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Nietzsche, as forças e a psicanálise

Nietzsche, the forces and the psychoanalysis

Resumo

Investiga-se o conceito de força, tal como aparece em Nietzsche e na psicanálise. Objetiva-se esclarecer e potencializar seu uso clínico. A pesquisa se justifica porque se trata de conceber o processo clínico como explicitação da força pulsional, uma vez que a tipologia das forças proposta por Nietzsche e a precisão analítica, de caráter ético e clínico, convergem inteiramente. Uma ética nietzschiana da força ativa (o amor fati) torna-se providencial para se pensar a retomada do conceito de força na psicanálise. Objeções levantadas à noção de força serão oportunas para, inversamente, justificar seu uso: equivalente à noção de real, a de força não se beneficia do deslocamento que a primeira sofre e opera. Que o real possa ser tratado pela negatividade, mas não a força, problematiza o uso das duas noções: a força jamais definir-se-á pelo impossível ou pelo vazio, e sim por atos de resistência ou sublimações. Conclui-se que ao nível dessa potência avaliadora, seletiva, não condicionada pela atualidade, perfilam-se os temas nietzschianos do intempestivo e da transvaloração dos valores. O tempo por vir das forças ativas depende de seu exercício. Esses temas essenciais à filosofia nietzschiana implicam, portanto, a consideração da força e de suas vicissitudes. O mesmo vale para a psicanálise e a noção irrevogável de pulsão. É verdade que, inversamente, a força se esclarece pela transvaloração dos valores que o intempestivo deflagra. A pulsão também só é conhecida mediante seu exercício, ou seja, enquanto ela mesma opera sua decifração pragmática. Ela requer, para tanto, a perspectiva ética e clínica que a esposa e suas avaliações imanentes, extra morais. É a razão para que ela se ocupe do sonho e de sua memória ativa, interpeladora, desde um tempo por vir.

Palavras-chave
Forças; Instinto; Psicanálise; O intempestivo; Transvaloração

Abstract

This article investigate the concept of force, as it appears in Nietzsche, and psychoanalysis. The objective is to clarify and enhance its clinical use. The research is justified because it is about conceiving the clinical process as an explanation of the instinctual force, since the typology of forces proposed by Nietzsche and the analytical precision, of an ethical and clinical character, completely converge. A Nietzschean ethics of active force (amor fati) becomes providential for thinking about the resumption of the concept of force in psychoanalysis. Objections raised to the notion of force will be opportune to, conversely, justify its use: equivalent to the notion of real, that of force does not benefit from the displacement that the former undergoes and operates. That the real can be treated by negativity, but not by force, problematizes the use of the two notions: force will never be defined by the impossible or the void, but by acts of resistance or sublimations. It is concluded that at the level of this evaluative, selective power, not conditioned by the present, the Nietzschean themes of the untimely and the transvaluation of values are outlined. The time to come of active forces depends on their exercise. These essential themes to Nietzschean philosophy imply, therefore, the consideration of force and its vicissitudes. The same goes for psychoanalysis and the irrevocable notion of drive. It is true that, conversely, force is clarified by the transvaluation of values that the untimely triggers. The drive is also only known through its exercise, that is, while it itself operates its pragmatic deciphering. She requires, for that, the ethical and clinical perspective that the wife and her immanent, extra-moral evaluations. It is the reason for her to occupy herself with the dream and with its active, questioning memory, since a time to come.

Keywords
Forces; Drive; Psychoanalysis; The untimely; Transvaluation

Introdução

A reconsideração da noção de força no contexto do pensamento e da clínica psicanalíticos, abordando, para tanto, o problema das forças na filosofia nietzschiana, pretende inseri-los - ao dito pensamento e à dita clínica - num campo decididamente pragmático, isto é, estimá-los - desde a metapsicologia freudiana - segundo seu vetor ético, clínico e político. Não se fez até o momento uma abordagem crítica, que julgamos imprescindível, da noção de força em psicanálise, problematizando seu caráter ainda pouco explorado, seu abandono precipitado por Lacan e, sobretudo, sua relevância para a práxis analítica, tanto clínica como teórica. A filosofia de Nietzsche serve a esse propósito. O foco deste estudo incide sobre a aplicação diretamente social e política de uma noção de força inseparável de sua expressão psíquica, como testemunham a perspectiva nietzschiana da força (vontade de potência) e a natureza extra pessoal da pulsão, enquanto conceito fundamental da psicanálise.

A força ativa

Nietzsche dizia que a força era um conceito vitorioso3 3 “O conceito vitorioso, ‘força’, com o qual nossos físicos criaram Deus e o mundo, necessita ainda ser completado: há de ser-lhe atribuído um mundo interno que designo como ‘vontade de poder’, isto é, como insaciável ansiar por mostrar poder; ou emprego, exercício de poder, pulsão criadora etc” (NIETZSCHE, 2008, p. 319). . Na psicanálise, porém, foi negligenciado, como se esta não estivesse envolvida num profundo combate, para onde convergem o clínico e o político. O lacanismo o abandonou inteiramente, e as outras vertentes do pensamento psicanalítico não foram além da exploração já empreendida por Freud. Como não esperaríamos de Nietzsche uma luz que revitalizasse a noção, ou ao menos concorresse para tal, uma vez que ela nos parece indispensável em amplo sentido, isto é, desde o entendimento especulativo até a prática clínica? Não nos desviamos, porém, da inspiração freudiana. Dräng, impulso e exigência, termo com o qual Freud designou um dos componentes da pulsão, precisamente aquele que remete à atividade e à força, é o termo utilizado por Heidegger para traduzir a vis activa (força ativa) de Leibniz. Com esses dados significantes já teríamos quase tudo para pensar a pulsão e sua ética.

