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Como contar 80 tiros? A questão do primeiro disparo, segundo Clarice Lispector

How to count 80 shots? The question of the first shot, according to Clarice Lispector

Resumo

Como contar a violência? Em 2019, membros das Forças Armadas desferiram mais de 80 tiros contra uma família da Zona Oeste do Rio de Janeiro, assassinando Evaldo Rosa e Luciano Macedo. Para dar conta de mais outro episódio de violência policial, muitos intérpretes buscaram na crônica “Mineirinho”, de Clarice Lispector, uma maneira de se fazer da “contagem” dos disparos uma “contação” da história da necropolítica brasileira. No presente artigo, seguiremos nesse esteio, propondo uma leitura “jusliterária” do caso. O texto de Clarice servirá como ponto de partida de uma breve análise das mudanças na dinâmica da violência policial no Rio de Janeiro, desde o caso Mineirinho até a morte de Evaldo. Vamos enfatizar a perspectiva clariciana de justiça, isto é, o modo como a autora contradisse a emergente “sensibilidade jurídica” da sociedade brasileira, que passava a ser demarcada pela dicotomia “eu” versus “outro”, pela oposição “trabalhador” versus “bandido”. Buscando aprofundar essa perspectiva alternativa de justiça, nos aprofundaremos na questão do primeiro disparo pois, se o bandido Mineirinho morreu, de acordo com Clarice, com “treze balas quando uma só bastava”, Evaldo não merecia ser alvejado com uma bala sequer.

Palavras-chave:
80 tiros; violência policial; Clarice Lispector; necropolítica; jusliteratura

Abstract

How to count violence? In 2019, members of the Armed Forces fired more than eighty shots at a family in the west zone of Rio de Janeiro, killing Evaldo Rosa and Luciano Macedo. To deal with yet another episode of police violence, many interpreters sought in the newspaper column “Mineirinho”, by Clarice Lispector, a way of making the “counting” of shots a “telling” of the history of Brazilian necropolitics. In the present article, we will continue on this basis, proposing a “jusliterary” reading of the case. Clarice's text will serve as a starting point for a brief analysis of changes in the dynamics of police violence in Rio de Janeiro, from the Mineirinho case to Evaldo’s death. We will emphasize Clarice's perspective of justice, that is, the way in which the author contradicted the emerging “legal sensitivity” of Brazilian society, which began to be demarcated by the dichotomy “I” versus “other”, by the opposition “worker” versus “bandit”. Seeking to deepen this alternative perspective of justice, we will delve into the issue of the first shot because, if the bandit Mineirinho died, according to Clarice, with “thirteen bullets when only one was enough”, Evaldo did not deserve to be shot with a single bullet.

Keywords:
80 shots; police violence; Clarice Lispector; necropolitics; jusliterature

o primeiro disparo

“1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 #80tiros é muito, né não Gentem?” 1 1 Tweet de Elza Soares, publicado em 08 de abril de 2019. Disponível em: https://mobile.twitter.com/ElzaSoares/status/1115392306859917313 . Desse modo a cantora Elza Soares expressou no Twitter a sua revolta com assassinato de Evaldo Rosa e Luciano dos Santos por soldados do Exército na Zona Oeste do Rio de Janeiro, episódio que ficou conhecido como #80tiros, em referência à apuração inicial dos disparos dados (na verdade, foram 257 tiros). A postagem de Elza é emblemática quanto ao desafio de interpretar mais outro episódio assombroso da necropolítica brasileira. Afinal, como contar a violência?

Muitos leitores buscaram na crônica “Mineirinho”, de Clarice Lispector, um meio de passar da contagem dos tiros à contação da história da violência policial. Pois nele Clarice também buscara contar o que sentia diante de cada um dos 13 disparos desferidos à queima roupa pela polícia contra um bandido. Assim começa seu texto:

Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”. Por quê? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134).

Diante do assassinato brutal de Evaldo, também sentimos algo semelhante: pois 80, 257 tiros, 2 2 A contagem de 80 tiros se referia apenas à apuração inicial. Depois confirmou-se que foram disparados ao menos 257 tiros. assassinam a todos nós - aniquilam o outro de que cada um de nós é feito. Mas devemos logo fazer a ressalva de que Evaldo - pai, preto e trabalhador - era também inocente. Nesse caso, a contagem dos disparos não pode proceder da mesma maneira, afinal, se no passado a polícia alvejou um assassino com “treze balas quando uma só bastava” ( LISPECTOR; LERNER, 1992LISPECTOR, Clarice; LERNER, Júlio. A última entrevista de Clarice Lispector. Shalom, n. 296, p. 62-69, 1992., p. 12), Evaldo não merecia uma bala sequer.

Então, como contar o primeiro disparo? Essa questão também atormenta Luciana, esposa de Evaldo, que conta:

Por que o quartel fez isso? Eu disse, amor, calma, é o quartel. Ele só tinha levado um tiro, os vizinhos começaram a socorrer. Eu ia voltar, mas eles continuaram atirando, vieram com arma em punho. Eu coloquei a mão na cabeça e disse: ‘Moço, socorre meu esposo’. Eles não fizeram nada. Ficaram de deboche. Tem um moreno que ficou de deboche e rindo. (...) Não sei o que falar para meu filho. Eles me deixaram e mandaram eu correr. Eu tinha que ter ficado para morrer com ele, eu e meu filho. 3 3 Agência Brasil. “Não sei o que falar para meu filho, diz viúva de músico morto no Rio” Revista Exame, 08/04/ 2019. Grifo meu. https://exame.abril.com.br/brasil/nao-sei-o-que-falar-para-meu-filho-diz-viuva-de-musico-morto-no-rio/ ( AGÊNCIA BRASIL, 2019AGÊNCIA Brasil. Não sei o que falar para meu filho, diz viúva de músico morto no Rio. Revista Exame, 2019. Disponível em: https://exame.com/brasil/nao-sei-o-que-falar-para-meu-filho-diz-viuva-de-musico-morto-no-rio/ . Acesso em: 20 maio 2022.
https://exame.com/brasil/nao-sei-o-que-f...
, n.p., grifo do autor)

Entre o “alívio de segurança” sentido pela cronista e a exortação de tranquilidade - “amor, calma, é o quartel” - da vítima, paira o primeiro disparo. Seriam essas as duas faces paradoxais de uma mesma moeda cunhada pelo monopólio da violência pelo Estado? É esse o preço a ser pago por nossa segurança: reagir com tranquilidade à possibilidade que um outro - ou nós mesmos - possamos ser alvejados ao menos uma vez pela polícia, em troca de nossa defesa?

No presente artigo vamos examinar, justamente, os afetos ligados ao primeiro disparo policial. O que eles implicam em termos de subjetividade, sociedade, política. Em última instância, perguntaremos: como transformar esses afetos em prol de uma comunidade mais justa? Para abordar tais afetos, precisaremos seguir à risca a prevenção de não trair sensações contraditórias diante de fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também. Assim sendo, passaremos sempre dos fatos à insubordinação. Primeiro, vamos discutir o contexto da crônica “Mineirinho”, para em seguida propor uma leitura do conceito alternativo proposto por Clarice. Em seguida, passaremos ao caso Evaldo Rosa, elucidando o contexto e refletindo sobre a pertinência da reflexão clariciana à luz do cenário da violência atual.

