELF, Will. A posthumous shock: how everything became trauma. Harper’s, v. 343, n. 2059, dez. 2021.
  • STRADA, Gino. Discurso de aceitação. Right Livelihood Award, 2015. Disponível em: Disponível em: https://rightlivelihood.org/speech/acceptance-speech-gino-strada-emergency/ Acesso em: 9 jan. 2022.
    » https://rightlivelihood.org/speech/acceptance-speech-gino-strada-emergency/
  • SZYMBORSKA, Wisława. Scritto in un albergo [Escrito num albergue]. In: SZYMBORSKA, Wisława. La gioia di scrivere: Tutte le poesie (1945-2009). Milano: Adelphi, 2012.
  • TODOROV, Tzvetan. Memoria del male, tentazione del bene: Inchiesta su un secolo tragico. Tradução de Roberto Rossi. Milano: Garzanti, 2004 [2000].
  • VIOLA, Paolo. Storia moderna e contemporanea. Vol. IV. Il Novecento Torino: Einaudi, 2000.
  • ZANGRILLI, Franco. Sicilia isola-cosmo: Conversazione con G. Bonaviri. Ravenna: Longo, 1998.

FILMES

  • DR. STRANGELOVE OR: How I learned to stop worrying and love the bomb. Direção: Stanley Kubrik. Produção: Stanley Kubrik. Intérpretes: Peter Sellers, George C. Scott, Sterling Hayden, et al Roteiro: Stanley Kubrick, Terry Southern, Peter George. Columbia Pictures Corp., 1964. 1 DVD (93 min), son., p.&b.
  • DREAMS. Direção: Akira Kurosawa. Intérpretes: Akira Terao, Mitsuko Baisho, Toshie Negishi, et al Roteiro: Akira Kurosawa. 1990. 1 DVD (119 min), son., color.
  • SILKWOOD. Direção: Mike Nichols. Produção: Michael Hausman, Mike Nichols. Intérpretes: Meryl Streep, Kurt Russel, Cher, et al Roteiro: Nora Ephron, Alice Arlen. ABC Motion Pictures, 1983. 1 DVD (131 min), son., color.
  • LA RABBIA. Direção: Pier Paolo Pasolini, Giovannino Guareschi. Produção: Gastone Ferranti. Intérpretes: Giorgio Bassani, Renato Guttuso, Carlo Romano, et al Roteiro: Giovannino Guareschi, Pier Paolo Pasolini. 1963. 1 DVD (104 min), son., p.&b.
  • 1
    “Tecnificação” e “alma” ( Seele na versão em alemão) são os termos utilizados pelo próprio Anders.
  • 2
    “È stato oscenamente detto che di un conflitto c’è bisogno” (tradução nossa). Todas as traduções de frases de I sommersi e i salvati neste artigo são nossas.
  • 3
    “perché non siete scappati prima?”
  • 4
    “Quanto sicuri viviamo noi, uomini della fine del secolo e del millennio? E, piú in particolare, noi europei?”
  • 5
    “La minaccia è diversa da quella degli anni ’30: meno vicina ma piú vasta; legata, secondo alcuni, ad un demonismo della Storia, nuovo, ancora indecifrabile, ma slegata (finora) dal demonismo umano. È puntata contro tutti, e quindi particolarmente ‘inutile’.”
  • 6
    Original em francês. A minha tradução para português está baseada na edição italiana de Conferenze e discorsi (1937-1958)CAMUS, Albert. Conferenze e discorsi (1937-1958). Milano: Bompiani, 2020. : “Le filosofie che pongono l’efficienza in cima a tutti i valori sono infatti filosofie di morte.”
  • 7
    A tradução do texto de Elsa Morante é de Davi Pessoa Carneiro.
  • 8
    “È ancora possibile la poesia” (tradução nossa).
  • 9
    “il frutto più maturo dell’eterno albero del male” (tradução nossa).
  • 10
    “I suspect that the A-bomb planners […] trusted too much in the enemy’s own human strength to cope with the hell that would follow the dropping of the atomic bomb” (tradução nossa da versão inglesa de Hiroshima notes).
  • 11
    “The ‘delayed action effect’ of these weapons of mass destruction is, admittedly, not of a physical, but rather of a moral and mental nature” (tradução nossa). Todas as traduções do inglês para português do livro Burning conscience são nossas.
  • 12
    “I was the commander of the lead plane, named the Straight Flush.”
  • 13
    “What could happen to us tomorrow, has actually happened to you. [...] we can learn from you, and only from you, what would become of us if we had been you, if we would be you.”
  • 14
    “You are trying to go on as the one who has done it. And that is what consoles us.”
  • 15
    “technification of our being”
  • 16
    “It is not only meanness which we have to fight, but also stupidity, in the sense of lack of fantasy. Here lies our task; to awaken and to educate other people’s capacity of imagination.”
  • 17
    “società fatta di macchine.” [...] “influenza neoilluministica. La quale, purtroppo, al mito della dea-ragione va sostituendo quello della macchina [...]” (tradução nossa).
  • 18
    “missili atomici telecomandati, tanto alti e veloci che nemmeno più si vedono o si odono.” O título original do conto de Calvino é “La tribù con gli occhi al cielo” (tradução nossa).
  • 19
    Para uma genérica e inquietante amostra dessas armas, ver o artigo “A guerra do futuro”. Disponível em: https://istoe.com.br/a-guerra-do-futuro/. Acesso em: 9 an. 2022.
  • 20
    “the magnitude of your acts”
  • 21
    “pain and repentance remain inadequate […] the effects are too big for our imagination and the emotional forces at our disposal”
  • 22
    “numbing” (todas as traduções de Lifton são nossas)
  • 23
    “[…] we never receive anything nakedly […] there was precious little prior imagery that could enable people to take in the Hiroshima experience, the event of a weapon apparently destroying an entire city”
  • 24
    “[…] the struggle in the post-traumatic experience is to reconstitute the self into the single self, reintegrate itself”
  • 25
    “In the past century, the percentage of civilian casualties had dramatically increased from approximately 15 percent in WWI to more than 60 percent in WWII. And in the 160 and more major conflicts the planet has experienced after the end of WWII, that took the lives of more than 25 million people, the percentage of civilian victims has consistently been around 90 percent of the total […]” (Tradução nossa).