O entendimento de uma força ativa deve ser elevado à decisão e à constância éticas. Elevação, contudo, originária, e cabe ao pensamento orientar-se por ela. Seria um erro de perspectiva pensar que a força se elevaria ao que está acima dela, ou que esta coisa acima, a consciência ou o sujeito, precisaria descer para conhecê-la. Isso vale para o senso comum. À pergunta “de que ética se trata?”, teremos uma resposta simples: é uma ética da força - que, enquanto tal, é vitoriosa. Mas que espécie de força é essa e de que vitória se trata? Ainda que inesperada, a resposta será óbvia: é o mais difícil de ser apreendido ou conceituado4 4 Isso vale, como veremos adiante, para as forças ativas: “Sem dúvida é mais difícil caracterizar essas forças ativas. Por natureza elas escapam à consciência” (DELEUZE, 1976, p. 34). . A maior elevação da consciência de força no homem, segundo Nietzsche - é isso que produz o super-homem (ou, se preferirmos, o além do homem) (NIETZSCHE, 2008NIETZSCHE, F. A vontade de poder. Tradução de Paulo César de Souza. Rio: Contraponto, 2008., p. 508). Ele não diz que a consciência deve descer até a força, conforme uma imagem do inconsciente, e sim elevar-se até ela, colocar-se à sua altura. Seria o suficiente para pensarmos essa altura como ética. Mas a visão logo se turva: o assunto é muito pouco investigado e, quando tocado, é alijado do pensamento o mais rápido possível, em favor do que se concebe habitualmente por força no âmbito psíquico ou segundo a concepção científica corrente, à qual se alia o senso comum. Leiamos Nietzsche clínica e criticamente, em que termos se ocupa desse tema numa carta a Lou Salomé: “Espírito? Que me importa o espírito? Que me importa o conhecimento? A nada dou valor a não ser às pulsões ... Não creia que o ‘livre espírito’ seja o meu ideal! Eu sou…” (ANDREAS-SALOMÉ, 1992ANDREAS-SALOMÉ, L. Nietzsche em suas obras. São Paulo: Brasiliense, 1992., p. 146). Mas o que são as pulsões, o que são essas forças para Nietzsche? Não se deve buscar uma resposta apenas no impulso, na urgência e na desorganização, embora esses aspectos indiquem a presença da pulsão. Em contrapartida, a unidade da força está longe de se parecer, e menos ainda de corresponder a um todo ou a uma unidade ideal, mesmo que fosse a da obra. Os aforismos de Nietzsche são exemplares: peças únicas, inteiriças, são como que imagens diretas da força. Relâmpagos do pensamento. É um equívoco chamar sua obra de fragmentária, posto que ela é pulsional, inteiriça, feita de uma única peça a cada vez. Pertence ao próprio aforismo todo o seu campo virtual. Como nos sonhos, reside nele um pensamento nômade: a multiplicidade pulsional, o “a-cada-vez-todas-as-vezes”, é indissociável do plano contínuo de um destino - ou, para usar um derradeiro conceito deleuziano, de “uma vida”. Um sonho nunca é inteiramente interpretado devido a esse plano contínuo, interminável, do qual emerge. A unidade, ou melhor, a integridade daquele pensamento diz respeito ao pathos, como Nietzsche o entendia, ou seja, ao sentimento ou à sensibilidade “da” força em seu mais alto grau die höchest Stimmung. Esse pensamento não se confunde com a apoteose do eu, como presumiu Andréas-Salomé5 5 “É aqui onde, por fim, se assenta, como o cerne da filosofia do futuro, o mistério de uma monstruosa apoteose do próprio eu, que ainda teme se exprimir nas hesitantes palavras ‘Eu sou’” (ANDREAS-SALOMÉ, 1992, p. 146). . É uma ética do amor fati, como disse Nietzsche mil vezes. A isso chamaríamos de subjetivação pulsional ou sublime-ação, devido ao seu vetor inteiramente pragmático.

Abordamos o valor das pulsões em Nietzsche sob um viés clínico, distinguindo as exigências pulsionais das demandas de outras esferas de poder, sejam estas psíquicas ou culturais. Vale dizer, empregando uma apreciação nietzschiana das forças, que as primeiras são ativas, as segundas reativas. Essa distinção não exclui a existência de formas culturais que expressem diretamente forças ativas.

São muito frequentes as metáforas bélicas utilizadas por Freud para pensar o dinamismo psíquico. Que o analista se torne aliado de forças inconscientes ou procure administrá-las em parceria com o sujeito, tendo em vista as instâncias que resistem a elas, são perspectivas clínicas que inspiraram a prática freudiana desde o início. Mas as visões analíticas dos processos subjetivos podem se beneficiar da concepção nietzschiana das forças, ou seja, adquirir maior nitidez e relevo prático. Objetar-se-ia, talvez, que o discurso da singularidade deve estar livre de qualquer injunção sobre a sua natureza, e que uma concepção sobre a força - e aí residiria uma das razões para Lacan recusá-la - atuaria como idealização ou, no melhor dos casos, como imprecisão quanto ao processo em vista. Mas, justamente, o que começa esclarecer a força (pulsional) é seu caráter singular e sua precisão. O inverso não é menos verdadeiro: a singularidade se esclarece pela força. Basta que esta seja ouvida adequadamente, isto é, mediante uma escuta analítica. Não é a única característica da força: é necessário concebê-la ativa, originária. Pode-se pensar que uma força reativa, inevitavelmente presente na relação das forças, seja igualmente “originária”. Mas reservamos esse termo para a força que esclarece a si mesma e às outras. Ora, de um ponto de vista reativo, a força ativa é incompreensível, o que não impede que se lhe atribua um rosto. Desde Freud, o recalque se compõe com uma falsa imagem do recalcado. Daí o entendimento obscuro que se tem da força, a tal ponto que mesmo Guattari, por motivos distintos aos de Lacan, irá recusá-la finalmente: parece-lhe, por um lado, associada demasiadamente ao poder, e, por outro, inoportuna enquanto teoria: afinal, tudo se coloca num único e mesmo plano, longe de qualquer antagonismo. Em entrevista a Kuniichi Uno, diz desconfiar do termo potência, com suas implicações energético-espaço-temporais. E, fazendo menção à “lógica do sentido” e à sua atualização numa maquinaria do corpo sem órgão, pergunta incisivamente: “Então, por que falar de força? Já que, justamente, no mundo de Alice no país das maravilhas não existe força! Tudo é plano! Tudo cai... No mundo do sonho, onírico, não existe força” (UNO, 2016UNO, K. Guattari: Confrontações / conversas com Kuniichi Uno e Laymert Garcia dos Santos. Tradução de Hortência Lencastre e Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 Edições, 2016., p. 67).