Mineirinho e o surgimento da violência urbana

José Miranda Rosa, mais conhecido como Mineirinho, foi o inimigo número um da polícia carioca em seu tempo. Assaltava lojas à luz do dia, confrontava policiais de peito aberto, protagonizava as fugas mais improváveis das cadeias e de perseguições. Agia quase sempre sozinho, mas podia liderar com visão quadrilhas e rebeliões prisionais. Mesmo assim, Mineirinho era pobre e mal tinha posses; alegre e amigável, ia gastar tudo que roubava se divertindo no morro, pois gostava muito de samba e namorava Maria Helena, “a maior de todas as mulatas da Mangueira” (PAPE apud VENTURA, 1994bVENTURA, Zuenir. Seja Marginal, Seja Herói. In: Cidade Perdida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994b. p. 39., p. 39). Para polícia e a imprensa marrom, Mineirinho era um bandido com inteligência acima da média; mas para o morro, ele era uma lenda - uma espécie de Robin Hood às avessas; e por isso podia contar com guarida dos moradores sempre que precisasse escapar da polícia.

No dia de 1º de Maio de 1962, dia dos trabalhadores, mais de 300 policiais saíram em seu encalço. Após algumas estripulias, Mineirinho seria executado com treze belas disparadas à queima-roupa, tendo seu corpo despejado em um descampado afastado do local original do assassinato, onde os oficiais tentariam simular a cena de um crime comum. Conta-se que, em seu enterro, mais de duas mil pessoas compareceram. O noticiário sensacionalista assim festejou a morte:

Com uma oração de Santo Antônio no bolso e um recorte sobre seu último tiroteio com a Polícia, o assaltante José Miranda Rosa, “Mineirinho”, foi encontrado morto no Sítio da Serra, na estrada Grajaú-Jacarepaguá, com três tiros nas costas, cinco no pescoço, dois no peito, um no braço esquerdo, outro na axila esquerda e o último na perna esquerda, que estava fraturada, dado à queima-roupa, como prova a calça chamuscada. ( WEGUELINWEGUELIN, J.M. Mineirinho. O Rio de Janeiro Através dos Jornais, S.d. Disponível em: http://www1.uol.com.br/rionosjornais/rj45.htm . Acesso em: 20 maio 2022.
http://www1.uol.com.br/rionosjornais/rj4...
, s.d., n.p.).

O líder da megaoperação que assassinou Mineirinho foi o detetive Milton Le Cocq. Conta Zuenir Ventura que dois “tiras da pesada” dominaram o imaginário do Rio de Janeiro nos anos 1950 e 1960: Le Cocq e Perpétuo. Vale a pena conhecê-los, porque tinham filosofias muito distintas sobre o primeiro disparo: um orgulhava-se de nunca precisar disparar; já o outro preferia atirar primeiro, para perguntar depois.

“Moreno como um índio, alto e forte” ( VENTURA, 1994aVENTURA, Zuenir. Dois Tiras da Pesada. In: Cidade Perdida. São Paulo: Companhia das Letras , 1994a. p. 25, p. 25), Perpétuo ficou famoso por prender grandes bandidos sem dar um único tiro. Ele era hábil em se passar por trabalhador, mendigo ou malandro. Assim, ia despercebido aos bares e bordéis, ou se escondia nos matagais, para então emboscar a caça indefesa em seus momentos de descanso e lazer. Depois de cada grande feito, Perpétuo se vestia com seu tradicional terno de linho branco e posava para imprensa, dando lição de moral. Na medida do possível para alguém de sua profissão, era bem-quisto no morro. Gostava de distribuir balas à criançada, arranjava emprego para ex-detentos, enviava comida e roupas para as viúvas cujos maridos foram vítimas de assassinos que ele não havia conseguido prender a tempo. Corria a lenda que Perpétuo tinha o corpo fechado, pois nunca havia sido alvejado numa emboscada. Mas acabou assassinado a tiros - não por bandidos, mas por colegas de profissão em meio a uma campanha de vingança pela morte do outro, Le Cocq.

Este tornou-se conhecido menos pelo ardil que pela brutalidade. Milton Le Cocq orgulhava-se da fama de justiceiro matador. Aliava visão tática com extrema frieza. Não gostava de aparecer na mídia, mas sempre tramava caçadas espetaculares com emprego de força desproporcional - como a campanha contra Mineirinho. À frente do “Grupo de Diligências Especiais”, cujos membros ele recrutara do antigo “Esquadrão Motorizado” da Polícia Especial da Ditadura Vargas, da qual ele próprio fez parte, Le Cocq logo se tornaria o mais temido delegado carioca. O emblema escolhido pelo grupo trazia uma caveira sobre ossos cruzados, seguida da sigla E.M., que a imprensa logo começará a traduzir como Esquadrão da Morte.

Não foi à frente de uma grande operação, mas a mando do jogo do bicho que Le Cocq acabaria morto na Vila Isabel, numa emboscada fracassada que tentara armar contra um ladrão chinfrim, jovem cafetão e achacador de bicheiros; preguiçoso, feio e pobre, um tanto esperto, mas sem a inteligência de Mineirinho; em suma, alguém que Le Cocq não deveria ter tido problema algum para apagar - com esse único feito, o bandido Cara de Cavalo tornou-se inimigo número um do Rio de Janeiro.

Para vingar a morte do delegado, surge a Scuderie Le Cocq, força paramilitar que em seu auge contou com mais de 7 mil associados, e que seria extinta apenas nos 2000 - coincidentemente, momento em que se expandem as milícias por todo o território do Rio, e que declaradamente se inspiraram nela. Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram ao longo da caçada a Cara de Cavalo apenas por se parecerem com ele; e como havia um prêmio para a captura, um clima de competição desenfreada instaurou-se entre os policiais - num desses desentendimentos, morreu Perpétuo “com um tiro que lhe atravessou o coração (entrou na axila direita e saiu na mesma região, do lado esquerdo)”. 4 4 Redação. “Perpétuo Morre na Favela do Esqueleto” Correio da Manhã. Quarta-feira, 02/09/1964 Conta-se que Perpétuo tinha boas informações sobre o paradeiro de Cara de Cavalo, mas preferiu naquela noite agir sozinho: queria surpreendê-lo indefeso, como de costume. Acabou despertando inveja e ira de dois colegas da Invernada da Olaria (a mais temida delegacia daquele tempo, devido às práticas de tortura e execução de bandidos, além de aterrorizamento constante da população), que o assassinaram. Dias mais tarde, a Scuderie Le Cocq executaria Cara de Cavalo com 62 tiros, dentre os mais de 100 disparados. A fotografia do corpo alvejado de Cara de Cavalo - que era amigo do artista Hélio Oiticica, ao contrário de Mineirinho, com quem o artista disputava em vão o coração de Maria Helena - seria eternizado no “B33 Bólide Caixa 18 ‘Homenagem a Cara de Cavalo’” (1965) e na bandeira-poema “Seja Marginal, Seja Herói” (1968).