  • 26
    “You happen to have left 200,000 dead behind you. And how should one be able to mobilize a pain which embraces 200,000? How should one repent 200,000? Not only you cannot do it, not only we cannot do it, no one can do it”
  • 27
    “we, living in a world that consists exclusively of instruments, are now being dealt with by instruments […] we treat our fellow men not according to our own principles and motives, but according to the mode of treatment incarnated in those instruments”
  • 28
    “We are all girls who escaped death fortunately but received injuries in our faces, limbs, and/or bodies from the atomic bomb […]”
  • 29
    “We have learned to feel towards you a fellow-feeling, thinking that you are also a victim of war like us”
  • 30
    “He is the model and the incarnation of conscience in a world whose millions are comforted by being told, and believing, that the effects of their acts are none of their business, that they are not acting but just ‘working,’ and that their work, whatever its aim, its purpose, its direct or most indirect outcome, non olet, never stinks.”
  • 31
    “I receive many letters, but I find it impossible to answer most of them, but to your letter I felt compelled to answer […] I feel that you have an understanding about me that no one else, except my doctor and friend may have.”
  • 32
    “When thinking of your sufferings, we are doing it as brothers; as if you were a brother to whom the misfortune has actually occurred to do that which each of us could be compelled to do tomorrow; as brothers who hope to avoid this calamity as you so terribly, futilely hope that you could have avoided it. […] we can learn from you, and only from you, what would become of us if we had been you, if we would be you. You see, you are terribly important for us, even indispensable. So to say, our teacher.”
  • 33
    “misfortune”
  • 34
    “you should try it alone, because it is your life, your pain, your hopes, and your courage which are the subject of the book”
  • 35
    “Once a first paragraph is on paper, this very paragraph will help you […]”
  • 36
    “If there is anybody who has to decide what and how much should be divulged about Eatherly, it is Eatherly himself.”
  • 37
    “Eichmann and you-you are the two examples of our age. And if it were not for you, his antipode, we would have no right and no reason to hope. […] you insisted on your guilt […]”
  • 38
    “For good people, it is very difficult to learn distrust. But we have to”
  • 39
    “I hope you are as careful as I not to be typed with any one country but […] working for a cause. That is the only way we can succeed. Don’t get hooked up with an organization, please”
  • 40
    “Our friendship will never end”
  • 41
    “we can show the world that no difference of age, country, background, experience, or religion plays a decisive role as long as two people are burning with the same fire”
  • 42
    “now you have become my full time job”
  • 43
    “heart-witness”
  • 44
    “You will never know how much I needed someone like you to keep me alive… and brotherhood is the reward”
  • 45
    “to promote love and understanding among all people”
  • 46
    “It is nearly impossible to go against the military.”
  • 47
    “I am honored that you wish to know more about my philosophy and convictions on life […]”
  • 48
    “the syntactical disorder was regularly accompanied by a lowering of the ‘level of Eatherly’s handwriting”
  • 49
    “Claude became a pioneer of the new age.”
  • 50
    Cada um destes pontos mereceria um aprofundamento. Meu objetivo aqui é mostrar a potencialidade de um texto como Burning conscience para estimular debates dentro e fora da sala de aula.
  • 51
    “you cannot kill large numbers of people except with a claim to virtue. Killing on a large scale is always an attempt at affirming the life power of one’s own group” (tradução nossa).
  • 52
    “[...] every young person that reads it wants to follow a military career and try to become a hero? How can I destroy that myth?”
  • 53
    “atom bombs strike back at those who use them [...]”; “The ’delayed action effect’ of these weapons of mass destruction is, admittedly, not of a physical, but rather of a moral and mental nature.”
  • 54
    “Come abbiamo potuto fare questo a noi stessi, come abbiamo potuto trasformare la nostra nazione civilmente e culturalmente avanzata in una nazione di carnefici?” Disponível em: Acesso em: 9 jan. 2022 . Tradução nossa.
  • 55
    “‘For me it was just a bigger bomb.’”
  • 56
    “you are also a victim of war like us”
  • 57
    “young Eatherly was justified in still believing that freedom and humanity could be defended by force of arms”
  • 58
    “The truth is that society simply cannot accept the fact of my guilt without at the same time recognizing its own far deeper guilt.”
  • 59
    Primo Levi, La tregua (1963LEVI, Primo. La tregua. Torino: Einaudi, 2014 [1963]. , tradução nossa).
  • 60
    “For all of us have to live in this epoch in which we could slide into such a guilt.”

Editado por

editor-chefe: Rachel Esteves Lima
editor executivo: Cássia Lopes Jorge Hernán Yerro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2022
  • Aceito
    16 Nov 2022
Associação Brasileira de Literatura Comparada Rua Barão de Jeremoabo, 147, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, BA, Brasil, CEP: 40170-115, Telefones: (+55 71) 3283-6207; (+55 71) 3283-6256, E-mail: abralic.revista@abralic.org.br - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: abralic.revista@abralic.org.br