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Animalidade e expressividade na filosofia de Hans Jonas* * O presente artigo é parte dos resultados do projeto “Dos direitos humanos aos direitos da natureza: as contribuições de Hans Jonas para a responsabilidade ecológica”, aprovado junto à Fundação Araucária (edital CP 19/2022 - Programa institucional de apoio à fixação de jovens doutores - 2a etapa”, protocolo nº jdt2022271000013).

Animality and Expressiveness in the Philosophy of Hans Jonas

Animalidad y expresividad en la filosofía de Hans Jonas

Resumo

Esta pesquisa tem como objetivo central analisar o estatuto ontológico da animalidade na filosofia da vida de Hans Jonas, tendo como pano de fundo os temas da visão e da expressividade animal. Com isso, busca-se evidenciar a importância que a reflexão filosófica de Hans Jonas ocupa, não apenas no âmbito da fenomenologia da vida e no horizonte dos desafios éticos da civilização tecnológica, mas, também, na análise filosófica da vida animal.

Palavras-chave:
Animalidade; Expressividade; Hans Jonas; Adolf Portmann

Abstract

The main objective of this research is to analyze the ontological status of animality in Hans Jonas' philosophy of life having the themes of vision and animal expressiveness as a backdrop. In this way, this research aims to highlight the importance that Hans Jonas' philosophical reflection occupies not only in the scope of the phenomenology of life and in the horizon of ethical challenges of technological civilization, but also the philosophical analysis of animal life.

Keywords:
Animality; Expressiveness; Hans Jonas; Adolf Portmann

Resumen

El objetivo central de esta investigación es analizar el estatuto ontológico de la animalidad en la filosofía de la vida de Hans Jonas, teniendo como contexto los temas de la visión y la expresividad animal. Con esto, se busca destacar la importancia que tiene la reflexión filosófica de Hans Jonas, no solo en el ámbito de la fenomenología de la vida y en el horizonte de los desafíos éticos de la civilización tecnológica, sino también en el análisis filosófico de la vida animal.

Palabras clave:
Animalidad; Hans Jonas; Adolf Portmann

Introdução

Mas às vezes me arrepio vendo um bicho. Sim, às vezes sinto o mudo grito ancestral dentro de mim quando estou com eles: parece que não sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me confundo toda, fico ao que parece com medo de encarar meus próprios instintos abafados que, diante do bicho, sou obrigada a assumir, exigentes como são, que se há de fazer, pobre de nós (Bichos - Clarice Lispector).

A contribuição da filosofia da vida animal que este trabalho busca delinear no interior da elaboração teórica de Hans Jonas é a consequente oposição a uma visão antropocêntrica das relações interespécies. Ao afirmar que mesmo em suas formas elementares o orgânico prefigura o espiritual e, igualmente, que mesmo em suas formas mais elevadas o espiritual se mantém como parte do orgânico, Hans Jonas se distancia da postura filosófica que posiciona o ser humano em um lugar de privilégio face aos outros viventes. A expressividade que aparece no ser humano na forma da linguagem abstrata, do pensamento racional e da criação estética só pode ser herdeira da expressividade animal que, ao desprender-se do solo do mundo, abriu os olhos para vê-lo e se expor dentro dele para ser visto.

Pretende-se, então, apresentar (1) uma análise do estatuto ontológico do animal no interior da biologia filosófica de Jonas e (2) o alcance interpretativo da afirmação jonasiana de que a vida é expressiva, a partir da etologia de Adolf Portmann, levando em conta suas vantagens e desvantagens teóricas. Procura-se, ainda, (3) investigar a ligação entre as emoções e a expressividade no que se refere à compreensão humana das vivências animais. Em suma, o objetivo central desta pesquisa é trazer à luz de que maneira a filosofia da vida de Hans Jonas contribui para as investigações sobre a animalidade.

A condição animal

A análise de Jonas da existência animal é conduzida inicialmente a partir da diferenciação entre o modo de ser da animalidade e a existência vegetal em sua relação com o mundo, que é mais que um ambiente geográfico, pois mundo significa, antes, a abertura de uma contingência. De acordo com o filósofo, três características distinguem a vida dos animais da vida das plantas: mobilidade, percepção e emoção1 1 Sobre o conhecimento e a importância das emoções na vida dos animais conferir o livro O último abraço da matriarca: as emoções dos animais e o que elas revelam sobre nós (2021) do primatólogo holandês Frans de Waal. . Essas três capacidades representam um ganho na dimensão da liberdade e que Jonas relaciona ao que ele chama de “princípio de mediatez” (PV2 2 Para as citações das obras de Hans Jonas usarei as abreviaturas seguidas do número da página conforme a edição que se encontra na bibliografia. Todas as traduções de obras em língua estrangeira são minhas. Para as demais citações utilizarei o sistema (AUTOR, data, página) conforme a edição indicada na bibliografia. PV (O princípio vida); PR (O princípio responsabilidade); EF (Ensaios Filosóficos). , 126). Essas capacidades estão ligadas umas às outras e em sua mútua relação, são os sinais do modo de ser da animalidade.

Três características da síndrome animal, uma vez que sua presença conjunta em um ser vivo nos permite concluir que se trata de um animal, mesmo se não se possa deduzir da ausência de uma ou de várias dentre elas, que não se trata de um animal. Se é preciso falar de síndrome, é na medida em que as características do animal interagem e se articulam entre elas de maneira circular (FROGNEUX, 2016FROGNEUX, N. Le syndrome animal chez Hans Jonas. In: BURGAT, F; CIOCAN, C. (orgs.). Phénomenologie de la vie animale. Bucarest: Zeta Books, 2016. pp. 233-257., p. 241-242).

A mediatez do animal sublinha, como nota Frogneux, uma “continuidade ontológica no seio do vivente” - porque na raiz da vida já se encontra a cisão originária aberta pelo metabolismo - que é “marcada por uma descontinuidade fenomenológica” (2016, p. 233). É a mesma vida que aparece de formas distintas em sua evolução3 3 Essa tese da continuidade ontológica e da descontinuidade fenomenológica da vida é explorada por Emanuele Coccia em Metamorfoses (2020). Para Coccia, a vida de cada vivente é como uma herança transmitida por outrem, mais especificamente pelos viventes que a precederam. A vida seria, então, um princípio que continuamente multiplica suas formas de existir. Inclusive o ser humano seria uma metamorfose de uma vida que o antecedeu. O conceito de metamorfose de Coccia vai ao encontro do conceito de liberdade como continuidade na transformação na filosofia jonasiana. . Portanto, trata-se de uma mudança de modo de ser, e não de substância.

Embora a abertura ao mundo seja uma condição básica da vida, que se mostra de modo elementar na sensibilidade aos estímulos, ou seja, na excitabilidade que se manifesta já nas células, “a referência real ao mundo só surge com o desenvolvimento de sentidos específicos, de estruturas motoras definidas e de um sistema nervoso central” (PV, 124). A transcendência do espaço e do tempo integram a vida desde o metabolismo, como forma originária do vivente. Contudo, essa transcendência adquire novos contornos nos animais, uma vez que a existência animal “fornece os inícios de um verdadeiro mundo objetivo” (PV, 124), ou seja, um mundo que se diferencia, enquanto alteridade, da subjetividade animal. Em primeiro lugar, a dimensão do espaço se abre à animalidade não somente no nível de uma dependência. Com as capacidades do movimento e da percepção à distância, o mundo se torna também um lugar de maior liberdade. No animal ocorre uma separação mais acentuada entre mundo interior e mundo exterior que não se encontra em formas mais simples da vida e mesmo nas plantas. Em segundo lugar, a dimensão do tempo abre para a vida animal a experiência da emoção, pois aquilo que ela busca como meio para sua satisfação encontra-se distante também no tempo.

