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Relação entre reserva microvascular isquêmica periférica, hiperlactatemia persistente e sua dinâmica temporal na sepse: um estudo post hoc

RESUMO

Objetivo:

Avaliar o valor prognóstico da reserva microvascular isquêmica periférica no contexto da hiperlactatemia persistente induzida pela sepse, determinar sua influência na dinâmica temporal de lactato e analisar a força da associação entre essas variáveis.

Métodos:

Análise post hoc do estudo de índice de perfusão periférica/hiperemia reativa pós-oclusiva caracterizada por uma coorte observacional que incluiu pacientes com sepse que persistiram com níveis de lactato ≥ 2mmol/L após a ressuscitação volêmica (com ou sem choque). A reserva microvascular isquêmica periférica foi mensurada utilizando-se a associação dos métodos do índice de perfusão periférica e hiperemia reativa pós-oclusiva. O ponto de corte dos valores da ∆ índice de perfusão periférica de pico (%) definiu os grupos com baixa (≤ 62%) e alta (> 62%) reserva microvascular isquêmica periférica.

Resultados:

Estudaram-se 108 pacientes consecutivos com hiperlactatemia persistente induzida pela sepse. O grupo com alta reserva microvascular isquêmica periférica apresentou maior mortalidade aos 28 dias em relação ao grupo com baixa reserva microvascular isquêmica periférica (p < 0,01). A dinâmica temporal de lactato nas primeiras 48 horas mostrou redução rápida dos níveis de lactato no grupo com baixa reserva microvascular isquêmica periférica (p < 0,01). No entanto, esse resultado não foi reproduzido no modelo de efeitos mistos lineares. Observou-se fraca correlação (%) entre os valores da reserva microvascular isquêmica periférica e níveis de lactato (mmol/L) nas primeiras 24 horas (r = 0,23; p < 0,05).

Conclusão:

O valor prognóstico da alta reserva microvascular isquêmica periférica foi confirmado no contexto da hiperlactatemia persistente induzida por sepse. Embora tenha sido observada uma baixa correlação positiva entre os valores da reserva microvascular isquêmica periférica e os níveis de lactato nas primeiras 24 horas do diagnóstico de sepse, o grupo com baixa reserva microvascular isquêmica periférica pareceu apresentar redução mais rápida do lactato nas 48 horas de seguimento.

Descritores:
Sepse; Microcirculação; Isquemia; Hiperemia; Índice de perfusão; Lactato; Prognóstico

ABSTRACT

Objective:

To measure the prognostic value of peripheral ischemic microvascular reserve in the context of persistent sepsis-induced hyperlactatemia and measure its influence on the temporal dynamics of lactate and the strength of association between these variables.

Methods:

This post hoc analysis of the peripheral perfusion index/postocclusive reactive hyperemia trial, an observational cohort study that enrolled patients with sepsis who persisted with lactate levels ≥ 2mmol/L after fluid resuscitation (with or without shock). Peripheral ischemic microvascular reserve was evaluated using the association of the peripheral perfusion index and postocclusive reactive hyperemia techniques. The cutoff point of ∆ peripheral perfusion index peak values (%) defined the groups with low (≤ 62%) and high peripheral ischemic microvascular reserve (> 62%).

Results:

A total of 108 consecutive patients with persistent sepsis-induced hyperlactatemia were studied. The high peripheral ischemic microvascular reserve group showed higher 28-day mortality than the low peripheral ischemic microvascular reserve group (p < 0.01). The temporal dynamics of lactate within the first 48 hours showed a rapid decrease in lactate levels in the low peripheral ischemic microvascular reserve group (p < 0.01). However, this result was not reproduced in the linear mixed effects model. A weak correlation between peripheral ischemic microvascular reserve (%) and lactate level (mmol/L) was observed within the first 24 hours (r = 0.23; p < 0.05).

Conclusion:

The prognostic value of high peripheral ischemic microvascular reserve was confirmed in the context of persistent sepsis-induced hyperlactatemia. Although there was a weak positive correlation between peripheral ischemic microvascular reserve value and lactate level within the first 24 hours of sepsis diagnosis, the low peripheral ischemic microvascular reserve group appeared to have a faster decrease in lactate over the 48 hours of follow-up.

Keywords:
Sepsis; Microcirculation; Ischemia; Hyperemia; Perfusion index; Lactate; Prognosis

INTRODUÇÃO

IPP - índice de perfusão periférica; ∆ IPP pico - variação do índice de perfusão periférica pico.

A sepse corresponde a uma resposta metabólica e imunológica generalizada e desregulada do hospedeiro, induzida por uma infecção que culmina em disfunções orgânicas.(11 Singer M, Deutschman CS, Seymour CW, Shankar-Hari M, Annane D, Bauer M, et al. The Third International Consensus Definitions for Sepsis and Septic Shock (Sepsis-3). JAMA. 2016;315(8):801-10.) Apesar dos avanços científicos em sua compreensão fisiopatológica e seu manejo, essa síndrome representa um problema global, que afeta milhões de pacientes anualmente, e uma das principais causas de morte em todo o mundo.(22 Rudd KE, Johnson SC, Agesa KM, Shackelford KA, Tsoi D, Kievlan DR, et al. Global, regional, and national sepsis incidence and mortality, 1990-2017: analysis for the Global Burden of Disease Study. Lancet. 2020;395(10219):200-11.)

