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Cinco Vertentes da Filosofia Brasileira Contemporânea: Atitudes Frente à Matriz Europeia - Tipologias e Ferramentas Analíticas

Branches of Brazilian Philosophy in the Twentieth and Twenty-first Centuries: Five Attitudes Towards European Matrix - Typologies and Analytical Tools

Resumo

O artigo focaliza a filosofia brasileira contemporânea, à luz dos legados dos séculos passados e das perspectivas futuras que se abrem no presente histórico, e se divide em duas partes. A primeira está devotada ao estabelecimento dos paradigmas teóricos e das ferramentas analíticas requeridos tanto para a compreensão e a formulação do problema histórico-filosófico, quanto para a busca de caminhos ou de respostas para as questões no plano do método, com foco na formação da filosofia em nossos meios ao ser transplantada da Europa para cá, bem como na composição e distinção da intelligentsia filosófica brasileira, do período colonial aos nossos dias: por um lado, os paradigmas da formação (do início do séc. XVI até meados do séc. XX) e da pós-formação (das três últimas décadas do século XX ao XXI...); por outro, na esteira do método dos tipos ideais de Max Weber, a tipificação da intelligentsia filosófica brasileira neste longo período, distinguida em cinco extrações principais: [i] o intelectual orgânico da Igreja ou o jesuíta da Colônia; [ii] o diletante estrangeirado ou o letrado autodidata remanescente das Escolas de Direito de fins do séc. XVIII até meados do séc. XX (Coimbra, Recife, São Paulo); [iii] o scholar ou o especialista disciplinar modelado pelas ciências duras nas primeiras décadas do séc. XX e se estendendo às ciências humanas e à filosofia entre meados e as últimas décadas do séc. XX; [iv] o intelectual político ou intelectual público engajado em questões práticas e na cena política, ao promover a fusão do pensamento e da ação; [v] o pensador ou o intelectual cosmopolita globalizado, ainda não existente entre nós e visado como sondagem do futuro. A segunda parte, visada como desdobramento e complementação da primeira nos quadros de uma pesquisa em curso, procura distinguir as diferentes atitudes da intelligentsia filosófica brasileira frente à matriz europeia, ao longo da filosofia brasileira contemporânea (sécs. XX-XXI): alinhamento e reverência; autonomia e assimilação crítica; instrumentalização ideológica e política; suspeição e defenestração - às quais deveria ser acrescentada a própria atitude dos europeus aqui atuantes, como a Missão Francesa em São Paulo e no Rio de Janeiro, tipificada como catequese e missão civilizatória, prevalecente em nossos meios desde o jesuíta da Colônia.

Palavras-chave:
Filosofia contemporânea brasileira; Paradigmas, ferramentas e métodos; Intelligentsia filosófica brasileira; Atitudes frente à matriz europeia

Abstract

The article focuses on the Brazilian Contemporary Philosophy, in the light of legacies from centuries past and of future perspectives outlined in historical present, and it is divided into two parts. The first one is devoted to establishing the theoretical paradigms and the analytical tools requested for comprehension and formulation of historical-philosophical issues on a theoretical plan, as well as for searching ways or answers to issues on a methodological plan, with focus on the formation process of philosophy in our means, when being transplanted from Europe to the Americas, and taking the composition and distinction of Brazilian intelligentsia into account, from our colonial period to nowadays: on the one hand, the Formation (from beginning of XVIth century to the midst of XXieth) and Post-Formation (from the three last decades of XXieth century to XXIst) Paradigms; on the other hand, on the track of the Max Weber’s idealtypes method, the modeling of Brazilian intelligentsia in this long period, distinguished into five main types: [i] the organic church intellectual or the Jesuits of the Colony; [ii] the strangership dilettante or the self-taught scholar remaining of Law Schools from the end of XVIIth century to the midst of XXieth (Coimbra, Recife, São Paulo); [iii] the scholar or the expert modeled by hard sciences in the first decades of the XXieth century and extended to human sciences and philosophy between the midst and the last decades of the XXieth; [iv] the political intellectual or the public intellectual engaged in practical issues and in the political scene, when promoting the fusion of the thought and the action; [v] the thinker or the cosmopolitan globalized intellectual, not yet existing among us and targeted as future speculation. The second part, envisaged as deployment and complement of the first one in the framework of a research in progress, intends to distinguish the different attitudes of Brazilian philosophical intelligentsia towards European matrix, across the Brazilian Contemporary Philosophy (XX-XXIst centuries: alignment and reverence; autonomy and critical assimilation; ideological and political instrumentalization; suspicion and defenestration - so which should be added the European himself attitude here acting, as the French Mission in São Paulo and Rio de Janeiro, modeled as catechesis and civilizing mission, prevailing in our means since the Jesuits from colonial times.

Keywords:
Brazilian contemporary philosophy; Paradigms, tools and methods; Brazilian philosophical intelligentsia; Attitudes towards European matrix

Como foi divulgado na Jornada Sul-Norte de 2021 promovida por nosso GT (ver início do Editorial deste volume), vou tratar ao longo do presente artigo das “Cinco atitudes frente à matriz europeia nos séculos XX-XXI”, tendo por escopo a filosofia brasileira, nossos enraizamentos históricos e os desafios da atualidade.

O ponto de partida das reflexões é o livro de minha autoria Filosofia no Brasil: Legados e Perspectivas - Ensaios Metafilosóficos, publicado em 2017, já quase esgotado e devendo em breve sair a segunda edição.

Considerando a questão de tempo, na época da Jornada, e agora a de espaço, em razão das diretrizes da revista, vou andar a passos rápidos ao apresentar o livro, certo de que a essas alturas o importante não está mais nele, mas em seus desdobramentos, como veremos na sequência. Trata-se de fazer uma breve introdução e de fornecer o ponto de arranque, com o intuito de deixar os colegas de outros países minimante informados sobre o Brasil, a filosofia brasileira e as direções de minhas pesquisas. Vejamos então.