As plantas teriam, em contrapartida, um outro modo de abertura ao mundo, ainda não caracterizado pelo princípio de mediatez, pois o ambiente é contíguo à existência vegetal. Burgat sintetiza as características da vida das plantas da seguinte maneira: (1) “a planta tem um modo de desenvolvimento indiferenciado: é o mesmo indivíduo que se cinde em partes”; (2) “o modo de reprodução da planta é apenas um análogo da reprodução sexual, sendo apenas um tipo de prolongamento do indivíduo”; (3) “a planta não se move, seu modo de nutrição é imediato e contínuo” (2012, p. 111). A planta, ainda que seja um indivíduo, não acede à subjetividade, porque a sua unidade é apenas negativa (Cf. HEGEL, 1969HEGEL, F. Enciclopédia das ciências filosóficas em epítome, volume 2, filosofia da natureza. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1969., p. 119-123; BURGAT, 2012BURGAT, F. Une autre existence: la condition animale. Paris: Albin Michel, 2012., p. 110-111). A divisão de uma planta não se traduz na sua morte, ao contrário, a divisão de suas partes é um meio de sua perpetuação, isto é, suas partes subsistem por si mesmas, independentes da unidade do organismo. De outro modo, os animais jamais poderiam subsistir para além da unidade formada por suas partes, ou seja, seus componentes particulares não sobreviveriam fora do todo da unidade. Assim, ser um indivíduo significa para o animal ser indivisível. Além disso, o enraizamento da planta em seu meio é um obstáculo para que ela se libere da imanência a seu ambiente e alcance a experiência de uma interioridade em oposição e distante do mundo. Ela jamais pode se mover para além do lugar onde estão fincadas as suas raízes e, por isso, sua existência é pouco diferenciada de seu ambiente, o que impossibilita que a planta chegue ao grau de diferenciação alcançado pela vida animal. Na existência vegetal não aparece ainda o “princípio da mediatez” (PV, 126), portanto. Enquanto os animais se movimentam livremente no mundo, as plantas estão condenadas ao seu lugar de enraizamento4 4 Ainda que estejam enraizadas no solo, as plantas usam a mobilidade dos animais como maneira de espalharem as suas sementes e, assim, se multiplicarem. Haveria, conforme nota Mancuso, uma colaboração entre as plantas e os animais: “existem inúmeros exemplos de cooperações que se mostraram vantajosas para ambos os atores. Normalmente proporcionam uma recompensa ao animal pelos serviços prestados. É o caso do polinizador recompensado com o néctar saboroso e energético, da ave que em troca de um fruto apetitoso espalha sementes ou também do homem - o melhor vetor que se pode sonhar neste planeta - que, em troca de comida, beleza ou outras vantagens, espalha por toda parte as plantas de que necessita. Porém, as coisas nem sempre são tão claras assim. Em muitas situações, a conduta das plantas é mais suspeita e oportunista, e os serviços fornecidos pelos animais são usados sem ter uma recompensa em troca. As sementes da bardana - a planta que inspirou a invenção do velcro - e de centenas de outras espécies chamadas de caronistas se agarram à pele de animais sem oferecer nada em troca da passagem” (2019, p. 75-76). , e na medida em que não se separam de seu meio formam, por conseguinte, um conjunto homogêneo com ele5 5 Essa ideia está presente na filosofia da natureza de Hegel: “A planta, enquanto subjetividade que não é ainda para si, perante o seu organismo que é em si, não determina por si o seu lugar, não se desloca do sítio, nem está por si perante a particularização e individualização física do mesmo; por isso, não tem nenhuma intussuscepção que a si se interrompe, mas uma nutrição que flui continuamente, e vira-se não para o inorgânico individualizado, mas para os elementos universais. Ainda menos é capaz de calor animal e do sentimento, já que não é o processo de reconduzir os seus membros, que são antes apenas partes e também indivíduos, à unidade negativa e simples” (1969, p. 119). .

Jonas não ignora o fototropismo, isto é, o movimento das plantas provocado pelo estímulo da luz. Todavia, para ele, esse movimento é antes uma reação, uma resposta às mudanças externas e, dessa forma, não se assemelha ao automovimento típico dos animais. Diz Jonas: “a curvatura das folhas é inteiramente regida desde fora, tanto no que se refere à ocorrência, ao grau, ou ao ritmo; e ela se deve apenas à natureza cíclica das mudanças de luz envolvidas, isto é, ao agente externo” (EF, 321). Outro caso, que se assemelharia mais ao movimento animal é o das plantas insetívoras com sua mecânica de captura. Entretanto, mais uma vez essa ação é, na falta de um aparelho nervoso, uma reação à excitabilidade provocada pela sensibilidade local.

O animal pode fechar e abrir suas mandíbulas livremente, quando quer que assim se sinta fazendo - ao mastigar, bocejar ou meramente exercitar tal faculdade - e pode parar e reverter cada movimento, enquanto em curso. As folhas da papa-moscas fecham ou abrem com condições determinadas, e em cada fase do movimento é unidirecional quando ocorre, sem alternativa acompanhante alguma. Em suma, não é “a planta” que move “suas” folhas, como o animal move seus membros: são aquelas folhas que por um mecanismo predeterminado reagem a determinadas afecções de sua própria condição (EF, 312).

A necessidade metabólica das plantas é satisfeita de forma imediata, uma vez que seu intercâmbio de matéria se dá em um mundo contíguo, no qual a distância espacial e temporal ainda não têm lugar. As plantas são, portanto, a forma vivente que mantém uma maior aderência ao mundo, isto é, ao “contexto imediato com o qual ocorrem os processos químicos de troca do metabolismo” (PV, 127). As plantas mantêm, como indica Coccia, uma maior continuidade com o ambiente no qual elas estão enraizadas.

As plantas não correm, não podem voar: não são capazes de privilegiar um lugar específico em relação ao resto do espaço, devem permanecer onde estão. O espaço, para elas, não se esmigalha num tabuleiro heterogêneo de diferenças geográficas; o mundo se condensa no pedaço de chão e de céu que ocupam. Diferentemente da maioria dos animais superiores, estão, e só podem estar constantemente expostas ao mundo que as circunda. A vida vegetal é a vida enquanto exposição integral, em continuidade absoluta e em comunhão global com o ambiente (COCCIA, 2018COCCIA, E. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Tradução de Fernando Scheibe. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018., p. 12-13).

A vida animal põe em cena a perda dessa continuidade, ou seja, da imediaticidade que a existência vegetal mantém com o mundo circundante. Aquilo que caracteriza os animais em comparação com as plantas é, desse modo, o seu desenraizamento em relação ao espaço que eles ocupam. A animalidade produz diferença, e essa diferenciação é o que lhe proporciona a experiência da subjetividade, “um ‘eu’ mais pronunciado se confronta com um mundo mais diferenciado” (PV, 131). Em sua ligação contígua com o ambiente a planta se mostra pouco diferenciada e, em consequência disso, não é verdadeiramente “subjetiva”: “a separação entre relação direta e relação mediata com o ambiente coincide com a separação entre planta e animal, devendo, pois, coincidir com a diferença entre suas formas de metabolismo” (PV, 127). É importante, no entanto, sublinhar que ao utilizar o conceito de imediatez para o metabolismo das plantas, Jonas o faz no sentido de uma imediatez relativa, já que o metabolismo enquanto tal é um modo de ser continuamente mediado.