O entendimento atual da sepse sustenta que os distúrbios microcirculatórios, tais como a hiporresponsividade vascular e a disfunção endotelial, representam parte dos mecanismos associados à origem e à progressão das disfunções orgânicas.(33 Charlton M, Sims M, Coats T, Thompson JP. The microcirculation and its measurement in sepsis. J Intensive Care Soc. 2017;18(3):221-7.) Evidências recentes demonstraram o valor de segurança de parâmetros não invasivos à beira do leito, como o índice de perfusão periférica (IPP) e o teste de hiperemia reativa pós-oclusiva (HRPO), para avaliar a reatividade microvascular por meio de alterações no fluxo sanguíneo em resposta à hipóxia tecidual dependente de fluxo transitório, o que pode representar uma “reserva” ou “recrutabilidade” do controle dos vasos,(44 Menezes IA, Cunha CL, Junior HC, Luy AM. Increase of perfusion index during vascular occlusion test is paradoxically associated with higher mortality in septic shock after fluid resuscitation: a prospective study. Shock. 2019;51(5):605-12.,55 Menezes IA, Cunha CL, Carraro Júnior H, Luy AM. Perfusion index for assessing microvascular reactivity in septic shock after fluid resuscitation. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(2):135-43.) denominada reserva microvascular isquêmica periférica (RMIP). Além disso, observou-se uma associação paradoxal entre valores mais altos da RMIP e prognóstico desfavorável em pacientes com choque séptico.(44 Menezes IA, Cunha CL, Junior HC, Luy AM. Increase of perfusion index during vascular occlusion test is paradoxically associated with higher mortality in septic shock after fluid resuscitation: a prospective study. Shock. 2019;51(5):605-12.) Essa evidência é curiosa, porque se opõe às respostas pós-isquêmicas em tecidos de pacientes com sepse, como músculo ou artérias condutoras.(66 Addor G, Delachaux A, Dischl B, Hayoz D, Liaudet L, Waeber B, et al. A comparative study of reactive hyperemia in human forearm skin and muscle. Physiol Res. 2008;57(5):685-92.) Adicionalmente, permanecem obscuras as vias subjacentes a esse achado contraditório envolvendo alta RMIP e seu possível papel prognóstico.

Nesse contexto, as alterações nos níveis de lactato ao longo do tempo na sepse podem ser uma explicação que merece atenção especial. A medição dos níveis de lactato, enquanto marcador aceito de hipoperfusão tecidual em todo esse ambiente de cuidados críticos, representa uma ferramenta valiosa para o reconhecimento de órgãos disfuncionais,(77 Evans L, Rhodes A, Alhazzani W, Antonelli M, Coopersmith CM, French C, et al. Surviving sepsis campaign: international guidelines for management of sepsis and septic shock 2021. Intensive Care Med. 2021;47(11):1181-247.) a análise da resposta terapêutica(88 Gu WJ, Zhang Z, Bakker J. Early lactate clearance-guided therapy in patients with sepsis: a meta-analysis with trial sequential analysis of randomized controlled trials. Intensive Care Med. 2015;41(10):1862-3.) e a elaboração de um prognóstico.(99 Casserly B, Phillips GS, Schorr C, Dellinger RP, Townsend SR, Osborn TM, et al. Lactate measurements in sepsis-induced tissue hypoperfusion: Results from the surviving sepsis campaign database. Crit Care Med. 2015;43(3):567-73.) Além disso, sabe-se que outros fatores, além do metabolismo anaeróbico, podem contribuir para a hiperlactatemia persistente induzida por sepse (HPIS) após a ressuscitação, tais como o aumento da glicólise, depuração alterada, extração prejudicada de oxigênio, estimulação adrenérgica ou disfunção mitocondrial.(1010 Suetrong B, Walley KR. Lactic acidosis in sepsis: It’s not all anaerobic: Implications for diagnosis and management. Chest. 2016;149(1):252-61.) Nesse sentido, a hipótese é a de que a hiperlactatemia persistente e sua conhecida associação com desfechos desfavoráveis(99 Casserly B, Phillips GS, Schorr C, Dellinger RP, Townsend SR, Osborn TM, et al. Lactate measurements in sepsis-induced tissue hypoperfusion: Results from the surviving sepsis campaign database. Crit Care Med. 2015;43(3):567-73.,1111 Tang Y, Choi J, Kim D, Tudtud-Hans L, Li J, Michel A, et al. Clinical predictors of adverse outcome in severe sepsis patients with lactate 2-4 mM admitted to the hospital. QJM. 2015;108(4):279-87.) corresponda a uma possível variável de confusão na associação entre alta RMIP e taxas de mortalidade elevadas na sepse. No entanto, achados anteriores sugerem fortemente que a RMIP aumenta o valor prognóstico do lactato arterial nas primeiras 24 horas do choque séptico após a ressuscitação volêmica.(44 Menezes IA, Cunha CL, Junior HC, Luy AM. Increase of perfusion index during vascular occlusion test is paradoxically associated with higher mortality in septic shock after fluid resuscitation: a prospective study. Shock. 2019;51(5):605-12.) Além disso, é relevante questionar se os valores da RMIP têm alguma influência nas variações do lactato ao longo do tempo. Para responder a essas perguntas, o presente estudo observacional foi desenhado para explorar o valor prognóstico da RMIP no contexto da HPIS. Os dois principais objetivos foram avaliar a influência dos valores de RMIP na dinâmica temporal de lactato e a força da associação entre o valor de RMIP e o nível de lactato.

