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Linhart, Robert. Lenin, os camponeses, Taylor

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Afrânio Mendes Catani

Professor no Departamento de Administração da Faculdade de Educação da Unicamp

Linhart, Robert. Lenin, os camponeses, Taylor. Trad. Daniel Aarão Reis e Lúcia Aarão Reis. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983, 172 p.

Robert Linhart, que já era conhecido dos leitores brasileiros através da tradução (publicada em 1980 pela Editora Paz e Terra) de Greve na fábrica, volta agora com o polêmico Lenin, os camponesesr Taylor, que praticamente passou em brancas nuvens por aqui. Tendo saído em 1976 pelas Éditions du Seuil (Paris) e com um subtítulo aparentemente pretencioso (Ensaio de análise baseado no materialismo histórico sobre a origem do sistema produtivo soviético), o livro procura concentrar-se em duas questões que estão na base da discussão acerca do caráter do regime existente na URSS, quais sejam, a posição de Lenin em relação aos camponeses e à aliança operário-camponesa, bem como a sua posição quanto à industrialização e ao processo de trabalho no interior das fábricas.

Comentando a situação política européia durante a I Guerra Mundial, Linhart afirma que, "de massacre em massacre, a repartição do motim acabou em carnificina: depois de 1914 a Europa engolfada em sangue mergulha por sua vez na barbárie" (p. 8). A selvageria dessa guerra e a crise profunda do imperialismo "colocaram de uma forma nova em todos os países da Europa as questões fundamentais da organização social - da simples sobrevivência - e do sistema produtivo e estatal" (p. 9). Com relação ao lado do proletariado, emergiu e se manteve apenas o Estado soviético, "a primeira ditadura estável do proletariado" (p. 14). A partir daí, o autor começa a pontuar a maneira pela qual irá trabalhar, colocando que "não faz sentido falar da política de Lenin e da formação da União Soviética sem analisar as condições concretas em que existiram - condições que também produziram em toda a Europa novas formas de ditadura da burguesia" (p. 14). E essas condições concretas eram extremamente adversas, chegando a provocar a seguinte afirmação de Lenin: "Temos agora de resolver o problema mais elementar de qualquer comunidade humana: vencer a fome..." (Oeuvres completes, t. 27, p. 447, 448,451 - citado por Linhart à p. 15). Emergindo numa Europa devastada, "a economia soviética nasceu e tomou forma enquanto modo de resolução dos problemas mais elementares da sobrevivência: alimentar-se, aquecer-se, produzir as coisas mais indispensáveis à existência humana. Esta economia, desde o início, coloca-se na dependência dos fenômenos naturais (...); ela está marcada pelo ritmo das estações do ano, pelo cicio dos trabalhos agrários (as épocas de plantio, de colheita e de cultivo da terra), o problema dos transportes indispensáveis e das comunicações, as ofensivas do frio e as dificuldades próprias do inverno, a procura dos combustíveis, a resistência às epidemias (...). Quando, em dezembro de 1919, na 8º Conferência do PC (b) R, Lenin relaciona e analisa os principais problemas do momento, constata-se de que forma se resume às condições fundamentais da simples sobrevivência: "O problema do abastecimento está na base de todos os problemas (...)„ Um outro problema essencial é o do combustível (...). A lenha deve nos salvar (...). A terceira tarefa é a luta contra os piolhos que transmitem o tipo exantemático. Esta espécie de tifo, numa população enfraquecida pela fome, doente, sem pão, sem sabão, sem combustível, pode degenerar numa calamidade que nos impedirá de vencer as dificuldades no rumo da construção de qualquer tipo de socialismo. Trata-se de um primeiro passo na luta pela cultura, e se trata de uma luta pela existência" (p. 15-6; as citações de Lenin foram transcritas por Linhart das OC. t. 30, 185-7).

Assim, pode-se constatar que a trama política de Lenin e do sistema econômico que toma forma nestas condições de luta de classes encarniçada resumem-se a palavras de ordem que variavam ao sabor das circunstâncias, procurando resolver ou amainar demandas aparentemente simples, porém, essenciais à sobrevivência do jovem Estado proletário (p. 16).

Sem se preocupar em desenvolver um trabalho propriamente de historiador, e muito menos aparesentar uma reflexão de conjunto ou um balanço sintético da revolução soviética (essas abordagens podem ser encontradas em textos de E.H. Carr e de Charles Bettelheim), Linhart explora certos limites da Revolução Russa e do pensamento de Lenin "não para fechar a brecha, mas para amplía-la. Não para abandonar o caminho aberto - o caminho da revolução proletária -, mas para se engajar nele mais profundamente" (p. 19). E esse seu engajamento se dá através de uma "análise histórica das medidas concretas e da ideologia de Lenin e do partido bolchevique em termos de organização econômica". Para tanto, limita-se a dois conjuntos de problemas que lhe parecem essenciais, na medida em que se relacionam às duas classes fundamentais de produtores diretos: "apolítica agrária (ou seja, as relações com o campesinato); a política de organização do trabalho industrial (ou seja, um dos aspectos essenciais da relação com a classe operária)" (p. 18, grifos do original).

Lenin e os camponeses

A primeira parte, Lenin e os camponeses, é composta de quatro capítulos, a saber: O movimento de massa, A fome, O ódio e A revolução cultural. No primeiro capítulo, Linhart pondera que perto de outubro que se refaz o mundo. A colheita terminou e a terra se oferece novamente, imensa e indiferenciada. Tudo está disponível para que se recomece. Mas como? Quem trabalhará onde? A revolução de fevereiro de 1917 não mudou grande coisa no campo: pelo menos colocou o problema" (p. 23). Desde que o czar foi derrubado, há meses, o futuro das terras está sendo discutido. O tempo está correndo e as linhas políticas sobre a questão agrária enfrentam-se desde fevereiro-março de 1917: "nacionalização? repartição?... Cada grupo tem seu programa, os projetos de lei ou de decretos se acumulam, os textos enfrentam-se nos sovietes. Bolcheviques, mencheviques, socialistas-revolucionários, cadetes lutam entre si (...) No verão nada se faz de decisivo e, se algo amadureceu na imensidão camponesa, trata-se apenas do caminhar silencioso e subterrâneo do pensamento coletivo que toma forma lentamente... Eis que agosto-setembro-outubro de 1917, este pensamento coletivo se condensa, e uma idéia simples toma conta da imensa massa camponesa que vai, novamente, derrubara Rússia: é preciso agir agora, no momento dos trabalhos de plantio. É agora que cabe a nós, camponeses, tomar as terras senhoriais, marcando-as com nosso trabalho e estabelecendo assim nosso direito" (p. 25). É nesses meses que se observa o passar à ação das massas camponesas, que tomam as terras dos senhores, proíbem pela força os trabalhos dirigidos pelos proprietários de terras e realizam, de acordo com seus interesses e vontade, os trabalhos de plantio e de semeadura. "O movimento de massa camponês decide resolver à sua maneira a 'questão agrária'. É a 'divisão na marra' " (p. 25; grifos do original). Nesse momento crucial, em que se colocava na prática "a questão de apoiar ou de reprimir o movimento revolucionário de massa dos camponeses, somente Lenin e o partido bolchevique se colocaram, de fato, ao lado dos camponeses. Aí está (...) a verdadeira base da insurreição, do ponto de vista do movimento de massa" (p. 26). Assim, "se outubro ocorreu em outubro, foi porque os camponeses russos, passando à ação na época dos trabalhos de plantio, puseram em cheque todas as forças políticas, obrigando-as a se definirem em relação à questão do poder das massas (...). A única resposta conseqüente, nesta situação de crise aguda, foi a dos bolcheviques: a insurreição armada contra o governo provisório, para salvar e proteger o movimento de massa" (p. 26-7). Desde abril de 1917, Lenin defende a posição segundo a qual é necessário convocar os camponeses para tomar as terras, bem como os soldados para ajudá-los nesta tomada revolucionária (p. 29). Nesse mesmo mês de abril, o partido socialista-revolucionário toma posição inversa: "a reforma agráfia deve ser realizada na legalidade; não se pode tolerar nenhuma ação espontânea dos camponeses antes da reunião da Assembléia Constituinte..." (p. 30; grifo do original). Ou seja, os socialistas-revolucionários pretendiam, como o conjunto da burguesia, "concedera terra aos camponeses, mediante compensações aos proprietários de terras expropriados" (ibidem). Em 29 de setembro de 1917, Lenin escreve: ,Os bolcheviques serão traidores do campesinato (se não atuarem; RL), porque tolerar que um governo (...) esmague a sublevação camponesa, seria perder toda a revolução" (p. 31: citação extraída por Linhart das OC. t. 26", p. 71, 76).

