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O tópos da neocracia: introdução & genealogia1 1 Este texto é fruto de pesquisa elaborada, entre maio de 2022 e maio de 2023, no âmbito do estágio pós-doutoral realizado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, sob supervisão da Profa. Dra. Elizabeth Cardoso.

The topos of neocracy: Introduction & genealogy

Resumo

Este artigo introduz, no campo dos estudos literários, o tópos da neocracia. Com base na definição de tópos de Carl Meiner se busca, em primeiro lugar, definir o que é uma neocracia: construção ficcional de sociedades ou comunidades de crianças que se ordenam, se mantêm e se preservam sem a tutela de adultos, às vezes sem a colaboração dos adultos e outras vezes à revelia dos adultos. Em seguida, é proposta uma genealogia que aponta o contexto no qual o tópos parece ter surgido, e são comentados alguns romances que tanto servem de marcos iniciais de sua manifestação, já na passagem do século XIX para o século XX, quanto demonstram a presença do tópos no campo literário do século XXI. Ademais, são feitas reflexões acerca de como ocorreu o processo histórico que construiu as ideias ou as idealizações de adulto e de criança que prevalecem em nosso tempo - ambos os conceitos entendidos como identidades, mais do que como condições psicobiológicas do corpo. Argumenta-se que uma das funções ou intenções do tópos da neocracia é criticar tais idealizações, sobretudo no que diz respeito à representação da criança como ser humano marcado por faltas e por incapacidades que fariam dela inapta para viver em meio aos adultos e para tomar parte nas decisões que dizem respeito ao bem-estar coletivo. Portanto o tópos da neocracia se manifesta em textos fictícios, mas seus efeitos ultrapassariam a ficção, pois, ao gerar novas representações da criança, poderiam ajudar a deslocar as crianças da vida real, do isolamento físico e da marginalidade política em que se encontram contemporaneamente.

Palavras-chave:
adulto; criança; literatura; neocracia; tópos

Abstract

This paper aims to insert the topos of neocracy within the literary studies. Based on Carl Meiner’s definition of topos, our initial goal is to define a neocracy: a fictional representation of a society or community formed only by children that live and survive without any adults’ guidance, sometimes without the collaboration of adults, and even despite adults’ desire that this kind of group exists. We first present the historical context in which this topos appears, then comment on novels that seem to be milestones regarding the first occurrences of neocracies (by the turn of the 19th century), and the perpetuation of the topos in 21st-century literature. Next, based on the historical process that built up the modern concepts of “adult” and “child,” we argue that both are identities rather than psychobiological conditions. Adult identity presupposes an idealization of what a child is. In turn, the topos of neocracy criticizes the hierarchy between both concepts. Such idealization generates a stereotype of children as beings marked by absences and inabilities. We defend that this kind of stereotype spreads the idea that children must be quarantined from the outside world until they grow up, as well as the certainty that children shall not take part in decisions concerning the common good. Therefore, literary texts presenting neocracies seem to offer new representations of children-one that may affect real life and help change children’s current status quo, i.e., their physical and political relative isolation in the societies they live.

Keywords:
adult; child; literature; neocracy; topos

Comentando sobre o gosto de Didi-Huberman pela montagem como método de suas exposições, Wedekin assim resume o processo criativo do crítico de arte francês: “as imagens não são ilustrações de um tema, mas este surge das associações entre imagens, que levantam questões em permanente proliferação e abertura” (Wedekin, 2019WEDEKIN, Luana M. A sublevação de Atlas: notas sobre o método de Georges Didi-Huberman. Revista Educação, Artes e Inclusão, v. 15, n. 1, p. 27-49, 2019., p. 27). Em se trocando imagens por textos nessa citação, obtém-se uma excelente descrição do trabalho do crítico de Literatura Comparada. Muitas vezes, o corpus estudado não é definido com base num tema que previamente se escolheu por quaisquer motivos. Antes, o tema desponta como resultado da justaposição de dois ou mais textos literários, que então demandam à curiosidade investigar certa conexão notada entre eles. Pelo menos foi dessa forma que o tópos2 2 Para transliterar o termo grego τόπος, utiliza-se aqui a grafia que o dicionário Houaiss registra como estrangeirismo, porém sem fazer uso do itálico, prática ligada a velhos nacionalismos linguísticos. O itálico, ao longo deste texto, serve exclusivamente para destacar títulos de obras, dar ênfase a certas palavras e expressões ou pôr em evidência o significante de determinado signo gráfico. No entanto, em respeito às escolhas de outros autores, citações podem conter padrões diferentes tanto para o uso do itálico quanto para a transliteração de τόπος. da neocracia se mostrou e se impôs como tema de pesquisa. E este artigo, o primeiro sobre o assunto, busca demonstrar a existência do mencionado tópos, explicar o nome escolhido para batizá-lo e situá-lo historicamente no campo da literatura - não necessariamente nessa ordem.

Desde já fica estabelecido: neocracias é como serão chamadas construções ficcionais de sociedades ou comunidades de crianças que se ordenam, se mantêm e se preservam sem a tutela de adultos, às vezes sem a colaboração dos adultos e outras vezes à revelia dos adultos. Hoje em dia elas estão presentes em histórias contadas em várias linguagens narrativas, porém a averiguação feita até então localiza seu surgimento no campo literário, mais especificamente na Europa da Belle Époque, no mesmo contexto que produziu o que aprendemos a classificar como literatura infantojuvenil. Mas vale a ressalva: as neocracias no princípio não apareciam em textos voltados para o público infantojuvenil. Elas faziam - e ainda fazem - parte de histórias cujo leitor-modelo3 3 Fala-se aqui em leitor-modelo nos termos de Eco (2008): um destinatário exemplar que cada texto prevê, capaz de, com êxito, completar as lacunas ou preencher os sentidos daquilo que o próprio texto cala ou deixa entredito. são os adultos, ou são também os adultos. E, como se verá adiante, os romances observados parecem ter em comum justamente o fato de as neocracias, cada uma a seu modo, rasurarem o estereótipo da criança como ser incapaz de participar das atividades que nos acostumamos a julgar apropriadas só para adultos, notadamente aquelas ligadas à organização e à manutenção da vida coletiva. Tal estereótipo, este artigo pretende demonstrar, deriva de uma idealização da criança historicamente consolidada, que serve sobretudo à construção de uma identidade de adulto não menos fantasiosa, na qual sua superioridade é confirmada e por isso mesmo garante que o mundo se estruture mantendo as crianças controladas e sem voz no que concerne a decisões sobre o bem-comum. Nesse contexto, as neocracias podem ser lidas como representações contra-hegemônicas da criança,4 4 Como afirma Hunt (2010), o conceito de infância não é e talvez nunca tenha sido estável. Sua definição não é consensual nem mesmo no âmbito de uma só cultura, podendo variar sob influência de questões de classe, de gênero ou de outras variáveis. Com base nessa constatação, o uso do termo criança ao longo deste texto não faz eco a nenhum tipo de classificação etária estrita, seja ela definida legalmente ou compartilhada por uma cultura. Tampouco se preocupa em fazer distinções entre criança, pré-adolescente e adolescente. Pode-se dizer que a criança aqui se define sempre como o não adulto. como crítica a uma visão de mundo que considera a criança ontologicamente impossibilitada de fazer política.

Alguns romances a serem mencionados como manifestação do tópos da neocracia - a exemplo de A cruzada das crianças (1896), de Marcel Schwob, considerado um marco para esta pesquisa - têm mais de um século e considerável fama. Consequentemente, dispõem de ampla fortuna crítica, que ainda não pôde ser esquadrinhada de todo. Entretanto, em meio àquilo que foi visto até agora, nada semelhante ao recorte que se pretende dar a tais obras foi encontrado, motivo pelo qual quase não há menções a estudos prévios que lhe digam respeito. Lida por outro ângulo, essa ausência ou escassez de textos críticos com ênfase na rasura promovida pelas neocracias não deixa de ser sintomática. “O sujeito adulto, de maneira geral, ainda mantém um modo idealizado e distante de enxergar o infante, mesmo tendo um dia se encontrado na condição de criança.” (Barbosa; Chaves, 2016BARBOSA, Jane Mara dos Santos; CHAVES, Wilson Camilo. A criança enquanto condição do sujeito em Freud: apontamentos para uma clínica psicanalítica com crianças. Psicologia em Pesquisa, Juiz de Fora, v. 10, n. 1, p. 44-54, 2016., p. 44). E, como se verá a seguir, tal idealização talvez seja demasiado importante para sustentar algo do qual nós, adultos, ainda não estamos preparados para abrir mão.

Dupla topologia: doxa cultural e desvio literário

Em se tratando de tópos literários, os nomes mais citados talvez sejam Curtius (1979CURTIUS, Ernst Robert. Literatura europeia e Idade Média latina. 2. ed. Tradução de Teodoro Cabral e Paulo Rónai. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979.) e Bakhtin (2018BAKHTIN, Mihkhail. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018.). O primeiro consolidou o uso do termo grego - extraído da expressão tópos koinós, lugar-comum - para definir a repetição de certas imagens literárias em textos de diferentes épocas e fundou um campo de investigação sobre o assunto: o toposforschung, ou tópica. Já o segundo realizou um trabalho bastante específico com o conceito, embora o tenha integrado a estudo mais amplo, batizado de teoria do romance. Bakhtin não fala em tópos, e sim em cronotopo: interligação entre o tempo e o espaço manifestada na literatura, que sugere que todo ambiente representado literariamente é prenhe de sentidos atrelados a determinado tempo histórico. A dimensão histórica dos tópos, note-se, é importante para ambos os críticos, porém, como observa Meiner (2018MEINER, Carsten. Modernizando a topologia literária: convenção, contingência e história. Tradução de Caetano W. Galindo. Versalete, Curitiba, v. 6, n. 11, p. 181-212, 2018.), o percurso teórico que realizaram os impeliu para a atemporalidade, seja por se arvorar nos conceitos junguianos de arquétipos e de inconsciente coletivo, no caso de Curtius, seja por dotar a própria temporalidade de traços imutáveis e onipresentes, quase metafísicos, no caso de Bakhtin.

Meiner, em sua crítica, busca elaborar uma noção de tópos que não repita a mesma fuga à história - ou seja, ao tempo - na qual Curtius e Bakhtin incorreram. Para tanto, torna central a noção de contingência. De volta ao pensamento aristotélico sobre a retórica, ele nos lembra de que os tópos foram considerados primeiramente “esquematismos multifuncionais para se raciocinar e defender ideias” (Meiner, 2018MEINER, Carsten. Modernizando a topologia literária: convenção, contingência e história. Tradução de Caetano W. Galindo. Versalete, Curitiba, v. 6, n. 11, p. 181-212, 2018., p. 184) - ideias que quase sempre diziam respeito a questões cotidianas e cuja elaboração explorava o entendimento comum que a audiência tinha de tais questões. Nesse contexto, fica claro que a retórica

[…] se fundava em endoxa, ou seja, nas crenças e opiniões compartilhadas por uma cultura ou um grupo de pessoas, num dado momento. Como essas opiniões não se fundavam na verdade (aletheia) ou no conhecimento verdadeiro (episteme) mas sim na probabilidade, tinham constante necessidade de esclarecimento pragmático quando usadas por exemplo em contextos judiciais ou políticos. A contingência, assim, é o motivo essencial da techné retórica e topológica desenvolvida por Aristóteles […]. (Meiner, 2018MEINER, Carsten. Modernizando a topologia literária: convenção, contingência e história. Tradução de Caetano W. Galindo. Versalete, Curitiba, v. 6, n. 11, p. 181-212, 2018., p. 184-185).

Um tópos seria, portanto, instrumento de manuseio da contingência que caracteriza nossas práticas culturais, nas quais se incluem o estabelecimento de significados. Contudo estamos falando de literatura, e esta não é uma atividade meramente representacional de determinado grupo ou cultura. “A própria literatura é uma atividade histórica, que forma e articula seus lugares e os eventos e atividades ligados a eles à sua maneira específica, literária.” (Meiner, 2018MEINER, Carsten. Modernizando a topologia literária: convenção, contingência e história. Tradução de Caetano W. Galindo. Versalete, Curitiba, v. 6, n. 11, p. 181-212, 2018., p. 193). Por isso o autor sugere que façamos sempre uma dupla topologia, atenta tanto à realidade cultural quanto à manifestação literária dos elementos que nos propusermos a estudar.