MÉTODOS

Desenho do estudo, cenário e participantes

Esta investigação foi uma análise post hoc predefinida do estudo IPP/HRPO, de coorte observacional.(1212 de Miranda AC. Evaluation of biomarkers and gene expression profile related to peripheral microvascular reserve in patients with sepsis. REBEC 2020. https://ensaiosclinicos.gov.br/rg/RBR-35tv9ft.
https://ensaiosclinicos.gov.br/rg/RBR-35...
) O estudo foi realizado em quatro unidades de terapia intensiva (UTIs) brasileiras entre novembro de 2020 e maio de 2022. Todos os participantes sobreviventes ou seus representantes legais assinaram o termo de consentimento informado, exceto no caso de morte do paciente, caso em que se dispensou tal assinatura. O Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR) aprovou a pesquisa (protocolo: 3.913.982/2020).

Pacientes adultos consecutivos (≥ 18 anos de idade) com HPIS após ressuscitação hemodinâmica na UTI nas primeiras 24 horas do diagnóstico de sepse se qualificaram para o estudo. Os critérios de exclusão aplicados a este estudo, para minimizar possíveis fatores de confusão ou riscos de possíveis complicações hemorrágicas e isquêmicas dos procedimentos, foram gravidez, hepatopatia grave (Child-Pugh classe C), coagulopatia grave (plaquetas < 20.000/mm3, Razão Normalizada Internacional - RNI > 2,0 ou tempo de tromboplastina parcial ativada - TTPa > 70 segundos), sangramento ativo grave, endocardite infecciosa, avaliação de perfusão inacessível (hipotermia grave, síndrome de Raynaud ou doença arterial oclusiva periférica) e recusa em participar do estudo.

Definições clínicas

Sepse

De acordo com as diretrizes atuais de sepse, essa síndrome é caracterizada como uma infecção associada a uma alteração aguda de dois pontos ou mais no Sequential Organ Failure Assessment (SOFA).(11 Singer M, Deutschman CS, Seymour CW, Shankar-Hari M, Annane D, Bauer M, et al. The Third International Consensus Definitions for Sepsis and Septic Shock (Sepsis-3). JAMA. 2016;315(8):801-10.)

Choque séptico

Trata-se de um subconjunto da sepse em que, apesar da ressuscitação hemodinâmica adequada com fluidos do tipo cristaloides intravenosos (≥ 30mL/kg),(77 Evans L, Rhodes A, Alhazzani W, Antonelli M, Coopersmith CM, French C, et al. Surviving sepsis campaign: international guidelines for management of sepsis and septic shock 2021. Intensive Care Med. 2021;47(11):1181-247.) os pacientes permanecem hipotensos (pressão arterial média - PAM - < 65mmHg) e com sinais de hipoperfusão tecidual (concentração sérica elevada de lactato ≥ 2mmol/L).(11 Singer M, Deutschman CS, Seymour CW, Shankar-Hari M, Annane D, Bauer M, et al. The Third International Consensus Definitions for Sepsis and Septic Shock (Sepsis-3). JAMA. 2016;315(8):801-10.)

Hiperlactatemia persistente

Após a ressuscitação hemodinâmica com fluidos do tipo cristaloides intravenosos (≥ 30mL/kg), a manutenção de níveis de lactato ≥ 2,0mmol/L caracteriza hiperlactatemia persistente.(1313 Dünser MW, Takala J, Brunauer A, Bakker J. Re-thinking resuscitation: leaving blood pressure cosmetics behind and moving forward to permissive hypotension and a tissue perfusion-based approach. Crit Care. 2013;17(5):326.)

Protocolo do estudo

Todos os pacientes que se qualificaram foram manejados clinicamente seguindo um protocolo padrão local adaptado das diretrizes da Campanha de Sobrevivência à Sepse (CSS).(77 Evans L, Rhodes A, Alhazzani W, Antonelli M, Coopersmith CM, French C, et al. Surviving sepsis campaign: international guidelines for management of sepsis and septic shock 2021. Intensive Care Med. 2021;47(11):1181-247.) O tratamento foi iniciado assim que a sepse foi diagnosticada. Em primeiro lugar, caso houvesse grande probabilidade de sepse, os antimicrobianos eram administrados na primeira hora após a coleta de sangue e secreções de possíveis focos de infecção para cultura, de acordo com a história clínica do paciente. Em segundo lugar, os pacientes com sinais de hipoperfusão ou choque séptico receberam 30mL/kg de fluidos do tipo cristaloide nas primeiras 3 horas após o diagnóstico de sepse. Essa ressuscitação hemodinâmica foi continuada a critério médico, se clinicamente indicada, até a falta de resposta à elevação passiva das pernas (o valor de corte para avaliar a responsividade a fluidos foi um aumento de 10% no débito cardíaco)(1414 Douglas IS, Alapat PM, Corl KA, Exline MC, Forni LG, Holder AL, et al. Fluid response evaluation in sepsis hypotension and shock: a randomized clinical trial. Chest. 2020;158(4):1431-45.) ou a falta de variação no diâmetro da veia cava inferior com a respiração (o valor de corte foi de 18% em pacientes ventilados mecanicamente e até 42% em pacientes não ventilados mecanicamente),(1515 Lee CW, Kory PD, Arntfield RT. Development of a fluid resuscitation protocol using inferior vena cava and lung ultrasound. J Crit Care. 2016;31(1):96-100.) a qual foi estimada usando um instrumento de ultrassom Samsung Medison. Caso a PAM permanecesse < 65mmHg, utilizava-se norepinefrina para normalizar esse parâmetro macro-hemodinâmico. Em casos refratários (dose de noradrenalina > 0,5µg/kg/h), a vasopressina foi a droga de escolha para associação com a noradrenalina. As metas hemodinâmicas consistiram em uma combinação de critérios, como PAM ≥ 65mmHg, diurese > 0,5mL/kg/hora e saturação venosa central de oxigênio (SvcO2) > 70%.