De saída, ao retomar o título do livro, digo que duas são as vertentes que o nuclearam: de uma parte, na esteira dos “legados e perspectivas”, a vertente histórica, vista na perspectiva da história intelectual, no sentido próximo do historiador francês Sirinelli, um dos autores de Les intellectuels en France, de l’Affaire Dreyfus à nos jours, 1986SIRINELLI, J.-F. Les intellectuels en France, de l’Affaire Dreyfus à nos jours. Paris: Armand Colin, 1986., devendo eu fazer acréscimos e ajustes ao fazer o trânsito para a filosofia e o Brasil; de outra parte, lembrando o subtítulo derradeiro do livro, “ensaios metafilosóficos”, na perspectiva de oferecer ao leitor um conjunto de ensaios exploratórios sobre aspectos metafilosóficos da filosofia e intelectualidade filosófica brasileira, no sentido próximo do livro de Timothy Williamson, de Oxford, The Philosophy of Philosophy, 2007WILLIAMSON, T. The Philosophy of Philosophy. Oxford: Blackwell Publishers, 2007., na acepção, segundo suas palavras, de «the philosophical study of philosophy itself, its nature, methods, and aims». E o que é importante: em seu caso, coerente com as exigências do método e as possiblidades das técnicas de análise de argumentos, com a questão da clarificação conceitual em primeiro plano, tendo por foco o percurso recente da filosofia analítica na Inglaterra e nos EUA, ao dar passagem ao “post-conceptual turn” na direção das filosofias pós-analíticas, como a filosofia da mente; em meu caso, com propósitos e abrangências diferentes, ao se aplicar à filosofia da filosofia em seu percurso histórico, e filosofia brasileira antes de mais nada. Ou seja, mais especificamente, por não estar em jogo fazer análises de argumentos tão somente, muito menos análises internalistas ou interna corporis, com a filosofia exclusivamente como foco, mas análises contextualizadas e interdisciplinares, levadas a cabo com o ferramental da história da filosofia e o aporte da história econômica, social cultural e política.

No título da palestra, pensando nesta ordem de considerações teórico-metodológicas, está assumida a promessa de eu tratar das ferramentas analíticas usadas em minhas análises da filosofia brasileira. Ora, duas foram e são as ferramentas.

A primeira delas, requerida para introduzir o tour de force analítico e delimitar o território junto ao campo de problemática a ser investigado, é a ferramenta analítica dos paradigmas, numa acepção próxima de Thomas Kuhn, com o significado de ferramenta teórica, à diferença de modelos, no sentido de ferramenta metodológica, mas correlacionadas e operando juntas: no caso específico, o paradigma da formação, construído com a ajuda dos chamados pensadores do Brasil, como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Antonio Candido, sem esquecer Darcy Ribeiro, tendo como foco a formação da sociedade, da economia, da política, da literatura e da cultura brasileiras. Aspectos diferentes e interligados, como se sabe, aos quais eu acrescentei a formação da própria filosofia brasileira, e, como nos referidos pensadores, indo da Colônia aos nossos dias. No tocante à filosofia brasileira, focalizando a formação da filosofia acadêmica, levada a cabo com os aportes e na companhia de Paulo Arantes e seu Departamento francês de ultramar, assim como de Cruz Costa e seu seminal Contribuição à história das ideias no Brasil, com escopos diferentes e complementares: no meu caso, ao dilatar as perspectivas de ambos para os cinco séculos de nossa história, distinguindo o período que eu chamei [i] de “formação” simplesmente, como exemplifica a era colonial, no início do processo, quando houve o transplante de tudo da Ibéria para cá, desde bibliotecas, mestres-escolas e modelos institucionais, na esteira da Ratio Studiorum da Cia de Jesus, tendo se estendido à época da pós-independência, ao longo do Império, República Velha e século XX adentro, em contraste com o período que o sucedeu e que eu chamei de [ii] “pós-formação” e seu resultado, quando algo tardiamente o longo processo histórico da formação da filosofia brasileira chegou ao fim, nas últimas décadas do século XX, numa época em que finalmente a filosofia acadêmica nacional se consolidou e venceu os déficits institucionais e os gaps históricos e culturais. Trata-se do paradigma teórico da formação visado em seu processo e resultado, requerido para introduzir ex-hypothesis recortes no real empírico e nele distinguir etapas ou fases: um processo histórico e institucional, em suma, como eu mostrei ao longo do livro Filosofia no Brasil.

A segunda ferramenta é o método dos tipos ideais, na acepção de Max Weber, longe dos ferramentais da matemática, que não vinham ao caso, mas tomados da lógica e associados aos métodos da história e suas técnicas de investigação, aplicados a quadros espaciais e a processos temporais: no meu caso, ajustados para trabalhar os aspectos históricos, com a ajuda da história da filosofia, e aí entram Paulo Arantes e Cruz Costa; e ajustados, também, para operar os aspectos metafilosóficos, recobrindo o logos, o kanon, a techne, o ethos e a praxis, em suas diversas acepções e variantes ao longo do tempo, havendo mais de uma maneira de fazer e compreender a filosofia nestas paragens.

