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Perfil clínico e critérios diagnósticos da mielorradiculopatia esquistossomótica

Clinical profile and criteria for the diagnosis of schistosomotic myeloradiculopathy

Resumos

Durante período de 20 anos (1972-1992), 56 pacientes com diagnóstico de mielorradiculopatia esquistossomótica foram internados em três hospitais de Belo Horizonte -- Minas Gerais. Dados de cada paciente foram coletados retrospectivamente de seus prontuários. Em todos os casos, o diagnóstico foi presumido e baseou-se nos seguintes critérios: 1) quadro de comprometimento medular torácico baixo ou lombossacro (síndrome de cone medular e/ou cauda equina); 2) epidemiologia positiva para esquistossomose; 3) comprovação laboratorial de esquistossomose através de exame parasitológico de fezes ou biópsia retal; e 4) exclusão de outras patologias que pudessem causar quadro semelhante. Vários aspectos clínicos e epidemiológicos foram estudados para determinar o perfil diagnóstico da mielorradiculopatia esquistossomótica nesta amostra e são apresentados neste artigo. Reconhecendo os vários problemas no diagnóstico da mielorradiculopatia esquistossomótica, enfatizamos a importância de se pensar nesta entidade e sugerimos critérios para definição diagnóstica.

esquistossomose mansoni; radiculopatia; mielite


During 20 year period (1972-1992) 56 patients with a diagnosis of schistosomotic myeloradiculopathy were admitted in three hospitals of Belo Horizonte - Minas Gerais. Data from pacients were collected retrospectively from their medical records. In all cases, the diagnosis was inferred in a presumably way and was based on the following considerations: 1) the finding of low thoracic/upper lumbar neurological symptoms; 2) positive epidemiology for schistosomiasis; 3) demonstration of exposure to schistosomiasis through parasitologic or serologic techniques; and 4) the exclusion of other known causes of transverse myelitis and myeloradiculitis. Several clinical and epidemiological aspects were studied to determine the diagnosis profiles of the schistosomotic myeloradiculopathy in this sample and are presented in this paper. In recognizing the many problems in diagnosis of schistosomotic myeloradiculopathy we emphasize how important is thinking about this entity and criteria to improve diagnostic evaluation are suggested.

schistosomiasis; radiculopathy; myelitis


PERFIL CLÍNICO E CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS DA MIELORRADICULOPATIA ESQUISTOSSOMÓTICA

Eustáquio Claret dos Santos1 1 Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte MG, Brasil (FMUFMG): Médico Neurologista, Chefe do Serviço de Neurologia e Neurofisiologia; 2 Professor Emérito de Neurologia; 3 Acadêmica de Medicina; 4 Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica. Apoio parcial: CNPq. , Gilberto Belisário Campos2 1 Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte MG, Brasil (FMUFMG): Médico Neurologista, Chefe do Serviço de Neurologia e Neurofisiologia; 2 Professor Emérito de Neurologia; 3 Acadêmica de Medicina; 4 Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica. Apoio parcial: CNPq. , Adriana Corrêa Diniz3 1 Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte MG, Brasil (FMUFMG): Médico Neurologista, Chefe do Serviço de Neurologia e Neurofisiologia; 2 Professor Emérito de Neurologia; 3 Acadêmica de Medicina; 4 Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica. Apoio parcial: CNPq. , Juliana Cardoso Leal3 1 Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte MG, Brasil (FMUFMG): Médico Neurologista, Chefe do Serviço de Neurologia e Neurofisiologia; 2 Professor Emérito de Neurologia; 3 Acadêmica de Medicina; 4 Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica. Apoio parcial: CNPq. , Manoel Otávio da Costa Rocha4 1 Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte MG, Brasil (FMUFMG): Médico Neurologista, Chefe do Serviço de Neurologia e Neurofisiologia; 2 Professor Emérito de Neurologia; 3 Acadêmica de Medicina; 4 Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica. Apoio parcial: CNPq.