Todos os pacientes foram seguidos por 28 dias após o diagnóstico de sepse ou a alta hospitalar.

Medições

A avaliação dos pacientes ocorreu dentro de 24 horas após a ressuscitação volêmica em pacientes com diagnóstico de sepse. As informações coletadas incluíram características demográficas, histórico médico, origem da infecção e comorbidades e pontuações nos escores Acute Physiology and Chronic Health Evolution II (APACHE II) e SOFA. Além disso, foram medidos todos os parâmetros hemodinâmicos (se existentes), níveis de lactato e variáveis periféricas duas vezes após a ressuscitação volêmica: entre 6 e 24 horas e entre 24 e 48 horas após o diagnóstico de sepse. A veia subclávia ou jugular interna foi escolhida como o local da linha venosa central para as medições de SvcO2 e da pressão parcial de dióxido de carbono (PCO2).

Dinâmica temporal de lactato

A dinâmica temporal de lactato nas primeiras 48 horas de seguimento (∆ lactato 48 horas) foi estabelecida a partir da alteração percentual nos níveis de lactato entre a primeira (após a ressuscitação volêmica, mas dentro de 24 horas do diagnóstico de sepse) e a segunda medição (entre 24 e 48 horas do diagnóstico de sepse). A ∆ lactato de 48 horas foi calculada usando a seguinte fórmula:

Δ lactato 48 horas = segunda medição de lactato - primeira medição de lactato primeira medição de lactato × 100 %

Avaliação da reserva microvascular isquêmica periférica

A avaliação foi realizada usando a associação entre o IPP e o método HRPO.

O IPP é um parâmetro derivado do sinal de pletismografia fotoelétrica de um oxímetro de pulso, estabelecido pela relação de alcance da luz entre os componentes pulsáteis (arteriais) e não pulsáteis, fornecendo um indicador não invasivo do tônus vasomotor periférico.(1616 Lima A, Bakker J. Noninvasive monitoring of peripheral perfusion. Intensive Care Med. 2005;31(10):1316-26.) Ele foi medido após a ressuscitação volêmica, colocando-se um oxímetro de pulso (Masimo Radical®, Masimo-Corp, Califórnia ou Mindray, Shenzen, China) no dedo indicador do paciente. Após o sinal estabilizar, o IPP foi registrado a cada 30 segundos durante 5 minutos, e os valores médios determinaram o valor do IPP basal. Em seguida, foi realizado o teste HRPO.

O teste de HRPO é caracterizado por uma breve oclusão arterial seguida de vasodilatação acentuada associada a um aumento temporário do fluxo sanguíneo para o tecido pós-isquêmico.(1717 Cracowski JL, Minson CT, Salvat-Melis M, Halliwill JR. Methodological issues in the assessment of skin microvascular endothelial function in humans. Trends Pharmacol Sci. 2006;27(9):503-8.) Esse teste foi realizado após a primeira medição do IPP. Inicialmente, um manguito de esfigmomanômetro foi rapidamente inflado ao redor do braço homolateral até 50mmHg acima da pressão sistólica para ocluir o fluxo arterial por 3 minutos. Após a deflação do manguito, as alterações no fluxo sanguíneo (hiperemia reativa) foram medidas registrando-se os valores do IPP por 5 minutos, sendo que o valor mais alto correspondeu ao valor do IPP pico. Por fim, a RMIP foi estabelecida como ∆ IPP pico (%), que foi calculada com a seguinte fórmula:

Δ IPP pico = IPP pico - IPP basal IPP basal × 100 %

Após a seleção, os pacientes com HPIS foram divididos em dois grupos de RMIP usando a ∆ IPP pico como ponto de corte: valores de ∆ IPP pico abaixo de 62% (baixa RMIP) e acima de 62% (alta RMIP). O ponto de corte estabelecido neste estudo foi baseado na curva Receiver Operating Characteristic de um estudo anterior de pacientes com choque séptico.(44 Menezes IA, Cunha CL, Junior HC, Luy AM. Increase of perfusion index during vascular occlusion test is paradoxically associated with higher mortality in septic shock after fluid resuscitation: a prospective study. Shock. 2019;51(5):605-12.)

Quatro médicos treinados realizaram uma avaliação clínica da perfusão periférica. Essa foi realizada na posição de decúbito dorsal no membro superior sem cateter intra-arterial para medição da PAM. A temperatura ambiente à beira do leito na UTI era de 22ºC.

Desfechos

Os desfechos primários foram: dinâmica temporal dos níveis de lactato nas primeiras 48 horas de seguimento no grupo com alta RMIP versus baixa RMIP; correlação entre os valores de RMIP e níveis de lactato (mmol/L) no primeiro e no segundo dia do diagnóstico de sepse; e correlação entre os valores de RMIP em 24 horas (%) e ∆ lactato em 48 horas (%). Os desfechos secundários incluíram a comparação intra-hospitalar da mortalidade aos 28 dias entre os grupos com alta e baixa RMIP no contexto da HPIS.

