Acessibilidade / Reportar erro

A extração do cristalino transparente é experimental?

EDITORIAL

A extração do cristalino transparente é experimental?

Cristina Muccioli; Mauro Goldchmit; Mauro Campos; Samir Jacob Bechara; Vital Paulino Costa

A extração do cristalino e a correção da afacia atravessam um desenvolvimento tecnológico impressionante. Técnicas cirúrgicas de facoemulsificação ultra-sônica e mecânica (rotacional) estão se disseminando rapidamente e permitindo cirurgias mais rápidas e seguras. As incisões cirúrgicas cada vez menores, o controle sobre o resultado visual refrativo e a recuperação acelerada dos pacientes operados estão produzindo uma satisfação única em pacientes e cirurgiões, pelos excelentes resultados que estão sendo obtidos.

Com o surgimento de novas lentes intra-oculares, as chamadas lentes premium, pode-se programar a utilização de lentes multifocais, tóricas, com diferentes perfis ópticos esféricos ou anesféricos permitindo atender as demandas de cada paciente em particular. Os médicos e pacientes se beneficiam de um aprimoramento na relação entre os dois, exigindo do médico mais cuidado na identificação das necessidades do paciente e este último recebendo os benefícios de uma atenção maior e também da tecnologia mais avançada.

Neste contexto cabe ainda reconhecer que o treinamento profissional está melhor, com as residências médicas adotando a facoemulsificação como técnica de eleição para extração do cristalino e também com o impulso enorme que foi dado pelos mutirões de catarata, nos quais foram adotados lente dobrável e kits de faco.

Neste cenário favorável, assistimos a popularização da extração do cristalino transparente, ou a troca cristaliniana com finalidade refrativa. Nesta cirurgia, os pacientes tem seu cristalino substituído por uma lente intra-ocular premium, que vai permitir, segundo a literatura recente, independência aos óculos durante pelo menos 80% do tempo. Os números desta popularização, em 1999, apenas 14% dos cirurgiões de catarata americanos realizavam este procedimento enquanto em 2003, 39% o adotaram. O número destas cirurgias dobra a cada ano e na Europa este tema é praticamente cotidiano.

As preocupações com esta cirurgia continuam as mesmas. Dois estudos recentes, envolvendo dezenas de milhares de pacientes publicados em 2006 no Ophthalmology, revelam que as características dos pacientes, mais do que eventuais complicações cirúrgicas, constituem-se nos fatores de risco mais relevantes (Tuft et al, Risk factors for retinal detachment after cataract surgery, 113;4:650-6). Aqui, idade, sendo os pacientes mais jovens os que apresentam riscos bastante aumentados de descolamento de retina (já consideradas as diferenças produzidas por eventuais ametropias) e o sexo, sendo os homens os mais susceptíveis a apresentar tal complicação. O estudo de base populacional de Erie et al, publicado na mesma revista, revela os achados comparáveis e também aponta que as chances de DR são muito próximas para extração extracapsular ou faco. Além do DR, outra preocupação é sem dúvida a ocorrência de endoftalmites e a ESCRS (Sociedade Européia de Catarata e Cirurgia Refrativa) divulgou recentemente os dados do seu estudo multicêntrico que revela uma incidência de 0,34% de endoftalmites. Neste mesmo estudo, a utilização de cefuroxime intra-cameral durante a cirurgia reduz esta incidência em 4,92 vezes.

No mundo, considerando-se Europa e Estados Unidos principalmente, a extração do cristalino transparente tornou-se técnica habitual. No Brasil, a técnica está se popularizando mas é considerada experimental.

A definição de cirurgia experimental data de 1996, feita pela resolução do Conselho Federal de Medicina-196, onde experimental é todo procedimento de qualquer natureza cuja aceitação ainda não existe na literatura. Não é o caso da extração do cristalino transparente. Os artigos científicos publicados em revistas com peer review ou não apresentam resultados bastante adequados para esta técnica ser considerada usual, ou seja, não experimental.

Para o cirurgião de catarata, que adotou a extração de cristalino transparente com finalidade refrativa, é importante lembrar que o código de ética médica e a resolução 196 consideram que tal procedimento só pode ser realizado sob protocolo científico aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa, em instituição habilitada, com termo de consentimento, onde é proibida a exploração comercial e, a instituição, assim como o investigador principal são responsáveis pelo tratamento de eventuais complicações advindas da técnica, sem ônus para o objeto da pesquisa.

Nesta situação de transição é freqüente o surgimento de alternativas para viabilizar procedimentos. É o caso da disfunção lenticular, termo utilizado para definir alterações funcionais do cristalino, como a presbiopia, na ausência de alterações de transparência. Este termo não existe no Código Internacional de Doenças e não pode ser utilizado para justificar procedimentos desta natureza.

Caso os oftalmologistas brasileiros considerem a troca do cristalino com finalidade refrativa, uma técnica eficiente e eficaz para tratamento de ametropias, estes devem se organizar para solicitar ao Conselho Federal de Medicina que altere suas resoluções anteriores e passe a considerar esta como uma técnica usual. Para ter êxito nesta missão, a Sociedade Brasileira de Catarata e Implantes Intra-oculares e a Sociedade Brasileira de Cirurgia Refrativa devem se organizar para elaborar um documento único que por si só justifique a alteração na classificação deste procedimento. Obviamente este documento, que pode ser baseado numa revisão sistemática da literatura, deve ter qualidade suficiente para sensibilizar a diretoria do CFM.

Aos críticos desta sistemática, lembramos as dificuldades de organizar um protocolo novo de estudo para responder esta necessidade. Neste protocolo, seria necessário o envolvimento de vários centros, com amostras superiores a 10 mil pacientes, e um tempo de pós-operatório bastante longo, considerando-se as estimativas de DR. Ainda, quem iria fomentar um estudo deste tipo, em um país que vai realizar apenas cerca de 200 mil cirurgias de catarata este ano.

Às sociedades citadas no texto, mãos à obra, ao Conselho Federal de Medicina, competência para analisar o pedido. Enquanto isto não acontecer, esta técnica, para ser realizada no Brasil, deve obedecer o conceito de cirurgia experimental.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007
Conselho Brasileiro de Oftalmologia Rua Casa do Ator, 1117 - cj.21, 04546-004 São Paulo SP Brazil, Tel: 55 11 - 3266-4000, Fax: 55 11- 3171-0953 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: abo@cbo.com.br