Não fica excluído que subsistisse ainda em Guattari a objeção de Lacan à noção de força: Para este último não basta dizer que o inconsciente é um conceito dinâmico, “[...]pois isto é substituir a ordem do mistério mais corrente por um mistério particular - a força, isto serve em geral para situar um lugar de opacidade” (LACAN, 1998LACAN, J. O seminário - Livro 11 - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução de M.D. Magno. Rio: Zahar, 1998., p. 26).

No lugar da força, ali onde ela seria convocada, Lacan irá considerar o problema da causa, assinalando que se trata, a partir do inconsciente, de uma hiância, aquela “[...] por onde a neurose se conforma a um real” (LACAN, 1998LACAN, J. O seminário - Livro 11 - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução de M.D. Magno. Rio: Zahar, 1998., p. 27). Todo o problema reside aí, nessa referência ao real, pois a “hiância” é abordada a partir da subjetividade neurótica que, perdendo o chão do sentido, se desconcerta com os processos do inconsciente. Este se manifesta, portanto, como hiância - mas para que espécie de subjetividade? A força tem parte com o real (como se diz que algo tem parte com o demônio), e este com a força. No entanto, se podemos evoluir facilmente para uma noção não física ou não substancial do real, o mesmo não acontece com a noção de força.

Por que a força estaria inteiramente submetida ao discurso das coordenadas energéticas e espaço-temporais? É mais difícil deslocá-la para fora dessas coordenadas. E, no entanto, a ideia de intensidade, ou seja, de uma quantidade não extensiva, não numérica, requer esse deslocamento. O uso providencial da noção de força ou de potência consiste em instalar a atividade no pensamento e avaliar, assim, seus rendimentos éticos, clínicos e políticos. Além disso, não podemos dizer da força, por exemplo, que seja impossível, como se dirá do real. Deslocá-la daquelas coordenadas espaço-temporais, inviabilizando, ao mesmo tempo, uma apreciação negativa de seu lugar, é o passo clínico por excelência, aquele que decide pela direção da análise. O real é uma direção, mas sua determinação teórico-clínica teria se resolvido, preferencialmente, como hiância, falha, furo, vazio, de modo que a psicanálise inteira chega a ser pensada dentro da experiência neurótica e sob o signo da negatividade.

O retorno ao inorgânico pode ser compreendido então como o retorno a um vazio em prol de um novo preenchimento ou o estabelecimento de processos regressivos rumo ao estado de dispersão para uma nova remodelação ou organização. Encarado como um processo de ruptura da ordem (inclusive simbólica), de ruptura com o estabelecido narcisicamente, a regressão ou bordejamento do vazio nunca é absoluto, algo sempre resta. [...] Pois se trata da negatividade como ação criadora: ao negar a natureza é que o homem a destrói e a transforma, produzindo o novo (GONDAR, RODRIGUES, 2018GONDAR, Jô; RODRIGUES, A. Elementos para repensar a sublimação: pulsão de morte e plasticidade psíquica. Tempo Psicanalítico, v. 50, n. 1, p. 236-257, 2018. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382018000100012&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 27 abr. 2022.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p.253).

Por lógica que seja do ponto de vista de uma dialética negativa, e até mesmo aceitável clinicamente em certos casos, a negatividade não toca o real. A sublimação é concebida sob o regime da pulsão de morte e do vazio que esta instaura, quando a força pulsional indicaria outra via, associável à noção deleuziana de uma vida inorgânica. Trata-se, neste caso, de involução, e não mais de uma dialética reinserida insistentemente no campo analítico, como um derradeiro gesto da intelecção neurótica.

Ora, é a força que introduz no pensamento uma lógica não negativa, é ela que se opõe ao idealismo e ao narcisismo sem incorrer na retomada, sempre à espreita, do vetor niilista do pensamento humano. É o não-humano no homem, porém o não-humano não é igual a nada. Pelo contrário, concerne à potência em virtude da qual o homem é um ser que não está determinado. O além do homem, em seu vetor ético, não se distingue de uma desterritorialização de feição cósmica.

A exploração do conceito de força, seja em Nietzsche ou na psicanálise, só terá sucesso se for igualmente “ativa”. Se essa exploração ativa for deixada de lado, se não for empreendida, o conceito, se ainda é usado, será operado no escuro, ignorando-se - no sentido analítico - que o seu esclarecimento progressivo, constituindo-se antes de tudo como uma prática do pensamento, é clinicamente essencial. É o sentido mesmo da clínica. O segredo reside, portanto, no caráter ativo da força. Se um sentido ético primordial é sustentado em Lacan e em Guattari, como não o seria sua determinação em face de todas as demais forças, sejam as da sociedade ou do cosmo? Guattari, na mesma entrevista, dirá:

A resistência, nesse momento, (...) é a retomada daquilo que conta, a reapropriação processual da produção do mundo, mais do que partir de um mundo de valores universais e de uma biosfera que deve ficar ali para sempre. Existe hoje um problema de responsabilidade ética e pragmática radical (UNO, 2016UNO, K. Guattari: Confrontações / conversas com Kuniichi Uno e Laymert Garcia dos Santos. Tradução de Hortência Lencastre e Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 Edições, 2016., p. 121).