Abordagem analítica

Todos os dados do presente estudo foram analisados usando o IBM Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) e o GraphPad Prism 6. Inicialmente, a normalidade de cada variável foi testada com o teste de Shapiro-Wilk. Em seguida, os dados paramétricos, apresentados como média ± desvio padrão, foram comparados com o teste t de Student. Os dados não paramétricos são descritos como medianas e intervalos interquartis e foram comparados com o teste U de Mann-Whitney. Os dados categóricos são descritos como frequências e porcentagens e foram comparados usando o teste exato de Fisher ou o teste do qui-quadrado (dependendo do número de variáveis). Para comparar a dinâmica temporal dos níveis de lactato nas primeiras 48 horas de seguimento entre os grupos com alta e baixa RMIP, foram realizados o teste U de Mann-Whitney (análise intergrupos) e o teste de Wilcoxon (análise intragrupos), para avaliar as alterações nos níveis de lactato ao longo do tempo entre os pacientes com HPIS. Além disso, o teste de Bonferroni foi usado para comparações múltiplas. Realizou-se também análise complementar da dinâmica temporal dos níveis de lactato ao longo do tempo. Para essa análise, os grupos definidos com baixa ou alta RMIP em 2 dias consecutivos (dias 1 e 2) foram comparados, e avaliou-se a interação entre grupo e dia. Para essa finalidade, foi ajustado um modelo de efeitos mistos lineares com interceptação e inclinação aleatórias. O grupo foi considerado um efeito fixo e o paciente, um efeito aleatório. Para essa análise, os níveis de lactato foram submetidos a uma transformação logarítmica. Por fim, o coeficiente de correlação de Spearman foi calculado entre as variáveis contínuas. Todos os valores de p informados são bicaudais; p < 0,05 foi estatisticamente significativo.

O teste Kappa de Cohen estabeleceu a concordância dos dispositivos do estudo.

Como este foi um estudo post hoc, a amostra consistiu em todos os pacientes do estudo original que atenderam aos critérios de inclusão.

Este estudo seguiu as diretrizes STROBE para relatar os resultados.

RESULTADOS

Características basais da população estudada

Durante o período do estudo, 118 dos 226 pacientes com HPIS foram considerados qualificados para inclusão após a ressuscitação volêmica e submetidos à avaliação subsequente da RMIP (Figura 1). Os dados demográficos e as características da população estudada são apresentados na tabela 1. Coletivamente, esses dados descrevem uma população heterogênea de pacientes críticos, o que é um achado típico da sepse. Ambos os grupos apresentaram parâmetros hemodinâmicos estáveis no momento da avaliação. O grupo com alta RMIP apresentou parcela maior de pacientes com histórico prévio de doença cerebrovascular e parâmetros anormais de perfusão periférica após a ressuscitação volêmica do que o grupo com baixa RMIP. Não foram observadas diferenças significativas entre os grupos (alta e baixa RMIP) em relação a outros dados clínicos (idade, sexo, outras comorbidades), origem da infecção, cultura confirmada, pontuações nos escores de gravidade clínica (APACHE II, SOFA), biomarcadores de admissão à UTI, níveis de lactato ou uso de drogas vasoativas.

Tabela 1
Características basais dos pacientes com hiperlactatemia persistente induzida por sepse

Figura 1
Pacientes com índice de perfusão periférica/teste de hiperemia reativa pós-oclusiva com hiperlactatemia persistente induzida por sepse incluídos na análise.

A mortalidade intra-hospitalar aos 28 dias do grupo com alta RMIP foi de 66,1%. (37/57), ou seja, superior à do grupo com baixa RMIP (38,5%, 20/57) (p < 0,01).

Confiabilidade entre as medições obtidas por dois oxímetros de pulso

A concordância entre as duas sondas de oxímetro de pulso, Masimo Radical® e Mindray, demonstrou concordância moderada (Kappa de Cohen = 0,76; p < 0,01).

Análises temporais dos níveis de lactato entre os grupos com alta e baixa reserva microvascular isquêmica periférica

Conforme mostrado na figura 2, realizamos avaliações periódicas do lactato em pacientes com HPIS. Essa análise usou o modelo de estudo não paramétrico com a inclusão de pacientes com dados completos nos dois primeiros dias após a ressuscitação volêmica e comparou os grupos de alta e baixa RMIP (n = 84). Não houve diferença significativa entre os grupos em 24 horas (p = 0,15) ou 48 horas (p = 0,05). Além disso, na análise intragrupo, foram observadas alterações estatisticamente relevantes nos níveis de lactato ao longo do tempo no grupo com alta RMIP (p = 0,02) e no grupo com baixa RMIP (p < 0,01). Somente o grupo com baixa RMIP demonstrou redução efetiva nos níveis de lactato ao longo do tempo após o ajuste para comparações múltiplas.

Figura 2
Avaliação temporal dos níveis de lactato entre os grupos de alta e baixa reserva microvascular isquêmica periférica em pacientes com hiperlactatemia persistente induzida pela sepse.

Conforme mostrado na figura 3, a avaliação periódica do lactato foi realizada durante as primeiras 48 horas em pacientes com HPIS após ressuscitação volêmica (n = 108) com dados ausentes (modelo de efeitos mistos lineares). Não houve interação entre dia e grupo (p = 0,21). Não houve diferenças significativas entre os grupos durante todo o período avaliado (p = 0,89). Observou-se alteração significativa nos níveis de lactato ao longo do tempo em cada grupo (p < 0,01).

Figura 3
A dinâmica temporal dos níveis de lactato nas primeiras 48 horas de seguimento entre os grupos com reserva microvascular isquêmica periférica alta e baixa. Análises de interação entre grupo e tempo não significativas. Análises intergrupos (reserva microvascular isquêmica periférica alta e baixa) não significativas. Análises intragrupo: p < 0,01. Testes estatísticos: modelo de efeitos mistos lineares.