Para ilustrar sua proposta, Meiner comenta da carruagem, “objeto histórico bem difundido na Europa durante o século XVII, quando deixa de ser […] exclusivamente usado pela nobreza e passa a ser algo cobiçado também por uma burguesia com ambições sociais” (Meiner, 2018MEINER, Carsten. Modernizando a topologia literária: convenção, contingência e história. Tradução de Caetano W. Galindo. Versalete, Curitiba, v. 6, n. 11, p. 181-212, 2018., p. 194). Até a popularização do motor, na segunda metade do século XIX, a carruagem serviria como o principal meio de transporte, privado ou público, das cidades europeias. Sua função ou sua razão instrumental, muito bem definida, seria levar pessoas de um ponto a outro. No entanto,

[…] se tentamos descrever a carruagem literária de um ponto de vista funcional, fica claro que ela integra uma rede extremamente ampla de funções simbólicas, narrativas e temáticas que nada têm a ver com a doxa instrumental da carruagem. Erotismo, escapismo, encontros de classe, novas percepções da realidade, conspiração política, meditação solitária, ostentação: suas funções possíveis são legião. (Meiner, 2018MEINER, Carsten. Modernizando a topologia literária: convenção, contingência e história. Tradução de Caetano W. Galindo. Versalete, Curitiba, v. 6, n. 11, p. 181-212, 2018., p. 194).5 5 Cf. Meiner (2018, p. 195-198) para o detalhamento, em obras da literatura francesa, de alguns usos literários que a carruagem ganhou.

Na dupla topologia, interessa observar os desvios literários que ocorrem em relação à instrumentalidade cultural que objetos, lugares, construtos simbólicos os mais variados ganham contingencialmente. O que ganha destaque diante do olhar crítico, nesse contexto, são as divergências que a literatura constrói com base na convencionalidade histórica. A heterodoxa literária que se contrapõe à doxa cultural. Tal proposta daria conta inclusive das mudanças que aconteceriam com o passar do tempo, como se lê a seguir:

[…] em dados momentos históricos específicos, lugares históricos deixam de ser novos, ou não estão mais presentes na vida cotidiana, não constituem uma referência cultural normal e deixam de ser convincentes a autores e leitores. Por motivos óbvios, a carruagem, num dado momento, torna-se conservadora, antiquada, e depois obsoleta. A substituição tecnológica é a solução que a história oferece para esse problema. Quando a carruagem como lugar para a ação literária se torna um objeto histórico, é substituída pelo trem, por exemplo em Tolstói, Hardy, Dickens, Zola e Dostoiévski [...]. O trem, por sua vez, é substituído pelo carro [...], substituído novamente por metrôs, ônibus de turismo e aviões. Isso pode ser chamado de substituição metonímica, na medida em que o trem, o carro, o metrô substituem-se como modos mais críveis de transporte. Mas eles também herdam o desvio potencial que seu predecessor topológico já tinha usado e tradicionalizado, como fica claro na abertura tanto de Mrs. Dalloway quanto de O homem sem qualidades, onde carros são empregados para incidentes específicos que abrem temas e narrativas insuspeitadas [...]. (Meiner, 2018MEINER, Carsten. Modernizando a topologia literária: convenção, contingência e história. Tradução de Caetano W. Galindo. Versalete, Curitiba, v. 6, n. 11, p. 181-212, 2018., p. 201-202).

Meiner, no trecho acima, chama atenção para o fato de que, apesar de fazer referência a um objeto ou lugar real, um tópos é, com efeito, um objeto ou lugar discursivo, motivo pelo qual ele seria reconhecido e definido por sua instrumentalidade e poderia se manter simbolicamente, mesmo que seja modificado ou substituído em sua materialidade. Em paralelo a tais modificações, ocorridas no âmbito da cultura, a topologia dupla também se atenta às dinâmicas próprias do desenvolvimento do campo literário, que frequentemente levam à convencionalização dos desvios ao longo do tempo:

Num dado momento da história literária, autores e leitores sabem antecipadamente que, por exemplo, a cena da carruagem normalmente implica encontros “fortuitos”. Se um acidente é reconhecido, não como acidente, mas como convenção literária que representa acidentes, sua integridade, claro, foi comprometida. Quanto mais útil tiver se provado um tópos como o do “encontro fortuito numa carruagem”, mais provável passa a ser que sua repetição e sua reconhecibilidade acabem saturando e normalizando essa técnica narrativa. Em outras palavras, o desvio de um dado lugar só pode ocorrer até que a normatividade contagie esse desvio e o transforme em clichê. (MEINER, 2018MEINER, Carsten. Modernizando a topologia literária: convenção, contingência e história. Tradução de Caetano W. Galindo. Versalete, Curitiba, v. 6, n. 11, p. 181-212, 2018., p. 202).

A topologia dupla, em síntese, pressupõe que o tópos “inscreve-se numa dinâmica diacrônica de repetição e diferenciação, uma espécie de dialética entre o sentido convencional e o novo sentido de um dado topos” (MEINER, 2018MEINER, Carsten. Modernizando a topologia literária: convenção, contingência e história. Tradução de Caetano W. Galindo. Versalete, Curitiba, v. 6, n. 11, p. 181-212, 2018., p. 205), que só pode ser apreendido criticamente se nos mantivermos atentos à história da cultura e à história literária. Sendo precisamente esse o conceito de tópos aqui escolhido para ser trabalhado na apresentação das neocracias, o que se verá nas seções adiante é (1) o processo de convencionalização de uma noção específica e bastante difundida de criança, validada até os dias de hoje, e (2) os desvios que começam a ser feitos literariamente, dentre os quais as neocracias representam talvez a heterodoxa mais radical da criança.

A criança como mito, como identidade e como função

Na segunda metade do século XX, surgiu no Ocidente uma historiografia da infância que, dentre outros intuitos, buscou demonstrar como certas noções bastante populares sobre a criança não são naturais nem autoevidentes. Antes, elas derivariam de um longo processo histórico que envolveu mudanças materiais e simbólicas na vida das sociedades europeias. Em parte, as mesmas transformações responsáveis por viabilizar as empreitadas colonizadoras - que por sua vez começaram a espalhar a concepção europeia da criança para todo o planeta.

Mais tarde, a crítica a essa historiografia apontou um tratamento demasiado abstrato da categoria social em foco. Novas análises surgiram, revelando como a idealização da criança não está livre dos preconceitos de classe, de gênero e de raça que moldaram tanto a modernidade europeia quanto o contemporaneidade pós-colonial na qual vivemos. Mesmo assim, aqueles primeiros estudos não perderam de todo sua utilidade. Servem para compor uma genealogia que ajuda a compreender como e onde surgiram certos pressupostos acerca da criança predominantes no mundo atual - premissas tão difundidas entre diferentes grupos sociais e culturas nacionais a ponto de ser razoável afirmar a existência de um punhado de estereótipos da criança formado por elas, integrando aquilo que Ortiz (1993ORTIZ, Renato. Cultura e mega-sociedade mundial. Lua Nova, São Paulo, n. 28-29, p. 286-293, 1993.) chamou de cultura-mundo, o conjunto de práticas e signos que circulam ao redor do globo graças à indústria cultural.6 6 Exemplos de rápida apreensão são os estereótipos da criança-problema, da criança travessa e da criança boazinha - todos eles com múltiplas encarnações em narrativas de grande popularidade nacional ou internacional.

Dois trabalhos de notória visibilidade sobre o assunto são História social da família e da criança, obra pioneira de Philippe Ariès, e O desaparecimento da infância, de Neil Postman. Com ênfase em diferentes elementos, ambos os livros defendem a tese de que a criança tal qual a concebemos hoje em dia começou a nascer na Idade Moderna da Europa, quando passou a ser considerada sem preparo para o mundo e ganhou legitimidade a ideia de que ela deveria viver numa espécie de quarentena, com incursões controladas e progressivas nos ambientes sociais até sua maturação completa, isto é, até a transformação da criança em pessoa adulta. No período imediatamente anterior, a Idade Média, a preocupação em separar a criança do convívio dos adultos inexistia, ou simplesmente não se dava nos termos que se converteriam em regra logo mais, após a ascensão da burguesia, principal grupo a aderir às novas perspectivas da infância que foram se desenvolvendo entre os séculos XVI e XIX. Foram os burgueses europeus quem primeiro e mais prestaram atenção ao que os protopedagogos da época - muitos deles ligados à igreja, patronos das escolas confessionais de nosso tempo - diziam ser importante para o desenvolvimento da criança. Não por acaso, parte do que hoje chamamos de valores burgueses teria se constituído em torno do tratamento que essa classe dedicou a seus filhos. Por exemplo, o lar burguês. Segundo Ariès, a Europa passou por uma espécie de revolução urbana quando o espaço físico da casa, antes visto como extensão da vida dos adultos (como local de trabalho e de socialização), se converteu no mais importante reduto da criança, um ambiente para seu controle e resguardo.

Nesse processo de encurralamento, duas consequências correlatas merecem destaque. A primeira diz respeito a uma profecia autorrealizável. A pressuposição de que as crianças seriam significativamente distintas dos adultos produziu uma estrutura social específica e exclusiva para elas, e essa estrutura, por sua vez, séculos depois, engendrou “pessoas que falavam de modo diferente dos adultos, que passavam seus dias de modo diferente, vestiam-se de modo diferente, aprendiam de modo diferente e, no fim das contas, pensavam de modo diferente” (Postman, 2012POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Tradução de Suzana Menescal de Alencar Carvalho e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Graphia, 2012., p. 59). Noutras palavras, a condição psicológica que reconhecemos como natural da infância seria consequência histórica das práticas de diferenciação - de separação - social feitas por adultos. Contudo, tão logo ela surgiu, se converteu na própria causa de manutenção das práticas que a geraram.

A segunda consequência, como era de se esperar, é que os adultos também foram afetados pelo processo. “A família moderna retirou da vida comum não apenas as crianças, mas uma grande parte do tempo e da preocupação dos adultos. Ela correspondeu a uma necessidade de intimidade, e também de identidade.” (Ariès, 1986ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Tradução de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986., p. 278, grifo nosso). O que significa dizer que, ademais de a criança estar no centro de uma nova ideia de família, ela também se transformou no par constitutivo do adulto. Passou a ser o outro em relação ao qual o eu adulto se entende e se afirma, ou melhor, afirma sua superioridade, pois, como atesta Derrida (1973DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva; Edusp, 1973. ), na modernidade europeia,7 7 A bem da verdade, Derrida argumenta que a predominância do esquema cognitivo que batiza de pensamento logocêntrico vem desde a Antiguidade, da base platônica que fundou a filosofia europeia. Porém os arranjos que ele produz seriam específicos de cada época. os sentidos de ordenamento do mundo se construíram logocentricamente, isto é, binária e invariavelmente hierarquizados. Reconhecemos os efeitos daninhos dessa lógica nas injustiças e nas violências que fazem parte da história de pares como homem/mulher, branco/negro, cristão/pagão e outros tantos, porém é mais raro considerarmos que o par adulto/criança também traz em si algo de negativo, servindo não só para estabelecer uma diferença entre duas categorias sociais, mas igualmente para subjugar uma à outra. Como toda sujeição logocêntrica, aquela que os adultos exercem sobre as crianças é tão sofisticada - e tão introjetada em nós, nas nossas culturas pós-coloniais - que, à primeira vista, suas ferramentas de contenção podem até parecer o contrário, como demonstra Postman em relação ao que chama de segredos da cultura. Esses a princípio seriam as informações das quais privamos as crianças supostamente para preservá-las de temas ou de fatos para os quais elas não estariam preparadas. Mas, sob certa perspectiva crítica, tais segredos não deixariam de ser uma forma de dominá-las por meio da vergonha:

As crianças [...] estão imersas num mundo de segredos cercados de mistério e temor; um mundo que se tornará inteligível para elas por obra e graça dos adultos que lhe ensinarão, por etapas, como a vergonha se transforma num conjunto de diretrizes morais. Do ponto de vista da criança, a vergonha dá poder e autoridade aos adultos. Pois os adultos sabem, ao passo que as crianças não sabem [...]. Sustento [...] que a vergonha não pode exercer nenhuma influência como meio de controle social ou diferenciação de papéis numa sociedade que não sabe guardar segredos.” (Postman, 2012POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Tradução de Suzana Menescal de Alencar Carvalho e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Graphia, 2012., p. 100).