RESUMO - Durante período de 20 anos (1972-1992), 56 pacientes com diagnóstico de mielorradiculopatia esquistossomótica foram internados em três hospitais de Belo Horizonte ¾ Minas Gerais. Dados de cada paciente foram coletados retrospectivamente de seus prontuários. Em todos os casos, o diagnóstico foi presumido e baseou-se nos seguintes critérios: 1) quadro de comprometimento medular torácico baixo ou lombossacro (síndrome de cone medular e/ou cauda equina); 2) epidemiologia positiva para esquistossomose; 3) comprovação laboratorial de esquistossomose através de exame parasitológico de fezes ou biópsia retal; e 4) exclusão de outras patologias que pudessem causar quadro semelhante. Vários aspectos clínicos e epidemiológicos foram estudados para determinar o perfil diagnóstico da mielorradiculopatia esquistossomótica nesta amostra e são apresentados neste artigo. Reconhecendo os vários problemas no diagnóstico da mielorradiculopatia esquistossomótica, enfatizamos a importância de se pensar nesta entidade e sugerimos critérios para definição diagnóstica.

PALAVRAS-CHAVE: esquistossomose mansoni, radiculopatia, mielite.

Clinical profile and criteria for the diagnosis of schistosomotic myeloradiculopathy

ABSTRACT - During 20 year period (1972-1992) 56 patients with a diagnosis of schistosomotic myeloradiculopathy were admitted in three hospitals of Belo Horizonte - Minas Gerais. Data from pacients were collected retrospectively from their medical records. In all cases, the diagnosis was inferred in a presumably way and was based on the following considerations: 1) the finding of low thoracic/upper lumbar neurological symptoms; 2) positive epidemiology for schistosomiasis; 3) demonstration of exposure to schistosomiasis through parasitologic or serologic techniques; and 4) the exclusion of other known causes of transverse myelitis and myeloradiculitis. Several clinical and epidemiological aspects were studied to determine the diagnosis profiles of the schistosomotic myeloradiculopathy in this sample and are presented in this paper. In recognizing the many problems in diagnosis of schistosomotic myeloradiculopathy we emphasize how important is thinking about this entity and criteria to improve diagnostic evaluation are suggested.

KEY WORDS: schistosomiasis, radiculopathy, myelitis.

A esquistossomose mansoni constitui uma das mais disseminadas parasitoses afetando o homem. Historicamente, corresponde a uma das mais velhas doenças conhecidas do mundo. O Egito foi, provavelmente, o primeiro foco do parasita, espalhando-se de lá para outras partes do continente africano e, mais tarde, para o Brasil, através do tráfico de escravos. Aqui, o parasita encontrou bom clima e hospedeiros favoráveis1. A doença constitui importante risco ocupacional em regiões tropicais e subtropicais2. No Brasil, representa um dos maiores problemas de saúde pública, estimando-se um total de 12 milhões de pessoas infectadas3.

O comprometimento do sistema nervoso no curso da esquistossomose mansoni vem ganhando, paulatinamente, importância cada vez maior na literatura especializada. As dificuldades no seu reconhecimento provavelmente limitam seu diagnóstico. Com relação ao sistema nervoso, não se conhece a frequência do seu envolvimento. Scrimgeour & Gajdusek (1981) relatam que, na Tanzânia, a esquistossomose foi responsável por 1% dos casos de paraplegia não traumática e que, em 5% de outros casos, estabeleceu-se o seu diagnóstico presuntivo4. A neuroesquistossomose pode resultar numa grande variedade de complicações. Seu diagnóstico é difícil, podendo ser confundido com o de outras etiologias5-8. Entretanto, a suspeita clínica da mielorradiculopatia esquistossomótica (MRE) não traz grandes dificuldades, apesar do diagnóstico, na maioria das vezes, ser presuntivo.