Correlação entre a reserva microvascular isquêmica periférica e as alterações nos níveis de lactato ao longo do tempo

Conforme demonstrado na figura 4A, observou-se uma correlação positiva fraca (r = 0,23), porém estatisticamente significativa, entre os valores da ∆ IPP pico (%) e os níveis de lactato (mmol/L) nas primeiras 24 horas do diagnóstico de sepse após a ressuscitação volêmica (p = 0,01). Entretanto, conforme demonstrado na figura 4B, não houve correlação significativa entre essas variáveis no segundo dia (p = 0,55). Além disso, conforme demonstrado na figura 4C, não houve correlação significativa (p = 0,31) entre a ∆ IPP pico do primeiro dia e a dinâmica temporal de lactato (%).

Figura 4
Análise da força de associação entre as variáveis valores da reserva microvascular isquêmica periférica e níveis de lactato e a dinâmica temporal de lactato. (A) Correlação entre valores da reserva microvascular isquêmica periférica (%) e o níveis de lactato (mmol/L) em pacientes com hiperlactatemia persistente induzida por sepse após ressuscitação volêmica dentro de 24 horas do diagnóstico de sepse; *p < 0,05; (B) Correlação não significativa entre os valores da reserva microvascular isquêmica periférica (%) e o níveis de lactato (mmol/L) no segundo dia de avaliação; (C) Correlação não significativa entre os valores da reserva microvascular isquêmica periférica (%) e a dinâmica temporal de lactato (%).

DISCUSSÃO

Com relação ao papel essencial das disfunções da microcirculação na fisiopatologia da sepse, tem-se dado atenção especial às alterações na reatividade microvascular ligadas à falência de órgãos na sepse humana.(1818 Doerschug KC, Delsing AS, Schmidt GA, Haynes WG. Impairments in microvascular reactivity are related to organ failure in human sepsis. Am J Physiol Heart Circ Physiol. 2007;293(2):H1065-71.) Recentemente, Menezes et al. demonstraram, por meio da resposta da pele à isquemia transitória, o valor da alta RMIP na previsão de mortalidade aos 28 dias em pacientes com choque séptico.(44 Menezes IA, Cunha CL, Junior HC, Luy AM. Increase of perfusion index during vascular occlusion test is paradoxically associated with higher mortality in septic shock after fluid resuscitation: a prospective study. Shock. 2019;51(5):605-12.) No entanto, os mecanismos subjacentes a esse achado paradoxal permanecem obscuros. Portanto, o presente estudo fornece novas evidências com relação à reprodutibilidade das evidências anteriores no contexto de HPIS (com e sem choque) e uma possível explicação para o potencial valor prognóstico da alta RMIP, com base na dinâmica temporal de lactato.

No ambiente crítico da sepse, os distúrbios do fluxo sanguíneo microcirculatório são inequivocamente reconhecidos como um dos mecanismos responsáveis pela indução do metabolismo anaeróbico da glicose e, consequentemente, explicam os altos níveis de lactato.(1010 Suetrong B, Walley KR. Lactic acidosis in sepsis: It’s not all anaerobic: Implications for diagnosis and management. Chest. 2016;149(1):252-61.) Portanto, algumas etapas do tratamento da sepse, como a terapêutica antibiótica precoce e a administração de fluidos, são cruciais para melhorar o prognóstico da sepse.(77 Evans L, Rhodes A, Alhazzani W, Antonelli M, Coopersmith CM, French C, et al. Surviving sepsis campaign: international guidelines for management of sepsis and septic shock 2021. Intensive Care Med. 2021;47(11):1181-247.) Entretanto, uma vez que a ressuscitação hemodinâmica tenha sido estabelecida (momento de avaliação da RMIP escolhido neste estudo), é questionável se a hipóxia tecidual dependente de fluxo continua sendo a principal causa de lactato persistentemente elevado e por que o lactato elevado estaria associado a um pior prognóstico. Essa dúvida foi reforçada por nossos resultados, que mostraram que aproximadamente metade da população com sepse (108/226) apresentou níveis elevados de lactato, apesar dos parâmetros macro-hemodinâmicos estáveis durante as avaliações de RMIP.

Assim, dada a complexidade desse biomarcador, esta investigação procurou avaliar se, além dos distúrbios metabólicos atualmente reconhecidos no desenvolvimento da hiperlactatemia persistente, tais como a perda da capacidade do tecido de extrair oxigênio secundária a danos endoteliais microvasculares e edema tecidual, as disfunções mitocondriais e enzimáticas, o aumento da glicólise, que excede a capacidade de metabolização, a estimulação adrenérgica e a depuração reduzida atribuída à disfunção orgânica associada à sepse,(1010 Suetrong B, Walley KR. Lactic acidosis in sepsis: It’s not all anaerobic: Implications for diagnosis and management. Chest. 2016;149(1):252-61.) os valores de RMIP teriam alguma influência sobre as alterações nos níveis de lactato ao longo do tempo. Curiosamente, por meio da dinâmica temporal das análises de lactato nas primeiras 48 horas (após a ressuscitação volêmica) nos grupos com alta e baixa RMIP, o presente estudo mostrou que apenas os pacientes com baixa RMIP reduziram efetivamente seus níveis de lactato ao longo do tempo. Cabe aqui destacar um aspecto metodológico. Como o modelo escolhido para a análise periódica de lactato (estudo de prova de conceito) não permitia dados omissos, uma curva de dinâmica de lactato também foi construída usando um modelo de efeitos mistos, o que permitiu a inclusão de dados parciais em ambos os dias. Usando essa abordagem, essas diferenças na dinâmica de lactato entre os grupos deixaram de existir. Isso sugere que, embora o achado de baixa RMIP esteja relacionado a níveis mais baixos de lactato ao longo do tempo, esse teste não parece ter valor preditivo independente nas primeiras 24 horas. Além disso, diante desses resultados, procuramos investigar a força da associação entre as variáveis valores de RMIP e níveis de lactato ao longo das 48 horas de seguimento. Foi verificada uma correlação positiva fraca entre as variáveis nas primeiras 24 horas, sugerindo que os valores de RMIP (após ressuscitação hemodinâmica com fluidos nas primeiras 24 horas do diagnóstico de sepse) possivelmente interferem nos níveis de lactato nesse período. Entretanto, não foram observadas associações significativas entre os níveis de lactato e os valores de RMIP em 48 horas.