Quanto mais perduram as dinâmicas de diferenciação por separação, mais suas origens históricas se tornam nebulosas e mais fácil fica acreditar que as premissas do senso comum acerca do que distingue o adulto da criança são óbvias, naturais, sempre foram assim. No entanto a prática tão corriqueira de atribuir qualidades gerais ao ente criança, ignorando que o termo diz respeito a bilhares de seres humanos com experiências de vida singulares; a crença de que é possível falar da criança no singular sendo descritivo, e não prescritivo; todos esses hábitos discursivos deixam claro que a criança que está sendo enunciada tem pouco de real e muito de mito, no sentido que Barthes dá ao termo: “uma fala definida pela sua intenção […] mais do que pela sua literalidade” (Barthes, 2006BARTHES, Roland. Mitologias. 2. ed. Tradução de Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006., p. 215).

Um caso análogo pode ajudar a compreender melhor o que está sendo afirmado aqui sobre o par adulto/criança. Edward Said, em Orientalismo, demonstrou como a ideia de transformar simbolicamente uma vasta região do mundo, na qual se encontram um sem-número de culturas, num lugar mais ou menos homogêneo e monolítico chamado Oriente, “ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente), com sua imagem, ideia, personalidade e experiência de contraste” (Said, 1990SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 13-14). Noutras palavras, o Oriente seria uma ficção da cultura europeia, um mito que permitiu aos europeus tanto conceber a si próprios a partir de um outro inventado, quanto “negociar com ele fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre ele, descrevendo-o, colonizando-o, governando-o: em resumo, o orientalismo como um estilo ocidental para dominar” (Said, 1990SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 15). Algo semelhante aconteceu à criança. A mitologia da criança - isto é, o conjunto de assertivas que justifica a segregação da criança - parece assegurar aos adultos não somente um outro fantasiosamente estável e transparente em relação ao qual se pode produzir uma identidade, mas também, e sobretudo, autorizaria o controle social desse outro, que precisaria ser tutelado para seu próprio bem. A criança é o Oriente do adulto.

Obviamente existem diferenças reais entre a criança e o adulto, a começar pelos corpos. Contudo interessa notar como o termo criança extrapola o real e deixa de ser tão somente um nome para se transformar numa função - uma estratégia de controle simbólico e político do mesmo corpo que nomeia. Nesse contexto, a criança se assemelharia ao objeto de estudo do ensaio O que é um autor?, de Michel Foucault (2009FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção de textos por Manoel Barros da Motta. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 264-298.). O argumento do filósofo versa que a ideia de autoria goza de prestígio porque constrói para alguns discursos modos específicos e privilegiados de existência e de circulação. Mais do que um nome atrelado a um sujeito de carne e osso, o autor seria um “princípio funcional pelo qual, em nossa cultura, delimita-se, exclui-se ou seleciona-se: em suma, o princípio pelo qual se entrava a livre circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição, recomposição da ficção” (Foucault, 2009, p. 288). De maneira análoga, a criança poderia ser definida como um termo que ordena a existência e as atribuições de determinados sujeitos na sociedade. Ela seria uma categoria social e, ao mesmo tempo, um princípio funcional pelo qual, em nossas culturas pós-coloniais, delimita-se, exclui-se ou seleciona-se: em suma, o princípio pelo qual se entrava a livre circulação, a livre expressão, a livre participação em espaços e decisões relativos à vida comum.

Mas os discursos que constroem e justificam os arranjos de mundo e as formas da cultura correm sempre o risco de ser desconstruídos. No que concerne à participação das crianças em debates sobre a vida coletiva - em esferas tradicionalmente vistas como espaços exclusivos dos adultos -, uma mudança substancial parece ter começado na última década, motivada especialmente pela crise climática. Todos se lembram da história: em agosto de 2018, uma adolescente sueca de 15 anos começou a frequentar a sede do parlamento de seu país, em Estocolmo, todas as sextas-feiras. Em frente ao edifício, a garota, que se chamava Greta Thunberg, sempre exibia um cartaz que dizia: “greve escolar pelo clima”. Alguns meses depois, não só havia outros jovens fazendo greve a seu lado, mas também surgiu o Fridays for Future (Sextas-feiras pelo Futuro), um movimento global, descentralizado e organizado via redes sociais, com o intuito de replicar a ação de Greta em outros países e assim cobrar de mais líderes políticos soluções eficazes para evitar a catástrofe ambiental anunciada no futuro próximo.

De lá para cá, Greta se tornou uma das mais respeitadas porta-vozes da justiça climática. Ela fez pronunciamentos em alguns dos mais importantes espaços da política internacional, como o parlamento europeu, o Fórum Econômico Mundial e a ONU, sem jamais precisar se passar por adulta ou negar sua condição de adolescente, antes pelo contrário. Em nome das crianças e dos adolescentes, Greta faz críticas duras aos adultos. Ela os acusa de serem imaturos demais para encarar o problema ambiental e de estarem transferindo as soluções políticas impopulares e necessárias para os adultos da geração seguinte - a geração dela -, para os quais talvez não haja tempo hábil de reverter o cataclisma ecológico. Um bom exemplo do tom que a ativista costuma usar é o discurso conhecido como How dare you?! (Como vocês se atrevem?!), proferido na Cúpula do Clima da ONU em setembro de 2019, no qual declarou:

Não haverá nenhuma solução ou planos apresentados com base nestes números que trago aqui hoje. Porque estes números são bem desconfortáveis e vocês não têm a maturidade suficiente para abordar este tema como ele realmente é. Vocês estão falhando conosco. Mas os jovens já começaram a entender sua traição. Os olhos de uma geração futura inteira estão sobre vocês. E se vocês escolherem fracassar, eu lhes digo: nós jamais perdoaremos vocês. (Thunberg, 2019THUNBERG, Greta. Discurso de abertura do Encontro de Cúpula sobre Ação Climática da ONU. Nova York, 23 set. 2019. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2019/09/1688042 . Acesso em: 27 jan. 2022.
https://news.un.org/pt/story/2019/09/168...
, p. 3, grifo nosso).

Há quem possa considerar que a aceitação, ou antes, a institucionalização da autoridade de Greta para falar aos adultos a respeito das mudanças climáticas seja predominantemente uma tática publicitária. Segundo tal raciocínio, utilizar a imagem de uma criança preocupada com o desleixo político em relação ao meio ambiente seria manobra de uma parcela dos especialistas em clima a fim de gerar visibilidade midiática e chamar a atenção da opinião pública para sua agenda. Entretanto Spyrou (2020SPYROU, Spyros. Children as future-makers. Childhood, v. 27, n. 1, p. 3-7, 2020.) sustenta opinião mais otimista. Ao refletir sobre o ativismo ambiental que observa entre as crianças e adolescentes inspiradas por Greta, o antropólogo sugere que pode estar em curso uma mudança no seio da sociedade global contemporânea. Mudança capaz de enfraquecer os fundamentos que tradicionalmente têm alijado as crianças dos debates concernentes à organização da vida comum.

Se isso vai acontecer de fato, apenas o futuro dirá. O que é cabível afirmar a essa altura é que o recente engajamento dos jovens com a justiça climática pode até ser um divisor de águas em sua movimentação por uma esfera pública historicamente dominada por adultos, porém, visto de certa perspectiva, ele se parece menos com um fenômeno completamente inédito e mais com a nova fase de uma antiga disputa simbólica: a luta pelo estabelecimento de um regime de verdade acerca da infância.

Nesse embate, a literatura com frequência é fonte de representações que ajudam a formar ou corroborar posicionamentos ontológicos sobre a natureza da criança. E, curiosamente, desde o século XIX, em paralelo à consolidação e ao espraiamento da moderna concepção da infância, que enxerga a criança como um ser de muitas faltas, a começar pela falta de autonomia, o campo literário passou a registrar o surgimento de várias narrativas que experimentam colocar as crianças em outra ordem simbólica, reconhecendo-lhes atributos que se desviam da doxa da cultura. É nesse contexto que identificamos a emergência do tópos da neocracia, heterodoxa literária sobre o qual passamos a falar a seguir.

Breve consideração sobre a presença da criança na literatura

As noções de literatura que integram a cultura-mundo contemporânea se desenvolveram a partir do encontro da tradição literária da Europa com aquelas que existiam nos lugares direta ou indiretamente colonizados pelos europeus entre os séculos XVI e XX - quase todo o planeta. É um movimento parecido com o que aconteceu à noção de criança, isto é, à difusão pelo globo de certos pressupostos que hoje compõem uma ideia amplamente compartilhada do que é ser criança. Pode-se mesmo supor que os dois processos ocorreram em paralelo, e a literatura da Europa colonizadora ajudou a espraiar a concepção da infância que emergiu naquele continente na Idade Moderna, no seio da cultura burguesa. Por isso, na tentativa de fazer uma genealogia breve e não exaustiva da presença das crianças na literatura, não é despropositado começar prestando atenção ao sistema literário europeu. Ou a partes dele.

Curtius (1979CURTIUS, Ernst Robert. Literatura europeia e Idade Média latina. 2. ed. Tradução de Teodoro Cabral e Paulo Rónai. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979.), ao estudar temas que alega terem surgido em textos latinos da Antiguidade, menciona o tópos do puer senilis (ou puer senex) em duas variações de gênero: (1) o ancião e o menino e (2) a anciã e a menina. A expressão se refere a histórias nas quais, seja pela transformação da pessoa velha em criança e vice-versa, seja pelo reconhecimento das características de um tipo no outro, o personagem ganha uma marca de excepcionalidade. O episódio bíblico que mostra o menino Jesus debatendo com os doutores do templo de Jerusalém (Lu 2:42-52) é um exemplo notório da ocorrência desse tópos, que Curtius afirma ser rastreável até o século XVII. De toda sorte, em consonância com a tese de Ariès (1986ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Tradução de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.) sobre a percepção das diferenças entre o adulto e a criança ser relativamente menor na Idade Média - o que inclusive acarretaria certo desprezo ou desinteresse artístico pelo que fosse próprio da criança8 8 Sobre este ponto, vale mencionar o trabalho de Oliveira (2004) acerca da criança na sociedade medieval portuguesa. Ele é um contraponto à tese de Ariès (1986) de que os pais da Idade Média não dedicavam à criança um tratamento que as sensibilidades modernas e contemporâneas pudessem reconhecer como cuidadoso e amoroso. O estudo de Oliveira, somado à declaração de Tuchman de que os “sentimentos em relação às crianças raramente aparecem na arte, na literatura ou em documentos” (Tuchman, 1979, p. 49, tradução e grifos nossos), conformam mais um argumento a favor da desconfiança de equivalências imediatas entre o que se observa em fontes de informação do passado e a complexa realidade que então vigorava. Com efeito, parte da fundamentação de Ariès tem como base principal justamente a análise de obras de arte do período em evidência. -, fora do enquadramento do puer senilis, a literatura medieval não ficou particularmente conhecida por suas representações da infância, antes pelo contrário. A escritora Barbara W. Tuchman chega a afirmar, num ensaio sobre o século XIV, que:

Na literatura, o papel principal das crianças era morrer, geralmente afogadas, enforcadas ou abandonadas numa floresta por ordens de algum rei temeroso de profecias ou de algum marido louco, a fim de testar a resiliência de sua esposa. As mulheres [aliás] raramente apareciam como mães. (Tuchman, 1979TUCHMAN, Barbara W. A distant mirror: the calamitous 14th century. Nova York: Ballantine Books, 1979., p. 49).9 9 No original: “In literature the chief role of children was to die, usually drowned, smothered, or abandoned in a forest on the orders of some king fearing prophecy or mad husband testing a wife's endurance. Women appear rarely as mothers” (tradução nossa).