Estava chocado o “ovo da serpente”, conforme descreve Zuenir Ventura o arco que levou do Estado Novo à ditadura militar ( VENTURA, 1994aVENTURA, Zuenir. Dois Tiras da Pesada. In: Cidade Perdida. São Paulo: Companhia das Letras , 1994a. p. 25). Segundo Michel Misse, um dos principais sociólogos da criminalidade brasileira, a violência urbana começa “exatamente no mesmo período em que surgem os primeiros esquadrões da morte no Rio de Janeiro, em meados dos anos 1950” ( MISSE, 2008MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, v. 8, n. 3, p. 371-385, 2008. , p. 375). Misse recorda que até essa década os crimes mais comuns eram contravenções penais e crimes de menor gravidade, tais como pequenos furtos, brigas com ferimentos leves, estelionato; e ainda, crimes sem uso de violência, como sedução, adultério e lenocínio. O homicídio, quando ocorria, era quase sempre em decorrência de crimes passionais ou ligados à honra, e costumava desembocar em suicídio do autor. Mesmo os crimes contra propriedade privada raramente recorriam ao uso de força física ou ameaça. A sociedade brasileira dos anos 1950, explica Misse, refletia ainda uma certa normalização do comportamento que evoluíra desde o século XIX, e que se baseava na internalização de valores tradicionais mais que na escolha racional de aderir ou não a condutas publicamente legitimadas. O Brasil era ainda

um país hierárquico, tradicional, desigual, mas onde não havia ainda uma demanda forte de igualdade, onde não havia uma pressão por acesso a direitos, onde não havia também uma sensibilidade maior para a violência, que já estava ali, mas que ainda não era percebida como um problema. Ficava confinada aos jornais sensacionalistas, lidos apenas pelas classes populares ( MISSE, 2008MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, v. 8, n. 3, p. 371-385, 2008. , p. 376).

Será somente em meados dos anos 1950 que nas principais capitais do Brasil os assaltos à mão armada se tornam mais frequentes - contra taxistas, postos de gasolina, residências, bancos etc. O contrabando e o jogo do bicho são reconfigurados, ganhando poder político e influência social; começa, assim, o crime organizado, no formato moderno de estilo empresarial, o que levará a imprensa carioca a comparar a capital fluminense à Chicago dos anos 1920.

É nesse contexto que o protagonismo de Le Cocq e o ostracismo de Perpétuo começam. Para esse, como vimos, era a capacidade de colocar-se no lugar do outro que era mais determinante para eficácia tática da investigação e prisão. Como a sociedade tradicional refletia ainda certa estabilidade e circularidade de valores, conhecer como eles eram internalizados pelos indivíduos e atuar com mínima perturbação das relações sociais era fundamental. Le Cocq, por sua vez, vai refletir uma sociedade cujos valores cambiavam em virtude de um vertiginoso processo de modernização, e que ainda lutava para manter intactas as hierarquias sociais que, em virtude desse mesmo processo, começavam a ser questionadas pelas classes oprimidas. Assim emerge a figura do justiceiro, também mencionada por Clarice, que vai amplificar uma “insatisfação com a modernidade judicial, lenta e cercada de garantias, em benefício do eterno retorno da vingança, mesmo que uma vingança impessoal e universalizada como justa” ( MISSE, 2008MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, v. 8, n. 3, p. 371-385, 2008. , p. 377). A vingança contra o outro passa a ser o principal elemento de estabilização de uma sociedade que se transforma incessantemente, mas que em prol do status quo atua para excluir as demandas do outro do processo de modernização.

Importante destacar que toda essa mutação da violência só será tardiamente registrada pelos sociólogos brasileiros. Até a década de 1970, o tema da criminalidade urbana era pouquíssimo estudado. Reinava ainda a imagem de um país cordial e pacífico - que inconfessadamente virava às costas para experiência da escravidão ( MISSE, 2008MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, v. 8, n. 3, p. 371-385, 2008. ). Assim sendo, a crônica de Clarice, além de testemunhar os primórdios de uma transformação crucial do processo de “acumulação social da violência” ( MISSE, 2008MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, v. 8, n. 3, p. 371-385, 2008. , p. 378), é também pioneira ao enfatizar a necessidade de se fazer uma crítica do processo de subjetivação que acompanha a nova demanda por segurança.

“Conheci o Mineirinho, a mulher dele, Maria Helena, e o Cara de Cavalo. Eram bandidos românticos. Poderiam até atirar num policial, o que significava que estariam jurados de morte. Mas você podia frequentar o morro inteiro” 5 5 Daniela Name. “Em entrevista com Lygia Pape sobre sua Exposição Trabalhos da artista. Centro de Arte Hélio Oiticica” Jornal “O Globo”, 13/12/ 2001 ( NAME, 2001NAME, Daniela. Em entrevista com Lygia Pape sobre sua Exposição Trabalhos da artista. Centro de Arte Hélio Oiticica. Jornal O Globo, p. 1, 13 dez. 2001., p. 1), recorda a artista Lygia Pape. Esse mundo deixa rapidamente de existir. Tanto o justiceiro quanto o bandido deixam de representar indivíduos desviantes das normas tradicionais, para se tornarem categorias sociais abstratas, ou melhor dizendo, funções de um dispositivo repressor.

Para compreender o funcionamento desse dispositivo, é preciso considerar de que modo nossa sociedade desenvolveu a ideia moderna de crime. Misse explica que a evolução do direito penal se deu aqui de modo inverso que na Europa. Lá ela teria seguido de acordo com uma cronologia típica racional-legal. Isto é, se passa da: 1) criminalização: em que um curso de ação passa a ser considerado crime, em virtude de uma campanha pública ou da tradição; à 2) criminação: em que ocorre a análise de contexto para determinar, à luz de uma norma ou lei, se um evento suspeito deve ser classificado como crime; e, por fim, à 3) incriminação: em que há identificação de um autor, para busca e punição do sujeito causal.

No Brasil, o processo não se deu por via racional-legal, mas inversamente, através do que Misse define como dispositivo de sujeição criminal. Isto é, aqui define-se primeiro o criminoso, em seguida o espaço de “atuações criminosas”, e em último caso procura-se pelos crimes aplicáveis. Certos brasileiros passam a ser classificados como bandidos antes mesmo de nascer, somente devido a renda, o lugar em que mora, a cor da pele... Esse dispositivo não vai só determinar como esses corpos serão vistos, retratados, reprimidos. Ele vai modelar até mesmo a subjetividade desse sujeito.

Ao contrário do criminoso hegeliano, que realiza sua liberdade tanto ao cometer o crime quanto ao ser condenado a perdê-la, o que supõe uma trajetória racional-legal tanto do criminoso quanto dos procedimentos de criminação/incriminação que lhe condenaram, o nosso criminoso já perdera sua liberdade antes de cometer o crime e, ao cometê-lo, procura resgatá-la, atualizando-a no crime, identificando-se com ele, tornando-se seu sujeito potencial a ponto de, no limite, reconhecer-se em sua superioridade moral. Ao fazê-lo, no entanto, aliena-se completamente nos dispositivos que o assujeitam ao Código Penal. É comum no Brasil o sujeito ganhar o nome do artigo do Código que transgrediu: “171” (estelionato), “121” (assassino), “157” (assaltante), ”213” (estuprador), “12” (traficante) etc. ( MISSE, 2008MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, v. 8, n. 3, p. 371-385, 2008. , p. 378).