A inexistência de estudos que estabeleçam a freqüência da mielopatia na população esquistossomótica sugere a possibilidade que o diagnóstico, em muitos casos, passe despercebido, por falta de estudos sistemáticos visando estabelecer esta etiologia. Também, poderiam concorrer para a escassez de casos de MRE relatados, a baixa freqüência dos casos, a pouca consciência dos médicos, em nosso meio, para esta hipótese diagnóstica e a possibilidade de evolução frustra, oligossintomática ou transitória, com pouca perturbação funcional. Grande parte dos casos registrados na literatura, bem como os por nós catalogados7, receberam este diagnóstico de forma presuntiva. Os critérios usados são suficientes para o estabelecimento de um diagnóstico provável, mas não de certeza8.

É extensa a lista de possibilidades etiológicas a serem descartadas, o que complica a exequibilidade de propedêutica adequada em nosso meio, em virtude das dificuldades operacionais encontradas em nossas instituições de saúde9. Estes dados ilustram a precariedade da qualidade e apuro diagnóstico, reforçando a importância do estabelecimento de critérios mínimos necessários à formulação da hipótese de MRE.

MÉTODO

A presente pesquisa foi realizada através do levantamento de dados, de forma retrospectiva, em prontuários de pacientes com diagnóstico de mielorradiculopatia esquistossomótica, num período de 20 anos (1972 a 1992), em três hospitais da área metropolitana de Belo Horizonte, que são: Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG), Hospital Felício Rocho (HFR), Hospital João XXIII (HJXXIII) da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG). O método empregado consistiu na análise de prontuários de 56 pacientes com diagnóstico de mielorradiculopatia esquistossomótica, dos quais 31 estiveram internados no Serviço de Neurologia e Neurocirurgia do Hospital Felício Rocho, no período de julho de 1978 a março de 1991; 20 casos no Hospital das Clínicas da UFMG, no período de junho de 1978 a maio de 1992; e cinco casos no Hospital João XXIII da FHEMIG, no período de fevereiro de 1982 a julho de 1989.

Em todos os casos estudados, o diagnóstico de mielorradiculopatia esquistossomótica foi inferido clínica e laboratorialmente, sem comprovação histopatológica. Os critérios empregados no diagnóstico clínico e laboratorial foram os seguintes: 1) epidemiologia positiva para esquistossomose; 2) evidência clínica de lesão medular (torácica baixa, lombar ou sacral) e/ou de lesão de cone medular e cauda esquina; e, 3) presença de esquistossomose mansônica ativa, comprovada por exame parasitológico de fezes ou biópsia retal.

Em todos os casos analisou-se o hemograma, visando a identificação de eosinofilia, exame parasitológico de fezes (EPF) e/ou biópsia retal, reação imunológica para sífilis no sangue e líquor, e a reação de fixação do complemento para cisticercose no líquor. Através dos dados de anamnese e exame clínico, foram afastadas as possibilidades diagnósticas de doenças hereditárias (paraparesia espástica hereditária), poliomielite, esclerose múltipla, esclerose lateral amiotrófica, polirradiculoneurites, degeneração combinada de medula, condições patológicas de natureza tóxica (benzol, arsênico, mercúrio), física (pós-radiação), ou secundária ao uso de medicamentos (clioquinol, sulfas, penicilina, anestésicos).

Os dados analisados compreenderam a anamnese, o exame neurológico, os exames complementares realizados, o tipo de tratamento empregado e a evolução clínica. Foram também avaliadas as dificuldades encontradas na apuração dos dados, devido a falhas na descrição dos exames neurológicos e complementares. Em relação à anamnese, procurou-se atentar para o tempo decorrido entre o início das manifestações clínicas e o alcance à atenção médica. Os sinais e sintomas (dor, fraqueza muscular, parestesia, retenção urinária) foram tabulados de forma a se analisar sua frequência de forma isolada, ou em associação. Os principais achados descritos nos exames neurológicos foram sistematizados de forma a permitir a avaliação de sua frequência.