No capítulo segundo; A fome, o autor mostra que a delicada "questão agrária", que começara a ser resolvida (a sua maneira) pelo movimento camponês no outono de 1917 sofre, na primavera de 1918, "a intervenção de um monstruoso intruso que procura colocá-la brutalmente de uma forma inesperada: o intruso se chama A FOME. E não se dispõe tão cedo a deixara cena!" (p. 34). A partir de 1918, a fome, a questão de excedente agrícola, a ideologia camponesa - "o trigo é o fruto do meu trabalho: posso dispor dele como bem entender" -, o ódio anticamponês de uma parte da intelectualidade e da pequena-burguesia urbana, a liderança ideológica dos kulaks nos pequenos povoados, a implacável decisão do proletariado imerso na guerra civil, tudo representa um desafio quase insuperável para os bolcheviques (p. 35). Apenas alguns meses após a revolução de outubro, a euforia do movimento de massa camponês começa a se chocar com a questão do abastecimento das cidades, levando os bolcheviques a sofrerem um acuamento por parte dessas massas (p. 35). Lenin, dotado de um otimismo exagerado, chega a organizar os chamados destacamentos de abastecimento, formado por operários, com a finalidade de descobrir, em toda a Rússia, estoques de grãos escondidos pelos especuladores. "Quase não se coloca ainda a questão de ir procurar os grãos nas casas dos camponeses" (p. 35). Mas logo se toma consciência de que os estoques de grãos escondidos aqui e ali não passavam de um mito. A má colheita do verão de 1917, seguida a perda da Ucrânia, "celeiro de trigo de todo o país", conjugava-se com as devastações da guerra para compor um quadro trágico. "Era preciso conseguir que o campesinato se voltasse para si mesmo, era preciso repartira produção com as cidades. Era preciso conseguir que o campesinato entregasse todo o trigo que excedesse suas necessidades vitais" (p. 37; grifos do original). Os camponeses respondem aos "destacamentos" de duas maneiras: a curto prazo, esconde-se o trigo; a longo prazo, a semeadura se restringirá ao que é estritamente necessário à sobrevivência da família (p. 40). Á véspera da intervenção imperialista e da guerra civil (que durará até 1921 ), abre-se uma terceira frente militar: "durante todo este período, os camponeses lutarão simultaneamente em dois lados: com o governo soviético contra os Brancos - que devolviam suas terras aos proprietários fundiários; contra o governo soviético para conservar os grãos que os 'destacamentos' querem tomar. As tropas de 'verdes', guerrilhas camponesas refugiadas nas florestas, combateram os exércitos brancos no sul da Rússia, e depois o poder dos sovietes. Os camponeses dirão: 'Fui um Verde até os Vermelhos me tornarem um Branco' "(p. 40-1).

Ao mesmo tempo em que convoca a cruzada pelo trigo, organizando os destacamentos de abastecimento, Lenin começa a analisar a resistência ideológica do campesinato ao comunismo. Assim, para se conseguir arrancar o trigo dos esconderijos, é preciso travar uma luta dupla: contra os inimigos (os kulaks) e, também, "contra as ideologias inimigas (os hábitos, a desconfiança, o desespero do pequeno camponês)" (p. 41 ). A cruzada pelo trigo, iniciada em maio-junho de 1918 é composta, essencialmente, dos destacamentos de operários armados que as cidades enviam ao campo. "Em 11 de junho de 1918, o poder soviético cria os 'comitês de camponeses pobres'. Espera-se que eles apoiem a 'cruzada'. (...) Organização artificial e não-criação das massas. Desde esta primeira tentativa de 1918, a revolução no campo é uma revolução de cima para baixo, uma revolução importada. 0 mesmo caráter encontraremos quando da coletivização de 1929" (p. 42). Lenin recomenda que era necessário "ganhá-los através de medidas assistencialistas", na esperança de que eles servissem como fonte de informações para localizar os estoques de grãos e identificar os especuladores ip. 42). Mas os "Comitês de Camponeses Pobres" têm duração efêmera, pois em novembro-dezembro de 1918 serão fundidos com os "sovietes rurais". De acordo com o historiador E. H. Carr, tais comitês "limitaram-se a desempenhar uma única função prática, a de fornecer informantes" (p. 44). Boa parte do que resta do presente capítulo, Linhart dedica a estudar o papei do "camponês médio" - "o pequeno cultivador, empregando às vezes um ou dois assalariados, mas normalmente não tendo nenhum assalariado, seria chamado em outros países de camponês pobre. Na Rússia, chama-se este camponês de 'médio' para distingui-lo dos sem-terra e dos miseráveis do povoado" (p. 45). 0 próprio Lenin enxerga com lucidez essa questão, chegando a formular (novembro de 1919) a teoria do duplo caráter do camponês médio: "O camponês médio produz mais víveres do que tem necessidade, e, dispondo assim de excedentes de grãos, torna-se um explorador do operário esfomeado. Esta é (...) a contradição fundamental. O camponês enquanto trabalhador, enquanto homem que vive de seu próprio trabalho (...) está do lado do operário. Mas o camponês enquanto proprietário, que dispõe de excedentes de grãos, está acostumado a considerá-los como sua propriedade, suscetível de venda livre. Todos os camponeses não compreendem absolutamente que o livre comércio de grãos é um crime de Estado. 'Eu produzi o grão, ele é fruto de meu trabalho, tenho o direito de comercializá-lo - eis como o camponês raciocina, por hábito, à maneira antiga. Quanto à nós, dizemos que se trata de um crime de Estado" (p. 46-7; Lenin, textos citados por Carr, The Bolshevik revolution. Ed. Penguin, t. 2, p. 168).