A capacidade que as plantas têm de produzir energia na fotossíntese e tirar o seu alimento das reservas minerais disponíveis no solo, transformando a matéria anorgânica em compostos orgânicos, impede que surja a dimensão do desejo. Na medida em que a matéria está constantemente à disposição, não há separação entre necessidade e satisfação: “na troca ininterrupta, a necessidade corrente, embora sempre renovada não pode aceitar o gume afiado da carência” (PV, 128). Assim, a contiguidade entre a planta e seu meio afastam o estímulo do desejo. Para Jonas, isso deve ser visto antes como uma espécie de superioridade em comparação ao animal do que como uma deficiência, já que uma maior integração ao meio é uma forma de vida menos arriscada e não ter de se deslocar para encontrar seu alimento faria da existência vegetal um modo de ser mais seguro e independente da alteridade do mundo. Em contrapartida, essa “superioridade” representa um obstáculo ao desenvolvimento das características que os animais tiveram de colocar em ação para superar a cisão entre a falta e a satisfação. Em resumo, na medida em que o animal é mais carente e corre mais riscos ele é mais rico em interioridade relativamente à planta, que é, com efeito, mais perfeita do ponto de vista da obtenção de suas condições de vida, mas, também, mais pobre do ponto de vista de sua vida interior.

Com a vida animal, a falta, que é intrínseca à própria existência do indivíduo orgânico, se expressa como desejo. Isso significa que a falta faz parte das formas de vida mais elementares, afinal, a vida é um “movimento contínuo para além da condição dada” (EF, 313). Contudo, no caso dos vegetais, essa carência não manifesta ainda a introdução do “eu” tal como na existência animal. A subjetividade é, nos níveis primitivos da vida, ainda germinal e inicial (reduzida ao metabolismo), ou seja, a plena concretização da subjetividade “aparece somente na centralização da individualidade animal, que se manifesta na mobilidade, na percepção e na emoção” (EF, 313). Essa centralização da vida animal diz respeito à unidade orgânica do todo, que é explicada por Jonas com a evolução da sensibilidade e da mobilidade. Por isso, “a planta estacionária não poderia beneficiar-se mais da centralização e da individualidade do que o animal que se move o poderia sem elas” (EF, 315).

Jonas não exclui de outras formas de vida o ser funcionalmente centralizado; ao contrário, ele afirma que esse é um traço do organismo que já aparece na organização nuclear da célula simples como, por exemplo, no protozoário, em que “os núcleos das células (ela mesma uma estrutura organizada) executam funções controladoras um tanto análogas àquelas de um centro nervoso em organizações extremamente mais complexas” (EF, 313-314). Mas, quando se trata de organismos elementares, e mesmo da existência vegetal, essa centralização é bastante rudimentar, pois, como assevera Jonas, ser um indivíduo “significa não-estar-integrado com o mundo, e, quanto menos o for, mais ele é um indivíduo. Individualidade implica descontinuidade” (EF, 322). Nesse sentido, é possível apreender diferentes graus de individualidade que, em última instância, são diferenças qualitativas de ser, encontradas entre a planta e o animal sob o pano de fundo da mediação e da distância em relação ao ambiente, mas que poderiam ser também encontradas no interior do reino animal6 6 Algumas formas de vida animais como, por exemplo, aquelas que vivem sob a organização de colônias teriam uma individualidade pouco marcada. Mesmo a progressiva centralização nervosa do organismo animal enfatizaria uma experiência subjetiva em contraste aos animais em que o sistema nervoso é menos desenvolvido como, por exemplo, as aranhas e alguns insetos. .

A centralização do indivíduo encontra na animalidade outro estágio graças à característica do automovimento. Isso se deve ao fato de que o movimento animal é uma forma de “controle da ação” (EF, 315). Os animais se nutrem de comida sólida em contraposição à absorção pelas plantas dos nutrientes disponíveis de maneira imediata no solo. Essa modificação na alimentação, ou seja, na satisfação da necessidade nutritiva, abre para a vida um “estágio auxiliar, ‘mecânico’, antes do estágio direto, químico, de apropriação metabólica” (EF, 315). Buscar o alimento na condição animal depende de um movimento controlado, que não se reduz à mera excitabilidade do estímulo-resposta de outras formas de vida.

Quando Jonas assevera que é no nível animal que a individualidade se dá plenamente, ele tem o intento de enfatizar que essa atividade motora exige que os membros de um organismo estejam coordenados, isto é, que as partes do corpo animal estejam sujeitas a um controle comum. Além disso, esse movimento controlado requer “um sistema nervoso espalhando-se por toda a multiplicidade do corpo” (EF, 317). Diz o filósofo:

O sistema nervoso, enquanto um sistema de intercomunicação distribuído por todas as partes do corpo, pode-se dizer, constitui o “nível mais elevado” que mostramos, e nesse papel ele proporciona uma primeira resposta à questão de quem ou o que é a fonte de controle: seria o organismo como um todo, funcionalmente integrado por seu sistema nervoso. Nesse, “mais elevado” quer dizer “mais abrangente”. Mas uma integração realmente eficiente da mobilidade requer mais do que coordenação mútua entre as partes do corpo - portanto, mais do que mera intercomunicação distributiva, requer um centro unificante como a sede de controle (EF, 317-318).

Com efeito, o movimento animal não é só uma intensificação ou ampliação do movimento orgânico como tal. Ao contrário, a animalidade marca um novo tipo de existência. O seu movimento é uma mudança externa, ou seja, se dá apenas no espaço circundante e, portanto, não afeta a sua identidade. Enquanto o animal que se movimenta de um ponto x a um ponto y continua o mesmo e admite uma identidade na mudança, quando se trata da vida vegetal as suas mudanças, de outro modo, afetam a sua identidade. Jonas usa o exemplo de uma árvore florescente para demonstrar que aquela que no inverno é desnudada não é exatamente a mesma que germina na primavera. De acordo com o filósofo, “ela realmente mudou em seu ser, como o mostra a não habilidade de colocar as flores de novo dentro dos botões (etc.); e ela será diferente de novo quando suas folhas se tornarem amarelas” (EF, 320). A identidade animal é acompanhada, em compensação, pela variabilidade de caminhos que podem ser percorridos, o que para Jonas liga uma maior identidade a uma maior liberdade. O movimento efetivo de um animal é apenas um trajeto possível entre uma variedade de percursos.

A condição animal se constitui na mediação entre o eu e a distância do mundo, numa tentativa de superação da cisão “entre sujeito e objeto, carência e satisfação, ação e meta, e essas ‘lacunas’ abertas na existência animal são estendidas através da percepção, da emoção e do movimento” (EF, 322). A separação entre eu e mundo do ser animal abre uma lacuna, doravante, espacial e temporal, entre o sujeito da carência e o objeto de satisfação. A percepção à distância funda a locomoção do animal, por um lado, em direção à sua presa e, por outro, enquanto fuga de seu predador. A emoção se revela como o prazer de um empreendimento bem-sucedido pela satisfação de sua falta ou, em sentido contrário, pela frustração de um alimento não encontrado. Acrescenta-se ainda o medo como contrapartida da emoção que dirige o animal para seu objeto, já que o mundo é tão ameaçador e inóspito quanto acolhedor e convidativo, sendo que é o desejo que está na raiz da caça e o medo na raiz da fuga, elementos que sinalizam o início da vida emocional. O mundo, diz Jonas, “contém as coisas de que o animal necessita, e este tem que pôr-se a caminho e procurá-las. E contém também os objetos do medo, e o animal como pode fugir, tem que fugir” (PV, 129). Percebe-se, então, que o advento da subjetividade animal não é condicionado pela simples excitabilidade ou irritabilidade, antes é a própria vivência emocional - proveniente dos “estados distintos de satisfação ou de frustração” (BURGAT, 2012BURGAT, F. Une autre existence: la condition animale. Paris: Albin Michel, 2012., p. 98) - que lhe abre o caminho para a autoexperiência da vida interior, o que pode ser apreendido pelo ser humano antropomorficamente dos movimentos que expressam as emoções de um animal.