Os exames laboratoriais analisados consistiram do exame parasitológico de fezes, da biópsia retal, e do estudo do líquor. Em poucos casos foi realizada mielografia. Em relação ao estudo do líquor, foram analisados a citometria global, a predominância citológica, a pesquisa de eosinófilos, o teor de proteínas e de glicose.

Com relação ao tratamento, foram analisados seu emprego em relação ao tempo de instalação do quadro clínico, o tipo de tratamento realizado e a correlação com a evolução clínica.

RESULTADOS

Dos 56 pacientes levantados, houve predominância do sexo masculino numa proporção de 4:1. A distribuição segundo a faixa etária mostrou predominância de casos na idade entre 20 a 29 anos. A menor idade encontrada foi de três anos e, a maior, de 56, com média de 28,86 ± 12,43 anos. Os dados relativos à cor evidenciam predomínio, dos leucodérmicos, seguido dos feodermas, e por último, dos melanodérmicos. A maioria dos pacientes era proveniente da área metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, (69,6%), e apenas um paciente procedia de outro estado (1,8%).

Em relação à anamnese e ao exame neurológico, a queixa de retenção urinária ocorreu em 42 pacientes (75,0%), dor esteve presente em 43 (76,8%), parestesia em 41 (73,2%), fraqueza em 48 (85,7%), sendo esta a queixa mais comum. Dos 56 pacientes, os reflexos patelar e aquileu foram analisados em 51 e 50 pacientes, respectivamente. Observou-se que o reflexo patelar estava normal em 13 pacientes, abolido em 21, diminuído em cinco e aumentado em 12. O reflexo aquileu estava anormal em dez pacientes, abolido em 27, diminuído em três e aumentado em dez. Quanto ao nível sensitivo, o maior acometimento ocorreu, em ordem de freqüência, nos segmentos lombares altos e torácicos baixos. O nível mais alto encontrado foi T4 e o mais baixo S1.

O tempo decorrido entre a instalação dos sintomas e a admissão hospitalar foi extremamente variável. A média geral encontrada foi de 52,6 dias, com variação de um a 900 dias. A média de tempo de permanência hospitalar variou de quatro a 108 dias, com média de 22,02 ± 19,56 dias.

Os critérios observados na distinção entre as formas clínicas obedeceu, puramente, à presença de dores radiculares, déficit sensitivo, distúrbio esfinctérico e alterações de reflexos, e foram classificados de acordo com BIRD10. O maior número de casos correspondeu à forma mielorradicular, com 31 casos (55,3%), seguido pela forma mielítica, com 15 casos (28,6%). Verificou-se um caso com a forma pseudotumoral (1,8%). Em nove pacientes (16,1%) não foi possível estabelecer a forma clínica.

Do ponto de vista laboratorial, o exame parasitológico de fezes (EPF) foi positivo em 77,4% dos 31 casos em que este exame foi realizado. A biópsia retal, realizada em 45 pacientes, evidenciou presença de ovos de S. mansoni em todos eles (100%). A positividade de ambos os métodos, realizados simultaneamente em 18 casos, foi encontrada em 11.

O estudo do líquor foi realizado em 55 pacientes. O número de células estava normal em 21,4% dos casos. Predominou a pleocitose moderada, até 200 células/mm3, presente em 38 casos (69,1%). O número máximo de células encontradas foi de 699 células/ mm3. Em 98% dos casos, houve predomínio de mononucleares. Apenas em um caso (2%) observou-se predomínio de polimorfonucleares. O conteúdo de proteínas do líquido cefalorraquidiano estava alterado em 37 casos (72,5%) e normal em 14 (27,5%). O teor de glicose no líquor não mostrou alteração. A eosinofilorraquia foi encontrada em 32 casos (60,4%), e eosinofilia no sangue foi observado em 11 (20,4%).

A mielografia foi realizada em 20 casos. Destes, apenas um mostrou sinais de bloqueio com nível em L1- L2. O paciente foi submetido à laminectomia, sendo encontrado espessamento da leptomeninge, com presença de pontos branquicentos na superfície medular e ingurgitamento vascular. O estudo anatomopatológico não detectou ovos ou granulomas.