Não esqueçamos o valor extramoral da noção de força. Entre as forças existem aquelas que decidem pela emergência de uma moral, assim como desencadeiam os processos de recalcamento que essa emergência exige. Tal se deu com a ascensão de uma moral burguesa e cristã na época clássica estudada por Foucault. Há toda uma microfísica do poder em exercício na instauração de uma moral e de um corpo que lhe corresponda, que lhe importe, como diria Judith Butler. Mas o que resiste a essa microfísica? [Focos de resistência], denominava-os Foucault, os quais testemunham de uma vida que não se submete às formações de poder de um socius. Antígona ou mesmo Medéia, em seu recuo estrangeiro, enigmático, jamais serão alcançadas pelas leis da cidade ou, se preferirmos, dos homens.

Em sua expressão singular, a vida pulsional é diretamente cósmica. É uma descoberta das mais extraordinárias percebê-la imanente à palavra, à fala. Não é problema puramente lógico, embora a força, enquanto práxis, seja uma intelecção superior, detendo um critério supra intelectual relativo às condições de seu exercício. Mas será imprescindível considerar a determinação ética da análise e, do mesmo modo, a clínica e a política que instaura, como exercício de uma força pulsional? Sim, pois do contrário um suposto saber analítico irá traduzir o não-humano como vazio, hiância ou falta. Ora, estas noções são tributárias de um pensamento [demasiado humano], tal como se apresenta no âmbito da doxa, do reconhecimento e da recognição. Para pensar seu fora só lhe resta a via negativa. Estamos ainda na vertente do niilismo. Há muito Deleuze mostrou outra via, aquela que, diga-se de passagem, deu origem ao pensamento psicanalítico: pensar com as categorias da vida6 6 “Não mais se fará a vida comparecer perante as categorias do pensamento, lograr-se-á o pensamento nas categorias da vida” (DELEUZE, 2005, p. 227). . Este desafio apenas começou a se esboçar nos dias de hoje, não importa quão antigos sejam seus antecedentes.

O plano único de linguagem de que fala Guattari, reportando-o à lógica do sentido e evocando Lewis Carrol, é dobrado pela determinação ética (outro nome da força pulsional). É ainda um único plano, equivalente, porém, ao que Lacan denominou de sinthoma, derradeira expressão de seu ensino: define-se como operação ética originária, malgrado a relutância de seus discípulos em admiti-lo ou sequer pensá-lo. Preferimos o termo “sublime-ação” ao termo sinthoma por uma razão ética: não se trata, em última instância, do ser, ao qual o sinthoma equivocamente remete, mas do ato “unívoco”, pelo qual aquele plano se constitui. Como esse ato unívoco se articula com o ato analítico? Pela intervenção do analista, enquanto constitui o esteio real da transferência, ou seja, enquanto instaura um vínculo incomum, dir-se-ia até mesmo extra social, dado operar fora do sistema do juízo. A ética da escuta flutuante esposa uma linha de fuga do socius.

O equívoco ou o elemento ambíguo servem a uma posição subjetiva meramente simbólica, ou eminentemente simbólica, mas não real. Em contrapartida, este se exprime como firmeza ética e, portanto, como sublime-ação.

Consideremos esse plano unívoco sob dois aspectos, de modo a sugerir uma ideia adequada de sua natureza. Ele reaparece, em Crítica e clínica (DELEUZE, 1997DELEUZE, G. Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997., p. 92-93), na distinção das duas naturezas em Melville. Deleuze classifica os personagens desse escritor como monomaníacos ou demônios, de um lado, e é o caso de Ahab ou Claggart, e como anjos ou santos, quase estúpidos, de outro, criaturas da inocência e da pureza - Billy Bud, Bartleby. Traidores inatos e traídos por essência, tais seres pertencem à natureza primeira. E a natureza segunda? Um terceiro tipo de personagem irá representá-la, aquele que aparece do lado da lei, seja humana ou divina: o profeta. Assim Ismael em Moby Dick e o Capitão Vere em Billy Bud. Ele é capaz de ver, detectar os seres da natureza primeira, mas não sabe justificá-los, pois são incompreensíveis. Irá condená-los forçosamente, embora possa estimá-los e até condoer-se de sua sorte. O romancista não se obriga a explicar, com razões lógicas ou psicológicas, a atitude desses personagens selvagens, de uma natureza primeira. Na verdade, escreve Deleuze, “é a vida que justifica, ela não precisa ser justificada” (DELEUZE, 1997DELEUZE, G. Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997., p. 93). É assim algo distinto do neutro ou da ausência de força: trata-se de uma força não identificável, que antes neutraliza todos os esforços em surpreendê-la dentro de uma lei. Se a neutralidade analítica é a expressão de uma escuta que abdicou de compreender e justificar, a escuta, por sua vez, participa, ela mesma, da instauração desse plano de vida cuja justiça escapa a todo juízo. O plano instaurado pela natureza primeira e a escuta à qual se destina e que a recebe, como uma espécie de segunda afirmação que se antecipa ao profeta e à lei, ordenam segundo critérios vitais - éticos e clínicos - todas as demais pretensões de existência. De que é feito esse plano? Antes da lei era a força, mas a força é a de uma justiça vital, supra biológica ou metafísica.