A liberdade animal é, do mesmo modo, a precariedade de sua existência, a qual, ao estar exposta aos infortúnios do ambiente, tem de continuar vigilante e empenhada em sua persecução. Na medida em que deseja, o animal se move em direção ao objeto que ele persegue como meta. O desejo aqui se distingue do impulso pré-animalesco de outras formas vivas mais simples, uma vez que uma distância é introduzida entre o impulso e a satisfação. O que está em jogo no desejo animal é a distância entre ele e seu objetivo e seu consequente empenho na busca daquilo que ainda não está ao seu alcance. Essa separação sujeito-mundo é indissociável do fenômeno da animalidade, ou seja, o animal é acompanhado da distância como a condição de seu ser.

O elemento da distância, como traço existencial da incompletude da animalidade, funda a capacidade de movimento, todavia, essa locomoção não se dá de maneira desorientada. Antes mesmo de se mover para aquilo que deseja - ou de outro modo, para fugir daquilo que o repele - a distância traz à luz a percepção, que envolve sentir alguma coisa como meta ou como perigo. Isso fica mais evidente no encontro entre corpos animais - que não se resume a um choque mecânico - a partir do qual o outro é sentido de alguma maneira. Além disso, destaca Jonas, a percepção tem de “manter viva sua condição de meta de tal modo que o movimento se prolongue através da necessária quantidade de esforço e de tempo, para isto é necessário o desejo - e isto envolve a evolução do sentimento” (PV, 126). A percepção é, então, complementada pela emoção, já que a realização do desejo animal não está imediatamente ao seu alcance. Por um lado, a percepção experimenta o seu objetivo como não aqui, e sim mais além e, por outro lado, o desejo que ela institui coloca seu objeto como ainda não, mas podendo ser alcançado. Desse modo, a percepção orienta o animal e o desejo o impele, sendo que o movimento é o processo pelo qual a animalidade busca tapar o fosso aberto pela distância entre eu e mundo, transformando “o além em aqui e o ainda não em agora” (PV, 126). Segundo Jonas, “o grande segredo da vida animal se encontra precisamente no espaço que ela consegue manter entre desejo imediato e satisfação mediata, isto é, na perda da imediatez, a que corresponde o ganho em espaço” (PV, 126).

Em suma, os três aspectos da lacuna entre a vida animal e o mundo são descritos por Jonas da seguinte forma: (1) o animal não está integrado ao seu ambiente, para ele “os objetos relevantes de seu ambiente sempre se encontram a alguma distância” (PV, 127); (2) há uma descontinuidade temporal entre a necessidade e a satisfação e todo o empreendimento de sua existência é fechar - ainda que provisoriamente - essa lacuna realizando seu desejo; (3) por fim, essa desintegração do animal com seu contexto e a descontinuidade temporal tem como consequência “a separação entre o agir e o objetivo do agir” (PV, 129), ou seja, sua atividade é mais livre e mais arriscada que a meramente vegetativa, pois ele age em vista de um objetivo que não se encontra de antemão garantido e, além disso, é inconstante. Afinal, o mundo é um contexto de contingências e ameaças, o que torna a sua atividade inseparável do medo.

Alimentando-se da vida existente, o animal constantemente destrói seu fornecimento mortal, tendo que ir em busca de mais em outro lugar. Entre os carnívoros, cujas presas possuem elas próprias mobilidade, esta necessidade cresce na mesma proporção, forçando a desenvolver mutuamente uma agilidade de que muitas outras capacidades do animal têm que participar (Cf. PV, 129).

Um último elemento deve ser acrescentado à análise jonasiana da animalidade, o seu inato sofrimento. A presa ao ser percebida pelo animal lhe permite experimentar “a tensão da caça e o gozo da satisfação” (PV, 130). Em compensação, ele também experimenta a fome, o medo e a angústia da fuga. A atividade desejante do animal não é uma ação desgovernada. Ela é, antes, uma atividade intencional, movida pela percepção à distância (que destaca a importância da visão) e pelas emoções.

A emoção fundamental da existência animal é, para Jonas, o sofrimento, todavia, ele não é primariamente dor, mas é, na verdade, falta e medo já que a sua locomoção em seus distintos trajetos “é cheia de intranquilidade” (PV, 130). O ser animal é, consequentemente, “essencialmente apaixonado7 7 Hegel em sua filosofia da natureza também fala de uma intranquilidade da vida animal em sua separação essencial de seu ambiente: “O meio ambiente da acidentalidade externa contém quase só elementos estranhos; exerce uma perpétua violência e ameaça de perigos sobre o seu sentimento, que é um sentimento de insegurança, de angústia e infelicidade” (1969, p. 139). ” (PV, 130). O pano de fundo dessa inquietude da vida animal é, para Burgat, a sua “travessia sempre perigosa do mundo na direção de algum objeto” (2012BURGAT, F. Une autre existence: la condition animale. Paris: Albin Michel, 2012., p. 108) que não está dado imediatamente ao animal, ao contrário, ela enfrenta o mundo para alcançá-lo. Assim, a vida animal experimenta, em sua liberdade de movimento, a exterioridade de um ambiente, que se tornou para ele “um lugar aberto onde o livre movimento senciente tem de encontrar as mudanças das situações da vida” (EF, 323). A circunstância contingente do mundo expõe o animal a ameaças e riscos, sobretudo na irrupção do que lhe é estranho. Essa exposição traz para o cerne da vida animal “a possibilidade de ser destruída” (PV, 131), o que lhe abre, em compensação, a vivência de sua interioridade, trazida à luz na tarefa de ter de “cuidar de si mesmo” (PV, 131). Se, por um lado, as suas possíveis satisfações se expressam como prazer, por outro lado, a possibilidade de sua própria aniquilação torna-se um objeto do medo. “A capacidade de gozar tem como seu lado da sombra a capacidade de sofrer” (PV, 131).

A vida é “essencialmente existência precária e transitória” (PV, 130). E, em seu contínuo autoafirmar-se, o que importa para o ser vivente não é a sua duração, pois ela jamais está assegurada. Por conseguinte, os meios que a animalidade forjou para si no regozijo e enfrentamento do mundo - o movimento, a percepção e a emoção - não são simples meios de sobrevivência. Afinal, “se o que importasse fosse unicamente a duração, a vida nem sequer deveria haver começado” (PV, 130). Essas características definidoras da animalidade são, na verdade, qualidades da própria vida e, por isso, o seu caráter teleológico vai além da pura manutenção de uma existência condenada a se manter a qualquer custo e sob quaisquer condições. De outro modo, as ações que a vida animal emprega em sua mediatez com o mundo se tornam elas mesmas a sua finalidade, pois “o animal dotado de sensação busca manter-se como ser que sente, não apenas como ser que metaboliza - e assim por diante” (PV, 131). Por exemplo, a percepção visual, que não é, para o animal dotado de visão, só uma ferramenta funcional de sua sobrevivência. Ela é, antes, um novo fim para esse animal, que ao ver, se autoafirma como ser munido da qualidade da visão. Como afirma Frogneux: “o vivente não quer só sobreviver, quer dizer, se manter como vivente, mas como vivente dotado de todas essas qualidades que constituem a amplitude de sua existência” (2016, p. 253).