Em poucos casos foi possível determinar a forma clínica da parasitose. Houve predomínio da forma intestinal, encontrada em dez casos (17,9%). Verificou-se um caso, apenas, para as demais formas (aguda, hepatoesplênica e hepatointestinal). Em 43 relatos (76,8%) este dado não estava disponível nos prontuários.

Os pacientes foram tratados de forma variada, utilizando-se terapêutica específica isolada ou associada à corticoterapia. Esta última também foi usada em alguns casos, isoladamente. A maioria dos pacientes recebeu a associação de prednisona com oxamniquina (32 casos / 57,1%). Prednisona foi administrada isoladamente em 12 casos (21,4%) e dexametasona, associada à oxamniquina, em três casos (5,4%). O praziquantel foi usado em seis pacientes (10,7%) concomitantemente à prednisona. Apenas um paciente (1,8%) usou oxamniquina isoladamente e, em dois casos (3,58%), nenhum tratamento foi instituído.

Em sete casos, não houve informação quanto ao quadro evolutivo. Nos demais, foi observada melhora em 62,5% (35 casos). Em treze pacientes (23,2%) não houve modificação do quadro clínico. Um paciente (1,8%) apresentou piora.

DISCUSSÃO

O diagnóstico de certeza da mielorradiculopatia esquistossomótica repousa na confirmação anatomopatológica, seja por biópsia ou achado post-mortem. A maioria dos casos publicados na literatura, sem confirmação histológica, também não recebeu exploração extensiva de outros diagnósticos diferenciais. Além disso, a melhora clínica com o tratamento específico foi considerada, por alguns autores, como confirmação diagnóstica11-15.

Em relação ao estabelecimento da freqüência da mielorradiculopatia esquistossomótica, poucos são os trabalhos que se referem a esta questão. Basicamente, encontram-se dados obtidos por Scrimgeour, que relatou incidência de 6% de mielopatia atribuída à esquistossomose, numa série de 100 pacientes com paraplegia não-traumática4. Spina-França et al. relataram incidência de 5,6% de mielopatia, numa série de 353 pacientes com mielopatias não-traumáticas e não-tumorais, internados no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMSP)16. Galvão obteve freqüência de 0,3% de casos, num total de 9765 pacientes, internados na Clínica Neurológica do HC-FMSP, num período de 17 anos17.

Apuramos na literatura, nacional e estrangeira, um total de 181 casos descritos7. Destes, o diagnóstico foi feito através de análise histopatológica em 57 casos (31,3%), sendo 37 (20,6%) à biópsia de material cirúrgico, e 20 (11,1%), através de achado de necrópsia.

Com relação ao sexo, observa-se, na literatura consultada, nítida predominância do sexo masculino em relação ao feminino5,10,14,18. Em nossa série, observou-se proporção de 3,6:1 (78,6% masculino e 23,4% feminino). Este fato pode refletir a maior probabilidade de contágio em pessoas do sexo masculino, devido a fatores sócio-econômicos (tipo de trabalho, banho em rios e lagoas), assim como ao maior esforço físico por eles dispendido, que aumentaria a pressão intra-abdominal14.

A terceira década respondeu pela maior taxa de distribuição dos casos (41,1%), em conformidade com os dados catalogados na literatura (32,6%). É possível que também esta proporção possa ser devida a fatores sócio-econômicos.

Dos sintomas observados, a dor de localização lombar e sacral foi encontrada em 76,8% (43 pacientes), respondendo pelo sintoma inicial. Na série de Galvão, a dor constitui sintoma prodrômico, sendo encontrada em 75% dos casos analisados9. Nos casos relatados por Costa et al., a lombociatalgia esteve presente em 72,2% dos pacientes15. Nas casuísticas de Peregrino et al. e Ferrari et al., esta manifestação ocorreu em 100 e 96% dos casos, respectivamente14,19.