Lenin afirmava que o camponês médio cultivava a terra com suas mãos, tratando-se, portanto, de um trabalhador. Nesse sentido, não se pode arrancar dele os meios de trabalho pela força, sendo preciso persuadi-lo. Em épocas de fome, entre tanto, seu produto (o grão) é algo precioso, que lhe permite especular, tornando-se um "explorador", e contra esse camponês "explorador", a coersão é legítima, sendo necessária que os excedentes lhe sejam tomados pela força. "A diferença pode parecer sutil, mas a teoria aqui reflete apenas as contradições da prática: utilizar a violência contra o aspecto explorador do campesinato, a persuasão em relação ao aspecto trabalhador" (p. 47). Por sua vez, os camponeses médios se defendem, produzindo apenas o que se vai consumir. Resultado: "a resistência camponesa concentra-se na produção, reduzem-se as áreas plantadas e, a cada ano, até 1921, o campo produz menos trigo... Pode-se confiscar um excedente que não existe?" (p.47). Linhart pondera que esta semi-aliança proposta aos camponeses acaba sendo recusada na prática, pois há inúmeras sublevações agrárias durante todo o período de "comunismo de guerra". Quando o poder soviético for acuado à NEP em 1921 "(liberdade de comércio para o trigo, no início, ampliada ao conjunto da economia em seguida)", constata-se que camponês médio (e seu lado "especulador" influíra seriamente no aspecto produtor (p. 47-8). Mas logo em seguida, a NEP acabava por recuar nos dois planos, ou seja, o camponês, dono da sua terra, voltava a ser dono de sua colheita. Entretanto, em 1929, a ofensiva foi retomada no campo e já não mais no terreno da distribuição, mas sim no da produção. "Coletivizara distribuição não é possível se não se coletiviza a produção..." (p. 48; grifos do original.

Concluindo capítulo, Linhart afirma que em relação à questão agrária, o "leninismo" consiste na brutal unidade de duas posições extremas, separadas por alguns meses: "em outubro de 1917, um apoio incoindicional - único neste momento na Rússia - dado ao movimento de massa camponês; na primavera de 1918, a reviravolta incitada pela fome, a questão agrária subordinada ao abastecimento das cidades, a coercão na ordem do dia da prática" (p. 48-9).

Os dois capítulos finais desta primeira parte - O ódio e A revolução cultural - serão examinados de forma mais rápida. No primeiro, o autor mostra, através de longas citações (principalmente de O camponês russo , de Máximo Gorki), "o pavor qúase religioso de muitos intelectuais russos de sua geração diante do imenso mistério camponês" (p. 50). O horor de Gorki frente ao proletariado, por exemplo, testemunha a profundidade de "revolução cultural", que espontaneamente vai-se espalhando pela Rússia toda - "explosão de um 'rancor' contido durante séculos" (p. 52). Mas, pergunta-se Linhart, "de onde vem o ódio contra o campesinato russo, este rancor do qual Gorki se torna porta-voz? Porta-voz seguramente de uma certa corrente de opinião (...) Claro, (...) há interesses de classe imediatos que falam: o estatuto do intelectual está ligado à proteção da herança cultural ameaçada pela massa: a batalha do abastecimento, opondo cidades e campos, deixa profundas cicatrizes e o fermento de um recíproco ranço..."(p. 59). Mas Linhart acha que só isso não explica este ódio, que parece ser "o resultado de uma longa ruminação repentinamente exacerbada pelas circunstâncias". E se pergunta, mais uma vez: "De onde vem este ódio?" (p. 59). Sua resposta, entretant, não é das mais complexas. Senão, vejamos: "Coloquei a questão a um historiador soviético. Ele recusa o termo 'ódio' - como admiti-lo, se Gorki permaneceu um auto oficialmente venerado? -, mas reconhece uma forma de 'incompreensão' em relação às massas camponesas: segundo ele, ela reflete a reviravolta de um número importante de intelectuais russos de sua geração que, impelidos pela corrente 'populista', foram pregar o socialismo nas regiões rurais mais longínquas, e, sendo mal recebidos, voltaram cheios de amargura em relação ao mundo camponês" (p. 59). E o autor acrescenta: "por ter assistido a fenômenos comparáveis, creio tranqüilamente nesta reviravolta. Passar da adoração mística à repulsa, quase sem transição, é um movimento natural à exaltação da pequena-burguesia intelectual" (p. 59). As desilusões da juventude intelectual são muitas vezes vingativas. "Existe pior ódio que o que sucede a um amor frustrado? O êxito ou o fracasso da ligação dos jovens intelectuais com as massas operárias e camponesas é, em períodos de ascenso revolucionário, uma questão complexa, mas crucial: se estas forças não encontram um terreno comu, se a ideologia da juventude intelectual (...) se constitui antagonicamente à ideologia difusa das forças profundas do povo, um elo decisivo está antecipadamente minado" (p. 60; grifo nosso).

No capítulo intitulado A revolução cultural, Linhart destaca algumas das principais preocupações de Lenin no período final de sua vida, de fins de 1922 a começos de 1923: "Lenin, já praticamente imobilizado pela doença que vai em breve levá-lo, trava suas últimas batalhas políticas e medita sobre a Revolução russa. Como desenvolver a instrução pública e desencadear no campo uma 'revolução cultural'? Como lutar contra a monstruosidade burocrática do aparelho de Estado herdado do despotismo czarista?" (p. 62). E por aí vai. Para ele, tudo vai girar em torno do campesinado. Até 1923, estava convencido de que os fatores materiais determinantes para uma transformação socialista do campo seriam as máquinas agrícolas e a eletrificação (p. 67). Seu plano imediato seria o de obter produtos industriais para trocar pela parte comercializável da colheita. "Se ois camponeses, extenuados pela guerra e pela fome, não conseguirem obter nada em troca, não darão 'crédito', não entregarão nada..." (p. 68). Lenin se convence disso - o campesinato não dará mais crédito - a partir de 1921, após analisar o estado de espírito das massas camponesas. No relatório apresentado ao X Congresso do PC(b)R em 15 de março de 1921, afirmou: "Se vocês puderem fornecer máquinas ao campesinato, vocês o liberarão, e no dia em que voes lhe derem máquinas ou a eletrificação, milhares e milhares de pequenos kulaks serão aniquilados. Enquanto isso não acontece, dêem ao menos uma certa quantidade de mercadorias" (p. 70; extraído das OC de Lenin, t. 32, p.235-6).

Lenin e o taylorismo

A segunda parte do livro de Robert Linhart é constituída por seus capítulos, a saber: O que é o sistema Taylor?; Limites da crítica de Taylor por Lenin antes da revolução de outubro; Complexidade da posição 'tailoriana' de Lenirfem 1918; Rede ferroviária: emergência da ideologia soviética do processo de trabalho; Os sábados comunistas e, finalmente, O proletariado inencontrável.

O que é o sistema Taylor?, primeiro capítulo desta parte, procura expor, brevemente, as idéias de Frederic Winslow Taylor e as aplicações desse modo de organizar o trabalho (scientific management), planejado e experimentado nos EUA a partir de 1890. Logo após a assinatura da paz de Brest-Litovsk (3 de março de 1918), estoura um debate acerca da organização econômica do novo regime. "Lenin preconiza, entre outras medidas urgentes, visando a estabelecer a disciplina do trabalho e a aumentar sua produtividade, a introdução sistemática de elementos calcados no sistema Taylor. Combatida, imediatamente, pelos 'comunistas de esquerda' (grupo de Bukharin), os mencheviques e os anarquistas, essa posição tornou-se centro de debates acalorados" (p.77). Uma análise pormenorizada do taylorismo de Lenin, bem como das condições em que surgiu e de que esquema específico, deverá permitir a tomada de consciência do que realmente ocorreu naqueles anos efervescentes.