Seja essa uma afirmação demasiado generalista ou não, o fato é que “a criança e o jovem como personagens ficaram por muito tempo à margem da elaboração narrativa ficcional” (Coelho, 2020COELHO, Isabel Lopes. A representação da criança na literatura infantojuvenil: Rémi, Pinóquio e Peter Pan. São Paulo: Perspectiva, 2020., p. 2). Foi no final do século XVIII, mais ou menos a partir da década de 1790 - ou seja, após a Revolução Francesa -, que a criança começou a ganhar alguma centralidade literária. Mas isso se devia sobretudo à sua função de integrante da família, que era então a verdadeira protagonista da emergente literatura burguesa. Já na primeira metade do século XIX, graças ao trabalho de Charles Dickens na Inglaterra e de Victor Hugo na França, dois grandes nomes dos dois grandes palcos literários da Europa naquele período, a criança fez sua estreia como personagem principal do romance moderno - isto é, de uma trama que buscava se sustentar mais narrativamente do que filosoficamente, como era o caso do Emílio (1762), de Rousseau. Dickens, Hugo e autores de verve similar, na leitura de Coelho, buscaram fazer do romance um espaço de liberdade para fazer considerações sobre seu tempo, uma ferramenta poderosa e multifacetada que, por meio de histórias sobre a vida íntima e a complexidade psicológica de uns poucos indivíduos ficcionais, conseguia produzir um retrato panorâmico de sua época - pode-se mesmo dizer uma espécie de documento histórico.

E é nesse contexto de ambientação e de caracterização de personagens que surgem as primeiras protagonistas crianças nos romances, figuras outrora ignoradas das narrativas. O papel que em princípio lhes cabe, especialmente às órfãs, é o de marginalizadas em uma sociedade indiferente às suas condições de abandono e de miséria. (Coelho, 2020COELHO, Isabel Lopes. A representação da criança na literatura infantojuvenil: Rémi, Pinóquio e Peter Pan. São Paulo: Perspectiva, 2020., p. 6).

É só depois de consolidada a presença da criança na literatura mais prestigiada do continente que parece se abrir uma brecha para, um pouco mais tarde, na segunda metade do século XIX, surgir aquilo que viríamos a chamar de literatura infantojuvenil: “tipos de textos semelhantes ao romance, dedicados a retratar e a incorporar a figura do jovem e da criança como protagonista da ficção, sendo eles também o público leitor” (Coelho, 2020COELHO, Isabel Lopes. A representação da criança na literatura infantojuvenil: Rémi, Pinóquio e Peter Pan. São Paulo: Perspectiva, 2020., p. 2-3). Histórias nas quais se verifica não apenas a presença da criança de maneira central, mas também a reiteração desse mundo ou desse tempo específico que só a ela pertenceria - a infância.10 10 O recente estudo de Fiuza (2021) elabora um convincente questionamento da infância como lócus exclusivo da criança. Com base no conceito de experimentum linguae, de Giorgio Agamben, Fiuza situa a infância não no tempo, e sim na linguagem, instância na qual todos, independentemente da idade, podemos experimentá-la.

A Figura 1 tenta resumir numa linha do tempo a trajetória descrita até este momento, de aparição da literatura infantojuvenil:

Figura 1 -
Linha do tempo da aparição da criança na literatura europeia.

Então, quando se passaram algumas décadas de consolidação do campo literário infantojuvenil - reflexo da separação física e cultural que estava ocorrendo na Europa entre o adulto e a criança -, surgiu na França uma obra que confrontava uma das certezas menos discutidas acerca das diferenças naturais entre os dois grupos. Ou melhor, acerca da superioridade dos adultos. Se meio século antes, com seus órfãos tão sofridos, Dickens e Hugo denunciaram o descumprimento da suposta obrigação dos adultos de zelar pelas crianças da comunidade, em 1896, Marcel Schwob publicou A cruzada das crianças, romance que, de certa perspectiva, contestava a crença de que esses seres faltantes e inexperientes não estariam aptos a se organizar sem a tutela dos adultos. Noutras palavras, o livro de Schwob questionava a suposta incapacidade política das crianças.

A cruzada das crianças faz referência à lenda da Idade Média sobre o surgimento espontâneo de um grupo de cruzados formado só por crianças, o que teria se dado na Europa Central no ano de 1212. Essa, aliás, é uma das poucas narrativas medievais protagonizadas por crianças de que se tem notícia, e talvez tenha contribuído para sua perpetuação o fato de logo ter se transformado no que Dickson (2008DICKSON, Gary. The children’s crusade: medieval history, modern mythistory. Nova York: Palgrave Macmillan, 2008.) chamou de mythistory - mistória talvez seja uma boa tradução -, emaranhado de mito e de história impossível de ser desembaraçado. Sua popularidade no imaginário da Belle Époque é sugerida não só pelo trabalho de Schwob, mas por outras obras do período baseadas nessa lenda, a exemplo da litografia A cruzada das crianças (1877), assinada pelo pintor francês Gustave Doré (Figura 2), bem como da releitura dramatúrgica feita pelo escritor italiano Gabriele D’Annunzio, em 1915, sob o nome de A cruzada dos inocentes: mistério em quatro atos.

Figura 2 -
A cruzada das crianças, de Gustave Doré. O texto que acompanha a imagem diz: “53. A cruzada das crianças. 50 mil crianças francesas e alemãs montam sua própria cruzada, cantando ʻSenhor Jesus, devolva a nós sua santa cruz!᾽.”

Diante de múltiplas versões, o que chama atenção na história contada por Schwob é a forma como ele a constrói: polifonicamente. São oito capítulos, e cada um deles é um depoimento que busca explicar o fenômeno com diferentes sentimentos e posturas.11 11 (1) “Relato do goliardo”, (2) “Relato do leproso”, (3) “Relato do papa Inocêncio III”, (4) “Relato de três criancinhas”, (5) “Relato de François Longuejoue, escrevente”, (6) “Relato do calândar”, (7) “Relato da pequena Allys” e (8) “Relato do papa Gregório IX”. Curiosamente, apenas dois capítulos dão voz às crianças que formam o grupo de cruzados. A maior parte dos relatos é narrada por testemunhas que as viram em sua rota de peregrinação ou então tiveram notícias delas. E todas essas testemunhas são pessoas adultas, o que permite inferir que A cruzada das crianças não está particularmente preocupada em construir um modelo representacional bem-acabado da criança, nem busca convencer seu leitor-modelo sobre a natureza comum ou excepcional das crianças de que está tratando, uma vez que quase não se pode acompanhar suas ações diretamente. De forma reiterada, o foco do texto está nas ideias que os adultos têm sobre as capacidades das crianças.

O relato atribuído a Inocêncio III, que ocupava o cargo de sumo pontífice em 1212, ilustra bastante bem que ideias eram essas. Desde Roma, o papa apenas ouviu falar da cruzada das crianças, espontaneamente organizada por elas. Dirigindo-se a Deus, ele começa seu monólogo, crente de que algo maligno está à solta, uma vez que lhe chegam notícias de muitas pessoas com comportamento inadequado: mulheres nuas correndo pelas cidades e hordas de loucos pregando a ruína e a destruição - note-se que são sempre minorias a se comportar mal. Quanto às crianças, Inocêncio assevera que “os pais, devotos e prudentes, esforçam-se para retê-las em casa. Mas as crianças arrombam a porta durante noite e atravessam as muralhas” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 31) - uma clara recusa à vida em confinamento e sem autonomia, mas que a sensibilidade do papa só consegue interpretar como influência de uma força externa à natureza da criança, diabólica presença que as leva a desobedecer seus pais e a se comportarem como as vítimas que essa mesma força fez outrora na cidade de Hamelin.12 12 Referência óbvia a O flautista de Hamelin, conto do folclore europeu. Adiante, no entanto, fica evidente que a real preocupação de Inocêncio não é o bem-estar desses jovens, mas o impacto que sua atitude pode causar à igreja. “São ignorantes e nos envergonham, pois desconhecem a verdadeira religião” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 31), dispara o papa.

Essa cruzada das crianças não é obra pia, e não poderá devolver o Santo Sepulcro aos cristãos. Ela aumenta o número de vagabundos que se esquivam da verdadeira fé. […] Senhor, sabeis que não é sensato que a crença se renove. […] Esses pequenos profetas vão abalar o edifício de Vossa Igreja. É preciso impedir que façam isso. Por que acolher, Senhor, os que não sabem o que fazem, desprezando os devotos que para vos servir usaram alvas e estolas […]. Deixemos que venham a vós os pequeninos, sem que abandonem o caminho da fé. (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 32-33).

A despeito de tanta bile disfarçada de consternação, ao final de sua prece, o religioso se permite um momento de dúvida, que começa logo após ele suspender as hierarquias que vem defendendo e se colocar em posição, digamos, horizontal, ou mais horizontalizada em relação às crianças. “Sou um homem muito velho. Minha fé não é mais do que a dos pequeninos. […] Me ilumina, Senhor. O que eu vi é um milagre?” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 34), ele se pergunta, talvez por se lembrar subconscientemente da principal máxima do Novo Testamento a respeito das crianças, proferida por Jesus ao reclamar de discípulos que tentavam conter a aproximação de um grupo de meninos: vinde a mim as criancinhas, delas é o reino dos céus (Ma 19:13-14). Fora da lógica logocêntrica por um instante - ou, mais precisamente, no limiar que não elimina suas convicções, porém permite que elas sejam interrogadas -, o papa Inocêncio III clama a Deus: “Os longos anos de vida me ensinaram que esse rebanho de crianças não tem como triunfar. No entanto, Senhor, trata-se de um milagre? […] Senhor, essas crianças são teus pequenos inocentes. E eu, Inocêncio, não sei, não sei” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 34). É assim que termina o capítulo, com uma mudança de tom e o reconhecimento de que, diante dos desígnios e mistérios divinos, não só as crianças são ignorantes (o que seria amplamente reconhecido), mas até o papa o é.

De modo recorrente, as testemunhas adultas do romance de Schwob reiteram a ignorância ou a inocência das crianças - termos que, a depender de quem os enuncie, podem se aproximar mais ou menos entre si. O primeiro relato do romance, feito por um goliardo comovido com os jovens peregrinos, descreve-os como “crianças selvagens e ignorantes”, que certamente “não chegarão a Jerusalém, mas esta virá ao seu encontro” (Schwob, 2020, p. 19), pois grande é sua fé. Um leproso, outro que também cruza com o grupo no meio da estrada, mesmo ciente de que elas não sabem como chegar a Jerusalém, acaba pedindo que intercedam por ele junto ao “Senhor dos que nada sabem” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 26). Um escrevente reitera a impressão dos relatos anteriores: “se trata de crianças famintas, que caminharam durante muito tempo e não sabem o que fazem” (Schwob, 2020, p. 43). E um calândar, última testemunha ocular13 13 Com efeito, o último depoimento é do papa Gregório IX, mas ele é feito pelo menos duas décadas depois do sumiço das crianças no Mediterrâneo. É quando, desaparecida a ameaça real que as crianças representavam para a igreja, esta pode se reconciliar com o feito, se apropriar do evento, por assim dizer, controlando a narrativa do que foi a cruzada das crianças e virando-a a seu favor. “Haverá um monumento expiatório, um monumento para purificar a fé que se ignora. Os tempos vindouros […] serão testemunhas da nossa devoção […]: construirei a igreja dos Novos Inocentes nesta ilha.” (Schwob, 2020, p. 61). do romance, diz por sua vez: “São crianças totalmente inocentes” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 49).

À exceção dos papas Inocêncio III e Gregório IX - dois homens de fé profissional, institucional, e que são testemunhas indiretas do evento -, todos que atravessam o caminho das crianças acreditam que sua fé pode levá-las ao triunfo, mesmo que isso signifique sua adesão à fé islâmica, como espera o calândar. Ainda assim, todos fazem questão de apontar a mencionada ignorância ou inocência, tornando evidente a ideia comum de que a criança, diferentemente do adulto, é marcada por uma falta fundamental - ou duas, se quisermos manter a distinção semântica dos dois qualitativos. Em relação à ignorância (uma falta de saber), a contraposição é feita no primeiro dos dois capítulos com testemunhos diretos das crianças. Ali se explica que elas, na verdade, sabem algo de que os adultos não têm noção. Elas, as crianças, ouvem “vozes brancas que se dirigiam a todas as criancinhas” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 37), e são essas vozes que as guiam em sua jornada. As crianças, inclusive, compreendem que a comoção manifestada pelos adultos que as observam pressupõe uma falta de cálculo ou de estratégia que elas estão, sim, fazendo: “E todo mundo tinha piedade de nós. Pois não sabem para onde vamos e não ouviram as vozes” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 37, grifo nosso).