A expressividade animal

Os temas do antropomorfismo e da expressividade animal são as ferramentas utilizadas por Jonas como crítica ao exclusivismo antropocêntrico que, de acordo com ele, “poderia ser um preconceito e que, em todo caso, precisaria ser reexaminado” (PR, 97). Na medida em que há, para Jonas, uma intencionalidade agindo nos animais quando assevera que “a vida animal é expressiva, ávida mesmo por expressão” (EF, 384), ou ainda, que “uma criatura reconhece a avidez ou a agressividade quando as encontra nos olhos de outra criatura semelhante8 8 A afirmação de Jonas sobre a comunicação do olhar e sua reversibilidade se confirma nos estudos de Frans de Waal sobre o comportamento de primatas e o papel do ato de olhar nos olhos do outro em determinados contextos: “Muitas vezes, depois que dois rivais machos brigavam, eles eram incapazes de se reconciliar, mesmo parecendo interessados nisso. Eles ficavam perto um do outro sem um verdadeiro encontro físico. E evitavam o contato visual. Toda vez que um deles erguia o olhar, o outro pegava uma folha de relva ou um galho e inspecionava-o com súbito interesse” (2021, p. 45). Nessa direção, pode-se compreender que evitar o olhar do outro é um ato intencional e não um mero reflexo instintivo. ” (E, 384), o filósofo inviabiliza a concepção antropocêntrica que limita o olhar animal, por um lado, a um mecanismo que não tem qualquer coisa a expressar e, por outro, a uma percepção enclausurada nos ditames de um instinto biologicamente fixado. O animal não é, na filosofia jonasiana, só um objeto do olhar humano. Ao contrário, assevera o filósofo, “olhamos um para o outro, e alguma coisa se passa entre nós” (EF, 384). O olhar é reversível, ou seja, aquele que vê também é visto e os papéis constantemente se invertem. Ora o animal é sujeito ora objeto, e o mesmo acontece com o ser humano. Algo que Hannah Arendt também notou em A vida do espírito: “os seres vivos, homens e animais, não estão apenas no mundo, eles são do mundo. E isso precisamente porque são sujeitos e objetos - percebendo e sendo percebidos - ao mesmo tempo” (2000, p. 17).

Jonas, todavia, não levou às últimas consequências a tese da expressividade animal, já que coloca o homo pictor, capaz de produzir imagens, como o lugar em que a ruptura entre animalidade e humanidade verdadeiramente acontece. A filosofia de Jonas, principalmente no retorno ao antropomorfismo como via de acesso ao vivente e ao postular a expressividade animal, guarda em si uma reflexão não-antropocêntrica. Isso não quer dizer que as diferenças entre humano e animal são apagadas no âmbito da filosofia jonasiana. Mas, como acessar essas diferenças em sua equivocidade? Uma resposta para essa pergunta poderia ser vislumbrada no entrecruzamento da filosofia da vida de Jonas e da etologia de Adolf Portmann9 9 Jonas entrou em correspondência com Portmann na metade da década de 1950. . Desse modo, a reflexão jonasiana sobre a animalidade poderia ser complementada com a pesquisa de Portmann sobre a forma animal como uma maneira de acesso à expressividade animal.

Em Die Tiergestalt, Portmann faz uma investigação morfológica que se volta para a dimensão da aparência ou do aparecer das formas animais. Todavia, o conhecimento científico deveria, para o etólogo, ser integrado numa experiência mais vasta dessas formas, que não limitasse o encontro com os animais não humanos à representação de um objeto por um sujeito. Ao contrário, a forma animal diz respeito à sua maneira de ser, ou ainda, ao modo de aparecer de sua interioridade. Segundo Portmann, o encontro humano com a alteridade animal “é acompanhado simultaneamente de um sentimento potente onde acontece alguma coisa que se parece com o espanto da criança; encontramos as plantas e os animais com o estupor ou assombro, com alegria, mas também com um respeito sagrado” (2013, p. 285). Indo de encontro à biologia de Darwin, Portmann não atribui às formas da aparência animal uma utilidade funcional, voltada simplesmente para a sobrevivência ou reprodução do indivíduo ou da espécie. Ele não nega, com efeito, que a forma animal está à disposição dessas funções. Portmann, ao invés, coloca em evidência outra dimensão da vida além da necessidade de conservação. Na introdução de Die Tiergestalt deixa claro esse objetivo:

A presente obra tratará da forma dos animais; o objetivo do exposto é trazer à tona a especificidade da aparência visível. Pode-se estar familiarizado com as numerosas espécies animais, conhecer a fundo sua estrutura interna, seus tecidos e seus órgãos e se preocupar mediocremente com a aparência exterior do animal. Frequentemente, ela só é considerada do ponto de vista de sua utilidade elementar e de suas faculdades de adaptação, mas seu caráter único, o que diferencia precisamente uma forma animal da outra, dificilmente é levada em consideração (2013, p. 27-28).

Portmann interroga a concepção de que aquilo que está visível esconde “debaixo de diversas cascas” (2013, p. 33) a verdadeira natureza das coisas. A investigação sobre o vivente seguiria, nesse modelo, um caminho que vai do exterior, ou seja, da aparência, ao interior, ao que está escondido e que revelaria, em último caso, “o núcleo essencial da realidade” (2013, p. 33). Inversamente à ideia de que as estruturas invisíveis seriam as mais essenciais10 10 Hannah Arendt se dedica ao trabalho de Portmann em A vida do espírito, quando apresenta o que chamou de “valor da superfície” (Cf. ARENDT, 2000, p. 22-25). , Portmann propõe um pensamento da aparência, que busca mostrar o que ele chama de “valor próprio” da aparência animal, o fato de que ela existe para ela-mesma. Por isso, deve-se batalhar em duas frentes: tornar evidente que a forma não é o produto do acaso, mas também que ela não responde a uma finalidade puramente funcional.

As aparências dos animais, ou seja, suas peles e plumagens, estão destinadas a “produzir um efeito visual” (PORTMANN, 2013PORTMANN, A. La forme animale. Traduction de Georges Remy. Paris: Éditions La Bibliothèque, 2013., p. 39). A aparência exterior de um animal não está circunscrita a uma utilidade de sobrevivência como, por exemplo, a proteção contra o frio ou a camuflagem. Elas são, ao invés, formas para serem virtualmente vistas, “feitas especificamente para olhos espectadores” (PORTMANN, 2013, p. 43). A forma exterior não é, para o etólogo, um simples envelope para os órgãos internos, mas um estilo a partir do qual um animal se autoapresenta. Logo, as utilidades são, como também notou Merleau-Ponty11 11 Merleau-Ponty se dedica ao trabalho de Portmann em seu curso no Collège de France publicado sob o título A natureza. , derivadas daquilo que o animal é em sua autoapresentação.

A forma do animal não é a manifestação de uma finalidade, mas, antes, de um valor existencial de manifestação, de apresentação. O que o animal mostra não é uma utilidade. [...] Sem dúvida, num certo sentido, o cerimonial sexual é útil, mas só é útil porque o animal é o que é. (MERLEAU-PONTY, 2000MERLEAU-PONTY, M. A natureza. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 164).

Para demonstrar que o corpo animal não é um saco fisiológico que serve estritamente para guardar e proteger os órgãos internos, Portmann chama a atenção para a assimetria da organização dos órgãos no interior do corpo face à simetria das formas animais, ou seja, de suas colorações e desenhos visíveis e ordenados simetricamente. O etólogo ainda acrescenta que são poucos os casos de animais coloridos de maneira irregular; na maioria dos casos, as aparências com suas colorações e desenhos são ordenadas simetricamente. Além disso, há um outro contraste no que concerne à simetria exterior dominante: segundo Portmann, a tarefa de distinguir os animais de espécies distintas, mas membros de uma mesma família seria bastante difícil, já que a forma dos órgãos internos e mesmo o esqueleto são muito semelhantes. Seria preciso, em compensação, conhecimento e experiência para atribuir, por exemplo, uma ossada a um tigre ou a um leão, pois nesse caso o esqueleto é muito semelhante. Por isso, para o autor, “existem, com certeza, diferenças entre espécies no interior do corpo, mas elas são tão mínimas que é preciso muita paciência e ciência para gravá-las profundamente na memória” (PORTMANN, 2013PORTMANN, A. La forme animale. Traduction de Georges Remy. Paris: Éditions La Bibliothèque, 2013., p. 50). A forma animal é, consequentemente, aquilo que imprime uma especificidade a um animal:

A imagem da plumagem colorida, do perfil, do voo de um pássaro penetra, de maneira imediata e forte, em nossa consciência; o primeiro olhar pode ancorar solidamente essas imagens e fazer delas lembranças impossíveis de se confundir. Como dizemos muito precisamente, essas são “marcas distintivas”, “características” (PORTMANN, 2013PORTMANN, A. La forme animale. Traduction de Georges Remy. Paris: Éditions La Bibliothèque, 2013., p. 50).