Já em 28 de abril de 1918, Lenin afirmava: "É preciso organizar, na Rússia, o estudo e o ensino do sistema Taylor, sua experiência e sua adaptação sistemáticas" (p. 77; OC. t. 27, p. 268, cit. por Linhart). Dias antes (1? de abril de 1918), em sua intervenção na direção do Conselho Central de Economia Nacional, aprofundava um pouco mais. Na ata da reunião pode-se ler: "A discussão trata do projeto referente à disciplina do trabalho, levado a cabo pelo Conselho dos Sindicatos da Rússia. O camarada Lenin propõe uma série de emendas e de fórmulas mais precisas de determinados pontos. Propõe que se concretize o projeto (...). O decreto deve-se referir especificamente à introdução do sistema Taylor, em outras palavras, à utilização de todos os processos científicos de trabalho contidos nesse sistema (...). Na ocasião em que se aplicar esse sistema, convidar engenheiros americanos (...)" (p. 77; OC. t. 42, p. 72).

O segundo capítulo, Limites da crítica de Taylor por Lenin antes da revolução de outubro é um dos mais extensos do livro. O tópico primeiro, intitulado Análise dos textos, é extremamente rico, pois o autor se concentra no exame de artigos publicados por Lenin antes de 1917, bem como se vale de suas observações contidas nos Cadernos do Imperialismo, além de outras fontes. Segundo Linhart, em março de 1913 e em março de 1914, Lenin publicou no Pravda dois breves artigos de crítica ao sistema Taylor (apenas para situar, histricamente, acabara de estourar, no inverno de 1912-13, uma greve na França, nas usinas Renault, contra a adoção do sistema Taylor e da cronometragem; mesmo nos EUA, onde havia sido implantado há apenas uma década, o sistema Taylor encontrava forte resistência por parte dos sindicatos e por parte dos meios patronais, o que acabou determinando, em 1912, a criação de uma comissão de inquérito do Congresso americano; finalmente, na Rússia, "a existência .de grandes empresas industriais nas mãos do capital estrangeiro ou controladas por ele e a utilização maciça de mão-de-obra recém-chegada do campo e não-qualificada e também as cndições terroristas de exploração da classe operária, são outros tantos fatores favoráveis ao desenvolvimento do sistema Taylor") (p. 84).

O primeiro artigo de Lenin, publicado no Pravda, foi a recuperação de uma conferência sobre o taylorismo no Instituto de Engenheiros de Vias e Comunicações, em Petersburgo. O título já era bastante significativo: "Um sistema 'científico' para esmagar o operário" (OC. 1.18, p. 618-9). De acordo com Linhart, "o artigo critica muito violentamente o sistema Taylor que esgota fisicamente os operários e constitui uma das causas do desemprego" (p. 85). O segundo artigo apareceu exatamente um ano depois, se chamando "O sistema Taylor é a sujeição do homem pela máquina" (OC.t.20, p. 156-8). "Este é mais pormenorizado. Aí já aparece a dupla apreciação do sistema Taylor que Lenín irá aprofundar mais tarde" (p. 85). Neste artigo, retoma os ataques do ano anterior contra o sistema Taylor, destacando que tal sistema aumentava a exploração, esgotava fisicamente os operários e agravava o desemprego. A partir daí, Lenin descreve com mais precisão os métodos taylorianos, buscando em sua descricão uma racionalidade da organização do trabalho capitalista: "utilização da fotografia, do cinema, eliminação dos movimentos supérfluos, nova disposição das construções industriais de modo a minimizar os transportes, transformação dos instrumentos de trabalho e da ordem das operações. Partindo daí, a crítica de Lenin desloca-se e se concentra na contradição entre uma organização mais 'racional' do trabalho no interior da fábrica e a 'anarquia' econômica que reina na sociedade capitalista" (p. 85). Lenin acusa o taylorismo e o capitalismo em geral do erro de "limitar a racionalização ao processo de trabalho e, daí, reduzi-la ao papel de uma arma suplementar, no arsenal da exploração. O objetivo que transparece aqui, na análise de Lenin, é dissociar o taylorismo de sua função de exploração capitalista e estender seus princípios a toda a economia. A 'racionalização' da organização do trabalho fornece o modelo de uma racionalização do organismo econômico da sociedade inteira" (p. 86; grifos do original). E o próprio Lenin afirma: "Apesar de seus autores e contra a vontade deles, o sistema Taylor prepara o tempo em que o proletariado há de tomar em suas mãos toda a produção social e há de designar suas próprias comissões, comissões operárias encarregadas de repartir e regulamentar judiciosamente o conjunto do trabalho social. A grande produção, as máquinas, as estradas de ferro, o telefone, são coisas que oferecem mil possibilidades de reduzir a quatro vezes menos o tempo de trabalho dos operários organizados, garantindo-lhes, ao mesmo tempo, quatro vezes mais conforto do que têm atualmente" (p. 86; OC, t. 20, p. 158).

Depois desses dois artigos muito curtos, de 1913 e 1914, Lenin não publica mais nada sobre Taylor até a revolução de outubro, e mais precisamente, até a primavera de 1918. Nesta data, passará a preconizar a introdução sistemática do taylorismo na Rússia (p. 87). Linhart esclarece ainda que em nenhum dos dois textos teóricos fundamentais (O imperialismo, fase suprema do capitalismo e O estado e a revolução) publicados em 1917, e que passarão a constituir o programa de princípio da estratégia revolucionária dos bolcheviques, encontra-se menção de Taylor. Entretanto, um exame dos Cadernos de Lenin, nos quais ele reúne principalmente em 1915-16 o material para O imperialismo fase suprema do capitalismo (esse naterial, reunido sob o título Cahiers de l'impérialisme, vem a ser o volume 39 das OC. de Lenin, Moscou, 1970, edição francesa), é suficiente para perceber que o taylorismo continua a atrair sua atenção e, até mesmo, conserva lugar de destaque em seu raciocínio e em sua concepção da revolução socialista como um todo (p. 87). Linhart faz um comentário da maior importância, enfatizando que "repetidas vezes, nas notas dos cadernos preparatórios, fica evidente que Lenin tencionava concluir O imperialismo... referindo-se a Taylor e à 'racionalização técnica' como forma transitória que preparasse o socialismo na época do capialismo monopolista" (p. 87; grifos do original).

Assim, como Lenin não inclui o taylorismo na análise sistemática do imperialismo que publica em 1917, Linhart vai aos materiais preparatórios, ou seja, aos Cadernos do imperialismo e procura reconstituir sua análise sobre a questão, na época. Encontra-se nos Cadernos uma apreciação pormenorizada de três obras de análise do taylorismo. A primeira delas, anotada com detalhes, vem a ser uma tradução alemã de A gestão da empresa, de Taylor, publicada em 1912 "e apresentada por um alemão que visitara as empresas americanas e particularmente a fábrica de aço de Betheleem, uma das primeiras fábricas 'taylorizadas' dos EUA (...) Lenin anota, com todo o cuidado, os dados que descrevem a nova divisão entre o trabalho de direção e o trabalho de execução, no sistema tayloriano. Esta transformação da estrutura do trabalho atrai sua atenção porque ela reforça o papel da aristocracia operária que ele denuncia com veemência, na mesma época, em seus outros textos sobre o imperialismo. Lenin anota, partindo deste ponto de vista, o papel muito importante, reservado pelo sistema Taylor, aos contramestres e a todo o pessoal de enquadramento do trabalho. Ele comenta: 'Há um interesse em despertar a cobiça e a ambição dos operários, promovendo-os a contramestres' (OC. t. 39, p. 153)" (p. 88-9). Após algumas outras observações a respeito do livro de Taylor, Lenin ainda escreve sobre a resistência dos sindicatos ao taylorismo e, finalmente, anota o caráter ainda limitado desse sistema nos EUA, Ele destaca a seguinte frase: "Ao todo, não haveria, na América, mais que 60 mil operários trabalhando segundo os princípios dos estabelecimentos reorganizados." E comenta, na margem: "N.B.: sobo capitalismo, 'suplício ou façanha', somente 60 mil operários" (p. 89; OC. t. 39, p. 155).