Aquele que foi previamente definido como “bandido” terá sua vida colocada “sob cerco”, conforme descreve o sociólogo Luiz Antônio Machado da Silva, “uma experiência de confinamento socioterritorial e político que causa nos moradores de favelas uma intensa preocupação com manifestações violentas que impedem o prosseguimento de suas rotinas e dificultam a manifestação pública de suas demandas” ( MACHADO DA SILVA; MENEZES, 2019MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio; MENEZES, Palloma. (Des)continuidades na experiência de “vida sob cerco” e na “sociabilidade violenta. Novos Estudos. CEBRAP, v. 38, n. 3, p. 529-551, 2019. , p. 513). Nos territórios mantidos sob cerco, como os morros cariocas, o “bandido” é meramente alguém “que pode ser morto” - o que virtualmente inclui todos os que se encontram nesses territórios mantidos sob um regime de exceção; são por excelência figuras do Homo Sacer definido por Giorgio Agamben, que foi criticamente reinterpretado por Achille MbembeMBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018. em sua teoria das práticas racistas de necropolítica de Estado.

O dispositivo de sujeição criminal reflete, ao mesmo tempo que cria, uma desigualdade de direitos que passa a atravessar todo o sistema de crenças acerca da incriminação do Brasil, e que vai ser determinante para a emergente “sensibilidade jurídica” de todas as classes sociais brasileiras para a questão da insegurança. Essa sensibilidade passa a ser organizada a partir da oposição entre trabalhador e bandido. Segundo Gabriel Feltran, essa oposição categórica perpassa desde as dinâmicas domésticas das famílias de favela até o universo social e os debates públicos. Não se trata de categorias fixas, mas altamente plásticas; o poder repressivo tem liberdade para definir o que deve significar “bandido” e “trabalhador” caso a caso, de acordo com o escopo da repressão.

Social e publicamente, estas categorias são muito mais plásticas, e não necessariamente se referem aos praticantes de atos criminais. Mais do que isso, nestas esferas não há composição possível entre 'trabalhadores' e 'bandidos' - ali, é consensual que os 'trabalhadores' merecem proteção, e que os 'bandidos' carecem de repressão. As forças sociais e públicas destinadas a um e outro, portanto, são opostas e complementares: a repressão dos 'bandidos' significa proteção dos 'trabalhadores'. Os conjuntos não se misturam (mas as categorias que os classificam incluem mais ou menos indivíduos em seu interior, a depender da situação). ( FELTRAN, 2007FELTRAN, Gabriel. Trabalhadores e Bandidos: categorias de nomeação, significados políticos. Temáticas, v. 15, n. 30, p. 1-27, 2007. , p. 44).

Segundo Feltran, quanto mais a ação repressiva policial é “pública” (no sentido de que a atuação num espaço público realmente existente é organizada centralmente por atores dominantes), mais abrangente e inclusiva se torna a categoria de “bandido”. Assim sendo, em tempos de normalidade a ação policial de rotina se limita a agir contra indivíduos já bem identificados como praticantes de atos criminais (os com passagem criminal ou notoriamente conhecidos nas ruas como tal). Já em operações policiais ostensivas, de caráter mais público, a categoria “bandido” passa a incluir grupos de amigos, vizinhos e familiares dos que supostamente praticam atos ilícitos. Por fim, quando se trata de instituir um regime de exceção em larga escala, a categoria “bandido” atinge máxima abrangência inclusiva, podendo incluir qualquer um que se encontre nas áreas mantidas sob cerco pelo aparato repressivo. 6 6 Feltran dá como exemplo a resposta da polícia aos “ataques do PCC” de 2006, em que a facção demonstrou sua força praticamente paralisando toda a São Paulo por três dias. A Polícia Militar vai responder à ação com uma ofensiva contra as periferias - deixando saldo de 493 mortos, em sua maioria jovens sem ligação comprovada com o crime organizado, mortos em decorrência da fisionomia jovem e preta, mesmo quando estavam em deslocamento para o trabalho ( FELTRAN, 2007). Feltran argumenta que, embora fosse amplamente notório, inclusive para setores da mídia conservadora, de que se tratava de um ataque coordenado e profissional, o extermínio de jovens pretos e pobres foi percebido publicamente como legítimo, e não como uma contradição ou testemunho da ineficiência da PM no combate ao crime organizado. Nesse sentido, se observarmos cronologicamente, a violência contra Mineirinho é exemplo da atuação contra o “bandido” em sentido estrito; já a caçada de Cara Cavalo teve caráter mais público, e por isso muitos inocentes foram mortos inadvertidamente; e por fim, como irei sugerir mais adiante, o assassinato de Evaldo representará a categoria “bandido” em sua máxima plasticidade, em virtude de um regime de militarização e milicianização do Rio.

A crítica do acusador último

A crônica “Mineirinho” oferece uma crítica radical da sensibilidade jurídica justiceira fomentada pelo dispositivo de sujeição criminal. Clarice vai mapear tanto o que esse dispositivo produz, quanto buscar meios de superá-lo. Clarice vai se concentrar nesse limiar último e essencial em que são distinguidos o trabalhador e o bandido, o cidadão de bem e o criminoso, sem o qual o dispositivo não pode operar. A autora teria intuído que o fundamento da sujeição criminal não é apenas o extermínio físico do outro, mas também a eliminação de toda experiência de ser e desejar tornar-se um outro. Para tornar o outro matável, o dispositivo vai erigir um nós que deve ser protegido. Com isso, temos o bandido versus cidadão de bem, e ainda a vida sob cerco versus a vida doméstica; categorias que Clarice vai redefinir como o homem acuado que age “feito doido” versus os sonolentos “sonsos essenciais”, e ainda o terreno, o chão versus a casa fraca.

Como Clarice vai buscar entender - no sentido de desorganizar - essa oposição entre nós e o outro mediada pelo dispositivo de sujeição criminal? A partir da instância do eu. Mas esse “eu” tem sentido ambíguo. A crônica foi escrita na primeira pessoa do singular, à medida que Clarice investiga sua própria dor diante da morte de um facínora. Mas a autora destaca que se interessa pelo eu enquanto “um dos representantes do nós" ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134); não obstante, o texto frequentemente passa à terceira pessoa do singular. Essa relação de representatividade, por sua vez, não é pré-determinada, mediada por conceitos categóricos, gerais e abstratos, como cidadão e sociedade, homem e a humanidade. O “eu” compreende antes uma tensão: o confronto aberto entre nós e o outro, mas também uma possibilidade de reconciliação. Assim sendo, o “eu” será caracterizado pelo texto como uma instância que pode tanto separar o outro do nós, quanto tornar-se matéria de um devir-outro em nós. Haveria, portanto, um eu absoluto e um eu imanente.

Clarice recorre à metáfora do espelho para apresentar as oposições absolutas, todas elas mediadas pelo dispositivo. O bandido espelharia o cidadão de bem; seu corpo inerte justiçado refletiria o sono tranquilo dos que se consideram justos; seu “bruto grito desarticulado” de violência refletiria a furtividade dos que evitam “o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134); sua vontade de amar e agredir “feito doido” espelharia a nossa capacidade de ser sonso, para não ter de exercer nossa revolta e o amor. Em resumo, Mineirinho seria, para usarmos uma expressão contemporânea, 7 7 “um tipo histórico completamente utilitarista, dirigido por pulsões e não por valores intersubjetivamente compartilhados. O exemplo mais acabado da sociabilidade violenta é o “bicho louco” — representação que enfatiza o caráter incontrolável e aleatório das práticas de alguns traficantes.” ( MACHADO; MENEZES, 2019, p. 513). o “bicho louco” 8 8 Na crônica, Clarice sugere que Mineirinho seria um bandido doido, também capaz de amar “feito doido”; e que só como doidos poderíamos entendê-lo. em que Clarice vê refletida a calculada indiferença dos “sonsos essenciais” - os sempre predispostos a fingir “que estamos todos certos e que nada há a fazer” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 135).