Ora, a lógica do sentido não faz senão reenviar a esse plano ético. Eis o segundo aspecto anunciado. Lembremo-nos de como o sentido é operado pelo não-senso e como este, no limite, nos coloca em face do não-humano. É o que nos fará aproximar - dir-se-ia perigosamente - o sentido da força. Pois a força pulsional nos arrasta como a linha feiticeira de que fala Deleuze, quando pensamos realmente.

A lógica do sentido evocada por Guattari é a filosofia deleuziana do acontecimento. Na dimensão do acontecimento, onde situaríamos a força? A objeção de Felix Guattari reside nessa altura, pois em Alice, o livro do acontecimento, não há dinamismo de forças - “é tudo plano, tudo cai”. Seria como o “sertão” de Guimarães Rosa, que está em toda parte? A escrita-sertão de Rosa compreende uma desterritorialização absoluta. Mas esta, resistindo ao dado, ao que ele chama de “poder do lugar”, tampouco está dada. Deleuze acede rapidamente ao que está em causa: não uma hiância, como quer Lacan (num determinado momento, é preciso que se diga), nem exatamente ao lugar onde tudo cai, mas onde ex-siste 7 7 Uso aqui uma expressão de Lacan, apropriada a localizar no mesmo fora o real e a existência. (LACAN, 2007LACAN, J. O seminário - Livro 23 - O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007., p. 36) um ato de resistência. Como este não compreenderia a dimensão ética da força? Ora, a força e “sua” ética são a mesma coisa. Daí nos aproximarmos novamente de Nietzsche e do que será o intempestivo, conforme veremos: “contra o tempo, sobre o tempo, em nome de um tempo por vir” (NIETZSCHE, 1976NIETZSCHE, F. Considerações intempestivas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. Queluz de Baixo: Presença, 1976., p. 103).

De fato, existe o tema equívoco do neutro, tanto para o acontecimento como para a impropriedade da força - “tudo é plano”. Mas o neutro insiste no lugar de uma força não identificável, incognoscível, ativa, cuja expressão é sempre “um ato” de resistência. Neste não há neutralidade. Pelo contrário, é ato de escolha, haeresis. O humor será isso para Deleuze, “[...] inseparável de uma força seletiva: no que acontece (o acidente) ele seleciona o acontecimento puro. No comer ele seleciona o falar”. Força, portanto, capaz de “[...] liberar, para cada coisa, a ‘porção imaculada’, linguagem e querer, amor fati" (DELEUZE, 1974DELEUZE, G. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1974., p. 154). A propósito, Freud remete o humor à vertente afirmativa do super eu, de acordo com a qual uma subjetividade alcança os termos do inconsciente, ou seja, não mais reclama justiça para si, nem desespera frente às adversidades. Desabonada do inconsciente, assim será nomeada tal subjetividade no derradeiro ensino de Lacan. Diríamos que é quando o super eu e o id coincidem, coincidência esta sugerida muito timidamente por Freud (2014)FREUD, S. O humor. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. (Obras completas, v. 17)..

A questão da força, entre todos os problemas psicanalíticos, é o que foi tratado da maneira mais negligente, limitada e até mesmo rudimentar. Assinalemos três traços característicos da força, apenas para ressaltar o quanto essa noção foi negligenciada, e com ela a própria natureza do inconsciente. Esqueceu-se de dizer - ou não se chegou sequer a pensar - que a força é a do saber e, como tal, constitui uma direção, ou seja, um ato de escolha. Saber, direção, escolha, eis, portanto, alguns traços eminentes da força. Mas não esgotamos com eles sua natureza.

Na filosofia de Nietzsche, mas também na perspectiva analítica, uma força ativa começa afirmando-se a si própria, enquanto a reativa, quando não a obedece, tende a negá-la. É seu modo de almejar o domínio. O espírito de vingança e o ressentimento são seus afetos por excelência. Em contrapartida, a força ativa passa por vicissitudes, entre as quais a de ser apartada do que ela pode, ou seja, de seu exercício. E como isso acontece? Inocula-se nela, segundo Nietzsche, o veneno da má consciência, mobilizando-a contra si própria. Eis um trabalho meticuloso da cultura pelo qual as forças reativas acabam por triunfar, não por alcançarem o maior número, mas por separarem a força ativa daquilo que ela pode, transformando-a em reativa. Cabe acrescentar a essa tipologia das forças o elemento ético, pelo qual a força ativa compreende, como fator intrínseco, a exigência de seu exercício. E isso já é sua dobra, sua afirmação. É essencial à força ativa - para que ela permaneça como tal - perseverar em seu ser ativo. Tal perseveração não se dá naturalmente, a menos que a natureza seja pensada em seu aspecto “naturante”, para usar um termo caro a Espinosa. A crítica nietzschiana ao [conatus] desse filósofo, atribuindo-lhe um caráter conservador, parece-nos improcedente, pois garantir a continuidade da condição ativa, perseverar nela, é indispensável à criação de novos valores. E a verdade será medida pelo grau de exame ou de avaliação de que somos capazes. Residem nessa graduação do exame as provas de existência. A arte ascende ao primeiro plano nesse empreendimento avaliador, ocupado em discernir as condições ativas e o exercício pulsional. Nesse discernimento reside o saber, o conhecimento que interessa à vida, bem como a vida que interessa ao conhecimento. “Em Nietzsche, nós, os artistas = nós, os homens do conhecimento ou da verdade = nós, os inventores de novas possibilidades de vida” (DELEUZE, 1976, p. 133).

É da maior importância a constatação clínica de que as formações do inconsciente são motivadas, em última instância, por aquele discernimento, ainda que não dobrado como exercício esclarecido. Se há uma verdade fundamental sobre a análise, é a de que o estatuto do inconsciente é ético. Nunca ninguém foi mais contundente a esse respeito que Lacan, asseverando que o analista pertence ao conceito de inconsciente. Restava dizer que a análise mesma era uma dobra pulsional.