Já em relação à inocência das crianças, alardeada pelos adultos, seu sentido parece atrelado tanto a certa falta de malícia - elas não poderiam nem sequer cogitar os ardis de que os adultos são capazes - e, de maneira correlata, a uma incapacidade de exercer a violência. Afinal de contas o temor dos adultos em relação aos jovens cruzados, quando não é o caso de que “os mercadores os capturem para negociar seus corpos” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 31), é que então eles venham a ser trucidados pelos inimigos da fé. E tal preocupação vale tanto para os cristãos quanto para os muçulmanos, pois, do ponto de vista do calândar, não fossem aquelas crianças terem sido guiadas até a margem mediterrânea onde se professava a fé de Maomé, provavelmente elas “seriam vítimas dos Adoradores do Fogo e acorrentadas em cavernas profundas” (Schwob, 2020, p. 50).

A violência, como se sabe, é um atributo importantíssimo da ordem social. O monopólio da violência - o direito de exercê-la - é um dos alicerces que dão forma a qualquer tipo de sociedade. Como aponta Foucault, por exemplo, no regime absolutista “o criminoso é um inimigo do príncipe” (Foucault, 1999FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1999., p. 43), pois é da coroa (e da cabeça de quem a usa) que emana a fons justitiae, cabendo àqueles que não a vestem obedecer ou ameaçar, ser amigo e poupado, ou inimigo e violentado. Já no Estado de Direito, são as leis, e somente as leis, cumprido o devido processo legal, que a princípio podem declarar alguém culpado por um crime, e, independentemente de qual crime seja ou contra quem ele foi cometido, cabe apenas ao Estado fazer uso legítimo da violência punitiva. Mas, seja no Estado absolutista moderno ou no Estado democrático contemporâneo, o que parece inquestionável, de tão naturalizado, é o entendimento de que um dos motivos pelos quais só o adulto pode exercer autoridade é porque somente ele é capaz de produzir violência. Essa, aliás, é a lógica na qual se baseiam os defensores da redução da maioridade penal, no contexto das discussões que se vê em anos recentes na esfera pública brasileira, como exemplifica a fala a seguir, do então deputado Marcos Rogério, de Rondônia, em debate na Câmara dos Deputados sobre o tema: “Quem sequestra, estupra, tortura e mata não é criança ou adolescente, é criminoso” (Brasil, 2015BRASIL. Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados, ano LXX, n. 109, 1 jul. 2015. Discussão da Proposta de Emenda à Constituição n. 171-C, de 1993, que altera a redação do art. 228 da Constituição Federal (imputabilidade penal do maior de dezesseis anos). Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/imagem/d/pdf/dcd0020150701001090000.pdf/ . Acesso em: 4 nov. 2022.
http://imagem.camara.gov.br/imagem/d/pdf...
, p. 194, grifo nosso).

A declaração reitera a natureza mitológica que a criança adquiriu, tornando-se idealização baseada num conjunto de premissas que, se violadas pelas crianças reais, não levam à reformulação da ideia do que é uma criança, mas antes fazem as violadoras perderem o status de criança - algo que, se prevalecesse a dimensão biológica de fato, seria impensável ou ao menos indiscutível da maneira como colocada pelo deputado. Vale mencionar de passagem que, no século XIX, o Legislativo brasileiro registrou outro acontecimento expressivo que ratifica a relação indissociável que, desde aquela época, se preserva entre a autoridade e o adulto: o chamado golpe da maioridade, em 1840, manobra que, para dar ao príncipe herdeiro os direitos plenos de governar como imperador dom Pedro II, precisou antes transformá-lo, pela força da lei sobre a biologia, em adulto.14 14 Estava no artigo 121 da primeira constituição brasileira, de 1824: “O Imperador é menor até a idade de dezoito annos completos”. É por vermos, por um lado, em episódios como esse, a sólida conexão entre a autoridade e o adulto e, por outro, como no caso do recente debate pela mudança na maioridade penal, enxergarmos o vínculo entre o adulto e a violência, que reafirmamos: parte da hierarquia estabelecida no par adulto/criança pressupõe que a essa fica vedada a participação em instâncias e em instituições que decidam sobre o bem-estar coletivo, e tal proibição em parte se sustenta na certeza de que falta à criança uma série de conhecimentos de mundo e de capacidades - incluída a capacidade de ser violenta, nem que seja por obrigação somente, para se defender ou defender o grupo do qual ela faz parte. Ilustraremos melhor esse ponto na seção seguinte.

A narrativa de Schwob já parte de um mote que coloca em xeque toda a estabilidade da trinca autoridade-adulto-violência. Afinal ela fala de crianças que decidem partir para uma guerra que os adultos de sua comunidade não foram capazes de vencer - e em nenhum momento da trama vemos os adultos correndo atrás delas ou se mobilizando no intuito de defendê-las. Não bastasse isso, para questionar ainda mais a crença de que o isolamento e o controle da criança visariam primordialmente protegê-la da violência do mundo, há significativa discrepância entre o temor dos adultos e o que de fato acontece aos jovens cruzados. A violência física aparece escancaradamente apenas no segundo capítulo, quando o leproso, ofendido com a saúde dos corpos das crianças, tenta agredi-las. Contudo, ao não ser desprezado por aqueles que ameaça, o homem se arrepende do ato e passa a conversar pacificamente com integrantes do grupo. Após esse episódio, a agressividade somente é evocada, de forma sutil, no penúltimo capítulo, que traz o segundo dos dois relatos com vozes de criança. Nele, a pequena Allys chama os mercadores francos que se dispuseram a fazer a travessia do Mediterrâneo com elas de “homens impiedosos” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 53), mas sem dar detalhes sobre tal impiedade. De toda sorte, não é pela ponta da espada nem pelo grito intimidador que a cruzada chega ao fim. Ela acaba, aparentemente, pelo engano.

No relato do calândar, somos informados de que “um grande número de crianças cristãs […] foram compradas pelo califa. Caminhavam ao longo da estrada, como um rebanho de carneiros. Dizem que elas vêm do Egito, e que os barcos dos francos as deixaram lá” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 49). Não fica claro quem começou a tratá-las como mercadoria, mas se depreende que, em tal processo, (ainda) não houve agressões físicas da parte dos muçulmanos, pois é com certo entusiasmo ou admiração que, a caminho talvez do palácio do califa, a pequena Allys narra: “Falam de um rei grandioso que nos fez vir até aqui, um rei que mantém em seu poder a cidade de Jerusalém” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 53-54, grifo nosso). Pode-se supor que, em algum momento, a força bruta será usada contra elas, e as crianças não serão capazes de revidar à altura, porém é difícil assegurar que isso tenha acontecido no tempo de ação do romance. A escolha verbal da pequena Allys - nos fez vir até aqui - pode significar coerção, mas o rei grandioso, adjetivado pouco depois de ela se referir aos homens impiedosos, deixa a suspeita de que as crianças teriam sido seduzidas a acompanhar quem quer que as esteja conduzindo, a fim de conhecerem o tal rei. Até quando Allys fala que ele mantém em seu poder Jerusalém - a cidade que uma das crianças diz ao leproso que irão conquistar - não é certo que isso o coloque no papel de antagonista. Pois quem garante que as crianças vão confrontá-lo, em vez de simplesmente pedir ao califa que dê Jerusalém para os cristãos? Ele, afinal, não domina, não subjuga, não controla a cidade. Ele a mantém em seu poder, expressão que pode até indicar cuidado, na lógica medieval de que as terras precisam de senhores.

O fato é: a forma como Allys fala dá brechas para pensar que as crianças acataram o desvio de rota motivadas por um argumento qualquer que as seduziu. E, como se sabe, a estratégia do logro está presente em conhecidos e repetidos processos históricos de dominação de adultos, em complemento à violência e às vezes antes dela. Faz parte da colonização (como não lembrar da ruína de Montezuma, que começou com a ilusão de que, diante do séquito de Cortez, à sua frente estavam deuses?15 15 A respeito desse episódio, cf. Todorov (1993), capítulo 2. ), e também da alienação capitalista, alimentada de falsas promessas para aplacar a reatividade, ilusões que abrem caminho para a sujeição. É inclusive estratégia de guerra, como no lendário episódio do Cavalo de Troia. Sendo assim, os adultos podem se revelar tão inocentes quanto as crianças. Não cabe, portanto, tomar a inocência - oposta à malícia - como atributo exclusivo da criança, ou impeditivo a priori de seu leque de ações.

Tendo a ignorância das crianças também sido minorada no depoimento do papa Inocêncio e na revelação de que elas sabiam de algo que os adultos não tinham conhecimento (as vozes brancas), o que restaria para sustentar o argumento da superioridade dos adultos em A cruzada das crianças, já que eles nem sequer têm coragem de fazer o que elas estão fazendo? Nada. Nem mesmo a ordem social replicada pelos adultos é marca de superioridade, ordem que, no tempo histórico da trama, pressupõe sempre a necessidade de um indivíduo governando os demais: rei e súditos, pastor e rebanho, suserano e vassalos. Logo no primeiro depoimento das crianças, uma delas declara: “Não temos governantes nem guias” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 38).16 16 As vozes brancas, portanto, não seriam guias, talvez apenas mensageiras ou conselheiras. E ainda assim conseguem se organizar como uma pequena comunidade itinerante e empreitar uma longa jornada, sobrevivendo a invernos rigorosos e às estradas perigosas. É como se A cruzada das crianças lançasse a seus leitores - gente de uma época e de uma classe em que a quarentenização da criança já era ponto incontroverso - a seguinte pergunta: as crianças realmente precisam dos adultos tanto quanto julgamos? E a própria obra respondesse: talvez não.

O romance de Schwob, se não é o primeiro texto literário a fazer tal questionamento, é um dos marcos iniciais de uma tradição literária que viria a se desenvolver ao longo dos séculos XX e XXI, insistindo na capacidade de auto-organização das crianças, construindo representações de sociedades ou comunidades de crianças que se ordenam, se mantêm e se preservam sem a tutela de adultos, às vezes sem a colaboração dos adultos e outras vezes à revelia dos adultos. É a esse tipo de comunidades - que são, efetivamente, construtos literários - que estamos chamando de neocracias. E nos parece que elas se transformaram num tópos, no sentido meineriano, não só porque são um elemento literário que se encontra repetidamente em romances espalhados por variados sistemas literários modernos e contemporâneos, mas também porque representam um desvio crítico de uma doxa cultural que há séculos sustenta um conjunto de discursos e de pressuposições sobre as crianças, que as mantém afastadas da tomada de decisões coletivas por considerá-las todas e a priori seres faltantes, ignorantes, inocentes, desorganizados, inferiores, não autônomos…

Na próxima seção, com menos detalhamento do que, por pioneirismo, foi dado ao livro de Schowb, serão apresentados outros romances que atestam a repetição do tema das sociedades de crianças ao longo do século XX e também no século XXI. Os comentários, breves considerações a serem desenvolvidas em textos futuros, girarão em torno de como tais romances, cada qual a seu modo, trabalham com um ou mais dentre os três desvios que A cruzada das crianças estabelece em relação à mitologia moderno-contemporânea da criança: a demonstração de que (1) elas são capazes de dominar conhecimentos que os adultos não têm, (2) são capazes de ser ardilosas ou engenhosas e (3) são capazes de agir com violência.

Em síntese, não são inocentes nem ignorantes.

No rastro das neocracias

O escritor escocês J. M. Barrie, 15 anos depois de lançada A cruzada das crianças na França, publicou a história de um grupo de garotos órfãos que abandonam o mundo dos adultos e vão para um lugar onde as crianças jamais crescem. E, quando sentem falta de uma mãe, é a uma garota de sua idade que eles recorrem, revivendo a estrutura da família burguesa como uma grande brincadeira - que traz, inclusive, o prazer de poder ser interrompida.17 17 “— Sabe — disse ele, em tom de desculpas — Eu ia me sentir tão velho se fosse pai deles de verdade. — Mas eles são nossos filhos, Peter, seus e meus. — Mas não de verdade, não é, Wendy? — perguntou ele ansioso. — Se você quiser, não — respondeu ela. E ouviu-se claramente o suspiro de alívio do menino.” (Barrie, 2012, p. 149). Peter e Wendy, como aponta Coelho (2020COELHO, Isabel Lopes. A representação da criança na literatura infantojuvenil: Rémi, Pinóquio e Peter Pan. São Paulo: Perspectiva, 2020.), é um romance repleto de inovações literárias, a começar pelo fato de o texto deixar dúvidas acerca de qual é seu público-alvo: adultos ou crianças? Ou ambos? Talvez seja o caso de que a própria linguagem da obra trabalhe contra a separação entre adultos e crianças que já vigorava no período em que foi escrita.