O foco, portanto, é o que poderíamos chamar de “filosofia acadêmica”, difundida nas instituições de ensino e pesquisa, mas não só ou exclusivamente, havendo ainda a filosofia extra-acadêmica ou extramuros aprendida e exercitada na experiência de vida, na arena política e na frequentação dos livros, por gosto ou por hobby. Ou então pela via de cursos complementares em universidades, como nas seções de filosofia das Faculdades de Direito, e a via do ensino particular, em instituições ou nas famílias, como nas famílias abastadas da Renascença ou do início da Modernidade, pelas mãos de preceptores, como Hobbes e muitos outros, havendo nas casas-grandes do Brasil colônia e do Império também os seus. O desafio era fazer o levantamento das diferentes modalidades da experiência do filosofar, abarcando diferentes logoi, kanonis e technai, desde filosofias puras, chamadas também de perenes, até as filosofia práticas (moral) ou aplicadas (ciência e arte) e as filosofias instrumentalizadas pela religião e a política, distinguidas quanto ao gênero literário e a techne filosófica em tratadística ou sistemática, ensaística ou exegética e prática ou crítica - umas levando à atopia e à universalidade da filosofia, outras à sua inscrição espaciotemporal e ao localismo, havendo ainda a combinação das duas. E ainda, o levantamento dos diferentes ethei da corporação intelectual dos mestres-escolas consagrados ao ofício do ensino da filosofia, bem como dos pensadores e filósofos, mais raros e visados como patamar mais elevado, mas todos fazendo parte de uma mesma elite intelectual, a saber: a intelligentsia, no sentido de Mannheim, na acepção de corporação intelectual, variando no tempo e no espaço, e cujo ethos, como corporação ou intelligentsia coletiva, ao tomar o ethos na acepção platônica de atitude ou comportamento e de marca impressa na alma = ideia, será mais de um. Ethei no caso, no plural, havendo mais de uma atitude e marca, podendo a disposição ou a atitude que leva à filosofia e ao filosofar ser a ilustração das mentes, a salvação das almas, o cuidado de si ou a revolução política - atitudes e marcas distinguidas e capturadas mediante o ferramental da metodologia dos tipos ideais de Max Weber, com cuja ajuda eu tipifiquei cinco modelos da intelectualidade filosófica brasileira:

  • [1] o intelectual orgânico da igreja, como o jesuíta da Colônia, na esteira do magister medieval, ao colocar a filosofia nas rotas do saber da salvação (serva da teologia ou, antes, da religião e da fé), como o grande Vieira e uma centena de mestres-escolas dos seminários e colégios dos jesuítas, inclusive de outras ordens religiosas;

  • [2] o intelectual descolado e diletante estrangeirado do fim da Colônia e do período pós-independência, chegando aos nossos dias, ao abrir o caminho para a secularização da filosofia entre nós, uma vez trocada a rota do saber da salvação pela rota da ilustração ou educação das mentes, como no iluminismo em suas diferentes vertentes: surgida num tempo em que não havia faculdades e cursos de filosofia laica na Terra Brasilis, esta estirpe será composta pelos autodidatas em filosofia formados por empenho pessoal e/ou à sombra das Faculdades de Direito, como em Coimbra e Recife. Estes foram os casos de Sílvio Romero e Tobias Barreto, tendo como plataforma respectivamente o Colégio Pedro II e a Faculdade de Direito de Recife, em dissidência e a contrapelo do ensino oficial reinante, tendo Sílvio Romero estudado na Faculdade e sendo Tobias Barreto o maior de todos;

  • [3] o intelectual de métier ou o scholar, palavra inglesa reservada para traduzir o temo erudito das línguas latinas, em suas duas variantes [i] o erudito de horizontes largos com cabeça enciclopédica e que nos leva ao polímata de todos os tempos, como Aristóteles, São Tomás, Descartes, os renascentistas italianos e os livres-pensadores franceses, incluindo os enciclopedistas, os quais grafei como eruditos de tipo 1, cujos melhores exemplos em filosofia no Brasil são Pe. Vaz em Minas e Dom Estévão (Francisco Benjamin de Souza Neto) em SP; [ii] o especialista disciplinar, que terminará por prevalecer, talhado na esteira do processo de especialização do conhecimento, protagonizado pelas revoluções científicas modernas, com as “ciências duras” à testa e tendo mais tarde chegado à filosofia: variante que eu grafei como erudito de tipo 2, ao designar o especialista disciplinar, hoje uma legião no Brasil - eu, vocês, todo mundo -, podendo ser citados como exemplos, por um lado, Leônidas Hegenberg, que era versado em filosofia da ciência e atuava no ITA, e, por outro, Raul Landim, da UFRJ, já aposentado, mas que continua atuante e todo mundo reconhece como eminente especialista em Descartes e no cartesianismo;

  • [4] o filósofo intelectual público, na acepção de intelectual político, podendo ser de esquerda e ou de direita, ao levar para fora da academia uma agenda política, na esteira da fusão da filosofia e da práxis, com as variantes e as possibilidades que a estirpe comporta ao dar livre curso à experiência da filosofia engajada e do engajamento político, como intelectual de partido ou não: assim, Pe. Henrique Vaz, nas hostes da esquerda católica, como mentor da JUC (Juventude Universitária Católica) e da AP (Ação Popular), e assim, também, Marilena Chauí e Paulo Arantes, ela como intelectual do PT e ele do PSOL - todos eles à esquerda do espectro político, havendo ainda Miguel Reale e Antônio Paim, à direita, para ficarmos com as figuras mais conhecidas da filosofia, e não sendo eles tantos assim, à esquerda e à direita;