À primeira vista, o “eu” de Clarice é um representante do nós, os sonsos essenciais. Isso a revolta. Ela se recusa a aderir a essa inocência impotente, em cuja fraqueza se legitima a ação do justiceiro. Porque foi assim que “em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134). E se “tudo o que nele foi violência é em nós furtivo”, afinal, “como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia?”, se ele “viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134)? Essas perguntas aludem à revolta e ao desejo de escapar de outra função do dispositivo de sujeição criminal: a figura do acusador último.

Misse explica que o dispositivo de sujeição criminal funciona recorrendo sempre a “um intérprete virtual, um acusador último, que em rodízio ocupará as várias posições, mas que restará sempre crente de que ele próprio não cederá à sujeição” ( MISSE, 2008MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, v. 8, n. 3, p. 371-385, 2008. , p. 381). Trata-se, vulgarmente, da “pessoa de bem”, “acima de qualquer suspeita”. Do mesmo modo que o dispositivo fabrica o sujeito criminal que ele irá reprimir, ele atua institucional e culturalmente para produzir a figura imaginária de um nós ontologicamente inocente. Novamente, se trata de uma categoria plástica, que pode eventualmente incluir entre os cidadãos de bem o justiceiro que tortura e mata com prazer. 9 9 “No Rio de Janeiro, um “survey” recente - de ampla divulgação na imprensa - constatou que cerca de um terço da população defende o uso da tortura para arrancar confissões dos sujeitos criminais. Naturalmente, a tortura deverá ser empregada nesse Outro, que é o sujeito criminal, e não em qualquer pessoa incriminada, muito menos em mim, que não me vejo como passível de ser incriminável. Do mesmo modo, defendo a “lei seca” que criminaliza, na direção de veículos, o motorista que bebeu, mas defendo “para os outros”, não para mim.” ( MISSE, 2008, p. 318)

Clarice demonstra consciência do risco de se colocar no papel de acusador último. Logo no início da crônica vamos testemunhar justamente as tensões entre classe trabalhadora e classe média. A escritora e sua cozinheira, embora partilhassem a dor confusa diante da execução de um facínora, vão travar um diálogo tenso, em que esta, ao ser interrogada pela patroa, chega a se sentir incomodada, como se estivesse diante de uma “justiça que se vinga” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134). Isso porque a relação entre elas é sobredeterminada pela oposição entre nós e outro que, como vimos, é plástica e pode passar a incluir, a qualquer momento, toda a classe pobre trabalhadora como objeto da ação repressora.

Os sonsos essenciais são os que se consideram acima de qualquer suspeita, ou seja, ontologicamente à margem da ação do dispositivo de sujeição criminal. Clarice vai descrevê-los como os que se apresentam como “baluartes de alguma coisa” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 135), os que buscam refúgio no abstrato, em palavras que misturam perdão e caridade vaga. Eles são os acusadores últimos, os que se recusam a entender o mundo ao seu redor e que eles, todavia, julgam. “Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo - uma coisa que entende” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 135). Os sonsos essenciais são os que vão consentir com o primeiro disparo, com alívio, tranquilidade.

Aos sonsos interessaria, essencialmente, dormir; por isso, vivem presos em casa e carecem de uma “justiça que vela meu sono” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134). Uma justiça “estupidificada”, uma “maldade organizada” em defesa de uma casa fraca (...) cuja porta protetora eu tranco tão bem” mas que “não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 135). Para que essa casa funcione e não estremeça - para que permaneça fora do alcance do outro - não bastaria a justiça; é preciso ainda que o sonso se mantenha fechado à existência do outro, e ao desejo de tornar-se ele. É preciso que “não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134).

Albert Camus escreveu certa vez que “quando todos formos culpados, essa sim será a verdadeira democracia!” ( VIRILIO, 2005VIRILIO, Paul. The Information Bomb. Londres: Verso Books, 2005., p. 65). Clarice chega a uma conclusão análoga para o caso Mineirinho. Ao ver no corpo inerte de Mineirinho refletido o seu sono tranquilo, Clarice admite que errou, e que esse “erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134). Mas acrescenta que “não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso” (LISPECTOR, 2015, p. 134), pois “meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134).

Note-se que Clarice não faz uma denúncia da injustiça em função da noção abstrata dos direitos humanos universais. Pois isso implicaria resgatar o eu absoluto, mais vulnerável à ação do dispositivo que vai deduzir dele o outro absoluto, matável. Conforme explicam Andityas Matos e Francis Garcia Collado, “invocar pretensões de direito produz, como efeito necessário, separações (...) dizer algo como ‘meu/nosso direito’ implica imediatamente a cisão com os outros” ( MATOS; COLLADO, 2022MATOS, Andityas; COLLADO, Francis Garcia. Para Além da Biopolítica. São Paulo: Sob Influência, 2022., p. 52). O léxico jurídico-político necessariamente opera através de “lógicas da separação e da exclusão-inclusiva excepcional” ( MATOS; COLLADO, 2022MATOS, Andityas; COLLADO, Francis Garcia. Para Além da Biopolítica. São Paulo: Sob Influência, 2022., p. 52) em que a mais importante será a oposição nós/outro, isto é, aqueles a quem uma lei concerne e os que foram dela excluídos. Nesse sentido, “não é coincidência o fato de que a afirmação dos direitos universais do ‘homem’ veio historicamente acompanhada pela expansão policial e administrativa dos Estados chamados a concretizá-los” ( MATOS; COLLADO, 2022MATOS, Andityas; COLLADO, Francis Garcia. Para Além da Biopolítica. São Paulo: Sob Influência, 2022., p. 53).

Os direitos humanos só podem ter como objeto o eu absoluto. Nisso concorda Giorgio Agamben, que produz uma crítica provocativa dos direitos humanos, argumentando que eles seriam ao mesmo tempo libertação e submissão da vida à soberania, o local em que se tramaria o elo entre direito e sujeição biopolítica. No primeiro tomo de Homo Sacer, Agamben afirma que todo homem viria a se tornar vida nua em função da máquina jurídico-política ocidental, que produziria a política, o direito e a vida a partir de uma estrutura de exceção ( AGAMBEN, 2010AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer I: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2010.).

Em caminho contrário, Clarice vai fazer um elogio da vida imanente, a defesa de uma “justiça prévia”, que podemos chamar de biopotente ( MATOS; COLLADO, 2022MATOS, Andityas; COLLADO, Francis Garcia. Para Além da Biopolítica. São Paulo: Sob Influência, 2022.). O filósofo Gilles Deleuze descreve o movimento da imanência como a potência irredutível de um “fazer-se, que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida (...) um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivido e o vivível” ( DELEUZE, 2008DELEUZE, Gilles. Literatura e Vida. In: Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 2008. p. 11-17. , p. 11).

Em entrevista à TV Cultura em 1977, Clarice explica que em sua crônica, motivada por uma revolta enorme, “eu me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia” ( LISPECTOR; LERNER, 1992LISPECTOR, Clarice; LERNER, Júlio. A última entrevista de Clarice Lispector. Shalom, n. 296, p. 62-69, 1992.). Ao se ver refletida em Mineirinho, Clarice pode recriar, em função de uma relação de devir eu-eu, o que havia sido separado em termos abstratos categóricos como outro/nós. Esse movimento desautoriza a lógica de separação, bem como de exclusão-inclusiva, que, na prática, legitima a ação justiceira. O objetivo dessa manobra é fundar uma outra “justiça que olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 135).