Outra inovação contida em Peter e Wendy é o espaço no qual a trama acontece: a Terra do Nunca. Esse é um “lugar que existe dentro da mente de cada criança, excluindo, dessa maneira, o adulto do universo infantil” (Coelho, 2020COELHO, Isabel Lopes. A representação da criança na literatura infantojuvenil: Rémi, Pinóquio e Peter Pan. São Paulo: Perspectiva, 2020., p. 23-24), transformando-o em ignorante de um mundo inteiro que logo deixa de ser apenas produto da imaginação e se transforma em realidade. E mais:

[…] a ausência da figura adulta é absolutamente natural para as crianças da Terra do Nunca. Aliás, esse tópico é central para a motivação do romance: não apenas os ideais do mundo adulto são recusados como também os próprios adultos são banidos da aventura, o que cria um espaço livre para que as relações entre as crianças se tornem mais profundas. (Coelho, 2020COELHO, Isabel Lopes. A representação da criança na literatura infantojuvenil: Rémi, Pinóquio e Peter Pan. São Paulo: Perspectiva, 2020., p. 118).

Tomada como alegoria, a Terra do Nunca sugeriria um posicionamento em defesa de que a infância deve ser vivida em sua totalidade no presente, sem expectativa de futuro e também sem idealização. Barrie foge “da ‘criança como musa’ e símbolo de pureza. […] Não por acaso, é possível encontrar no romance passagens em que as crianças sentem ciúmes, raiva, desejo de vingança” (Coelho, 2020COELHO, Isabel Lopes. A representação da criança na literatura infantojuvenil: Rémi, Pinóquio e Peter Pan. São Paulo: Perspectiva, 2020., p. 119). Ou ainda, um prazer gratuito, entre o sádico e o lúdico, na prática de violência, como se encontra na passagem em que, a caminho da Terra Nunca, Peter Pan subitamente propõe aos irmãos Darling que façam um desvio para acabar com a vida de um pirata: “- Estou vendo um pirata dormindo nos pampas, logo abaixo de nós - respondeu Peter. - Se você quiser, podemos descer e matar o sujeito” (Barrie, 2012BARRIE, J. M. Peter e Wendy. Tradução de Sergio Flaksman. São Paulo: Cosac Naify, 2012., p. 62, grifo nosso). É possível até que haja uma relação entre a completude sentimental humana que os Garotos Perdidos experimentam e sua capacidade de viver sem os adultos, sobrevivendo juntos aos perigos da Terra do Nunca. Por tal motivo, Peter e Wendy apresenta ao público leitor uma neocracia parecida à de A cruzada das crianças: um desvio literário da doxa cultural de sua época e local, acerca das crianças.

Até a década de 1950, as neocracias apareceriam pelo menos outras duas vezes em romances de grande êxito global. Em 1937, Jorge Amado publicou Capitães da areia, a história de um bando de garotos órfãos - quase 100 “moleques de todas as cores e de idades as mais variadas, desde os nove aos dezesseis anos” (Amado, 2008AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 28) -, mas que, não dispondo de uma Terra do Nunca, se juntaram num trapiche abandonado em Salvador, com o intuito de sobreviver em meio a uma sociedade que os desprezava. Nessa comunidade marginal, eles desfrutam dos mesmos hábitos dos adultos: bebem, fumam, apostam, fazem sexo e não fogem de briga, principalmente se o opositor for alguém do bando rival. Mas nem por isso se brutalizam, como certos discursos gostam de alardear acerca das crianças às quais não são dados limites pelos adultos. É tanto que reconhecem os excessos de um de seus integrantes, o Sem-Pernas: “[…] era dos que mais brigavam. Tinha mesmo fama de malvado. Uma vez fez tremendas crueldades com um gato que entrara no trapiche. E um dia cortara de navalha um garçom de restaurante para furtar apenas um frango assado” (Amado, 2008AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 37).

O mesmo Sem-Pernas, no entanto, é excelente em explorar a pena dos adultos em relação à sua perna defeituosa, valendo-se desse sentimento para aplicar-lhes golpes e furtos. Assim ele demonstra como uma criança pode ser maliciosa e um adulto, ingênuo. E seus companheiros não ficam para atrás. Os Capitães de Areia são tão engenhosos que, por vezes, são contratados para fazer serviços escusos por adultos, ainda que a princípio estes duvidem de suas capacidades:

O homem mirou os três com espanto:

- Porém são uns meninos! Isso não é negócio para meninos.

- Diga o que é, a gente sabe fazer o trabalho direito - retrucou Pedro Bala […].

- Mas se um negócio que talvez nem homens… - e o homem pôs a mão na boca, como quem teme ter dito mais do que convinha.

- Nós sabe guardar um segredo tão bem como um cofre. E os Capitães da Areia sempre faz os serviços bem-feito… (Amado, 2008AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 56-57).

De fato, eles se saíam tão bem em suas atividades, que se tornaram conhecidos e temidos na cidade, embora, é bem verdade, tanto eles mesmos quanto aqueles que lhes torciam o nariz tinham problemas em ver o bando de Pedro Bala como crianças. Demônios, gentalha e homens são alguns dos termos que aparecem no romance para designá-los. Esse último, aliás, é muito utilizado pelos próprios garotos e ocasionalmente pelo narrador, quando deseja ser mais fidedigno ao pensamento dos Capitães da Areia: “Se recorda que ainda é uma criança. Mas só na idade, porque no mais é igual a um homem, furtando para viver, dormindo toda as noites com uma mulher da vida, tomando dinheiro dela. Mas nesta noite é totalmente criança” (Amado, 2008AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 180, grifo nosso). Nesse trecho, o narrador nos permite inferir que a ideia vigente da criança com a qual trabalha é exatamente aquela que descrevemos aqui como hegemônica: é mais status social do que realidade psicobiológica, e como tal pode ser perdida ou retirada - e geralmente o é, das crianças abandonadas ou pobres, e também das garotas púberes.

A respeito das crianças burguesas, Postman escreveu que para elas “a idade adulta tinha de ser conquistada” (Postman, 2012POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Tradução de Suzana Menescal de Alencar Carvalho e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Graphia, 2012., p. 50). Mas no caso das crianças pobres, demonstrou Jorge Amado, a operação é invertida: é a identidade de criança que elas precisam conquistar, do contrário serão vistas como pequenos adultos, independente do que façam - afinal, nem todos os Capitães da Areia são como Sem-Pernas ou como Pedro Bala. Professor e Pirulito, por exemplo, se fossem filhos da classe média, seriam vistos como exemplos de garoto estudioso e garoto devoto, respectivamente. Porém, sendo crianças abandonadas, são menos crianças aos olhos de parte da sociedade. Sem alguém que precise que elas sejam o outro constitutivo de sua identidade de adulto, os Capitães da Areia ficam livres desse jogo logocêntrico específico para cair em outros, como aquele que opõe o cidadão de bem à escória. Era uma doxa cultural em 1937 e segue tendo força no senso comum quase 100 anos depois. Não por acaso, como foi dito anteriormente, as discussões sobre a redução da maioridade penal no Brasil ainda têm tanto apelo.

A outra obra que ganhou êxito internacional apresentando uma neocracia apareceu em 1954, na Inglaterra. No contexto da Guerra Fria e do medo de uma extinção nuclear, o ex-soldado da Segunda Guerra Mundial e então professor da educação básica, William Golding, estreou na prosa literária com uma das narrativas mais conhecidas do século XX: O senhor das moscas. É a história de um grupo de garotos de classe média que, aparentemente em fuga do apocalipse atômico - nem eles mesmos têm certeza -,18 18 “— […] Você não ouviu o que o piloto disse? Sobre a bomba atômica? Estão todos mortos. Ralph saiu da água e ficou fixando Porquinho, enquanto pensava nesse problema inédito.” (Golding, 2006, p. 18, grifo nosso). vão parar numa ilha deserta onde o principal desafio é viver a complexidade sentimental humana de maneira total, sem as contenções às quais eles estavam acostumados. E, ao contrário do que se verifica nos livros mencionados anteriormente, nos quais o desaparecimento das amarras dos adultos produz quase sempre entusiasmo, inclusive em relação à violência, para alguns garotos de O senhor das moscas a situação em que se encontram é motivo de angústia, como demonstra a passagem a seguir:

Roger pegou um punhado de pedras e começou a atirá-las. Mas havia um espaço ao redor de Henry, talvez com uns seis metros de diâmetro, em que ele não ousava acertar. Aí, invisível mas poderoso, surgia o tabu da vida antiga. Em volta do menino ajoelhado, havia a proteção dos pais, da escola, da polícia e da lei. O braço de Roger era condicionado por uma civilização que nada sabia dele e estava em ruínas. (Golding, 2006GOLDING, William. O senhor das moscas. Tradução de Geraldo Galvão Ferraz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006., p. 69).

Tal angústia só aumenta à medida que aqueles que experimentam antes ou com mais conforto os sentimentos de violência parecem mais fortes, mais aptos, líderes capazes de sobreviver e de ameaçar quem ainda não se permitiu tanto:

Entre os raios, o ar estava escuro e terrível […]. Roger tornou-se o porco, guinchando e investindo contra Jack, que se desviou. Os caçadores pegaram as lanças […]. Começou o canto e um movimento de cerco. Enquanto Roger imitava o terror do porco, os pequenos corriam e saltavam fora do círculo. Porquinho e Ralph, sob a ameaça do céu, sentiam-se ansiosos para tomar parte nessa sociedade demente mas parcialmente segura. Gostariam de tocar os ombros bronzeados no círculo, que encerrava o terror e o domava.

Matem o bicho! Cortem a garganta! Tirem o sangue! (Golding, 2006GOLDING, William. O senhor das moscas. Tradução de Geraldo Galvão Ferraz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006., p. 166, grifo nosso).

Piven acusa Golding de estar “mais interessado em chocar o leitor com a imagem da inocência como [fonte de] crueldade do que em demonstrar a crueldade inata da natureza humana” (Piven, 2002PIVEN, Jerry S. Lord of the Flies as parable of the invention of enemies, violence, and sacrifice. In: PIVEN, Jerry S.; BOYD, Chris; LAWTON, Henry W. (org.). Jihad and sacred vengeance. Lincoln: iUniverse, 2002. p. 132-158., p. 137),19 19 No original: “Golding is more interested in shocking the reader with the image of innocence as cruelty than in demonstrating the innate cruelty of human nature” (tradução nossa). o que teria a ver com sua intenção de criar uma parábola que explicasse como a civilização moderna ocidental pôde chegar à guerra. Por isso, talvez, a violência é retratada tão negativamente no livro. No entanto, para Piven, os garotos de O senhor das moscas e seus rituais de sacrifício e de flagelo dos mais fracos não destoariam da ancestral prática humana de selecionar “bodes expiatórios a fim de fomentar sentimentos de poder e de união na comunidade” (Piven, 2002PIVEN, Jerry S. Lord of the Flies as parable of the invention of enemies, violence, and sacrifice. In: PIVEN, Jerry S.; BOYD, Chris; LAWTON, Henry W. (org.). Jihad and sacred vengeance. Lincoln: iUniverse, 2002. p. 132-158., p. 135),20 20 No original: “[...] human beings will search for scapegoats in order to provide feelings of power and unity to the community” (tradução nossa). o que inclusive canalizaria a violência, impedindo-a de se espalhar dentro da própria comunidade. A hipótese de Piven se afina à reflexão que Umberto Eco dedicou à nossa “necessidade ancestral de ter inimigos” (Eco, 2021ECO, Umberto. Construir o inimigo. In: ECO, Umberto. Construir o inimigo e outros escritos ocasionais. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2021. p. 11-31., p. 27), haja vista que o inimigo serviria “não somente para definir a nossa identidade, mas também para encontrar o obstáculo em relação ao qual medir nosso sistema de valores e mostrar, no confronto, o nosso próprio valor” (Eco, 2021ECO, Umberto. Construir o inimigo. In: ECO, Umberto. Construir o inimigo e outros escritos ocasionais. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2021. p. 11-31., p. 27). Nesse contexto, e para o escopo temático que nos interessa, O senhor das moscas, mesmo que com tom de pesar, demonstra que as crianças não são diferentes dos adultos naquilo que seria mais necessário para a construção da ordem social: a capacidade de fundar uma ética da inimizade, que complementaria os esforços necessários à criação de laços. Por conta disso é que o livro pode ser apontado como outra manifestação do tópos da neocracia.