A segunda das obras anotadas por Lenin nos Cadernos do imperialismo vem a ser o livro de um engenheiro alemão, Seubert, intitulad Uma aplicação prática do sistema Taylor (Berlim, 1914). Novamente, Lenin extrai a correlação entre taylorismo e desenvolvimento da "aristocracia operária" ("aburguesar!!", comenta, ele, "referindo-se à menção de aumentos de salários, na base de um terço, colocando os operários no mesmo nível econômico dos comerciantes ou dos técnicos" (p. 89-90). Também ele não se esquece de observar "a nova relação numérica entre operários de um lado, empregados e chefia de outro, assim como indicações sobre cronometragem" (p. 90). Linhart acrescenta que, de modo geral, as apreciações de Lenin sobre estes dois livros vão se restringir à crítica social, "concentrada na super exploração e no desenvolvimento da aristocracia operária". Isso difere quanto ao terceiro livro, examinado a seguir: Estudo do movimento, do ponto de vista do crescimento da riqueza nacional, 1915, de autoria de Gilbreth, discípulo americano de Taylor. "Aqui, o ponto de vista se inverte e a conclusão final coloca em evidência o'processo técnico' resultado dos métodos taylorianos" (p. 90; grifos do original). Acentuam-se, ainda, as descobertas recentes feitas nos EUA, com o auxílio de fotografias, sobre os "micromovimentos" (p. 90).

A partir desses textos, é possível afirmar que Lenin considera a "estandardização" do trabalho manual um importante progresso em direção ao socialismo. Uma segunda função positiva do sistema Taylor, aos olhos de Lenin, esboça-se no mesmo período: o aumento da produtividade do trabalho (p. 91). Em 1917, o aumento da produtividade do trabalho ocupa, no pensamento de Lenin, um lugar central. Em O estado e a revolução fala da necessidade de se reduzir a jornada de trabalho. "E o que é que garante a redução da jornada de trabalho? Justamente, o uso generalizado e 'racional' das forças produtivas e, em primeiro lugar, da força de trabalho humana que o capitalismo, pensa Lenin, preparou, mas freia. O taylorismo lhe parece ser um desses métodos" (p. 91-02). Com a jornada de trabalho reduzida, haveria uma liberação do tempo das massas populares para a direção do Estado, as Tarefas políticas e administrativas (p. 92). Para Lenin, a partir do momento em que um objetivo central é determinado para a etapa em curso, tudo lhe fica subordinado, "mesmo que o preço a pagar sejam as contradições suplementares e os obstáculos suplementares para o desenvolvimento posterior. E, desse modo, vai-se aceitar, na realidade, o agravamento da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual e que seja reforçada a estrutura autoritária ao processo de trabalho, se isto se apresentar como condição de uma eficiência bastante superior do trabalho produtivo e, portanto, da diminuição do tempo de trabalho e, sendo assim, da participação do proletariado nas tarefas políticas e nos negócios de Estado, objetivo principal do momento" (p. 93; grifos do original). Acrescenta ainda Linhart que, desde 1917, antes da revolução de outubro, "o sistema de raciocínio de Lenin está pronto para aceitar a taylorização do trabalho industrial". Meses depois, na primavera de 1918, defendendo as medidas de urgência para a instituição de uma disciplina do trabalho industrial contra os "comunistas de esquerda", "Lenin não está rompendo com os princípios de base que tornara explícitos em O estado e a revolução" (p. 93).

O ponto essencial para Lenin é a supressão da oposição entre trabalho manual e trabalho intelectual; este é o produto finai do desenvolvimento das forças produtivas, não sendo, portanto, o resultado de uma ação deliberada do proletariado. "No momento imediato, a ditadura do proletariado terá como função liberar o impulso das forças produtivas e reduzir o tempo de trabalho das massas populares para que lhes seja possível gerir os negócios de Estado. Nessa etapa, o centro de gravidade da tomada do poder pelas massas é o Estado e não o processo de trabalh produtivo. Para Lenin, este princípio há de permanecer como diretriz, até sua morte" (p. 93; grifos do original).

O tópico número dois (Raízes na realidade social) deste segundo capítulo tem início com Linhart mostrando que, apesar de Lenin ter destacado elementos positivos no sistema Taylor às vésperas da Revolução de 1917, o caráter limitado de sua crítica ao taylorismo "teve conseqüências tão profundas no posterior desenrolar da Revolução soviética que é importante analisar sua posição e seu contexto histórico" (p. 93-4).

Nos Cadernos do imperialismo Lenin indica sobre que pontos se concentrava sua crítica ao taylorismo, quais sejam: "superexploração produtivista, desemprego, fortalecimento da aristocracia operária pelos aumentos dos salários e o número e maior importância dada ao papel dos contramestres. Em nenhum momento Lenin contexta a eficiência técnica do sistema. Sobretudo, ele não critica a liquidação de qualquer iniciativa técnica operária. E não menciona a supressão de toda atividade intelectual do operário no correr de seu trabalho. Não se deixa impressionar pelo objetivo de desqualificação do trabalho operário contido no taylorismo" (p. 94; grifos do original). Linhart acha estranha essa posição de Lenin, pois ele certamente conhecia bem os escritos de Taylor (e estes não deixavam dúvidas com relação à separação radical entre a concepção e a execução do trabalho), além do fato de a resistência operária ao taylorismo, manifestada nesse momento nos EUA e na Europa, ter encontrado grande repercussão nas principais capitais de todo o mundo.

Linhart transcreve ainda um longo trecho do jornal A Batalha Sindicalista (13 de fevereiro de 1913) mostrando que o taylorismo, que acabara de ser introduzido na França (e os operários das usinas Renault reagiram, deflagrando uma greve), chocava-se contra uma crítica radical do movimento operário (p. 94-05). Por ocasião dessa greve, Louis Renault declarou, em 11 de março de 1913, I que não iria fazer nenhuma concessão e que substituiria parte de seu pessoal por um proletariado "novo" (isto é, menos qualificado e mais desorganizado, em se tratando de sindicalização). "Realmente, no fim da greve, que fracassou, muitas centenas de operários, entre os quais se contava um número apreciável dos mais experientes, abandonam a usina e foram procurar trabalho em outro lugar" (p. 96).

Já nos EUA, a situação é mais gritante: a resistêcia mais firme é implantação do taylorismo é feita pelos sindicatos de ofício da Federação Americana do Tabalho que, segundo Linhart, era uma "organização corporativa e egoísta de operários qualificados, que exclui e esmaga a massa dos proletários sem qualificação" (p. 96). Ainda mais: citando o livro de Philip S. Foner, History of the labor movement in the United States (New York, 1964. v. 3, p. 176) afirma que "dispostos a qualquer concessão para comprar alguma segurança para os trabalhadores qualificados, em detrimento dos tarbalhadores sem qualificação e não-organizados, numerosos sindicatos de ofício da Federação assinaram acordos com as respectivas empresas, neles incluindo o compromisso de se abster de organizar os trabalhadores não-qualificados cujos interesses sacrificavam, em troca de um mínimo de direitos sindicais para eles próprios e de diferenças de salários, relativamente importantes, em favor da mão-de-obra qualificada (p. 96, cit. por Linhart). Nos EUA, o taylorismo ataca duplamente o poder sindical, minando a qualificação operária e eliminando (através da produção em massa dos bens de consumo corrente) a eficácia do labelsyndical, importante meio de pressão econômica dos sindicatos sobre as empresas (p. 96-7).