A simetria da aparência visível tem uma expressividade diferente da assimetria no interior do corpo. A especificidade da forma animal é a autoapresentação de si (Selbstdarstellung) (cf. PORTMANN, 2013PORTMANN, A. La forme animale. Traduction de Georges Remy. Paris: Éditions La Bibliothèque, 2013., p. 279), ou seja, os animais fazem com que, em suas peles e plumagens, eles-mesmos apareçam, se mostrem. O desenvolvimento de suas formas visíveis testemunha essa tendência à exibição de si, à produção de si mesmo como imagem. Portmann chama essa aparência de “órgão ótico”: “um instrumento feito para ser visto de diversas maneiras e capaz de manifestar um estado interior” (2013, p. 259). Diferente dos outros órgãos que estão escondidos a olho nu, a aparência visível é, para Portmann, um órgão visível. As pigmentações das penas de um pássaro, por exemplo, produzem certo efeito visual. Logo, a imagem produzida pela aparência de um animal está destinada à visibilidade, ou em outras palavras, à expressividade. A aparência de um animal é o seu corpo visível, que transcende a estrutura de seus membros particulares, sejam eles visíveis ou invisíveis. Por isso, Portmann reforça várias vezes em Die Tiergestalt a importância da forma externa visível (cf. 2013, p. 255; p. 259).

Devemos nos persuadir de que as aparências vistas por nosso olho são a coisa mais importante, no lugar de desvalorizá-las à posição de um simples envelope que dissimularia o essencial. Não queremos fazer como os caçadores de tesouros que suspeitam sempre que a riqueza mais preciosa está escondida em alguma profundeza obscura (PORTMANN, 2013PORTMANN, A. La forme animale. Traduction de Georges Remy. Paris: Éditions La Bibliothèque, 2013., p. 56).

A produção de si como imagem não se dá obrigatoriamente em função de um olho que o vê. Quando o etólogo usa o conceito de órgão visível, ele rompe com a concepção de dependência entre a aparência e uma percepção externa que a constitui. É o próprio animal que se constitui como aparência, e isso independente de um observador. Se, por um lado, as formas animais não estão primariamente a serviço da conservação, mas são o seu aparecer como autoapresentação, por outro, elas também não existem em função da percepção de outrem, que é, com efeito, um observador potencial, mas não necessário. É o que se percebe, como nota Portmann, no caso de animais que “não podem se ver mutuamente com olhos, e cujas cores e formas não servem a intimidar um inimigo ou a se camuflar” (2013, p. 278). Trata-se, para o etólogo, “do mundo das ‘aparências sem destinatário’”, no qual ocorre “uma autoapresentação que não é produzida a nenhum sentido receptor e que, simplesmente, ‘aparece’” (2013, p. 278-279). Trata-se do reino da gratuidade natural, da doação plena que é um modo “puro” de constituição de si por meio da exuberância.

O que se manifesta na expressividade da aparência é a vida interior dos animais. Para Portmann, a grande contribuição de sua investigação morfológica teria sido “lembrar que é a interioridade, o grande mistério do vivente, que nos fala nessa multiplicidade de formas diversas” (2013, p. 286). Aqui Portmann se aproxima da filosofia da vida de Jonas, porque em ambos os autores a existência animal não é apreendida de uma maneira que visa objetificá-la, mas a encontrar aquilo que a vida animal tem de proximidade com a humana, o que Portmann chamou de “fraternidade dificilmente alcançável” (2013, p. 286) e Jonas de “solidariedade de interesses” (PR, 229). Em suma, nos organismos animais “encontramos um segredo relacionado com o da nossa própria vida e, nessas formas, está presente diante de nós de forma sensível um modo de ser particular que, em graus diversos e de diversas maneiras, testemunha a sua interioridade” (PORTMANN, 2013PORTMANN, A. La forme animale. Traduction de Georges Remy. Paris: Éditions La Bibliothèque, 2013., p. 286). A tarefa da biologia filosófica de Jonas jamais deixou de ser uma tentativa de se aproximar dessa interioridade, já presente nas estruturas mais primitivas do orgânico e que revela nas diversas maneiras de autoapresentação da vida, fazendo de todas elas um espelho ocular para as outras. Viver é, afinal, constituir uma imagem de si e apresentá-la diante dos olhos alheios. A vida é o cenário circunstancial dessa apresentação, o horizonte espaço-temporal de uma reciprocidade visual, sempre reversível e nunca aprisionável às fronteiras da relação sujeito e objeto. Nesse sentido, a pluralidade e exuberância das formas viventes ganham seu sentido na medida em que se doam e se interpenetram visualmente.

Emoções e expressividade

O testemunho da vida que já aparece no organismo mais elementar aparece sob novas formas na expressividade animal e, mais tarde, adquire novos contornos no ser humano. A expressividade em sua continuidade ontológica seria, então, a maneira pela qual o corpo vivo diz algo de si mesmo, dá testemunho de si. Mas, só com o animal essa expressividade alcança o estatuto de testemunho das emoções de um corpo vivo, pois apenas com ele a lacuna do espaço passou a fazer parte do “caráter mediato da existência animal” (PV, 129).

Com o aparecimento das emoções no seio da vida surge também a capacidade de as expressar por meio das ações, dos gestos e dos movimentos do corpo vivo. É interessante notar que, inclusive, a palavra emoção em português deriva, assim como a palavra émouvoir em francês, do latim emovere, que significa mover, agitar. Há, dessa maneira, uma conexão profunda entre as emoções e as ações. A expressividade se torna, por conseguinte o veículo dessas emoções. Como indica Hans Jonas, enquanto a planta pode apenas dormitar, os animais experimentam esse vínculo entre emoção e ação:

Respondendo ao atrativo da presa, de que a percepção lhe deu notícia, a vigilância transforma-se na tensão da caça e no gozo da satisfação: mas conhece também o incômodo da fome, o flagelo do medo, o esforço angustiado da fuga. Mesmo a perseguição pode terminar na decepção do fracasso. Em suma: o caráter indireto da existência animal disponibiliza em sua vigilância as possibilidades gêmeas do prazer e da dor, ambas casadas com o esforço (PV, 130).

A expressividade enquanto forma de testemunho da vida endereça a uma pergunta que atravessa este trabalho: como um organismo vivente compreende a linguagem corporal do outro? Como fazer comunicar mundos animais humanos e não humanos? O retorno ao antropomorfismo crítico12 12 Jacques Dewitte usa o termo “antropomorfismo crítico” para caracterizar a análise de Hans Jonas. O adjetivo crítico cumpre a função de distanciar o antropomorfismo de uma humanização ingênua e, inclusive, exagerada dos animais, que projeta sobre eles experiências que apenas têm sentido no contexto humano. Segundo Dewitte, “é preciso evitar uma tendência funesta de projetar o humano sobre o não humano sem ter em conta a singularidade da forma de vida à qual se tem em questão” (2002, p. 457). Desse modo, é indispensável que se tome em consideração o organismo animal, o tipo de ação esse organismo realiza e as circunstâncias na qual essa ação se insere, buscando perceber qual parte da vivência humana é requerida no gesto antropomórfico da analogia e da empatia que são, em última instância, duas maneiras do eu se descobrir no outro experimentando um “sentimento de proximidade à distância” (DEWITTE, 2002, p. 461). evidencia que a percepção e interpretação daquilo que o outro exprime acontece de múltiplas maneiras, desde a comunicação e a conexão empática até a observação dos comportamentos e atividades corporais do outro. Mas, como saber o que o outro experimenta internamente e expressa exteriormente?