No decorrer da segunda metade do século XX, com o crescimento das indústrias culturais nacionais, fica mais difícil rastrear todas as obras que apresentam o tópos da neocracia. Mas é certo que ele se perpetuou e, do romance que pensa o adulto como leitor-modelo, alcançou outros gêneros literários e narrativos. Em 1975, por exemplo, o escritor americano O. T. Nelson lançou The girl who owned city, romance juvenil ainda inédito no Brasil, que conta a história de um vírus que mata todos com mais de 12 anos e de como algumas crianças do subúrbio de Chicago, lideradas por uma garota, buscam sobreviver assumindo as tarefas antes feitas pelos adultos. Em 1982, Pink Floyd lançou o filme The Wall, musical baseado no disco homônimo da banda, estreado três anos antes, e nele há uma sequência - que se tornaria clipe da famosa canção Another brick in the wall - na qual, ainda criança, Pink, o protagonista, imagina uma pequena rebelião estudantil que termina com seu colégio queimado e os professores agredidos com a mesma violência com que tratavam os alunos. É uma espécie de história de uma neocracia em gênese, ademais de ser uma peça que insere o tópos no gênero de narrativas audiovisuais.

Um ano depois, do outro lado do oceano, nos Estados Unidos, a rede de tevê CBS estreou o desenho animado Dungeons & Dragons. A história se baseava no jogo de RPG homônimo, que a empresa TSR havia lançado em 1974 e que vinha fazendo grande sucesso comercial. A ideia surgiu como forma de seguir explorando a marca D&D, e o programa foi ao ar originalmente entre 1983 e 1985, ano em que chegou ao Brasil. Aqui, sob o título de Caverna do Dragão, foi exibido por pelo menos uma década e ganhou o status de cult para muitos que o assistiram quando crianças. A série animada conta a história de seis jovens que, ao entrar num brinquedo chamado Dungeons & Dragons num parque de diversões, vão parar num reino de criaturas mágicas e muitos perigos. Ali eles contam com a ajuda do Mestre dos Magos, tanto para enfrentar o vilão mais poderoso do reino, o Vingador, quanto para tentar encontrar uma forma de voltar para casa. Mas essa ajuda sempre se dá em aparições breves e esporádicas. Logo o Mestre dos Magos desaparece, deixando-os na maior parte do tempo sozinhos. Munidos de armas mágicas, os seis amigos não só precisam combater - com violência e astúcia - aqueles que o ameaçam, mas também precisam resolver suas diferenças internas, gerindo opiniões e expectativas diferentes a fim de manter o grupo coeso e funcional. Um exemplo de neocracia no campo do audiovisual infantojuvenil.

No século XXI, o tópos segue sendo encontrado, inclusive no gênero no qual foi primeiro identificado: o romance que pressupõe o adulto como leitor-modelo. Em 2017, o escritor espanhol Andrés Barba publicou República luminosa. É a história de um grupo de crianças que passa a ser visto como ameaça pelos adultos da cidade, uma fictícia cidade dos trópicos. Semelhante ao livro de Schwob, talvez mais explicitamente do que este, o texto de Barba é escrito na forma de relato memorialístico do assistente social daquela cidade, um misto de confissão e de ensaio por meio do qual o sujeito busca explicar e entender como ele e outros adultos foram capazes de, 20 anos atrás, provocar a morte de 32 crianças. E o que narrador personagem percebe, ao longo do relato, é que o conflito foi gerado pela frustração do ideal da criança. Por se recusarem a corroborar a fantasia que os adultos faziam da infância, as 32 se tornam uma espécie de enigma, que, mesmo depois de duas décadas, o protagonista ainda tenta decifrar. E ele o faz sob variadas perspectivas, mas em cada uma delas o que se verifica são os laços logocêntricos entre o par adulto/criança e a instabilidade que uma mudança de forças nessa relação provoca nos adultos, em sua expectativa de que a criança cumpra a função idealizada para ela.

O mundo da infância nos esmagava com suas ideias preconcebidas, por isso boa parte da raiva que as pessoas sentiram diante das 32 não teve tanto a ver com ser ou não natural que umas crianças tivessem perpetrado um ato violento, mas com a fúria que essas mesmas crianças provocaram por não terem se adequado ao almiscarado estereótipo da infância. (Barba, 2018BARBA, Andrés. República luminosa. Tradução de Antônio Xerxenesky. São Paulo: Todavia, 2018., p. 89).

O ato violento mencionado no trecho acima é uma invasão ao supermercado que termina com as crianças destruindo o ambiente, agredindo clientes e mesmo assassinando alguns deles - todos adultos. Mais tarde, ao analisar os depoimentos das vítimas, o narrador conta que

[…] nem sequer as pessoas que sobreviveram à tragédia conseguiram explicar mais do que com frases que vão da obviedade ao incompreensível. Foi um pesadelo. Não dá para explicar o que aconteceu… É preciso passar por muitas páginas de lugares-comuns para encontrar duas declarações que contêm o áspero e indubitável sabor do real: a de uma mulher que jura que as crianças tinham rosto de inseto e a de um dos caixas de supermercado quando declara que todos sabíamos perfeitamente o que tínhamos que fazer. Das duas declarações, a segunda me tirou o sono por meses. (Barba, 2018BARBA, Andrés. República luminosa. Tradução de Antônio Xerxenesky. São Paulo: Todavia, 2018., p. 35).

Cabem três observações sobre o trecho acima. Em primeiro lugar, destaca-se a sensação geral de incredulidade, que parece reiterar uma profunda crença, da parte dos adultos, de que crianças não podem ser tão sádicas e cruéis, fascinadas pela violência gratuita. Em segundo lugar, há a percepção, tanto do narrador quanto de uma das sobreviventes, de que a única explicação para o acontecimento adviria do fato de as crianças não serem humanas, daí a impressão da testemunha - de que elas tinham rosto de inseto - ter para o assistente social o indubitável sabor do real. Por fim, há a declaração dada pela funcionária do mercado, um discurso que tira o sono do protagonista e que, mesmo não sendo detalhado ao leitor, pode ser inferido como uma sugestão de revide na mesma moeda, isto é, com violência. Mas que tipo de adultos seriam eles se violentassem, em vez de educarem, aquelas crianças? - eis a pergunta que parece provocar a insônia do narrador, junto a outra: como não revidar, em caso de novo ataque, tendo a certeza de que foi a hesitação em fazê-lo que levou à morte certa dos clientes?

É digno de nota que, no romance de Barba, o antagonismo entre crianças e adultos não deriva da pobreza nem da violência do Estado, como sucede em Capitães da areia. As desavenças em República luminosa parecem ocorrer simplesmente porque, não se considerando parte da mesma comunidade dos adultos, as crianças não se sentem obrigadas a ter com eles um pacto de respeito nem de paz. O corte é tamanho que elas nem sequer falam a mesma língua dos adultos. Criam sua própria linguagem - talvez a alegoria mais explícita sobre a criança como enigma diante de adultos acostumados a vê-las apenas pelo filtro da idealização - e, segundo o narrador, isso não ocorre simplesmente porque não se querem fazer entender. É mais uma espécie de demanda espontânea…

[...] as crianças não escolheram falar desse jeito só para que alguém não as compreendesse [...], mas de um impulso perfeitamente lúdico e criativo. A professora considera que aquelas crianças precisaram, no contexto de um mundo e uma vida nova, de uma língua nova. Palavras novas para nomear aquilo que ainda não tinha sido nomeado. [...] Para as 32, a necessidade da língua não vinha tanto da necessidade de comunicação, mas da necessidade de brincar. (Barba, 2018BARBA, Andrés. República luminosa. Tradução de Antônio Xerxenesky. São Paulo: Todavia, 2018., p. 46-47, grifo nosso).

E essa necessidade nos leva à última parte deste artigo, antes das considerações finais. Nela explicaremos por que chamamos o tópos aqui rastreado de tópos da neocracia, em vez de tópos das sociedades ou das comunidades de crianças.

Por que neocracias?

Num ensaio panorâmico, no qual compara a valoração das crianças no Ocidente e em diferentes sociedades que conseguiram conter em alguma medida a influência moderno-colonial, o antropólogo David Lancy (2015LANCY, David F. The anthropology of childhood: cherubs, chattel, changelings. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.) cunhou o par conceitual gerontocracy/neontocracy, que em português seria algo como: gerontocracia/neontocracia. Assim, ele distingue o tipo de hierarquia social que seria mais comumente encontrado no planeta - uma espécie de tradição longeva do homo sapiens -, daquele predominante nas sociedades mais ricas e influentes da atualidade. De um lado, a gerontocracia: o respeito aos mais velhos como pilar das instituições sociais e das dinâmicas de convivência. Do outro, a neontocracia: a devoção à criança como prova de virtude e de boa cidadania. Todavia Lancy parece não se atentar para o fato de que esse cuidado inédito com a infância, responsável por fundar instituições, profissões e mesmo uma indústria tecnologicamente avançada e voltada para atender às necessidades da criança, é, antes de mais nada, parte de uma sociabilidade de adultos, valorizada principalmente por eles. Em tal dinâmica, a criança é quase sempre objeto de ostentação da capacidade de consumo ou de sacrifício de pais e familiares zelosos.

Com olhos de forasteiro psicanalista, ao chegar ao Brasil na década de 1980, Contardo Calligaris relatou como lhe impressionava que, no país, houvesse tanto alarde em torno do prazer e do bem-estar das crianças e ao mesmo tempo tantas crianças em condição de rua. Em pouco tempo se deu conta de que, “se a criança dispusesse de um estatuto simbólico particular, se fosse um sujeito precocemente reconhecido, isso [um tratamento zeloso] valeria para qualquer criança” (Calligaris, 1991CALLIGARIS, Contardo. Crianças. In: CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil!: notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Escuta, 1991, p. 41-50., p. 45). Como não fosse o caso, significava que “o adulto brasileiro parece constantemente preocupado com o prazer das suas crianças” somente (Calligaris, 1991CALLIGARIS, Contardo. Crianças. In: CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil!: notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Escuta, 1991, p. 41-50., p. 42, grifo nosso). E, a bem da verdade, esse talvez não seja um traço exclusivo da cultura brasileira. Na trama de República luminosa, o narrador se dá conta dessa mesma contradição que Calligaris observa:

Mas a realidade é insistente e nem sequer assim deixavam de ser crianças. Como poderíamos esquecer se era exatamente aí que começava o escândalo? Crianças. E, um belo dia, descobriu-se que roubavam. “Pareciam tão boazinhas!”, exclamavam alguns, mas por trás desse grito havia uma ofensa pessoal: “Pareciam tão bons e nos enganaram, esses pequenos hipócritas”. Eram crianças, sim, mas não como as nossas. (Barba, 2018BARBA, Andrés. República luminosa. Tradução de Antônio Xerxenesky. São Paulo: Todavia, 2018., p. 32).

Não como as nossas porque as nossas são um reflexo de nós - ou pelo menos é o que tentamos fazer com elas, mesmo que o preço seja o sequestro de sua autonomia, a objetificação de sujeitos que preferimos enquadrar de acordo com nossas fantasias. É isso que Lancy não nota que está em jogo nas neontocracias. Elas não são o paraíso das crianças, mas um palco no qual adultos financeiramente privilegiados podem usar as crianças para exibir seu sucesso de maneira menos condenatória do que se andassem por aí cobertos de joias ou acendendo charutos com cédulas de dólar.

Neontocracia é uma palavra que traz três elementos de composição derivados do grego: (1) néos, a, on, que quer dizer novo; (2) ón, óntos, que quer dizer ser, criatura; e o conhecidíssimo (3) krátos, eos, ous, que significa força, poder, governo, autoridade. Portanto, etimologicamente, neontocracia diz respeito ao governo dos mais novos, das crianças. Mas o fenômeno literário que estamos observando, o da aparição de sociedades ou comunidades de crianças que vivem organizadamente sem a tutela de adultos - e à revelia dos adultos -, não impõe a autoridade das crianças acima de todos. Com efeito, esses agrupamentos de crianças vivem de modo que, mesmo quando reconhecem sua condição de crianças, rechaçam o arcabouço cultural pré-fixado na forma como o par adulto/criança se constituiu na modernidade europeia e na pós-colonialidade contemporânea. Por isso, em vez de acompanhar Lancy e batizar tais construtos literários de neontoncracias, governos dos mais novos, preferiu-se chamá-los de neocracias, novos governos, novas formas de estruturar uma comunidade, sem negar as diferenças entre adultos e crianças, mas sem fazer delas um pretexto para manter as crianças separadas das instâncias e das decisões que dizem respeito à coletividade.