Segunda afirmação, portanto, a análise toma a primeira como objeto, o que equivale ao seu exercício. A primeira é a força como tal, mas a força como tal é a força ativa, aquela que compreende a si mesma e as outras (= análise do inconsciente). Essa compreensão, contudo, concernindo à força, se opera em discernimentos, escolhas, decisões e atos. Daí se tratar de uma decifração pragmática do inconsciente. Simplificamos esse pensamento extemporâneo dizendo que se trata de uma “memória da força” (conforme a “hesitação” de Nietzsche - “eu sou...”).

Que Nietzsche considerasse a arte como [a atividade metafísica da vida] aproxima-o fortemente da psicanálise, tal como a compreendemos. Guarda assim estreita afinidade com o nosso postulado de que a sublimação é o destino originário da pulsão. Não vemos a sublimação como um desvio quanto aos fins, pois do ponto de vista das forças ativas não existem fins naturais ou normativos que justificassem a ideia de desvio. Seu alvo é sua afirmação, ou sua dupla afirmação, o que temos chamado de exercício pulsional ou, simplesmente, de “sublime-ação”. A essa altura, quase não seria preciso dizer mais nada das conexões Nietzsche-Psicanálise.

Prosseguiremos, porém. Por que destacamos da sublimação - a “ação”? Para situar, justamente, o caráter ativo desse procedimento do inconsciente. Nada mais essencial que a atividade ao se pensar a pulsão. Vamos assim da força à atividade, e desta ao quê? - ao vivo. “O ser: dele não temos outra representação a não ser o fato de vivermos. Como o que está morto poderia ser?” (DELEUZE, 1976, p. 233) - diz Nietzsche, citado por Deleuze. Que continua: o mundo não é "[...] nem verdadeiro, nem real, mas vivo” (DELEUZE, 1976, p. 233). E, no entanto, verdadeiro e real são relançados por Nietzsche sob o prisma do vivo, do ativo, da força. Isso é nietzschiano, não há dúvida, mas é também psicanalítico. O problema da verdade é assim inteiramente deslocado. Ela não foi eliminada em Nietzsche, apenas se exerce em ato. Abandonar a crença na verdade não é o mesmo que revogar a atitude verídica, muito pelo contrário. É esta, justamente, que requer o abandono daquela. E não em nome de um utilitarismo da verdade ao modo de Rorty, envolvendo “um acordo intersubjetivo” (SILVA, GLAUCER, 2021SILVA, G. Notas sobre o conceito de verdade em Nietzsche e Rorty: atravessamentos. Cadernos Cajuína, v. 6, n. 1, p. 69-83, 2021. Disponível em: http://dx.doi.org/10.52641/cadcaj.v6i1.450. Acesso em: 27 abr. 2022.
http://dx.doi.org/10.52641/cadcaj.v6i1.4...
), ou de sua relativização com a categoria de crença, como se tornou habitual na leitura dos textos nietzschianos:

Caso ainda se utilize este termo (verdade), agora em uma abordagem perspectivista, seria necessário modificar a compreensão de sua essência para que abarque o caráter parcial de todo conhecimento humano. A essência da verdade como crença. Este é o novo conceito de verdade segundo Nietzsche (CAMARGO, 2008CAMARGO, G. Sobre o conceito de verdade em Nietzsche. Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche, v. 1, n. 2, p. 93-112, 2008. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/tragica/article/view/24137. Acesso em: 27 abr. 2022.
https://revistas.ufrj.br/index.php/tragi...
, p. 111).

Nada mais estranho a Nietzsche, pensador para sempre inatual, e à psicanálise, que não cessa de ingressar na infância, tais reduções da verdade, que servem apenas para transformar em paródia seu uso idealista. No livro já mencionado, Lou Salomé, com elegante precisão, indica “[...] os traços essenciais da derradeira filosofia de Nietzsche" (ANDREAS-SALOMÉ, 1992ANDREAS-SALOMÉ, L. Nietzsche em suas obras. São Paulo: Brasiliense, 1992., p. 146), tal como se apresentam no campo da ética: “[...] em lugar da crítica negadora das obras anteriores, a transferência dos fundamentos da verdade para o mundo das pulsões psíquicas, tomadas como fonte de uma nova apreciação e avaliação de todas as coisas” (ANDREAS-SALOMÉ 1992ANDREAS-SALOMÉ, L. Nietzsche em suas obras. São Paulo: Brasiliense, 1992., p. 146).

É a verdade da potência em ato, pela qual a filosofia mesma se esclarece como criação de conceitos e a clínica analítica, em especial, como sublime-ação. Não é um problema metodológico, com o qual se tende a acenar em princípio: o método (seja a golpes de martelo) é uma consequência direta do exercício ético e do grau em que ele se exerce: “nós, os verídicos.

E tal se passa com o “real” da psicanálise, em que pese todo esforço de Lacan com seus nós e impossibilidades. Nada é mais preciso que se deslocar ao plano do seu exercício. Sempre se tratou para Freud de alcançar, mediante a análise, o coração de nosso ser (Kern unseres Wesen). Ora, o coração do ser não é exatamente o ser, mas a atividade em que ele consiste. Justificam-se, portanto, nossas idas e vindas com Lacan: embora recusasse a noção de força esse autor sustentou, mesmo assim, que o dizer ex-siste (enquanto ato) a todo dito (enquanto se reporta ao ser)8 8 Cf. Lacan, O Seminário-Livro 20. Mais, ainda. . Por isso “seu” sinthoma não se distingue do ato de constituí-lo.