O conceito de monismo integral de Jonas pode auxiliar na compreensão de que a resposta a tais perguntas deve levar em consideração que as expressões e, principalmente, as emoções, estão enraizadas na unidade psicofísica, ou seja, que a experiência de trazer vivências internas à luz por meio da expressividade deve ter em conta que as emoções pertencem tanto ao âmbito do corpo quanto do espírito. Observa-se essa íntima relação entre corpo e espírito no que diz respeito às emoções quando se presta atenção a eventos simples como quando o coração de um indivíduo bate de modo acelerado, sua pele enrubesce, a voz se eleva e lágrimas caem. Nesse caso, vivências internas de medo, vergonha e tristeza encontram uma expressão corporal. Mas o inverso também é verdadeiro, as mudanças hormonais, a excitação sexual, a fome, a fadiga excessiva, etc. produzem emoções que afetam o espírito. Os comportamentos corporais - e, consequentemente, sua expressividade - são os modos que os animais humanos e não humanos encontraram para se envolver com o mundo e com o outro.

Mas, isso realmente vale para animais não humanos? Eles não seriam tão somente mobilizados por instintos? Afinal, como significar expressões animais como medo, irritação, vergonha, tristeza ou alegria, se há um espaço de incompreensão causado pela ausência de uma linguagem comum. O objetivo deste trabalho foi exatamente o de demonstrar que, a partir da análise jonasiana, “o ser animal é essencialmente um ser apaixonado” (PV, 130). Conforme Jonas, o desejo e o medo são emoções inerentes à existência animal. Com efeito, tais emoções não são uma simples função orgânica cega - isto é, instintos rígidos -, na qual os animais estão imersos, ao contrário, “é a forma pelo interesse elementar de toda vida em si mesma sob as condições da mediatez animal” (PV, 130). As emoções animais, ou seja, o seu ser essencialmente apaixonado, é um sistema de resposta flexível, no qual há espaço para experimentação e julgamento acerca de seus próprios comportamentos e vivências. Além disso, é importante destacar que “as expressões não são apenas significativas, mas também envolventes” (WAAL, 2021WAAL, F. de. O último abraço da matriarca: As emoções dos animais e o que elas revelam sobre nós. Tradução de Pedro Maia. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 123). As emoções expressas por um animal não importam apenas por seu conteúdo semântico, mas, principalmente, pelos agenciamentos afetivos que elas produzem. Um exemplo disso é o relato da morte da cachorra Baleia, presente no livro de Graciliano Ramos, Vidas Secas.

Fabiano percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as porteiras, asilando um cão invisível contra animais invisíveis: - Ecô! ecô! Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente (2019, p. 83-84).

O relato continua com a fuga de Baleia e com as emoções expressas pelos seus movimentos corporais.

Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho. E os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis [...]. Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava [...]. Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera [...] Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível [...] A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença. Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra (2019, p. 85-87).

As vivências emocionais de Baleia face a sua morte iminente descritas por Graciliano Ramos não chegam até ele através de conteúdos proposicionais de uma linguagem canina ou observações laboratoriais, neutras e controladas, das ações de um cachorro diante da morte. O relato da morte da Baleia parece advir, antes, de uma atitude poético-antropomórfica, que observa as emoções expressas nos movimentos corporais dos animais como veículo que provoca no observador também emoções e afetos. A expressividade das emoções e a capacidade de comunicá-las compreensivelmente endereça a questão novamente à importância da imaginação empática e, tal como evidenciado por Jonas, para o antropomorfismo. A empatia significa, nesse âmbito, colocar-se de maneira deliberada no lugar do outro, mas isso não significa simplesmente ocupar a mente do outro. Ao contrário, quer dizer ocupar também o corpo do outro, não somente o que ele está pensando, mas igualmente e principalmente o que ele está sentindo.

É claro que a empatia antropomórfica encontra dificuldades ao se deparar com inúmeras espécies animais. Sabe-se que cada espécie utiliza seus gestos e códigos. A linha divisória parece estar no rosto, elemento central na conexão com os outros e com seus movimentos corporais. Quanto mais se tem em comum com a espécie animal com a qual se relaciona, mais proximidade é sentida: trata-se daquilo que Jonas chamou de reconhecimento do semelhante pelo semelhante (Cf. EF, 385).

Ao se analisar, no entanto, o papel da expressividade das emoções não se pode negligenciar o aspecto da reversibilidade do olhar. Como apontou Jonas, as vivências emocionais humanas não são a “condição universal com a qual a compreensão humana está relacionada” (EF, 385). O reconhecimento do semelhante pelo semelhante não significa estritamente ver no rosto dos outros animais as expressões de emoções propriamente humanas, limitando-se, assim, à analogia. Ao contrário da analogia, a imaginação empática quer dizer, com efeito, que um indivíduo não é despertado para as emoções dos outros exclusivamente por sua autoexperiência emocional, segundo a qual se vê o outro como um espelho que, no fim das contas, expressa a si mesmo.

Se, por um lado, o rosto acaba funcionando como uma barreira ainda mais difícil ao antropomorfismo e à compreensão das emoções expressas por algumas espécies, por outro, a comunicação com os outros viventes e suas formas de expressividade também passa pela reversibilidade do olhar, no qual, antes de qualquer ação, deixo-me ver pelos olhos do outro. Hans Jonas exemplifica isso com a experiência do amor:

“Conhecer o amor pelo amor” não é inferir, a partir da minha própria experiência do sentimento de amor, o que está provavelmente acontecendo com outra pessoa. Posso primeiro ser despertado por Romeu e Julieta às potencialidades do amor, e pela história de Termópilas à beleza do heroísmo sacrificial. Isso é por si só uma experiência, mostrando-me inimagináveis possibilidades de minha própria alma - ou, antes, “da alma” - possibilidades que podem ou não se tornar atualidades da minha própria experiência (EF, 386).

Quais são as potencialidades da existência humana que podem ser vislumbradas a partir da experiência dos outros animais? Quais potencialidades humanas emergem da ação de ser visto pelos olhos dos outros viventes? A filosofia da vida animal que encontramos em Hans Jonas é, no fim das contas, uma resposta para essas questões, na medida em que reconhece a multiplicação dos mundos, das perspectivas, dos olhares e das suas direções. Além disso, sua filosofia da vida animal está em clara oposição à simplificação e sujeição dos múltiplos mundos dos viventes ao mundo humano.

Considerações finais

O caminho percorrido nesta investigação permite asseverar que a filosofia jonasiana traz à luz o ganho que a liberdade adquiriu no seio da vida animal. Ao se envolverem com o mundo de uma maneira apaixonada, isto é, emocional, os animais tornaram essa condição, pela primeira vez, visível, por meio da sua expressividade no testemunho do corpo vivo.

É na expressividade que se dá o vínculo - não reduzido ao âmbito da racionalidade -que permite aos animais humanos e não humanos se acessarem mutuamente. Por isso, o olhar é a via a partir da qual os viventes se manifestam à alteridade. Nesse sentido, a pluralidade e exuberância das formas viventes ganham seu sentido na medida em que se doam e se interpenetram visualmente. A expressividade animal é a maneira pela qual o vivente fez, originariamente, com que o ser não permanecesse enclausurado na opacidade, mas, ao contrário, testemunhasse a si mesmo sob a forma da visibilidade.