Assim, em termos gerais, a resistência ao taylorismo apresenta duplo aspecto. "Movimento de defesa do saber operário e da autonomia operária. Mas há também um reflexo conservador e elitista das frações mais favorecidas da classe operária ocidental e dos sindicatos: contra a produção em massa e contra o surgimento de um proletariado sem qualificação, sem 'capital' de conhecimentos técnicos" (p. 97-8).

O naufrágio do movimento operário europeu, a partir de 1914, acaba se constituindo numa síntese de tudo isso, pois os mesmos dirigentes sindicais que, pouco antes da guerra mobilizavam a classe operária contra o taylorismo, estarão unidos (e muito bem unidos!) as suas respectivas burguesias, na grande matança nacional. "A crise mundial coloca em evidência as estruturas ideológicas dominantes nas diferentes classes operárias. No ocidente, o encarniçamento na defesa do 'oficio' irá mostrar o seu avesso, ou seja, o apego aos valores burgueses do 'patriotismo'" (p. 98; grifos do original). Por outro lado, de modo inverso, na URSS - ) e aqui Linhart já apresenta uma espécie de plano do trabalho, que irá explorar nos quatro capítulos restantes - "as características da industrialização, a fraca qualificação da classe operária, a extrema miséria das massas proletárias oferecem apenas uma base muito limitada ao 'social-patriotismo' e, do mesmo modo, ao sindicalismo considerado como ideologia corporativista. Paralelamente - e, aqui, fica evidenciado, em sua raiz, o limite da crítica de Lenin ao taylorismo - a resistência ao taylorismo, na Rússia, tem uma base fraca, porque os operários, como massa, não têm sequer uma qualificação para defender. E, quando na primavera de 1918, Lenin propuser a introdução sistemática das medidas taylorianas, a oposição mais decidida virá da pequena minoria de operários qualificados, influenciados pelos mencheviques - mais particularmente, ferroviários e tipógrafos" (p. 98; grifos do original). O taylorismo, como expropriação do saber operário, toma toda sua dimensão de ofensiva estratégica no plano social "quando ataca classes operárias poderosas, experimentadas, qualificadas, herdeiras de séculos de ofícios, de corporações, de artesanato. Não há nada de semelhante na Rússia. O nascente proletariado industrial russo não acumulou este capital de conhecimentos e de práticas técnicas" (p. 99; grifos do original).

Linhart prossegue em sua argumentação acerca da qualificação muito fraca dos operários de indústria russos, no momento da Revolução, apoiando-se também no livro de Marcel Anstett, La formation de la main d'oeuvre qualifiée en Union Soviétique (Paris, 1958). "Entreoutras explicações, Anstett atribui esta característica a uma particularidade da formação social russa: o atraso do artesanato que, nos países capitalistas, é uma das fontes principais da mão-de-obra qualificada" (p. 100; grifos do original). Anstett acrescenta que apenas em algumas cidades de maior porte, como Kiev ou Nowgorod podiam ser encontrados artesãos peritos, com uma sólida tradição profissional. Por outro lado, na maioria das cidades e nos campos encontravam-se apenas os artesãos russos típicos, os koustari, meio camponeses, que utilizavam técnicas de trabalho e instrumentos extremamente rudimentares (Linhart, p. 100; Anstett, p.21). A Rússia, explica Anstett, só conheceu muito tarde a economia monetária, que permite a especialização e o aparecimento do trabalho qualificado: "O artesão russo do século XIX está na fase social técnica que só é encontrada, na história dos países ocidentais, retornando aos artesãos-servos da Idade Média. "Outro fator desfavorável à qualificação da classe operária russa é a industrialização imperialista pelos capitais europeus, a que foi submetida, e que tende a fazer com que a Rússia se especialize em produtos semi-acabados exportáveis. As indústrias mecânicas e químicas são muito pouco desenvolvidas (enquanto nos países capitalistas se constituem num viveiro de operários qualificados); o equipamento industrial vem geralmente do exterior ("o que se espera da classe oporária russa é que sirva, passivamente, uma tecnologia importada, concebida pelo estrangeiro" - em 1913, de acordo com Yves Barel, em Le développment économique de La Russie tzariste, 37% dos equipamentos técnicos e mais de 50% das máquinas ainda são importados); freqüentemente apela-se para os estrangeiros quando se necessita de trabalhos qualificados e da manutenção da maquinaria, deixando para os operários russos os empregos de aprendizes (p. 100).

Apesar de discordarem em alguns pontos, Anstett e Yves Barel concordam, no que diz respeito ao essencial, na análise das características da segunda vaga de industrialização (a partir de'1890, mais ou menos), com base na siderurgia e na indústria pesada moderna (p. 101). Barel acentua a importância da indústria kustary, entre 1861 e o fim do século, e sua contribuição para a indústria manufatureira, lembrando que em várias regiões os kustary existiam em maior número que os operários de fábrica. No início do século XX a grande indústria mecanizada rompe com o desenvolvimento progressivo da indústria kustary e da manufatura. De acordo com Barel, diferentes dados atestam a importância, cada vez maior, da indústria pesada e da concentração industrial. "Esta concentração foi particularmente incrementada na Rússia. A partir de 1897, as usinas de mais de 500 operários ocupam 42% da mão-de-obra contra 15,3% na Alemanha, por exemplo. Em 1910, esta percentagem irá atingir 54,3%". (p. 101; Barel, p. 202). "Constata-se, portanto efetivamente, o aparecimento brutal de uma grande indústria, excepcionalmente concentrada para a época, onde se vai encontrar reunido um vasto proletariado que acabava de ser arrancado do campo e desprovido de experiência técnica da produção mecanizada 'moderna'" (p. 101).

A partir de 1918, "a desorganização econômica e a amputação do território anexado pela Alemanha, agravando o esgotamento da Guerra de 14, tornarão vital o uso mais eficiente possível dessa indústria moderna, em grande parte paralisada" (p. 101). Nessa época, aquilo que no Ocidente se apresentava como expropriação do saber operário (ou seja, redução a tarefas parcelares, tão simples e padronizadas quanto possível), "talvez pudesse, na Rússia, transformar-se em uma apropriação coletiva, a mais rápida e a mais econômica que se pudesse conceber, para uma força operária completamente nova e inexperiente, em situação de penúria de técnicos e engenheiros. Esta será, muito breve, a partir de 1918, a idéia de Lenin, concretizada pela famosa palavra de ordem 'aprender a trabalhar' e a proposta de introduzir sistematicamente os métodos taylorianos na indústria (p. 101-2; grifos do original).