  • [5] o filósofo cosmopolita globalizado, na esteira do pensador de todos os tempos e lugares, talhado como contraexemplo e a contrapelo do scholar especializado e internacionalizado, como Newton da Costa em lógica (scholar de tipo 2), que recai em outra categoria e é, portanto, diferente (3ª extração acima). Trata-se de uma extração composta antes de tudo por outsiders, mesmo atuando na academia, como Kant, e havendo vários deles saídos da estirpe (scholar) de tipo 1, com sua criatividade e seus horizontes largos, em diferentes áreas das humanidades, como Paulo Freire em educação e Gilberto Freyre em ciências sociais. Ou, ainda, composta por letrados e artistas saídos do campo da literatura e das artes, como Guimarães Rosa, Machado de Assis e Villa-Lobos - todos eles, inclusive os de humanidades, reconhecidos internacionalmente e com audiência mundial. Este não foi, porém, o caso da filosofia brasileira, não porque nos tenham faltado filósofos genuínos ou pensadores de envergadura, mas porque nos têm faltado filósofos ou pensadores com reconhecimento e ressonância mundiais, levando-nos a perguntar duas coisas: por um lado, porque tal estado de coisas teve lugar nesta parte do hemisfério, ao olharmos para trás, com foco em nosso passado histórico, entrando nas considerações o argumento geopolítico, p. ex.; por outro, olhando para a frente, num giro de perspectiva, com foco na senda aberta da história contrafactual voltada para o futuro, como sondagem das tendências e possibilidades do devir histórico, ao reformularmos a pergunta e os questionamentos, sem desconsiderar a questão geopolítica, pela possibilidade de um dia nascer nestas terras e nos meios filosóficos brasileiros o nosso Kant, o nosso Rosa e o nosso Machado1 1 Creio ser oportuno introduzir aqui uma nota de esclarecimento acerca desta quinta extração da intelectualidade, sem dúvida a mais importante de todas e vista como o zênite da atividade intelectual, onde vamos encontrar o panteão dos semideuses cultuados por toda a parte, e, no entanto, cujas camadas argumentativas, desenvolvidas ao longo do livro, implicando várias ordens de distinções e considerações, ficaram algo elípticas e um tanto compactadas, ao serem apresentadas e resumidas junto às outras. De saída, ao considerarmos o Brasil e a filosofia brasileira, a questão que deve ser colocada e respondida - justamente, num momento de nossa história em que o país tinha concluído todas as etapas de sua formação cultural e filosófica (hipótese 1), e já se encontrava em plena era da pós-formação, ao menos desde os anos setenta no caso da filosofia (hipótese 2) - é por que tal reconhecimento e tal ressonância não tiveram lugar e até hoje não tivemos um filósofo ou um pensador com reconhecimento mundial. Contudo, ao procurar respondê-la, tive de abandonar em parte a via seguida nas quatro extrações anteriores em que o argumento de realidade falava mais alto, com as análises metafilosóficas seguindo o curso dos processos históricos e com o inventário dos possíveis especulativos ficando submetidos e ensanduichados no/ao devir real das coisas e dos processos, e buscar um outro caminho. Vale dizer, um caminho diferente, levando a um giro de perspectiva, ao trocar a via retrospectiva pela via prospectiva, com a sondagem do futuro e a pergunta pela possibilidade das coisas e dos processos - introduzidas ex-hypothesis e for argument’s sake, como dizem os anglofônicos - ocupando o primeiro plano e falando mais alto. Não obstante, no sopesamento analítico das tendências e das possibilidades, a questão da realidade entra largamente em linha de conta, ao fazer o ensanduichamento do campo dos possíveis e dos impossíveis, servindo de crivo ou de pedra de toque. Por um lado, há a figura do pensador e a atopia da filosofia, podendo o filósofo universal surgir em qualquer lugar e em contextos os mais adversos, como Espinosa, que veio de uma família judaica migrada da Ibéria com seus autos de fé e tudo, ele mesmo nunca assimilado ao/pelo judaísmo e expulso da sinagoga quando vivia na Holanda, tendo se convertido, sem nunca pôr os pés na academia, em filósofo universal. Por outro, há a questão do meio que persiste e não pode ser transcendido, meio ingrato, tacanho e fora da rota principal do fluxo das ideias, como no caso do Brasil, entrando na linha de conta, ao buscar a resposta pela situação e a perspectiva da filosofia brasileira, a questão geopolítica (argumento de realidade: nossa condição, ainda assim, de país periférico com inserção subalterna frente aos países centrais no concerto das nações). Porém, não tão-só ou exclusivamente, devendo outros fatores ser considerados, a julgar pelo que se passou em diversas áreas da cultura, com a questão geopolítica e tudo, como as diferentes artes e outras disciplinas das humanidades, conforme foi lembrado. Tal é, pois, o quadro completo, levando-me a perguntar, na ausência de exemplos emblemáticos do passado e do presente, ao arrematar as análises levadas a cabo, num giro de perspectiva, ao trocar a via do realismo epistemológico da história intelectual e da própria história da filosofia pela via metafilosófica da inteleção do sentido e a senda da história contrafactual voltada para o futuro, como sondagem das possibilidades do devir histórico, conforme foi ressaltado. E desde logo, mais especificamente, a perguntar pela possibilidade de um dia nascer nos meios filosóficos brasileiros - e de resto, com reconhecimento global ou mundial, apesar da falta de lastro da língua portuguesa, e em um ambiente intelectual, como o nosso e por toda a parte, em que a especialização disciplinar e o taylorismo acadêmico vão juntos, constituindo na maior das barreiras, imperando nas produções intelectuais o mais do mesmo e acarretando no mesmo passo a morte do pensamento e, por extensão do pensador, como antevira Heidegger -, levando-me a perguntar, repito, pela possibilidade de um dia nascer nestas terras o nosso Kant, o nosso Rosa e o nosso Machado. .

Todas essas reflexões foram levadas a cabo no livro Filosofia no Brasil, ao longo do qual abundam nomes, exemplos e referências, mas não vem ao caso esmiuçá-los, por se tratar de pesquisa já concluída, e fazem parte do rol das atividades de pesquisa que continuei a desenvolver depois, ao longo desses anos, em minhas diferentes investidas no campo da filosofia brasileira, ao me situar como brasileiro e como filósofo.