Referências

  • ARENDT, H. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Tradução de Antônio Abranches et al. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
  • BURGAT, F. Une autre existence: la condition animale. Paris: Albin Michel, 2012.
  • COCCIA, E. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Tradução de Fernando Scheibe. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.
  • COCCIA, E. Metamorfoses. Tradução de Madeleine Deschamps e Victoria Mouawad. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2020.
  • DEWITTE, J. L'anthropomorphisme, voie d'accès privilégiée au vivant. L'apport de Hans Jonas. Revue Philosophique de Louvain, n. 3, 2002, pp. 437-465.
  • FROGNEUX, N. Le syndrome animal chez Hans Jonas. In: BURGAT, F; CIOCAN, C. (orgs.). Phénomenologie de la vie animale. Bucarest: Zeta Books, 2016. pp. 233-257.
  • HEGEL, F. Enciclopédia das ciências filosóficas em epítome, volume 2, filosofia da natureza. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1969.
  • JONAS, H. O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Tradução de Carlos Almeida Pereira. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
  • JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
  • JONAS, H. Ensaios Filosóficos: da crença antiga ao homem tecnológico. Tradução de Wendell Lopes. São Paulo: Paulus, 2017.
  • LISPECTOR, C. Crônicas para jovens: de bichos e pessoas. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
  • MANCUSO, S. Revolução das plantas. Tradução de Regina Silva. São Paulo: Ubu Editora, 2019.
  • MERLEAU-PONTY, M. A natureza. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
  • PORTMANN, A. La forme animale. Traduction de Georges Remy. Paris: Éditions La Bibliothèque, 2013.
  • RAMOS, G. Vidas Secas. 145. ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.
  • WAAL, F. de. O último abraço da matriarca: As emoções dos animais e o que elas revelam sobre nós. Tradução de Pedro Maia. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
  • *
    O presente artigo é parte dos resultados do projeto “Dos direitos humanos aos direitos da natureza: as contribuições de Hans Jonas para a responsabilidade ecológica”, aprovado junto à Fundação Araucária (edital CP 19/2022 - Programa institucional de apoio à fixação de jovens doutores - 2a etapa”, protocolo nº jdt2022271000013).
  • 1
    Sobre o conhecimento e a importância das emoções na vida dos animais conferir o livro O último abraço da matriarca: as emoções dos animais e o que elas revelam sobre nós (2021) do primatólogo holandês Frans de Waal.
  • 2
    Para as citações das obras de Hans Jonas usarei as abreviaturas seguidas do número da página conforme a edição que se encontra na bibliografia. Todas as traduções de obras em língua estrangeira são minhas. Para as demais citações utilizarei o sistema (AUTOR, data, página) conforme a edição indicada na bibliografia. PV (O princípio vida); PR (O princípio responsabilidade); EF (Ensaios Filosóficos).
  • 3
    Essa tese da continuidade ontológica e da descontinuidade fenomenológica da vida é explorada por Emanuele Coccia em Metamorfoses (2020). Para Coccia, a vida de cada vivente é como uma herança transmitida por outrem, mais especificamente pelos viventes que a precederam. A vida seria, então, um princípio que continuamente multiplica suas formas de existir. Inclusive o ser humano seria uma metamorfose de uma vida que o antecedeu. O conceito de metamorfose de Coccia vai ao encontro do conceito de liberdade como continuidade na transformação na filosofia jonasiana.
  • 4
    Ainda que estejam enraizadas no solo, as plantas usam a mobilidade dos animais como maneira de espalharem as suas sementes e, assim, se multiplicarem. Haveria, conforme nota Mancuso, uma colaboração entre as plantas e os animais: “existem inúmeros exemplos de cooperações que se mostraram vantajosas para ambos os atores. Normalmente proporcionam uma recompensa ao animal pelos serviços prestados. É o caso do polinizador recompensado com o néctar saboroso e energético, da ave que em troca de um fruto apetitoso espalha sementes ou também do homem - o melhor vetor que se pode sonhar neste planeta - que, em troca de comida, beleza ou outras vantagens, espalha por toda parte as plantas de que necessita. Porém, as coisas nem sempre são tão claras assim. Em muitas situações, a conduta das plantas é mais suspeita e oportunista, e os serviços fornecidos pelos animais são usados sem ter uma recompensa em troca. As sementes da bardana - a planta que inspirou a invenção do velcro - e de centenas de outras espécies chamadas de caronistas se agarram à pele de animais sem oferecer nada em troca da passagem” (2019, p. 75-76).
  • 5
    Essa ideia está presente na filosofia da natureza de Hegel: “A planta, enquanto subjetividade que não é ainda para si, perante o seu organismo que é em si, não determina por si o seu lugar, não se desloca do sítio, nem está por si perante a particularização e individualização física do mesmo; por isso, não tem nenhuma intussuscepção que a si se interrompe, mas uma nutrição que flui continuamente, e vira-se não para o inorgânico individualizado, mas para os elementos universais. Ainda menos é capaz de calor animal e do sentimento, já que não é o processo de reconduzir os seus membros, que são antes apenas partes e também indivíduos, à unidade negativa e simples” (1969, p. 119).
  • 6
    Algumas formas de vida animais como, por exemplo, aquelas que vivem sob a organização de colônias teriam uma individualidade pouco marcada. Mesmo a progressiva centralização nervosa do organismo animal enfatizaria uma experiência subjetiva em contraste aos animais em que o sistema nervoso é menos desenvolvido como, por exemplo, as aranhas e alguns insetos.
  • 7
    Hegel em sua filosofia da natureza também fala de uma intranquilidade da vida animal em sua separação essencial de seu ambiente: “O meio ambiente da acidentalidade externa contém quase só elementos estranhos; exerce uma perpétua violência e ameaça de perigos sobre o seu sentimento, que é um sentimento de insegurança, de angústia e infelicidade” (1969, p. 139).
  • 8
    A afirmação de Jonas sobre a comunicação do olhar e sua reversibilidade se confirma nos estudos de Frans de Waal sobre o comportamento de primatas e o papel do ato de olhar nos olhos do outro em determinados contextos: “Muitas vezes, depois que dois rivais machos brigavam, eles eram incapazes de se reconciliar, mesmo parecendo interessados nisso. Eles ficavam perto um do outro sem um verdadeiro encontro físico. E evitavam o contato visual. Toda vez que um deles erguia o olhar, o outro pegava uma folha de relva ou um galho e inspecionava-o com súbito interesse” (2021, p. 45). Nessa direção, pode-se compreender que evitar o olhar do outro é um ato intencional e não um mero reflexo instintivo.
  • 9
    Jonas entrou em correspondência com Portmann na metade da década de 1950.
  • 10
    Hannah Arendt se dedica ao trabalho de Portmann em A vida do espírito, quando apresenta o que chamou de “valor da superfície” (Cf. ARENDT, 2000, p. 22-25).
  • 11
    Merleau-Ponty se dedica ao trabalho de Portmann em seu curso no Collège de France publicado sob o título A natureza.
  • 12
    Jacques Dewitte usa o termo “antropomorfismo crítico” para caracterizar a análise de Hans Jonas. O adjetivo crítico cumpre a função de distanciar o antropomorfismo de uma humanização ingênua e, inclusive, exagerada dos animais, que projeta sobre eles experiências que apenas têm sentido no contexto humano. Segundo Dewitte, “é preciso evitar uma tendência funesta de projetar o humano sobre o não humano sem ter em conta a singularidade da forma de vida à qual se tem em questão” (2002, p. 457). Desse modo, é indispensável que se tome em consideração o organismo animal, o tipo de ação esse organismo realiza e as circunstâncias na qual essa ação se insere, buscando perceber qual parte da vivência humana é requerida no gesto antropomórfico da analogia e da empatia que são, em última instância, duas maneiras do eu se descobrir no outro experimentando um “sentimento de proximidade à distância” (DEWITTE, 2002, p. 461).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2023
  • Aceito
    30 Set 2023
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