No final deste profícuo capítulo, Linhart levanta uma hipótese estimulante (e não menos ousada) acerca da não-reflexão, por parte dos bolcheviques, sobre o conteúdo concreto das operações de trabalho. "O trabalho operário é tomado como referência para a análise de alguma outra coisa (a organização ou algum aspecto da vida social) e a conotação do exemplo é, quase sempre, a escola ou a disciplina. Aprendizagem, referência, modelo, mas não objeto de análise e de crítica em si mesma" (p. 102; grifos do original). Mas Linhart vai mais além, ponderando que este silêncio pode ser localizado nas "condições concretas em que se formou o movimento revolucionário russo, o mundo político de que faziam parte os bolcheviques: acuados pela polícia czarista, ameaçados com o exílio no exterior ou a deportação na Sibéria, a prisão ou a atividade clandestina, os quadros bolcheviques tiveram raramente a possibilidade de viver, de maneira contínua, a prática produtiva das massas: daí que, as condições de seu trabalho intelectual são mais orientadas para as sínteses econômicas do que para a reflexão sobre os gestos cotidianos do produtor direto (...). Explicando de modo mais profundo, os bolcheviques, cuja corrente ideológica tinha-se formado em oposição a qualquer forma de 'trade-unismo', eram inclinados a pensar que, para a classe operária, o essencial não era jogado no interior das fábricas, mas no terreno político" (p. 102-3; grifos do original). A classe operária russa,, superexplorada e submetida ao terrorismo czarista, "lutava por sua sobrevivência e, quando suas reivindicações puderam exprimir-se, eram relativas a problemas bem mais elementares - e vitais para ela, na ocasião - que o sistema de organização do trabalho. Antes de fevereiro de 1917, os sindicatos, perseguidos, só contavam com alguns milhares de membros. Quando a queda do czar liberou o movimento reivindicatório e as exigências operárias puderam se exprimir livremente, a jornada de oito horas veio, evidentemente, em primeiro lugar" (p. 103; grifos do original).

O terceiro capítulo, complexidade da posição tayloriana de Lenin em 1918 é dos mais interessantes, pois nele Linhart procura chamar a atenção para o fato de que há "uma certa homologia entre o princípio tayloriano de levantamento e classificação dos movimentos de trabalho e a palavra de ordem 'levantamento e controle' martelada, durante todo este período (primeiros meses do poder soviético revolucionário), por Lenin". Entretanto, há uma importante diferença de sentido: "o controle e o levantamento da produção do ponto de vista econômico (gestão, contabilidade, registro dos estoques e dos outros) baseiam-se segundo Lenin, num prodigioso impulso democrático, numa participação das grandes massas nas tarefas de administração e de contabilidade econômica (iniciação das massas a uma nova prática social de direção do Estado e da economia), enquanto a organização técnica do processo de trabalho será em breve (abril de 1918) apresentada como tendo necessariamente por base uma concentração extrema da autoridade e uma submissão das massas a uma direção do processo de trabalho que lhe é exterior (o que reencontra, num ponto essencial, o espírito do sistema Taylor)" (p. 104; grifos do original). Ou explicitando melhor, no entender de Linhart há certa homologia entre o econômico e o técnico, "mas também um claro rompimento nos métodos: no primeiro caso, democracia de massa e controle, de baixo para cima; no segundo, estrita concentração da autoridade e controle, de cima para baixo" (p. 104-5). Para Linhart, fica bastante claro o rompimento entre um plano e outro em As tarefas imediatas do poder dos sovietes (texto publicado em 28 de abril de 1918, em sua versão definitiva). Toda uma parte da brochura demonstra "a necessidade de extirpar das massas a atitude de passividade em face do Estado e dos dirigentes da economia", ao passo que a outra parte demonstra que "é preciso inculcar-lhes uma atitude de submissão em face dos técnicos e dirigentes do processo de trabalho", (p. 105). Linhart vai destacando as diferenças existentes entre a primeira e a segunda versão do texto, principalmente em algumas passagens relativas ao sistema Taylor. Na primeira, Lenin se preocupa muito mais do que o fará na segunda redação, "em diferenciar o taylorismo soviético de seu modelo americano" (p. 108). Em linhas gerais, Lenin aponta que, de negativo, o taylorismo era aplicado no interior de um sistema capitalista, servindo para extrair dos operários duas ou três vezes mais do que a quantidade de trabalho pelo mesmo salário, no mesmo espaço de tempo. Ou seja, nos EUA, a característica essencial do sistema seria uma intensificação violenta do trabalho, enquanto que na Rússia se faria uma redução na jornada de trabalha (o que, por si só, já se constituiria nu-ma mudança na natureza do sistema Taylor). Haveria, na URSS a introdução do taylorismo, bem como o "aumento científico, à moda americana, da produção do trabalho, fazendo com que ela seja acompanhada da redução da jornada de trabalho, da utilização de novos processos de produção e de organização do trabalho, sem que isso cause o mínimo prejuízo à força de trabalho da população laboriosa" (p. 108-9). Ao contrário do caso norte-americano, por exemplo, a introdução do sistema Taylor, "orientado corretamente pelos trabalhadores, se eles forem suficientemente conscientizados, será o meio mais seguro de garantir, no futuro, uma redução considerável da jornada de trabalho; será o meio mais seguro, para nós, de realizar, num lapso de tempo relativamente curto, uma tarefa que pode ser formulada mais ou menos assim: seis horas de trabalho físico, por dia, para cada cidadão adulto e quatro horas de trabalho de administração do Estado" (p. 109; grifos de Linhart; Lenin, OC. t. 42, p. 64-5).

Linhart esclarece que, na segunda versão, não se encontra o trecho que estabelece a jornada de 10 horas de trabalho (seis horas de trabalho físico e quatro horas de trabalho de administração do Estado). Além disso, o sonho de auto-organízação tayloriana - a partir da conscientização suficiente dos operários - vai-se desmoronando por completo, com as resistências dos trabalhadores dos transportes fluviais, das estradas de ferro etc. (p. 109 e 112).

Lenin via a participação concreta dos operários nos negócios de Estado como um poderoso antídoto contra o burocratismo - burocratísmo esse cuja ameaça que ele via crescer (p. 113). E Linhart acrescenta que em sua essência, porém, "o taylorismo é a burocratização do processo de trabalho e a multiplicação das funções de controle e registro do mínimo gesto, o aparecimento das tarefas multiformes para contadores, funcionários, cronometristas, etc. Lutar contra o burocratismo apoiando-se no taylorismo, como Lenin espera, não será jogar pela janela aquilo que se reintroduz pela porta principal? A longo prazo - e, para um observador atuai - é talvez uma das questões centrais da Revolução soviética. Lenin lutou contra a burocratização das 'superestruturas' sendo, ao mesmo tempo, levado - pela própria lógica deste combate - a instalar o germe do burocratismo, bem no coração das relações de produção - no processo de trabalho" (p. 113; grifos do original).

Finalizando este capítulo, Linhart destaca ainda algumas outras diferenças existentes entre as duas versões do texto Tarefas imediatas... Eu gostaria de lembrar, apenas, que na redação final, houve um grande recuo no que se refere ao sonho das "seis horas-quatro horas". Senão, vejamos: "Nosso objetivo é fazer com que todos os trabalhadores preencham, gratuitamente, as funções de Estado, uma vez que tenham terminado suas 'tarefas' na produção: é particularmente difícil consegui-lo mas esta é nossa garantia única de consolidação definitiva do socialismo" (p. 113; OCt.27, p. 283). Enquanto Lenin redige as Tarefas imediatas... os acontecimentos vão-se precipitando: perdem-se as ricas terras de trigo da Ucrânia e importantes fontes de matérias-primas, devido ao acordo de guerra realizado com os alemãs; as devastações dos quatro anos se fazem sentir, com a fome, com o agravamento do caos econômico, com o enfrentamento na rede ferroviária. Tudo isso faz com que se determine uma concepção mais rigorosa da disciplina do "trabalho", com o recurso "à prática de direções individuais", bem como à aplicação de "medidas coercitivas" (p. 114). Como conseqüência imediata, "o sonhado taylorismo libertador (economia de movimentos e 'racionalização', permitindo que a massa economizassde sua prória força de trabalho e se liberasse para as tarefas de administração) é eclipsado por um taylorismo mais clássico (centralização autoritária do processo de trabalho)" (p. 114-5). A partir daí, o autor analisa as condições concretas desta mudança significativa.