Hoje, ao voltar ao ponto - ao ponto em que deixei o leitor ao terminar a leitura do livro -, eu gostaria de compartilhar uma segunda linha investigativa que estou desenvolvendo no momento e deverá continuar nos próximos anos. É que, durante o processo de revisão do livro, com vistas à segunda edição, notei que havia lacunas e inconsistências, levando umas aos tipos ideais da nossa intelectualidade filosófica e outras aos aspectos metafilosóficos da natureza da filosofia brasileira. Começando pelos tipos ideais, notei que eles tinham subjacentes ou abarcavam em comum um conjunto de atitudes e de relações frente à matriz europeia, focalizadas de uma maneira ou de outra, mas não suficientemente desenvolvidas, como o intelectual público, havendo, além do intelectual de esquerda, o de direita. Da mesma forma que havia outros aspectos deixados na penumbra ou em recesso, como a atitude de reverência frente à matriz europeia, comum ao diletante do séc. XIX e ao scholar da séc. XX. E, ainda, aspectos hoje de rara contundência e, no entanto, esquecidos ou deixados de lado no curso dos séculos, como a atitude de repúdio da matriz europeia por parte do pensamento decolonial, mais e mais presente nas agendas de discussões da atualidade, com as pessoas me perguntando e que era o caso de ser considerada. Vale dizer, um conjunto de traços e aspectos que será encontrado ao longo do século XX, chegando ao XXI, bem como, parte deles, em séculos anteriores, desfazendo a ideia de sucessão ou linearidade, que eu nunca endossei, estando apenas em jogo no método dos tipos ideais capturar as novidades e as experiências intelectuais prevalecentes em contextos específicos, admitindo formas mistas, variações e discrepâncias. Passando para os aspectos metafilosóficos e a natureza da filosofia - a par das discussões sobre a pertinência da filosofia no / do Brasil, relativizada ao longo do livro -, notei a necessidade de melhor cernir o topos da filosofias nacional e mundial, senão local e universal, admitindo mais de um caminho e coordenável com mais de uma solução. Possibilidades abordadas em Filosofia no Brasil, mas não enfática e conclusivamente, exigindo sua retomada em três direções: [i] postulação do topos universal da filosofia ou sua atopia, levando ao universalismo; [ii] afirmação da inscrição espaciotemporal da filosofia, levando a heterotopias e ao localismo; [iii] e combinação das duas, levando à síntese do universal e do particular ou do global e do local.

Pensando nisso, delineei um esquema de análise tendo por foco, por um lado, o ethos da intelligentsia filosófica brasileira, vazado em cinco atitudes frente à matriz europeia da filosofia mundial, como ressaltado, e, por outro, a modelagem dos diferentes logoi e discursos filosóficos a que estas atitudes estão de uma maneira ou de outra associadas e as quais, por sua vez, junto às postulações e às hipóteses nucleadoras, deverão ser testados em sua extensão maior ou menor: [i] num extremo aparecendo o europeu aqui desembarcado desde a Colônia, difundindo as luzes universais do intelecto (saber) em atitude de conversão ou de catequese, com toda a arrogância e a certeza deste mundo, havendo, no entanto, aqueles que discrepam e com maior empatia tratam de interagir com o nativo e aprender algo de novo no novo meio, como veremos; [ii] noutro extremo, aparecendo o brasileiro mesmo, em sua diversidade étnica, porém com uma parcela das camadas intelectualizadas desidentificada com o país - um país das elites com suas iniquidades e seu racismo estrutural - e que, ao se insurgir contra o logocentrismo e o neocolonialismo do europeu invasor, em atitude de suspeição contra o universalismo abstrato (véu ou socapa do particularismo e da xenofobia dos povos do velho continente), trata de dar voz e vez às extrações e aos povos subalternos, a saber: ameríndios e afrodescendentes, havendo ainda as mulheres, como no pensamento decolonial ou pós-colonial; [iii] no meio, ao interpor-se aos dois extremos, aparecendo aqueles que protagonizam: (a) uma atitude de reverência e alinhamento frente à matriz europeia, ao se colocar nas vizinhanças do europeu aqui atuante, mas em posição subalterna ou de submissão, reconhecendo nas luzes universais da filosofia irradiadas do Norte e chegadas aqui, no Sul, e aqui se espalhando, algo parecido com a luz do sol, que é indiferente ao meio em que se propaga e é a mesma nos trópicos e no hemisfério norte; ou então (b) uma atitude de independência e assimilação crítica, entendendo que o meio afeta a recepção das ideias e retroage sobre elas (efeito de contexto e de feedback); ou ainda (c) de apropriação e de instrumentalização, com objetivos práticos e políticos, ao fim e ao cabo, e visando fins não eurocêntricos, mas americanos e brasileiros.

Ou seja, especificamente, junto às hipóteses e aos testes, as atitudes de

[1] Catequese e missão civilizatória, em suas duas vertentes: [i] católica ou religiosa, ao longo do Brasil colônia, com a filosofia instrumentalizada (ancilla theologiae), ensinada por clérigos mestres-escolas em colégios e seminários, com os jesuítas na linha de frente, dos quais já tratei, incluindo o Padre Vieira, ao reconhecer-lhe a enorme proeminência, em meu livro Filosofia no Brasil; [ii] laica ou secular da propagação das luzes dos diferentes iluminismos (francês, inglês ou alemão), desde a Independência e ao longo do Período Imperial, tendo como centros irradiadores o Colégio Pedro II no Rio de Janeiro e as Faculdades de Direito de Recife e São Paulo, e como ponto mais alto de sua difusão, no século XX, como sua herdeira tardia, a Missão Francesa no campo das humanidades, quando a USP e a FFLCH foram fundadas em 1934: Seção de Filosofia no caso, com Jean Maugüé lá ensinando por 8 anos, e da qual Mission fala Lévi-Strauss nas páginas iniciais de Tristes trópicos - obra autobiográfica em que temos uma etnologia de primeira mão do homo academicus brasileiro e francês daquela época, com cuja ajuda podemos tipificar essa importante modalidade da intelectualidade atuante em nossas terras, e testar as hipóteses da dupla inscrição universal e local da filosofia. Dois são os exemplos: 1º Maugüé, que atuou na FFLCH, era da Missão Francesa, já referido em meu livro sobre a FB e de quem vou falar brevemente na nova etapa da pesquisa, porque ele quase nada disse de sua experiência em São Paulo; 2º Flusser, que era tcheco, aqui viveu por mais de trinta anos, atuou na Politécnica da USP e escreveu bastante sobre o Brasil, a quem pretendo consagrar no curso da minha pesquisa um exame mais detido, vendo nele um outsider.