Retenção urinária e parestesia em membros inferiores vieram a seguir, com 75% e 73,2%, respectivamente. Incontinência urinária esteve presente em sete pacientes (12,5%). Estes sintomas são bastantes característicos da doença, de acordo com a literatura consultada14,15,17,20,21.

Em relação ao exame neurológico, fraqueza nos membros inferiores esteve presente em 85% dos casos. A paraparesia foi bilateral e simétrica em todos os casos observados. Este achado coincide com os relatos das principais séries analisadas14,15,17,19. Os reflexos profundos mostraram-se abolidos ou diminuídos na proporção de 51%, para o patelar, e 60%, para o aquileu. Hiperreflexia foi observada em 20% dos casos.

As lesões medulares na esquistossomose se distribuem preferencialmente nos segmentos inferiores-torácicos baixos e lombossacros, com características de síndrome de cone medular e cauda equina14,17,22, o que vai ao encontro de nossos achados (86,4%).

Problemas relacionados à potência sexual foram registrados em apenas três casos (5,4%), discordando de outras casuísticas, como as de Galvão e a de Peregrino et al., que mostraram comprometimento em 100% dos casos14,17. Esta cifra baixa encontrada pode se dever à falta da investigação sistemática deste dado na anamnese e também à não-informação espontânea por parte do paciente.

A predominância da forma mielorradicular (71 casos/44,4%), seguida pela mielítica (44 casos/27,5%) e pela pseudotumoral (39 casos/24,4%) não difere dos achados encontrados na literatura.

Dos exames laboratoriais, o parasitológico de fezes apresenta positividade variável nas grandes séries publicadas (38,4% na série de Galvão; 42,8% na de Peregrino et al.; e 59,5% na Costa et al.). Verificamos 77,4% de exames positivos. Na imensa maioria dos casos estudados, apenas se realizou um exame parasitológico de fezes.

Com relação à biópsia retal, o encontro de ovos de S. mansoni tem variado de 47,6%14 a 69,2%17 e 83,3%15. Verificou-se 100% de positividade nos 45 pacientes submetidos ao exame nesta série. Rabello verificou que a biópsia retal apresenta maior sensibilidade quando comparada ao exame de uma única amostra fecal, pelos métodos de Lutz/Hoffman, Pons & Janer ou Kato-Katz, e igual sensibilidade quando comparada a duas amostras23.

O exame do líquor estava normal em seis casos (10,7%). Pleocitose até 200 leucócitos por mm3 foi observada em 38 casos (69,1%) e acima deste valor em cinco casos (9,1%). O predomínio de linfomononucleares alcançou percentual de 98,2%. Em apenas um caso houve predomínio de polimorfonucleares. O teor de proteínas estava normal em 27,5% e elevado em 72,5%. Na grande maioria dos casos, as taxas ficaram entre 51 e 200 mg% (67,2%). O valor máximo encontrado foi de 2,8g%. O encontro de eosinofilorraquia ocorreu em 60,4%. Os achados liquóricos encontrados coincidem com o padrão descrito por Livramento et al., caracterizado por pleocitose às custas de linfomononucleares, hiperproteinorraquia, presença de células eosinófilas, e aumento do teor de globulinas gama24. Este último sem informações nos exames estudados. Testes imunológicos não foram realizados nos pacientes aqui catalogados. Na casuística de Galvão, o teste com a esquistossomina foi positivo em 80% dos casos, a imunofluorescência em 77,7%, e as reações de fixação do complemento e hemaglutinação em 100% dos pacientes testados17.

Apenas três pacientes foram submetidos a exame eletroneuromiográfico, que revelou sinais de desnervação em todos, caracterizando o comprometimento radicular.

Em relação à forma clínica da esquistossomose, observou-se um caso com forma aguda, dez com a forma intestinal, um com a forma hepatoesplênica, um com forma hepatointestinal e 43 casos não determinados. Nenhum caso apresentou quadro clínico compatível com forma pulmonar.