Segundo a crítica Yudith Rosenbaum, a ética clariciana comporta “a ideia de uma força vital, informe e indeterminada, substrato humano mais arcaico e fundamento tanto do mal quanto da virtude, assume as mais variadas figurações metafóricas na obra clariciana. O traço comum em todas elas é a volatilidade, a inconsistência material, o aspecto liquefeito ou energético” ( 2010ROSENBAUM, Yudith. A ética na literatura: leitura de "Mineirinho", de Clarice Lispector. Estudos Avançados, v. 24, n. 69, p. 169-182, 2010., p. 59). Isso explicaria, inclusive, a própria forma da crônica “Mineirinho” que, de acordo com Rosenbaum, comporta uma estrutura litúrgica, em que a repetição de frases e palavras sugerem uma reza ou oração.

Tal força vital é evocada como princípio de entendimento - mudo, feroz -capaz de desorganizar a sensibilidade jurídica que se organiza, conforme o dispositivo de sujeição criminal, de modo binário e excludente. Para Clarice, o que levou Mineirinho gostar “feito doido” de Maria Helena seria a mesma força que em nós

é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador - em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, não me perdi, experimentei a perdição. ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134) .

Waly Salomão, ao comentar o slogan “Seja Marginal, Seja Herói”, explicava que toda postura crítica implica inevitáveis ambivalências, e nisso residia o potencial subversivo do mote. Ele explicava citando Maria Helena, a mulher que pusera doido tanto o Mineirinho quanto o homossexual Hélio Oiticica:

Por exemplo, Maria Helena, ex-passista da Mangueira, foi mulher de bandido, do Mineirinho, depois ela se tornou mulher do cara que matou Mineirinho, Euclides, um dos homens de ouro do grupo de extermínio. Sobre Maria Helena, Hélio repetia dezenas de vezes, incontido:

- Maria Helena, ninguém samba como você! ( SALOMÃO, 2015SALOMÃO, Waly. Hélio Oiticica: Qual é o Parangolé? E outros Escritos. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. E-book., E-book).

Salomão, citando Oiticica, arremata: sem estarmos aberto à perigosa beleza das ambivalências - atento para o momento em que, de repente, alguém se incendeia em samba - não poderemos, propriamente, colocar em questão o todo intolerável estado de coisas. Esse mesmo tipo de olhar que se volta para a passista, Clarice pede que voltemos para seu amante, um facínora.

Assim sendo, haveria o nós em que reina o eu absoluto, em absoluta oposição ao outro que encarna o mal; mas haveria ainda um outro nós, em que o eu é sempre um outro, isto é, em que o “eu” é imanente a um devir-outro, em si belo e amoroso, mas que pode tornar-se perigoso sempre que pisado. Assim sendo, o objetivo da crônica não é denunciar uma injustiça, mas propor uma outra lógica de justiça imanente a um sentido de comunidade.

Se a oposição eu/nós sancionava a fronteira entre bicho louco e sonso essencial, em que age o justiceiro; o devir eu-eu vai fundar a possibilidade de um “nós” mais divino, pois “se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime”.

Mas nesse ponto Clarice alerta, com um lamento: “Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134) . A justiça imanente de Clarice se opõe a toda forma de acusador último, e nisso se volta contra a noção de Deus.

[Mineirinho] Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranquila e que outros furtivamente fingirão que esta mos todos certos e que nada há a fazer. ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 135) .

A revolta irredutível de Clarice exige que nosso erro seja nosso, e não delegado a um Deus que sanciona as oposições absolutas entre bem/mal, do qual se deduz as categorias de pessoa de bem versus bandido.

O quinto mandamento - “a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis” - possui uma contradição inaparente. Não matarás: eis a garantia da segurança do corpo e da salvação do espírito. E no entanto, como se trata de uma lei, ela vai produzir, segundo o princípio da exclusão-inclusiva excepcional, o assassino em danação que a ameaça a todos - e que deve ser morto, para não matar. Não obstante, Clarice escreve que “Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança...” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134) .

Daí a contradição do primeiro disparo. A lei “não matarás”, à medida que se refere a um Deus absoluto que sanciona a oposição bem/mal e nós/outro, vai legitimar e inocentar aquele que mata um assassino. É contra esse alívio de segurança, fundamentado na figura do acusador último, que em última instância é Deus, que a “violenta compaixão da revolta” de Clarice vai emergir. Ela exige uma “justiça prévia”, isto é, anterior à legitimação e inocentação ontológica do justiceiro. Esta se funda, como já dito, não na oposição nós/outro, mas na força vital de um devir eu-eu; assim, na ausência de Deus, a justiça se funda na experiência maior, conforme explica Clarice noutro texto: “Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu” ( LISPECTOR, 1964LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964., p. 142-143). Daí que, para Clarice, o princípio “não matarás” é menos uma lei que “ minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim” ( LISPECTOR, 2015LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: Para Não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. p. 134-135. E-book., p. 134). Em lugar da promessa de segurança e salvação, há a garantia mútua de reconhecimento e proteção, não matarás “porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”.

Trabalhador, pai de família, assassinado

“Eu disse, amor, calma, é o quartel”, disse Luciana a Evaldo, quando ele havia levado apenas um tiro; mas os soldados “eles não fizeram nada. Ficaram de deboche”, e alvejaram-no com outra longa rajada de tiros. “Não sei o que falar para meu filho. Eles me deixaram e mandaram eu correr. Eu tinha que ter ficado para morrer com ele, eu e meu filho”. Luciana se revolta por ter sido salva por alguém capaz de debochar da morte do outro, se recusa por ter tido a vida preservada por uma justiça dedicada a exterminar o outro. Por isso, escuto em suas palavras um eco da “revolta irredutível” de Clarice. Porque ela também é o outro, quer ser o outro; e sem essa possibilidade, não valeria a pena viver.

O contexto do assassinato de Evaldo, conforme apurações da Agência Pública, é a Operação Muquiço. Trata-se de uma ação clandestina do exército na favela de mesmo nome, que fica nas adjacências da Vila Militar, alegadamente em proteção das famílias dos soldados que moram nos condomínios. Rescaldo da intervenção militar decretada por Michel Temer, a operação tem caráter híbrido entre grupo de extermínio e formação de milícia.

“O primeiro foi para matar, o segundo para confirmar e o terceiro para fazer a festa”. 10 10 Eduardo Marini “Le Cocq gerou o Esquadrão da Morte e 'parcerias' com os bicheiros do Rio” Portal R7 16/10/2019 https://noticias.r7.com/brasil/le-cocq-gerou-o-esquadrao-da-morte-e-parcerias-com-os-bicheiros-do-rio-16102019 Assim, os membros da Scuderie Le Cocq resumiram os mais de cem tiros que deram contra Cara de Cavalo. Todo ato de justiçamento comporta um aspecto festivo; daí o excesso característico de disparos, de brutalidade, de indiferença, de deboche. Isso porque o justiceiro age como se tivesse sido inocentado de antemão da violência contra o outro. Como uma tal violência poderia ser inocente, inocentada? Nas suas campanhas políticas, Sivuca, um dos exterminadores de Cara de Cavalo, usava a frase que se tornaria famosa: “bandido bom é bandido morto”. Eis o fundamento divino do ato de justiçamento: à medida que o outro passa a encarnar todo o mal, me sinto autorizado a ser um instrumento de Deus e matá-lo. Mas, que Deus é esse. A resposta pode estar na mesma campanha de Sivuca, que trazia ainda a exortação: “diga sim à natureza”.