[2] Alinhamento e reverência, abrangendo autodidatas e scholars, os primeiros prevalecendo no século XIX até meados do XX, nos tempos em que a formação da filosofia se dava à sombra das Faculdades de Direito, tendo como exemplos Tobias Barreto e Arthur V. Vellôso, que eram germanófilos e migraram para filosofia, e os segundos, constituídos pelo especialista disciplinar, como Leônidas Hegenberg no ITA e Newton da Costa na UFPR, depois USP, prevalecendo na segunda metade do XX: antes mais raros, hoje uma legião, formados dentro ou fora de nossas terras, em sua maioria com desapego do país e da agenda nacionalista, por entender que a filosofia não tem pátria e está desde sempre inscrita na ágora transnacional, como dizia Deleuze, com o scholar, o diletante ou filósofo fazendo filosofia no Brasil e não do Brasil.

Aqui será a ocasião de focalizar a hipótese da atopia da filosofia e como ilustração da segunda atitude o escolhido poderá ser Leônidas Hegenberg ou outros expoentes da filosofia analítica: um e outros como exemplos do especialista disciplinar, com a mesma agenda no Brasil e nos quatro cantos do globo, fazendo parte de uma mesma comunidade internacional, ao levarem a cabo o ideário ou os propósitos de uma filosofia técnica e especializada. E, numa perspectiva diferente, o escolhido poderá ser Farias Brito, que tinha mais ambição intelectual, filosofava em primeira pessoa e em quem se reconhece o primeiro filósofo genuinamente brasileiro. Mas que, de fato, fazia filosofia universal e discutia problemas transnacionais, como se sua filosofia se inscrevesse na ágora internacional, discutindo com ninguém de nossas terras, mas com Espinosa e Bergson.

[3] Assimilação e independência crítica, antes mais rara, como na época colonial e no período imperial pós-independência, depois mais corrente, como na época contemporânea, quando a estirpe ficará mais robusta, com a ideia de autonomia intelectual na linha de frente, tendo ao centro a geografia e o homem destas terras: o Homo Americanus. Contudo, sem negar as raízes europeias, como se fôssemos a extensão do velho continente, prologando no novo mundo a civilização greco-romana, senão civilização ocidental e cristã, onde vai sofrer a fricção do novo ambiente: ainda hoje em menor número do que o scholar colonizado, mas não menos expressivos e influentes, contando entre eles Pe. Vaz, Giannotti, Marilena Chauí, Benedito Nunes, que se dizia autodidata, mas era bem mais, e muitos outros.

Aqui será a ocasião de voltarmos à hipótese da dupla inscrição da filosofia, universal e local, tomada como síntese, e de testá-la no ambiente brasileiro, e não franco-brasileiro, como na primeira atitude. Um bom exemplo é Pe. Vaz, a quem consagrei um alentado ensaio por ocasião do centenário de seu nascimento no ano passado, ao longo do qual eu mostrei que ele entendia que a filosofia universal deveria ser assimilada e adquirir cores locais, ao se aplicar a diferentes culturas e contextos, tendo se ocupado de filosofia brasileira bem como das urgências do tempo e das iniquidades do país, especialmente em entrevistas e em artigos. O outro exemplo é Miguel Reale, que estou estudando no momento e quem via na filosofia brasileira o prolongamento da filosofia europeia, onde deita suas raízes, levando-o a dizer em O homem e seus horizontes que “se quisermos ser originais não devemos querer nos desvencilhar da herança europeia nem do imperialismo norte-americano, em busca de um filosofar tupi, asteca ou maia” (REALE, 1997REALE, M. O homem e seus horizontes. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997., p. 122), que não faz sentido. Não obstante, em paralelo a Henrique Vaz, fala de enraizamentos e de cores locais da filosofia ao ser trasladada da Europa para as Américas, vendo no culturalismo aqui gestado, numa linha de pensamento que principia com Tobias Barreto e chega até ele, Reale, como a expressão de uma filosofia genuinamente brasileira e de resto, bem mais do que o espiritualismo de Farias Brito, que não tem nada de genuíno e de brasileiro. E, por fim, vendo ele mesmo, Reale, em sua antropologia filosófica do culturalismo, uma contribuição pessoal maior ainda do que a de Tobias Barreto e seu feito mais original em filosofia geral, em paralelo à teoria tridimensional do direito como o seu maior legado, e igualmente o mais original, em filosofia do direito e nas ciências jurídicas, mas que talvez não seja tão brasileiro e tão original assim. Trata-se de uma suspeita que requer ainda mais estudos, devendo ser desenvolvidos ao longo da pesquisa, ao seguir as pegadas de Salazar Bondy, que em capítulo publicado na coletânea Uma filosofia latino-americana, organizada por Argote Marquinez, estabelece que Reale de fato é “um dos principais seguidores do culturalismo de Leopoldo Zea”. Concluindo, conforme vim a saber por Lúcio Marques, Salazar Bondy cita como fonte de sua assertiva a obra de Zea La filosofia latinoamericana como una filosofia sin más, e - acrescento eu - datada de 1969, com menos de 100 páginas, tendo uma vasta audiência, e cerca de 10 anos antes de O Homem e seus horizontes do filósofo paulistano.