A força, o ativo e o vivo que constituem, ao nosso ver, alguns fios condutores no entendimento da filosofia de Nietzsche, são os verdadeiros elementos da imanência analítica. Com eles passamos a frequentar um outro mundo. Não há formação do inconsciente que, mediante a análise, não se defina por esses elementos conjugados. São os nomes do real ou da pulsão. Que isso seja, afinal, uma obviedade psicanalítica, não significa que estivesse sempre à mão. A metapsicologia se mostra, assim, o que sempre terá sido: uma ética, uma clínica e uma política - o recalcado originário da psicanálise. Do que se depreende logo que a força, o ativo e o vivo, conquanto dirijam a análise, não são de modo geral conhecidos. Esse conhecimento depende inteiramente do grau em que serão exercidos.

O intempestivo

Pensar ativamente, segundo Nietzsche, é agir de maneira intempestiva, “[...] contra esta época, sobre esta época e, assim o espero, em benefício do tempo que há de vir” (NIETZSCHE, 1976NIETZSCHE, F. Considerações intempestivas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. Queluz de Baixo: Presença, 1976., p. 103). Esse “tempo por vir” está compreendido no intempestivo, que “é também” sua antevisão; mas, se “eu espero” que ele advenha é porque seu advento não está de modo algum assegurado. O tempo da pulsão, que Freud detectou nos fenômenos do inconsciente, é equiparável ao intempestivo de Nietzsche. Como um tempo anterior, envolvendo uma sobredeterminação - essa determinação múltipla que caracteriza os eventos inconscientes, por menores que sejam - pode abrigar um tempo por vir e o futuro do sujeito? Qualquer formação do inconsciente implica esse paradoxo, de modo que seria preciso elevar-se, desde a sobredeterminação, que Lacan chamava de simbólica, ao que Magno Machado Dias denomina, com felicidade, de [hiper determinação] (MAGNO, 1994MAGNO, M. A natureza do vínculo. Rio de Janeiro: Imago, 1994.). Nesse caso estaríamos na altura da pulsão, ou, se quisermos, do real e de seu tempo “sobre o tempo”. O sonho da injeção de Irma implicava um amálgama de tempos: tempo do cotidiano de Freud, sugerido pela comemoração do aniversário da Sra. Freud; tempo de seus fracassos enquanto pesquisador e de sua aventura psicanalítica, justificando sua defesa frente às críticas e resistências; tempo de seus contemporâneos e tempo da própria psicanálise, ou seja, do desejo desterritorializado do sonho. A interpretação do sonho ou seu desejo atuam intempestivamente, isto é, em seu alto tempo, aquele que se insinuou, feito enigma, na experiência cotidiana sob a forma do sonho. Existem assim, segundo os graus de exercício da pulsão, graduações e degradações do tempo e, correlativamente, do simbólico (ou da linguagem), medindo igualmente a aproximação e o afastamento da experiência subjetiva de suas condições pulsionais. Os processos do inconsciente não fazem senão nos aproximar desse outro tempo, tornando sensíveis as graduações de sua força (= “memória da força”). Até então, essas graduações eram insensíveis por uma razão muito simples: não eram exercidas. O tema da pulsão nos conduz, assim, ao do tempo e vice-versa.

O [plasma germinativo imortal] de Weismann, que poderíamos evocar tanto a propósito de Bergson como de Freud - envolvendo o alvo extra pessoal das pulsões sexuais -, seria útil para situar, também aqui, a ação grande demais para o eu, aquela que concerne ao intempestivo, na medida em que esse tempo é apenas vislumbrado, raras vezes apreendido diretamente. Graduações do tempo. É curioso notar que Freud utiliza a expressão de Weismann do seguinte modo: [plasma germinativo “quase” imortal]. O “quase” pode significar um rigor, uma incerteza talvez insuperável quanto à natureza desse plasma e sua infinitude objetiva. Transpondo-o, porém, do registro biológico e mesmo metafísico para o registro psicanalítico, com base, digamos, na frase “onde isso era devo eu advir”, o “quase” sugere uma pergunta ética: em que condições se obtém a perspectiva desse tempo impessoal (onde isso era) que não cessa de não passar? “Onde isso era” indica uma altura do tempo (de um pretérito imperfeito) que irá corresponder, igualmente, ao futuro do sujeito. Para Nietzsche é um tempo avaliador, que estima as condições da atualidade em nome - espera-se - de um tempo por vir9 9 “Na medida em que está ao serviço da vida, a história está ao serviço de uma força não histórica...” (NIETZSCHE, 1976, p. 115). . O “quase” de Freud se esclarece assim como uma questão em aberto, de natureza ética e, por consequência, de destino incerto.

Transvaloração

Como não veríamos, a partir desse “outro tempo” da análise, que ela opera uma transvaloração dos valores ao modo nietzschiano? “Verdade: o grau em que nos permitimos o exame de tais coisas…” (NIETZSCHE, 2008NIETZSCHE, F. A vontade de poder. Tradução de Paulo César de Souza. Rio: Contraponto, 2008., p. 159). Linha de fuga em relação a todo o sistema do juízo (empreendimento caro a Nietzsche) ela é feita para propiciar uma reavaliação dos investimentos afetivos (o que é mais importante?) a partir de uma perspectiva pulsional. Retomar os fenômenos do inconsciente, descobrir sua via de engendramento, seu plano, significa inteirar-se de seus verdadeiros problemas. Estes se referem ao que é relevante, àquilo de que não se deve abrir mão, pois determina o valor dos valores. Não seria uma reavaliação se não se dispusesse desse recuo pulsional, ativo, singular. É a força (constante) envolvida nesse processo que o legitima - ela se traduz, prática e clinicamente, como firmeza ética. A análise conjuga o modo intempestivo, ousado de reavaliar ([o grau em que nos permitimos…]), e o cuidado - dir-se-ia até o carinho - destinado ao mais valioso.