A corticoterapia foi usada em 94,6% dos casos, associada a tratamento específico em 73,2% e isoladamente em 21,4%. Os corticóides usados foram a prednisona (89,2%) e a dexametasona (5,4%). Não houve padronização das doses. Os pacientes receberam alta hospitalar, em uso de corticóide, não sendo possível determinar o tempo de duração da droga. Apenas um caso foi tratado exclusivamente com oxamniquina. Em um caso não foi realizado terapêutica e, em outro, não houve dados disponíveis.

Em 35 casos, houve melhora do quadro. Treze pacientes permaneceram inalterados, um piorou e, em sete casos, não se dispôs de dados sobre a evolução. A melhor resposta foi observada no grupo que fez uso da associação de corticóide com tratamento específico.

Devido à disparidade entre os grupos, não se pode tecer comentários quanto ao melhor tipo de corticóide ou de tratamento específico. O paciente que mostrou piora corresponde ao que foi submetido à laminectomia e uso de corticoterapia isoladamente. Este fato reforça os dados da literatura, os pacientes que sofreram intervenção cirúrgica apresentaram índices de melhora mais baixos, independentemente de terem ou não recebido tratamento específico e/ou corticóide após a cirurgia17.

Neste estudo, a média de tempo decorrido entre o início dos sintomas e a admissão hospitalar foi de 52,6 dias, com mínimo de um e máximo de 900 dias. Houve concordância com os dados publicados de 56,42 dias (desvio padrão de 121,97), com mínimo de dois e máximo de 730 dias17. O tempo de aparecimento da complicação neurológica, em relação ao início da infecção, não pôde ser inferido, devido à impossibilidade de se precisar a data provável do contágio. A variação observada nas médias obtidas entre o início dos sintomas e a admissão hospitalar reflete, por um lado, as dificuldades de acesso dos pacientes ao nível de atenção terciária e, ultrapassada esta barreira, a fatores relacionados ao número de leitos disponíveis para internação, geralmente reduzidos.

Alguns autores têm proposto o uso de protocolos com fins de padronização propedêutica, aumentando a possibilidade diagnóstica e permitindo o tratamento precoce14,25. É de grande importância o planejamento e aplicação destes protocolos objetivando diagnóstico e tratamento precoces, evitando o surgimento de quadros incapacitantes.

Em virtude da necessidade de se aventar este diagnóstico, e em decorrência das dificuldades de se realizar a propedêutica de forma rápida, sugerimos critérios para o diagnóstico clínico da mielorradiculopatia esquistossomótica. Este fato se prende às seguintes razões: 1. necessidade de se levantar esta hipótese para qualquer paciente, em nosso meio, com sinais sugestivos de comprometimento medular não-traumático; 2. necessidade de coleta de dados epidemiológicos, clínicos e laboratoriais que embasem o diagnóstico em diversos níveis de certeza, de preferência mais elevada; e, 3. necessidade de um mínimo de embasamento diagnóstico, para que o paciente seja submetido a tratamento precoce. O Quadro 1 apresenta a proposta de critérios para o diagnóstico de MRE, por nós sugerida.


Recebido 6 Outubro 2000, recebido na forma final 10 Maio 2001. Aceito 16 Maio 2001.

Dr. Eustáquio Claret dos Santos - Rua Domingos Vieira 273 / 907-10 ¾ 30150-240 Belo Horizonte MG - Brasil. E-mail: ecsantos@gold.com.br

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  • 1
    Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte MG, Brasil (FMUFMG):
    Médico Neurologista, Chefe do Serviço de Neurologia e Neurofisiologia;
    2
    Professor Emérito de Neurologia;
    3
    Acadêmica de Medicina;
    4
    Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica. Apoio parcial: CNPq.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Out 2001
    • Data do Fascículo
      Set 2001

    Histórico

    • Revisado
      10 Maio 2000
    • Recebido
      06 Out 2000
    • Aceito
      16 Maio 2001
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