[4] Apropriação ideológica e instrumentalização política, à esquerda ou à direita, da qual nos fala Cruz Costa, ao distinguir em nossos meios, por um lado, os glosadores, às voltas com comentários de texto, e, por outro, os instrumentalizadores, que tomam as ideias como “equipamentos de campanha”, no sentido de armas e meios de ação, em cujos costados, seguindo suas pegadas, vamos encontrar os dois grandes campos do espectro político e os respectivos intelectuais políticos. À direita, os positivistas do séc. XIX, de que nos fala Cruz Costa, ao se referir a Teixeira Mendes e Miguel Lemos, conhecidos como positivistas ortodoxos ou do apostolado, podendo ser citados ainda os nomes de Miguel Reale e Antônio Paim no séc. XX, como eminentes representantes em filosofia do conservadorismo político brasileiro. De um lado, Miguel Reale, que dizia fazer “filosofia pura”, não contaminada ideologicamente, e que, no entanto, fazia política como ninguém, tendo como porta de entrada não a filosofia ou a ética, mas a ideologia, digamos assim, ou algo correlato, abrindo, em sua elaboração, a uma axiologia ou filosofia dos valores: integralista, antes, quando ainda jovem foi militante e um dos fundadores da Aliança Integralista Brasileira, tendo sido o número 2 da organização, conhecida por suas proximidades com o fascismo italiano; liberal-progressista, depois, quando trocou a AIB pelo PSP (Partido Social Progressista), senão socialista reformista, como ele se refere a si mesmo em suas memórias, tendo no fim se alinhado ao regime militar. De outro, num plano mais abaixo, Antônio Paim, que depois de abandonar o marxismo e o bolchevismo se dizia um liberal conservador à inglesa e quem, no entanto, nunca teve a influência e o pathos político de Miguel Reale. E à esquerda do espectro, vamos encontrar os marxistas do séc. XX, como Marilena Chauí, Leandro Konder e Paulo Arantes; assim como outras vertentes do campo político-ideológico: isebianos, incluindo marxistas, como Álvaro Vieira Pinto e Roland Corbisier, ou não, como Hélio Jaguaribe, alinhados à esquerda e à centro-esquerda, que depois saiu do Instituto, lembrando que o projeto de criação do ISEB foi escrito por Miguel Reale, com Roberto Campos entre os fundadores, evidenciando que o grupo não era tão orgânico e coerente, como diz Paulo Arantes, que sentencia que os isebianos eram um verdadeiro saco de gatos; e, por fim, cristãos de esquerda, como Pe. Henrique Vaz, que nos anos sessenta foi muito atuante e é considerado o mentor intelectual da JUC (Juventude Universitária Católica) e da AP (Ação Popular).

Aqui, por sua vez, deverá ser testada a hipótese da inscrição local da filosofia, ao ser aplicada a filosofia universal a contextos específicos e a diferentes situações: inscrição política e ideológica, em suma. E como exemplos poderão ser escolhidos, à esquerda, Pe. Vaz ou Marilena Chauí, tendo eu já lhes consagrado estudos, e à direita Miguel Reale, que estou estudando no momento, como já comentado.

[5] Suspeição, repúdio e defenestração, como em nossos dias no campo do pensamento decolonial, também chamado de estudos pós-coloniais, na esteira dos estudos culturais norte-americanos, com suas agendas contra o logocentrismo europeu e o neocolonialismo ocidental, resultando no colonialismo cultural e epistêmico, como na segunda atitude acima tipificada: assim, Eduardo V. de Castro, Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez, que vão comandar a agenda decolonial da antropologia e das ciências sociais no Brasil, tendo chegado a essas áreas há mais de 10 anos, e mesmo bem mais, como no caso de Abdias, e só recentemente se avizinhado da filosofia brasileira, na esteira da pauta das identidades e minorias.

Ainda não sei qual autor e obra deverei trabalhar na pesquisa em curso, na ausência de exemplos emblemáticos em filosofia - filosofia ou pensamento decolonial, em suma, ao estabelecer as linhas de força e delimitar as fronteiras com a filosofia tradicional -, cuja agenda no Brasil está pulverizada nas frentes ameríndia, africana e feminista, faltando-lhe a indispensável sistematização filosófica e não sendo este o meu propósito, por não ser esta a minha área de atuação. Este ponto (escolha de autor e obra) deverá ser resolvido depois no curso da pesquisa.

Minha intenção é colocar em primeiro plano os aspectos epistêmicos e fazer o escrutínio da equiparação, senão da inversão, do “lugar sociológico de fala”, como lugar social, cultural e político, e do “lugar epistêmico de fala”, como lugar de disputas de grupos e de geopolíticas, levando à clivagem das epistemologias do Norte e do Sul, como em certas abordagens, com a consequente politização das questões epistemológicas, em meio a crispações e cancelamentos comuns nas redes socias; e levando também à confusão nunca desfeita das questões de fato e de direito distinguidas pela epistemologia tradicional, às voltas com a pergunta pela justificativa do conhecimento, e, no entanto, obnubiladas pelas epistemologias relativistas e binaristas pós-modernas do pensamento decolonial.

De minha parte, ao cernir a quinta atitude, em contraste com as quatro anteriores, será a vez do exame da hipótese da inscrição em seu viés local e contextualista, sem as contrapartes do topos universal e do nós unificador da tradição filosófica, se não como realidade (quaestio facti), ao menos como projeto ou ideia (quaestio juri), tendo como horizonte a humanidade = ideia, que levam à postulação da atopia da filosofia. De resto, atopia vedada pelos estudos pós-coloniais, ao se insurgir contra o universalismo abstrato do europeu branco colonialista, opondo-lhe as perspectivas e os saberes particulares de gênero, de classes e de etnias. E desde logo, subtraindo-os à discussão e à elaboração filosófica, como se filosofia, mito e saber popular fossem a mesma coisa ou ficassem no mesmo plano, e, no mesmo passo, imunizando moralmente seus postulantes e agrupamentos contra os adversários e os críticos.