Em conjunto, esses achados sugerem algumas possíveis interpretações: (a) apesar do conhecido dano estrutural da sepse na microcirculação, a funcionalidade essencial persiste na vasorreatividade, pelo menos no tecido cutâneo;(44 Menezes IA, Cunha CL, Junior HC, Luy AM. Increase of perfusion index during vascular occlusion test is paradoxically associated with higher mortality in septic shock after fluid resuscitation: a prospective study. Shock. 2019;51(5):605-12.) (b) se esses achados ocorrerem concomitantemente em órgãos vitais, podemos supor que os pacientes do grupo de baixa RMIP têm recrutamento microvascular otimizado para as demandas de fluxo tecidual local, o que pode diminuir a produção de lactato ou aumentar sua depuração. No entanto, considerando que a HPIS se deve mais ao aumento da produção de lactato do que à sua eliminação,(1919 Levitt DG, Levitt JE, Levitt MD. Quantitative assessment of blood lactate in shock: measure of hypoxia or beneficial energy source. Biomed Res Int. 2020;2020:2608318.) nossa pesquisa não pôde distinguir os pacientes que produzem menos lactato daqueles que o eliminam mais rapidamente. (c) A relação da RMIP com o efeito adrenérgico também poderia contribuir para a queda mais lenta do lactato no grupo com alta RMIP, pois, além do aumento do metabolismo da glicose, sobrecarregando o sistema e, consequentemente, contribuindo para a HPIS,(1010 Suetrong B, Walley KR. Lactic acidosis in sepsis: It’s not all anaerobic: Implications for diagnosis and management. Chest. 2016;149(1):252-61.) os níveis de catecolaminas (norepinefrina) se correlacionam positivamente com os valores de RMIP, conforme demonstrado no estudo de Menezes et al.(44 Menezes IA, Cunha CL, Junior HC, Luy AM. Increase of perfusion index during vascular occlusion test is paradoxically associated with higher mortality in septic shock after fluid resuscitation: a prospective study. Shock. 2019;51(5):605-12.) Portanto, a estimulação dos receptores adrenérgicos por mediadores vasoativos, utilizados pela maioria dos pacientes com HPIS (64,8%), além de interferir na reatividade microvascular, também poderia explicar as variações dos níveis de lactato no grupo com baixa RMIP. Além disso, a associação positiva entre a RMIP e os mediadores adrenérgicos(44 Menezes IA, Cunha CL, Junior HC, Luy AM. Increase of perfusion index during vascular occlusion test is paradoxically associated with higher mortality in septic shock after fluid resuscitation: a prospective study. Shock. 2019;51(5):605-12.) também poderia contribuir para a queda mais lenta dos níveis de lactato no grupo de alta RMIP, indicando a persistência de efeitos compensatórios de estímulos simpáticos ou disfunção autonômica. Novas investigações são necessárias para testar essa hipótese.