O poder de avaliação extramoral que atribuímos à pulsão, e que constitui, por assim dizer, o campo analítico, é ainda muito desconhecido, isto é, muito pouco exercido. Seria ligeiro pensar que extramoral quer dizer antimoral ou imoral. Seriam apenas imagens desse poder - aliás, imagens que são, efetivamente, atribuídas à pulsão desde que se cogitou nela. Não se pode considerar a pulsão segundo critérios morais. Por isso a análise os proscreve de sua prática. O que não significa ausência de critério. Insistimos, pelo contrário, que “a pulsão é um critério ético e clínico” e uma direção. Se o analista, como quer Lacan, dirige a análise, é certamente na medida em que ouve a pulsão. Há uma lucidez nietzschiana ainda pouco explorada, algo assim como, em nosso entendimento, a pulsão mesma:

“Não” nego, como se entende por si mesmo - pressuposto que não sou nenhum parvo -, que muitas ações que se chamam de não-éticas devam ser evitadas, combatidas; do mesmo modo, que muitas que se chamam éticas devam ser feitas e propiciadas, mas penso: em um como no outro caso, “por outros fundamentos do que até agora”. Temos de aprender a “desaprender”, - para afinal, talvez muito tarde, alcançar ainda mais: mudar de sentir (NIETZSCHE, 1974NIETZSCHE, F. Obras incompletas, Aurora. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores, vol. XXXII)., p. 177).

Considerações finais

Como sugerimos desde o início, temas relevantes como a transvaloração e o intempestivo em Nietzsche requerem a noção de força, a ponto de parecer que é ela, sobretudo, que os articula, exige-os por sua vez e lhes dá um sentido preciso. Do mesmo modo, o pensamento analítico se servirá da noção de pulsão para decidir a natureza do inconsciente e a constituição de seu plano, explorando o que chamaríamos de memória da força, mas, também, de memória do futuro, o que se verifica clinicamente como processo de decifração pragmática do inconsciente. Transvalorar à maneira nietzschiana consiste em avaliar as condições de existência segundo critérios extramorais - segundo os critérios, portanto, da força ou da potência. É sempre da perspectiva de uma força ativa que a transvaloração se opera, visto que ela não está sujeita a nada que difira de seu próprio exercício e das condições que encontra para tanto. Ela mesma é perspectivista, inserindo-se diretamente num campo de imanência. Seu caráter a um só tempo real e virtual a desloca constantemente para além e aquém das coordenadas da realidade atual. Apreende a atualidade de fora, por assim dizer, desde onde exerce, sintomatologista, sua potência de avaliação. O inatual de Nietzsche corresponde inteiramente ao tempo avaliador da pulsão, cujos testemunhos são decifráveis nas formações do inconsciente.

Ora, tanto a transvaloração como o intempestivo, tanto o processo de reversão pulsional (a memória da força) como o seu tempo fora dos gonzos, não estão dados, e não se darão tampouco naturalmente. O tempo por vir das forças ativas depende de seu exercício, por isso Nietzsche faz disso um voto (“eu o espero”). Esses temas essenciais à filosofia nietzschiana implicam, portanto, a consideração da força e de suas vicissitudes. O mesmo vale para a psicanálise e a noção irrevogável de pulsão. É verdade que, inversamente, a força se esclarece pela transvaloração dos valores que o intempestivo deflagra. A pulsão também só é conhecida mediante seu exercício, ou seja, enquanto ela mesma opera sua decifração pragmática. Ela requer, para tanto, a perspectiva ética e clínica que a esposa e suas avaliações imanentes, extramorais. É a razão para que ela se ocupe do sonho e de sua memória ativa, interpeladora, desde um tempo por vir. Daí que a psicanálise, também ela, ressoando com a filosofia de Nietzsche, é sempre psicanálise do futuro.

  • 3 “O conceito vitorioso, ‘força’, com o qual nossos físicos criaram Deus e o mundo, necessita ainda ser completado: há de ser-lhe atribuído um mundo interno que designo como ‘vontade de poder’, isto é, como insaciável ansiar por mostrar poder; ou emprego, exercício de poder, pulsão criadora etc” (NIETZSCHE, 2008NIETZSCHE, F. A vontade de poder. Tradução de Paulo César de Souza. Rio: Contraponto, 2008., p. 319).
  • 4 Isso vale, como veremos adiante, para as forças ativas: “Sem dúvida é mais difícil caracterizar essas forças ativas. Por natureza elas escapam à consciência” (DELEUZE, 1976, p. 34).
  • 5 “É aqui onde, por fim, se assenta, como o cerne da filosofia do futuro, o mistério de uma monstruosa apoteose do próprio eu, que ainda teme se exprimir nas hesitantes palavras ‘Eu sou’” (ANDREAS-SALOMÉ, 1992ANDREAS-SALOMÉ, L. Nietzsche em suas obras. São Paulo: Brasiliense, 1992., p. 146).
  • 6 “Não mais se fará a vida comparecer perante as categorias do pensamento, lograr-se-á o pensamento nas categorias da vida” (DELEUZE, 2005DELEUZE, G. Cinema II - Imagem-tempo. Tradução de Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005., p. 227).
  • 7 Uso aqui uma expressão de Lacan, apropriada a localizar no mesmo fora o real e a existência.
  • 8 Cf. Lacan, O Seminário-LACAN, J. O seminário - Livro 20 - Mais, ainda. Tradução de M.D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.Livro 20. Mais, ainda.
  • 9 “Na medida em que está ao serviço da vida, a história está ao serviço de uma força não histórica...” (NIETZSCHE, 1976NIETZSCHE, F. Considerações intempestivas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. Queluz de Baixo: Presença, 1976., p. 115).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2022
  • Aceito
    06 Maio 2022
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