Trata-se, como se sabe, de um tema por demais espinhoso, desencorajando o contraditório e o exame crítico das posições, com as pessoas se furtando ao debate e com os embates tendo lugar sem deixar claras as credenciais epistêmicas e em que esses saberes consistem ou o que eles são ao fim e ao cabo. Tudo somado, uma tal atitude, se prevalecesse, nos deixaria longe da filosofia, devendo, pois, se queremos mesmo estender a filosofia aos estudos decoloniais, ser modificada. Trata-se do desafio de estender-lhes o ethos e a atitude crítica, de modo a, com abertura e desassombro, olhando para frente, examinar em que consistem ou se fundam tais credenciais, para no fim, após seu exame, decidirmos com propriedade se a hipótese localista resiste às críticas e fica em pé. Este é o meu propósito e a minha desconfiança é que não ficaria. A ver depois.

Então é isso, termino por aqui, lembrando que tenho a intenção de reunir os resultados da pesquisa em um novo livro de ensaios, que deverá demorar ainda alguns anos até ser publicado.

Referências bibliográficas

  • ARANTES, P. Um departamento francês de ultramar: Estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana (Uma experiência dos anos 1960). Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1994.
  • COSTA, J. C. Contribuição à História das Ideias no Brasil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
  • DOMINGUES, I. Filosofia no Brasil: Legados e Perspectivas - Ensaios Metafilosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
  • REALE, M. O homem e seus horizontes. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
  • SIRINELLI, J.-F. Les intellectuels en France, de l’Affaire Dreyfus à nos jours. Paris: Armand Colin, 1986.
  • WILLIAMSON, T. The Philosophy of Philosophy. Oxford: Blackwell Publishers, 2007.
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    Creio ser oportuno introduzir aqui uma nota de esclarecimento acerca desta quinta extração da intelectualidade, sem dúvida a mais importante de todas e vista como o zênite da atividade intelectual, onde vamos encontrar o panteão dos semideuses cultuados por toda a parte, e, no entanto, cujas camadas argumentativas, desenvolvidas ao longo do livro, implicando várias ordens de distinções e considerações, ficaram algo elípticas e um tanto compactadas, ao serem apresentadas e resumidas junto às outras. De saída, ao considerarmos o Brasil e a filosofia brasileira, a questão que deve ser colocada e respondida - justamente, num momento de nossa história em que o país tinha concluído todas as etapas de sua formação cultural e filosófica (hipótese 1), e já se encontrava em plena era da pós-formação, ao menos desde os anos setenta no caso da filosofia (hipótese 2) - é por que tal reconhecimento e tal ressonância não tiveram lugar e até hoje não tivemos um filósofo ou um pensador com reconhecimento mundial. Contudo, ao procurar respondê-la, tive de abandonar em parte a via seguida nas quatro extrações anteriores em que o argumento de realidade falava mais alto, com as análises metafilosóficas seguindo o curso dos processos históricos e com o inventário dos possíveis especulativos ficando submetidos e ensanduichados no/ao devir real das coisas e dos processos, e buscar um outro caminho. Vale dizer, um caminho diferente, levando a um giro de perspectiva, ao trocar a via retrospectiva pela via prospectiva, com a sondagem do futuro e a pergunta pela possibilidade das coisas e dos processos - introduzidas ex-hypothesis e for argument’s sake, como dizem os anglofônicos - ocupando o primeiro plano e falando mais alto. Não obstante, no sopesamento analítico das tendências e das possibilidades, a questão da realidade entra largamente em linha de conta, ao fazer o ensanduichamento do campo dos possíveis e dos impossíveis, servindo de crivo ou de pedra de toque. Por um lado, há a figura do pensador e a atopia da filosofia, podendo o filósofo universal surgir em qualquer lugar e em contextos os mais adversos, como Espinosa, que veio de uma família judaica migrada da Ibéria com seus autos de fé e tudo, ele mesmo nunca assimilado ao/pelo judaísmo e expulso da sinagoga quando vivia na Holanda, tendo se convertido, sem nunca pôr os pés na academia, em filósofo universal. Por outro, há a questão do meio que persiste e não pode ser transcendido, meio ingrato, tacanho e fora da rota principal do fluxo das ideias, como no caso do Brasil, entrando na linha de conta, ao buscar a resposta pela situação e a perspectiva da filosofia brasileira, a questão geopolítica (argumento de realidade: nossa condição, ainda assim, de país periférico com inserção subalterna frente aos países centrais no concerto das nações). Porém, não tão-só ou exclusivamente, devendo outros fatores ser considerados, a julgar pelo que se passou em diversas áreas da cultura, com a questão geopolítica e tudo, como as diferentes artes e outras disciplinas das humanidades, conforme foi lembrado. Tal é, pois, o quadro completo, levando-me a perguntar, na ausência de exemplos emblemáticos do passado e do presente, ao arrematar as análises levadas a cabo, num giro de perspectiva, ao trocar a via do realismo epistemológico da história intelectual e da própria história da filosofia pela via metafilosófica da inteleção do sentido e a senda da história contrafactual voltada para o futuro, como sondagem das possibilidades do devir histórico, conforme foi ressaltado. E desde logo, mais especificamente, a perguntar pela possibilidade de um dia nascer nos meios filosóficos brasileiros - e de resto, com reconhecimento global ou mundial, apesar da falta de lastro da língua portuguesa, e em um ambiente intelectual, como o nosso e por toda a parte, em que a especialização disciplinar e o taylorismo acadêmico vão juntos, constituindo na maior das barreiras, imperando nas produções intelectuais o mais do mesmo e acarretando no mesmo passo a morte do pensamento e, por extensão do pensador, como antevira Heidegger -, levando-me a perguntar, repito, pela possibilidade de um dia nascer nestas terras o nosso Kant, o nosso Rosa e o nosso Machado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2023
  • Aceito
    21 Jul 2023
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