Como foi de antemão inocentado de matar bandidos - como vimos, pela lei absoluta que opõe bem e mal, mas também pela fraqueza e indiferença dos sonsos essenciais - o justiceiro vai praticar uma violência naturalizada, natural. Nesse sentido, o acusador último passa a assumir um papel de seletor natural. O filósofo Franco Berardi mapeou a emergência dessa figura no contexto do avanço das sociedades neoliberais a partir da década de 1970, em que vem ocorrendo um aumento vertiginoso não só de grupos paramilitares de justiçamento, como de assassinatos em massa.

O seletor natural é aquele que reduziu sua relação com o outro a um princípio de violência. Essa seria a norma na racionalidade neoliberal, que estabelece a competitividade como único critério válido para todas as relações sociais. Tanto o assassino em massa e o justiceiro quanto o economista e o gestor público vão orientar seus atos a partir do “ponto de vista da Natureza, de um fluxo de tempo desprovido de emoção” ( BERARDI, 2016BERARDI, Franco ‘Bifo’. Heroes: Mass Murderer and Suicide. Londres, Verso Books, 2016. E-book., E-book). Este seria também “o ponto de vista do Deus do Velho Testamento, do Deus que criou o homem sem sentir seu sofrimento”. Em outras palavras, a única relação possível com o outro passa a ser a violência, de tal modo que a própria eliminação desse outro - extermínio físico via a ação justiceira, ou extermínio econômico e simbólico via competitividade desenfreada - acaba naturalizada.

Como tudo isso alcança Evaldo e Luciana? Eles pertencem à classe que, hoje, ocupa justamente a fronteira entre nós e o outro. Eles não são nem classe média, nem pobres; são batalhadores. Segundo Jessé Souza, trata-se de uma categoria que ocupa uma posição híbrida entre a classe média e a classe trabalhadora. Como aquela classe, dispõem de recurso e tempo para aquisição de conhecimento valorizado - mas são recursos escassos e o acesso ao conhecimento é restrito ( SOUZA, 2010SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.). Sobre essa classe, recai o maior peso da precarização neoliberal. Luciana é uma enfermeira de cuidados paliativos para pacientes terminais; Evaldo era sambista, segurança e camareiro conhecido entre famosos. Ambos são evangélicos. Haviam comprado o Ford Ka recentemente, e moravam numa casa própria de dois andares, localizada à dois quilômetros de distância de onde ocorreu a tragédia, em Marechal Hermes, que na última avaliação atingiu IDH Alto. 11 11 “Tabela 1772: Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) Municipal, por ordem de IDH, segundo os Bairros ou grupo de Bairros, no Município do Rio de Janeiro em 1991/2000” Instituto Pereira Passos. http://www.data.rio/datasets/índice-de-desenvolvimento-humano-idh-municipal-por-ordem-de-idh-segundo-os-bairros-ou-grupo-de-bairros-no-município-do-rio-de-janeiro-em-1991-2000- Se comparado com os redutos tradicionais da classe média carioca da Zona Sul, o local em que viviam pode ser considerado perigoso, mas para a maioria batalhadora, trata-se de um bom bairro - assim como a Vila Militar, onde Evaldo foi assassinado. A classe batalhadora ascendeu vertiginosamente com o Governo Lula, e em tese teria sido ela que teria ido às ruas em 2013 para pedir por mais saúde, segurança e educação, porque enfrentava dificuldades para dar continuidade para sua trajetória ascendente. Mas essa classe, até o final de 2019, era a faixa com menor rejeição ao governo Bolsonaro. 12 12 Ver: Miguel do Rosário. “Datafolha: Bolsonaro continua perdendo a classe média, mas ganha eleitores mais humildes e de baixa instrução”. O Cafezinho, 30/04/2020, disponível em: https://www.ocafezinho.com/2020/04/30/datafolha-bolsonaro-continua-perdendo-a-classe-media-mas-ganha-eleitores-mais-humildes-e-de-baixa-instrucao/

Porque pertencem à nova classe batalhadora, Luciana e Evaldo não vivenciavam direta e sistematicamente, mas à meia distância, a violência urbana.

Entrevistador: Vocês, mesmo morando aqui no Rio e se conhecendo na favela do Muquiço, não conviviam muito com essa questão da violência?

Luciana dos Santos Nogueira: A gente vê o mundo em que a gente vive, mas a gente nunca imagina que pode acontecer com a gente, sabe? Às vezes você vê que acontece assim, pertinho de você, caramba, aconteceu com meu vizinho, caramba, você sente, você sofre, você sente a dor do teu próximo, quando você liga o jornal… Quando eu paro, assim, pra fechar os olhos, eu me pego, assim, meu Deus, aconteceu comigo! Mas só quem passa mesmo é que sabe o tamanho da dor, entendeu? 13 13 Natália Viana “Minha felicidade ficou para trás, diz viúva de Evaldo Rosa” Carta Capital, 07/10/ 2019. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/minha-felicidade-ficou-para-tras-diz-viuva-de-evaldo-rosa/ ( VIANA, 2019VIANA, Natália. Minha felicidade ficou para trás, diz viúva de Evaldo Rosa. Carta Capital, 07 out. 2019. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/minha-felicidade-ficou-para-tras-diz-viuva-de-evaldo-rosa/ . Acesso em: 20 maio 2022.
https://www.cartacapital.com.br/sociedad...
, n.p.)

Se escutarmos atentamente os sobreviventes dos 257 tiros e seus familiares, veremos que é exatamente esse o problema que eles levantam: quais são as fronteiras da violência para os que batalharam para ascender à classe média? A lógica do primeiro disparo atua contra ou a favor da minha segurança? Por exemplo, no enterro de Evaldo um amigo fez questão de salientar que também tem um Ford KA branco e que, nesse caso, gostaria de saber “se quando eu sair de casa, também vou ser alvejado como foi o Evaldo. A comunidade está com medo”. 14 14 Gabriel Barreira e Henrique Coelho. “'A gente ia morrer junto', diz mulher no enterro do músico fuzilado pelo Exército no Rio” Portal G1. 10/04/2019. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/04/10/carro-fuzilado-musico-e-enterrado-e-presos-sao-ouvidos-na-justica-militar-nesta-quarta.ghtml

A classe batalhadora é nem a cozinheira, nem a patroa e autora da crônica “Mineirinho”. Não obstante, em virtude de sua condição ambígua, essa classe tem enfrentado grandes dificuldades cognitivas e afetivas para encarar a violência policial de um ponto de vista político. O desespero e a vontade de suicídio de Luciana é testemunho da falência sociopolítica dessa classe, que vem sendo habilmente instrumentalizada pela extrema-direita no Brasil em prol de uma política francamente necropolítica, militarizada e milicianizada - que vai vitimar, além dos pobres, também ela.