Independentemente da interpretação fisiopatológica desse fenômeno, esses resultados destacam o enriquecimento prognóstico da RMIP em pacientes com HPIS. Essa informação pode ajudar o clínico a considerar a relação risco-benefício, em que apenas terapias com riscos mínimos podem ser justificadas para pacientes com maior probabilidade do desfecho(2020 Stanski NL, Wong HR. Prognostic and predictive enrichment in sepsis. Nat Rev Nephrol. 2020;16(1):20-31.) em questão, a mortalidade, visando a um tratamento mais personalizado e a uma melhor previsão do desfecho de sepse. Assim, a seleção de subgrupos de pacientes com desfechos diferentes (alta e baixa RMIP) e que apresentem características fisiopatológicas semelhantes (HPIS) aumentaria a chance de resposta a terapias guiadas por marcadores e a sobrevida.(2020 Stanski NL, Wong HR. Prognostic and predictive enrichment in sepsis. Nat Rev Nephrol. 2020;16(1):20-31.) Além disso, este estudo utilizou um teste à beira do leito para apoiar a identificação precoce de um subgrupo de pacientes com HPIS cuja mortalidade era duas vezes maior e indistinguível de outros parâmetros clínicos/hemodinâmicos (grupo de alta RMIP). Nossos dados acrescentam informações valiosas sobre o papel da reatividade microvascular cutânea em pacientes com hiperlactatemia de alto risco.(2121 Lara B, Enberg L, Ortega M, Leon P, Kripper C, Aguilera P, et al. Capillary refill time during fluid resuscitation in patients with sepsis-related hyperlactatemia at the emergency department is related to mortality. PLoS One. 2017;12(11):e0188548.) Recentemente, observou-se que a associação de hiperlactatemia com tempo de enchimento capilar prolongado aumenta exponencialmente o risco de morte.(2121 Lara B, Enberg L, Ortega M, Leon P, Kripper C, Aguilera P, et al. Capillary refill time during fluid resuscitation in patients with sepsis-related hyperlactatemia at the emergency department is related to mortality. PLoS One. 2017;12(11):e0188548.) Novos estudos precisam ser realizados sobre essas duas variáveis. Nesse sentido, por meio do valor da RMIP, os intensivistas poderiam identificar um subgrupo no qual tanto a ressuscitação volêmica quanto a administração de drogas vasoativas deveriam ser administradas com maior cautela (grupo com alta RMIP) e, teoricamente, evitar os danos associados à administração iatrogênica excessiva de fluidos ou à administração inadequada de drogas vasoativas visando a uma PAM mais alta, fator conhecido de piora clínica,(2222 Messmer AS, Zingg C, Müller M, Gerber JL, Schefold JC, Pfortmueller CA. Fluid overload and mortality in adult critical care patients-a systematic review and meta-analysis of observational studies. Crit Care Med. 2020;48(12):1862-70.,2323 Asfar P, Meziani F, Hamel JF, Grelon F, Megarbane B, Anguel N, Mira JP, Dequin PF, Gergaud S, Weiss N, Legay F, Le Tulzo Y, Conrad M, Robert R, Gonzalez F, Guitton C, Tamion F, Tonnelier JM, Guezennec P, Van Der Linden T, Vieillard-Baron A, Mariotte E, Pradel G, Lesieur O, Ricard JD, Hervé F, du Cheyron D, Guerin C, Mercat A, Teboul JL, Radermacher P; SEPSISPAM Investigators. High versus low blood-pressure target in patients with septic shock. N Eng J Med 2014;370(17):1583-93.) naqueles pacientes de menor risco (grupo com baixa RMIP). Além disso, esses resultados abrem novas perspectivas para a investigação das possíveis causas do prognóstico desfavorável em pacientes com alta RMIP, como ressuscitação insuficiente, disfunção autonômica e disfunção mitocondrial.

O presente estudo apresentou certas limitações. Em primeiro lugar, ele usou uma análise post hoc predefinida do estudo IPP/HRPO. Assim, não foi calculado o tamanho da amostra com base nas taxas de mortalidade de pacientes com hiperlactatemia persistente e alta RMIP. Por esse motivo, são necessários novos estudos para confirmar nossos achados. Em segundo lugar, as medições de lactato sanguíneo não foram realizadas no mesmo intervalo de tempo em todos os pacientes na análise da dinâmica temporal dos limites de lactato, pelo menos em parte do tempo na análise comparativa interindividual. No entanto, como a macro-hemodinâmica de todos os pacientes foi estabilizada nesse período (pósressuscitação), as flutuações do lactato nesse intervalo podem ser consideradas menores do que na fase inicial da síndrome. Em terceiro lugar, embora os pacientes tenham sido avaliados consecutivamente e incluíssem pacientes com sepse de várias gravidades clínicas, dois terços dos pacientes apresentavam choque séptico. Portanto, os resultados do estudo não podem ser generalizados para pacientes sem choque ou em ambientes fora da UTI. Além disso, não foi realizada uma análise multivariada. O estudo principal(1212 de Miranda AC. Evaluation of biomarkers and gene expression profile related to peripheral microvascular reserve in patients with sepsis. REBEC 2020. https://ensaiosclinicos.gov.br/rg/RBR-35tv9ft.
https://ensaiosclinicos.gov.br/rg/RBR-35...
) está sendo finalizado para verificar o valor da alta RMIP como fator prognóstico independente para mortalidade, o que responderia a essas e outras perguntas. Por fim, as possíveis variáveis confundidoras, como a proporção de pacientes ventilados mecanicamente e a proporção de pacientes com arritmias cardíacas que não foram obtidas, limitam o valor da RMIP como fator prognóstico. No entanto, evidências robustas mostraram que, embora o parâmetro IPP possa sofrer a influência dessas variáveis, ele mantém seu valor prognóstico para a mortalidade na sepse,(2424 Santos DM, Quintans JS, Quintans-Junior LJ, Santana-Filho VJ, Cunha CL, et al. [Association between peripheral perfusion, microcircutation and mortality in sepsis: a systematic review]. Braz J Anesthesiol. 2019;69(6):605-21. Portuguese.) provavelmente porque o fator preditivo mais importante é o fluxo sanguíneo resultante no nível microcirculatório (independentemente dos fatores que o alteram).

CONCLUSÃO

A avaliação da reserva microvascular isquêmica periférica parece ser uma possível ferramenta para a identificação precoce de um subgrupo de pacientes com hiperlactatemia persistente induzida por sepse que apresentam maior risco de morte. Além disso, embora tenha se observado uma correlação positiva fraca entre os valores de reserva microvascular isquêmica periférica e os níveis de lactato nas primeiras 24 horas após o diagnóstico de sepse, o grupo com baixa reserva microvascular isquêmica periférica parece ter uma redução mais rápida nos níveis de lactato nas 48 horas de seguimento. São necessários novos estudos para verificar seu valor prognóstico e elucidar seus mecanismos fisiopatológicos.

AGRADECIMENTOS

Fonte de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Edital 15/2019).

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Editado por

Editor responsável: Gilberto Friedman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2022
  • Aceito
    25 Mar 2023
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