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FERREIRA, Planejamento sim e não (um modo de agir num mundo em permanente mudança)

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Afrânio Mendes Catani

Professor no Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação da Unesp (Araraquara)

Ferreira, Francisco Whitaker. Planejamento sim e não (um modo de agir num mundo em permanente mudança). 4. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra 1983. 157 p.

Editado originalmente em 1978, Planejamento sim e não passou meio que despercebido, apesar de já ter alcançado sua quarta edição. Nesses cinco ou seis anos nada ou quase nada se falou acerca do trabalho de Whitaker Ferreira, que hoje trabalha na Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego.

Livro curioso e pouco convencional em sua forma e conteúdo, Planejamento sim e não conta com mais de uma centena de ilustrações de Claudius e é escrito num tom descontraído, qual seja, o de uma conversa fictícia entre dois amigos que se prolonga de um não menos fictício 19 de setembro a um sábado (ou "quase domingo"), 21 de novembro. Ou, nas palavras do autor, "as páginas que se seguem contêm simplesmente o registro de uma conversa que nunca existiu, os comentários de um ouvinte igualmente imaginário, e uns tantos desenhos sobre os assuntos tratados. Foi a forma que encontramos para evitar o discurso engravatado que deita sabedoria e termina por complicar, amedrontar e mistificar. Quando as coisas em verdade são mais simples e mais sérias, e sempre exigem que inventemos". E acrescenta, modestamente: "Como toda conversa e todo desenho, este livro somente sugere pontos de reflexão e discussão. Esperamos que possa prestar algum serviço para quem se disponha a utilizá-lo como um pequeno guia de trabalho" (p. 9).

No final dos anos 60, início dos 70, esteve muito em voga o tema do planejamento, com as conseqüentes análises do papel desempenhado pelo Estado (capitalista ou socialista) no processo de planificação. Assim, vieram à tona livros e artigos, no exterior e no Brasil, que analisavam os prós e contras dessa ação (ou intervenção) estatal. Marxistas, liberais, tecnocratas, direitistas empedernidos e outros - enfim, quase todos - lançaram lenha na fogueira. E o resultado foi uma profusão de publicações em que eram estudadas as mais variadas técnicas de planejamento; onde se defendia a criação de órgãos e autarquias com a função de gerir os projetos que estavam sendo implementados; onde se criticava ou se advogava a excessiva participação do capital estatal no total dos investimentos de várias economias de mercado; em que se procurava conhecer - a nível formativo e analítico - todas as etapas do processo de planejamento nas economias socialistas; etc.

Ultrapassando os modismos de 10 ou 15 anos atrás, Whitaker Ferreira inicia seu trabalho realizando um breve histórico sobre as origens do planejamento, deixando claro que a elaboração de planos "é coisa provavelmente conhecida do homem desde que ele se descobriu com capacidade de pensar antes de agir". Entretanto, foi com o desenvolvimento comercial e industrial, ocorrido com o capitalismo, "que a preocupação de planejar começou a invadir a área da economia. E daí para diante ninguém mais pode segurar a pressão". À medida que os negócios dos comerciantes dos tempos iniciais do capitalismo foram-se expandindo, a administração das fortunas começou a exigir novas formas de conduta: cada vez mais era necessário "saber prever, antecipar situações, arriscar fundos, lançar projetos de novos negócios, provar aos associados eventuais a probabilidade de ganho. Era um certo tipo de planejamento que começava a ser uma exigência normal da atividade econômica dos ricos da época, cujas 'escolas de administração de empresas' eram a prática cotidiana da luta concorrencial" (p. 27/28). Com a industrialização, observa-se a ocorrência de um novo salto qualitativo: a máquina entra para dar maior produtividade à mão-de-obra, "que produzia as mercadorias cuja venda permitia aumentar o capital aplicado e assim ganhar mais poder na luta com os concorrentes (...). O problema sendo garantir o mais baixo nível de custos possível e o escoamento adequado dos produtos fabricados, passava a ser necessário prever bem prevista a entrada das matérias-primas, o ritmo das máquinas, as funções dos operários, os horários, o nível dos salários, o comportamento dos mercados. Questões que se tomavam cada vez mais importantes à medida que as máquinas faziam aumentar os ateliês de produção, reunindo mais gente trabalhando junta e jogando para a venda uma quantidade cada vez maior de mercadorias" (p. 28).

Nas chamadas economias de mercado, "do planejamento de monumentos, casas, cidades, se havia passado ao planejamento dos negócios e da atividade industrial, à administração de empresas, à organização do trabalho, e se forçava a passagem ao planejamento de toda a economia, com o que entrava em cena, como planejador, o próprio governo. O que com o tempo iria implicar invadir as mais diversas áreas com a nova mania do planejamento: a agricultura, a educação, a saúde, a habitação, os transportes etc." (p. 33).

Com a célebre crise de 1929, observou-se uma mudança significativa na ação do Estado. Ficou claro que era impossível a continuidade da forma de Estado liberal (correspondente à etapa concorrencial da fase de reprodução ampliada do modo de produção capitalista), cujas tarefas básicas "se reduzem àquelas atividades que não podem ser realizadas com lucro pelo proprietário particular. Quanto ao resto, o Estado deve laisser-faire et laisser-passer. Em suma, o que é pedido ao Estado pelos proprietários é o direito de cada indivíduo perseguir seus próprios interesses. E como esses interesses são concebidos em termos econômicos, o governo não tem outra função a não ser garantir a proteção do jogo econômico" (ver Horta, José Silvério Baía. Planejamento Educacional. In: Mendes, Durmeval Trigueiro, coord. Filosofia da educação brasileira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1983. p. 202). O Estado liberal entra em colapso simultaneamente com o colapso da etapa concorrencial da fase de reprodução ampliada do modo de produção capitalista e da ideologia liberal que lhe é inerente. "Este colapso e a conseqüente afirmação do capitalismo monopolista constituem o enraizamento infra-estrutural de uma nova ideologia: o neocapitalismo. Ao contrário da ideologia liberal, que se baseia na crença do espontanefsmo automático e ascensional da História, o neocapitalismo está centrado na concepção de que a História (inclusive, e sobretudo a economia) precisa ser dirigida. A ideologia neocapitalista, como qualquer ideologia, tende a encarnar-se em aparelhos institucionais correspondentes - no caso, aparelhos da região jurídico-política, que na etapa monopolista da fase de reprodução ampliada do modo de produção capitalista assume a configuração da forma de Estado intervencionalista" (cf. Baía Horta. op. cit. p. 204/205).

Todas essas distinções Whitaker Ferreira realiza, embora de maneira não tão sistemática, ao longo das páginas que abrigam essa conversa imaginária sobre planejamento. É bem verdade que aqui e ali, durante os bate-papos, em muitas ocasiões o principal se dispersa e o acessório acaba por prevalecer - logicamente prejudicando o desenvolvimento de boa parte da argumentação. Há, também, algumas situações em que o autor exagera nas piadinhas e nas ironias. Mas como um todo, Planejamento sim e não (prefaciado por Paulo Freire) representa um antídoto eficaz contra a maioria dos manuais de planejamento (muito aceitos entre nós) que exclui a participação da comunidade na execução, nos resultados e nas decisões das questões vitais que irão condicionar a vida dos cidadãos que a integram.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1985
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