Daí a necessidade de se retomar a “justiça prévia”, imanente e divina - mas sem Deus - de Clarice, como instrumento que faça circular entre essa classe novos afetos de empatia em relação ao outro, e de revolta irredutível contra a tentativa de nos impedir de ser e desejar tornar-se esse outro. Em palavras literais, trata-se de criar meios de fazer com que essa classe possa ser e desejar ser o pobre preto que ela já não é mais, de tal modo que não haja mais temor que essa identificação possa transformá-la em alguém igualmente matável quanto eles. Pois eles serão matáveis, de qualquer forma, sempre que o escopo da ação de repressão se tornar mais pública; e também é preciso alertá-los. Somente assim a ascensão dessa classe poderá contribuir para desativar, ao invés de incrementar, o dispositivo de sujeição criminal. O caráter ambíguo dessa classe pode servir como meio e fundamento de um devir eu-eu que desative, de modo ainda mais efetivo, a oposição nós/outro. Mas para isso, é preciso passar do susto e tranquilidade que um primeiro disparo ainda desperta em nós para a contínua revolta contra toda segurança que se baseia em “atirar, para depois perguntar”, isto é, na proteção do eu contra o outro. É preciso fazer com que essa classe não deseje o modo de vida de uma “calma” que, na prática, irá rebentar contra ela própria, debochadamente.

Referências

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    » https://exame.com/brasil/nao-sei-o-que-falar-para-meu-filho-diz-viuva-de-musico-morto-no-rio/
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    » http://www1.uol.com.br/rionosjornais/rj45.htm
  • 1
    Tweet de Elza Soares, publicado em 08 de abril de 2019. Disponível em: https://mobile.twitter.com/ElzaSoares/status/1115392306859917313
  • 2
    A contagem de 80 tiros se referia apenas à apuração inicial. Depois confirmou-se que foram disparados ao menos 257 tiros.
  • 3
    Agência Brasil. “Não sei o que falar para meu filho, diz viúva de músico morto no Rio” Revista Exame, 08/04/ 2019AGÊNCIA Brasil. Não sei o que falar para meu filho, diz viúva de músico morto no Rio. Revista Exame, 2019. Disponível em: https://exame.com/brasil/nao-sei-o-que-falar-para-meu-filho-diz-viuva-de-musico-morto-no-rio/ . Acesso em: 20 maio 2022.
    https://exame.com/brasil/nao-sei-o-que-f...
    . Grifo meu. https://exame.abril.com.br/brasil/nao-sei-o-que-falar-para-meu-filho-diz-viuva-de-musico-morto-no-rio/
  • 4
    Redação. “Perpétuo Morre na Favela do Esqueleto” Correio da Manhã. Quarta-feira, 02/09/1964
  • 5
    Daniela Name. “Em entrevista com Lygia Pape sobre sua Exposição Trabalhos da artista. Centro de Arte Hélio Oiticica” Jornal “O Globo”, 13/12/ 2001NAME, Daniela. Em entrevista com Lygia Pape sobre sua Exposição Trabalhos da artista. Centro de Arte Hélio Oiticica. Jornal O Globo, p. 1, 13 dez. 2001.
  • 6
    Feltran dá como exemplo a resposta da polícia aos “ataques do PCC” de 2006, em que a facção demonstrou sua força praticamente paralisando toda a São Paulo por três dias. A Polícia Militar vai responder à ação com uma ofensiva contra as periferias - deixando saldo de 493 mortos, em sua maioria jovens sem ligação comprovada com o crime organizado, mortos em decorrência da fisionomia jovem e preta, mesmo quando estavam em deslocamento para o trabalho ( FELTRAN, 2007FELTRAN, Gabriel. Trabalhadores e Bandidos: categorias de nomeação, significados políticos. Temáticas, v. 15, n. 30, p. 1-27, 2007. ). Feltran argumenta que, embora fosse amplamente notório, inclusive para setores da mídia conservadora, de que se tratava de um ataque coordenado e profissional, o extermínio de jovens pretos e pobres foi percebido publicamente como legítimo, e não como uma contradição ou testemunho da ineficiência da PM no combate ao crime organizado.
  • 7
    “um tipo histórico completamente utilitarista, dirigido por pulsões e não por valores intersubjetivamente compartilhados. O exemplo mais acabado da sociabilidade violenta é o “bicho louco” — representação que enfatiza o caráter incontrolável e aleatório das práticas de alguns traficantes.” ( MACHADO; MENEZES, 2019MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio; MENEZES, Palloma. (Des)continuidades na experiência de “vida sob cerco” e na “sociabilidade violenta. Novos Estudos. CEBRAP, v. 38, n. 3, p. 529-551, 2019. , p. 513).
  • 8
    Na crônica, Clarice sugere que Mineirinho seria um bandido doido, também capaz de amar “feito doido”; e que só como doidos poderíamos entendê-lo.
  • 9
    “No Rio de Janeiro, um “survey” recente - de ampla divulgação na imprensa - constatou que cerca de um terço da população defende o uso da tortura para arrancar confissões dos sujeitos criminais. Naturalmente, a tortura deverá ser empregada nesse Outro, que é o sujeito criminal, e não em qualquer pessoa incriminada, muito menos em mim, que não me vejo como passível de ser incriminável. Do mesmo modo, defendo a “lei seca” que criminaliza, na direção de veículos, o motorista que bebeu, mas defendo “para os outros”, não para mim.” ( MISSE, 2008MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, v. 8, n. 3, p. 371-385, 2008. , p. 318)
  • 10
    Eduardo Marini “Le Cocq gerou o Esquadrão da Morte e 'parcerias' com os bicheiros do Rio” Portal R7 16/10/2019 https://noticias.r7.com/brasil/le-cocq-gerou-o-esquadrao-da-morte-e-parcerias-com-os-bicheiros-do-rio-16102019
  • 11
    “Tabela 1772: Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) Municipal, por ordem de IDH, segundo os Bairros ou grupo de Bairros, no Município do Rio de Janeiro em 1991/2000” Instituto Pereira Passos. http://www.data.rio/datasets/índice-de-desenvolvimento-humano-idh-municipal-por-ordem-de-idh-segundo-os-bairros-ou-grupo-de-bairros-no-município-do-rio-de-janeiro-em-1991-2000-
  • 12
    Ver: Miguel do Rosário. “Datafolha: Bolsonaro continua perdendo a classe média, mas ganha eleitores mais humildes e de baixa instrução”. O Cafezinho, 30/04/2020, disponível em: https://www.ocafezinho.com/2020/04/30/datafolha-bolsonaro-continua-perdendo-a-classe-media-mas-ganha-eleitores-mais-humildes-e-de-baixa-instrucao/
  • 13
    Natália Viana “Minha felicidade ficou para trás, diz viúva de Evaldo Rosa” Carta Capital, 07/10/ 2019VIANA, Natália. Minha felicidade ficou para trás, diz viúva de Evaldo Rosa. Carta Capital, 07 out. 2019. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/minha-felicidade-ficou-para-tras-diz-viuva-de-evaldo-rosa/ . Acesso em: 20 maio 2022.
    https://www.cartacapital.com.br/sociedad...
    . https://www.cartacapital.com.br/sociedade/minha-felicidade-ficou-para-tras-diz-viuva-de-evaldo-rosa/
  • 14
    Gabriel Barreira e Henrique Coelho. “'A gente ia morrer junto', diz mulher no enterro do músico fuzilado pelo Exército no Rio” Portal G1. 10/04/2019. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/04/10/carro-fuzilado-musico-e-enterrado-e-presos-sao-ouvidos-na-justica-militar-nesta-quarta.ghtml

Editado por

editor-chefe: Rachel Esteves Lima
editor executivo: Cássia Lopes Jorge Hernán Yerro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2022
  • Aceito
    17 Jan 2023
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