Por razões semelhantes se optou por não falar em tópos das sociedades ou das comunidades de crianças. Embora a expressão seja adequada descritivamente, sua semântica não deixa de produzir um enquadramento rápido, que remete a algo exclusivo do universo da criança, da mesma forma que expressões como psicologia infantil, literatura infantil ou mesmo universo da criança produzem. A fim de manter a coerência com a proposta de pensar o tópos como desvio literário da doxa cultural e com as análises aqui feitas, baseadas em tal premissa, pareceu mais eficaz escolher um nome que não acionasse de imediato os pressupostos e fantasias que já temos introjetados em relação às crianças. Feito os jovens de República luminosa, aqueles que precisaram de “palavras novas para nomear aquilo que ainda não tinha sido nomeado” (BARBA, 2018BARBA, Andrés. República luminosa. Tradução de Antônio Xerxenesky. São Paulo: Todavia, 2018., p. 47), buscamos uma palavra que escapasse ao logocentrismo do par adulto/criança e assim chegamos às neocracias. Pode não ser a melhor palavra, nem a palavra mais precisa, mas é a que deu conta até agora de nossas reflexões.

Considerações finais

A pesquisa que temos desenvolvido busca estudar, de modo geral, o surgimento do tópos das neocracias e, mais especificamente, analisa sua manifestação em cinco romances que foram mencionados ao longo deste artigo: A cruzada das crianças, de Marcel Schwob, Peter e Wendy, de J. M. Barrie, Capitães da areia, de Jorge Amado, O senhor das moscas, de William Golding, e República luminosa, de Andrés Barba. As cinco obras - é o que se tentou demonstrar brevemente neste artigo - se assemelham tanto por construir literariamente sociedades ou comunidades de crianças autônomas, que vivem sem a tutela de adultos, quanto por produzir, por meio de tais construtos, críticas ao modo como a criança passou a ser concebida e tratada desde o século XIX, mais ou menos.

Com efeito, cada obra apresenta uma nova e singular representação da criança. Todavia, em se tomando aquela que até então nos parece a manifestação pioneira das neocracias na literatura moderna (mesmo que não seja a pioneira, é decerto uma pioneira), isto é, em se tomando A cruzada das crianças como uma espécie de paradigma das neocracias, ganha-se um primeiro percurso de análise, focado em observar, nesses grupos de crianças e em suas histórias, a inversão ou o questionamento de duas ou três características comumente atribuídas às crianças pelos adultos: a ignorância, ou seja, a noção de que lhes faltam saberes que só os adultos detêm; e a inocência, no sentido de que carecem da capacidade de perceber logros e comportamentos de má-fé, ou no sentido de que seriam incapazes de lidar com a violência, e mais ainda de praticá-la.

Ambas as características se consolidaram num processo que idealizou a criança de maneira a formar um estereótipo mais útil aos adultos do que às crianças reais. Tal idealização garante ao adulto uma identidade que é tanto estável quanto notadamente superior, e isso, por sua vez, justificaria a ordem social que se começou a construir na Europa à época da ascensão da burguesia e que se espalhou - descontadas as diferenças locais - por todo o planeta no processo de formação da cultura contemporânea. Nessa ordem, aqui chamada de pós-colonial, sob pretexto de estarem sendo protegidas, as crianças devem permanecer relativamente separadas dos ambientes ditos para adultos. E mais: sob alegações de ainda estarem despreparadas para as complexidades do mundo, das relações sociais e da política, sob reiterado discurso de que seu papel social é o de ser aprendiz, preencher as lacunas que marcam ontologicamente toda criança, elas, as crianças, se veem obrigadas a se manter alheias ou sem voz nos debates e nas decisões que dizem respeito ao bem-comum, às escolhas do que priorizar coletivamente no aqui-agora, tarefa que os adultos delegaram exclusivamente a si próprios.

Justamente por irem de encontro a essa ordem e às premissas sobre a criança que a sustentam, as neocracias parecem fazer o mais radical dos desvios em relação à forma como culturalmente nos acostumamos a pensar as crianças. Ao mostrar que elas não são inocentes nem ignorantes - ao menos, não de maneira tão distinta quanto os adultos podem ser -, e ao apontar que elas são capazes de viver bem e autonomamente sem a presença de adultos, as neocracias literárias projetam uma nova criança na mente dos leitores e na cultura em que se inserem. E, como a própria ideia moderno-contemporânea do adulto se constituiu em oposição à idealização da criança, em última instância, as neocracias também ajudam a renovar a noção do que é ser adulto. Eis por que vale a pena estudá-las.

Referências

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    » http://imagem.camara.gov.br/imagem/d/pdf/dcd0020150701001090000.pdf/
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  • TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
  • TUCHMAN, Barbara W. A distant mirror: the calamitous 14th century. Nova York: Ballantine Books, 1979.
  • WEDEKIN, Luana M. A sublevação de Atlas: notas sobre o método de Georges Didi-Huberman. Revista Educação, Artes e Inclusão, v. 15, n. 1, p. 27-49, 2019.
  • 1
    Este texto é fruto de pesquisa elaborada, entre maio de 2022 e maio de 2023, no âmbito do estágio pós-doutoral realizado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, sob supervisão da Profa. Dra. Elizabeth Cardoso.
  • 2
    Para transliterar o termo grego τόπος, utiliza-se aqui a grafia que o dicionário Houaiss registra como estrangeirismo, porém sem fazer uso do itálico, prática ligada a velhos nacionalismos linguísticos. O itálico, ao longo deste texto, serve exclusivamente para destacar títulos de obras, dar ênfase a certas palavras e expressões ou pôr em evidência o significante de determinado signo gráfico. No entanto, em respeito às escolhas de outros autores, citações podem conter padrões diferentes tanto para o uso do itálico quanto para a transliteração de τόπος.
  • 3
    Fala-se aqui em leitor-modelo nos termos de Eco (2008ECO, Umberto. O leitor-modelo. In: ECO, Umberto. Lector in fabula. 2. ed. Tradução de Attílio Cancian. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 35-49.): um destinatário exemplar que cada texto prevê, capaz de, com êxito, completar as lacunas ou preencher os sentidos daquilo que o próprio texto cala ou deixa entredito.
  • 4
    Como afirma Hunt (2010HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Tradução de Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2010.), o conceito de infância não é e talvez nunca tenha sido estável. Sua definição não é consensual nem mesmo no âmbito de uma só cultura, podendo variar sob influência de questões de classe, de gênero ou de outras variáveis. Com base nessa constatação, o uso do termo criança ao longo deste texto não faz eco a nenhum tipo de classificação etária estrita, seja ela definida legalmente ou compartilhada por uma cultura. Tampouco se preocupa em fazer distinções entre criança, pré-adolescente e adolescente. Pode-se dizer que a criança aqui se define sempre como o não adulto.
  • 5
    Cf. Meiner (2018MEINER, Carsten. Modernizando a topologia literária: convenção, contingência e história. Tradução de Caetano W. Galindo. Versalete, Curitiba, v. 6, n. 11, p. 181-212, 2018., p. 195-198) para o detalhamento, em obras da literatura francesa, de alguns usos literários que a carruagem ganhou.
  • 6
    Exemplos de rápida apreensão são os estereótipos da criança-problema, da criança travessa e da criança boazinha - todos eles com múltiplas encarnações em narrativas de grande popularidade nacional ou internacional.
  • 7
    A bem da verdade, Derrida argumenta que a predominância do esquema cognitivo que batiza de pensamento logocêntrico vem desde a Antiguidade, da base platônica que fundou a filosofia europeia. Porém os arranjos que ele produz seriam específicos de cada época.
  • 8
    Sobre este ponto, vale mencionar o trabalho de Oliveira (2004OLIVEIRA, Ana Maria Tavares da Silva Rodrigues. A criança na sociedade medieval portuguesa: modelos e comportamentos. 2004. Tese (Doutorado) - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2004.) acerca da criança na sociedade medieval portuguesa. Ele é um contraponto à tese de Ariès (1986ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Tradução de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.) de que os pais da Idade Média não dedicavam à criança um tratamento que as sensibilidades modernas e contemporâneas pudessem reconhecer como cuidadoso e amoroso. O estudo de Oliveira, somado à declaração de Tuchman de que os “sentimentos em relação às crianças raramente aparecem na arte, na literatura ou em documentos” (Tuchman, 1979TUCHMAN, Barbara W. A distant mirror: the calamitous 14th century. Nova York: Ballantine Books, 1979., p. 49, tradução e grifos nossos), conformam mais um argumento a favor da desconfiança de equivalências imediatas entre o que se observa em fontes de informação do passado e a complexa realidade que então vigorava. Com efeito, parte da fundamentação de Ariès tem como base principal justamente a análise de obras de arte do período em evidência.
  • 9
    No original: “In literature the chief role of children was to die, usually drowned, smothered, or abandoned in a forest on the orders of some king fearing prophecy or mad husband testing a wife's endurance. Women appear rarely as mothers” (tradução nossa).
  • 10
    O recente estudo de Fiuza (2021FIUZA, Marina Miranda. Literatura e infância na experiência de linguagem: trilhas de uma poética. 2021. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2021.) elabora um convincente questionamento da infância como lócus exclusivo da criança. Com base no conceito de experimentum linguae, de Giorgio Agamben, Fiuza situa a infância não no tempo, e sim na linguagem, instância na qual todos, independentemente da idade, podemos experimentá-la.
  • 11
    (1) “Relato do goliardo”, (2) “Relato do leproso”, (3) “Relato do papa Inocêncio III”, (4) “Relato de três criancinhas”, (5) “Relato de François Longuejoue, escrevente”, (6) “Relato do calândar”, (7) “Relato da pequena Allys” e (8) “Relato do papa Gregório IX”.
  • 12
    Referência óbvia a O flautista de Hamelin, conto do folclore europeu.
  • 13
    Com efeito, o último depoimento é do papa Gregório IX, mas ele é feito pelo menos duas décadas depois do sumiço das crianças no Mediterrâneo. É quando, desaparecida a ameaça real que as crianças representavam para a igreja, esta pode se reconciliar com o feito, se apropriar do evento, por assim dizer, controlando a narrativa do que foi a cruzada das crianças e virando-a a seu favor. “Haverá um monumento expiatório, um monumento para purificar a fé que se ignora. Os tempos vindouros […] serão testemunhas da nossa devoção […]: construirei a igreja dos Novos Inocentes nesta ilha.” (Schwob, 2020SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Editora 34, 2020., p. 61).
  • 14
    Estava no artigo 121 da primeira constituição brasileira, de 1824: “O Imperador é menor até a idade de dezoito annos completos”.
  • 15
    A respeito desse episódio, cf. Todorov (1993TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1993.), capítulo 2.
  • 16
    As vozes brancas, portanto, não seriam guias, talvez apenas mensageiras ou conselheiras.
  • 17
    “— Sabe — disse ele, em tom de desculpas — Eu ia me sentir tão velho se fosse pai deles de verdade. — Mas eles são nossos filhos, Peter, seus e meus. — Mas não de verdade, não é, Wendy? — perguntou ele ansioso. — Se você quiser, não — respondeu ela. E ouviu-se claramente o suspiro de alívio do menino.” (Barrie, 2012BARRIE, J. M. Peter e Wendy. Tradução de Sergio Flaksman. São Paulo: Cosac Naify, 2012., p. 149).
  • 18
    “— […] Você não ouviu o que o piloto disse? Sobre a bomba atômica? Estão todos mortos. Ralph saiu da água e ficou fixando Porquinho, enquanto pensava nesse problema inédito.” (Golding, 2006GOLDING, William. O senhor das moscas. Tradução de Geraldo Galvão Ferraz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006., p. 18, grifo nosso).
  • 19
    No original: “Golding is more interested in shocking the reader with the image of innocence as cruelty than in demonstrating the innate cruelty of human nature” (tradução nossa).
  • 20
    No original: “[...] human beings will search for scapegoats in order to provide feelings of power and unity to the community” (tradução nossa).

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Anderson Bastos Martins
Victor Coutinho Lage

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2022
  • Aceito
    26 Ago 2023
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