Rede ferroviária: emergência da ideologia soviética do processo de trabalho é o quarto capítulo desta segunda parte do livro e o primeiro no qual se começa a estudar o que Linhart chama de "uma virada autoritária na questão da organização do trabalho" (p. 116; grifo do original). A fome: inimiga insensível e que se faz presente a todo o momento, desde que os bolcheviques assumem o poder. Lutar contra a fome? "Este é um problema que coloca imediatamente, na ordem do dia, a questão da distribuição - corolário da coleta (...). Numa situação de extrema penúria, em vasto território, onde as produções agrícolas e as concentrações de população encontram-se diversamente repartidas e longe de coincidir, o abastecimento só é possível com base numa estrutura global que comporte instrumentos de produção e serviços: colheita, estocagem, transportes. Em outras palavras, uma armadura estatal ou qualquer outra forma de centralização de suas atividades (...) a devastação e a fome, conseqüências da Guerra 14-18, colocaram na ordem do dia, de forma urgente, o funcionamento dos aparelhos de Estado que constituem a trama das ligações econômicas. É o que se apresenta como questão central, logo que foi assinada a paz de Brest-Litovski (3 de março de 1918)" (p. 116-7).

Na periferia do aparelho de Estado, "no ponto de junção da produção, dos serviços, da administração, um certo número de setores encontram-se desorganizados ou constantemente ameaçados: a rede ferroviária, os transportes marítimos e fluviais, os correios, a imprensa" (p. 117). Os bolcheviques, técnicos da insurreição por excelência, "têm experiência concreta desta interpretação estreita, delicada, vulnerável, do Estado e de seus instrumentos materiais. Estão atentos, quase que por instinto, a tudo o que é comunicação, fluxo, circuito. Ora, é exatamente nesses setores de atividade, reunindo características da grande produção industrial moderna, dos serviços e da administração e onde os operários e os técnicos, desde o tempo do czarismo, já eram funcionários, ou pelo menos trabalhadores empregados pelo Estado, que as correntes sindicalistas corporatistas, mencheviques ou mais raramente anarquistas, são mais poderosas..." ' (p. 117-8). Desde o primeiro dia, a partir da revolução de outubro, o Vikjel (Comitê Executivo Panrusso dos Ferroviários) resolveu exercer, deliberadamente, uma pressão política (e ao mesmo tempo sindical) sobre o governo soviético, inclusive impondo-lhe a participação de ministros não-bolchevíques. "Esta organização agrupava operários, empregados e técnicos, o que era excepcional, para a época, na Rússia. Os mencheviques eram majoritários na direção" (p. 118). Linhart coloca que no início de 1918, "a rede ferroviária se encontrava extremamente desorganizada. Cada estação funcionava como uma pequena república independente, decidindo a passagem ou a parada de uma ou outra composição (...) Esta situação concreta levará Lenin a preconizar, em março-abril de 1918,m o pagamento por peças (ou proporcional aos resultados do Trabalho), uma estrita disciplina e a responsabilidade pessoal de dirigentes, nomeados pelo Estado, representando o interesse da coletividade inteira, neste setor determinado" (p. 118). Não se trata aí de produção específica, senão de reparações de locomotivas, de vagões ou a manutenção do material e das vias férreas que se pode assimilar a uma produção. Os ferroviários dispõe do monopólio quase total do encaminhamento de um conjunto de produtos, e esse controle se estende aos produtos agrícolas colocados em circulação. "De maneira que, qualquer tentativa autogerencial, neste setor, se reveste, direta e espetacularmente, do aspecto absurdo de uma chantagem econômica de uma pequena minoria sobre a grande massa. Isto é verdade igualmente, ainda que de modo menos crucial, no tocante a todos os outros componentes do sistema de escoamento e de comunicações: é o próprio excesso de seu poder que condena, aqui, o desdobramento autogerencial" (p. 119; grifos do original). A partir do momento em que decidiu apresentar seus ultimatos e funcionar como proprietário coletivo das redes ferroviárias russas, o Vikjel confiscou, em proveito próprio, uma função estatal (p. 119). E é em nome do interesse urgente dos outros componentes do proletariado e das massas populares que o poder : dos sovietes vai atacar esse monopólio. Lenin "avalia a essência da contradição e assume a orientação de uma ofensiva da ditadura proletária contra as resistências desta fração de operários e de técnicos que, a seus olhos, usam na prática uma política de aristocracia ou de burguesia operária. Lenin se decide a quebrar o '-freio' da rede ferroviária. Como atingir este objetivo? Submetendo o conjunto do processo de trabalho a uma direção unificadora. E, para que esta direção seja real e não apenas formal, será preciso que ela estabeleça uma análise e um controle rigoroso das tarefas. Deverá fixar normas e contabilizar estritamente os trabalhos efetuados e as remunerações. Reencontram-se aqui, assumidos por um poder proletário, as funções que Taylor definia, em sua ofensiva em proveito do capitalismo, contra o que ele chamava 'o freio operário'. Não é uma simples coincidência o fato de que, precisamente neste momento, na primavera de 18, Lenin fala, sistematicamente, do sistema Taylor, para preconizar sua adaptação. A batalha para o funcionamento da rede ferroviária esboça, pela primeira vez, os traços do 'taylorismo soviético'" (p. 119-20; grifos do original). Assim é que a 26 de março de 1918, um decreto do Sovnarkom dá ao comissariado do Povo para as Comunicações "poderes ditatoriais", para tudo o que concerne a rede ferroviária (p. 120). Imediatamente, Lenin recebe muitas críticas por parte do grupo dos "comunistas de esquerda", dirigidos por Bukharin, que o acusa de "quebrar a iniciativa operária na produção, introduzindo a disciplina do trabalho, a direção pessoal e o salário por peças. Naturalmente, o decreto é atacado também pelos mencheviques, porque atinge um de seus pontos fortes na classe operária" (p. 120).

Na sessão de 29 de abril de 1918, do Comitê Executivo Central dos Soviéticos, Lenin resume a situação, usando esta constatação, tão clara quanto intolerável: "(...) O povo está esfomeado, no centro da Rússia, enquanto há trigo, mas seu transporte se torna difícil, pela desordem" (p. 120-1; grifado por Linhart). Evidentemente, os argumentos da oposição se quebram contra esta evidência: "é preciso encontrar, imediatamente, soluções concretas para lutar contra a fome e fazer com que os transportes voltem a seu funcionamento; os opositores discutem, no plano dos 'princípios', e não propõem nenhuma saída concreta para a circunstância imediata" (p. 121). Assim, Lenin afirma: "Os camaradas Bukharín e Martov repisam seu cavalo de batalha: o decreto da rede ferroviária, e lavam-se em água de rosas. Falam da ditadura de Napoleão III, Júlio Cesar, etc. Sem rede ferroviária, não só não se poderá mais falar dê socialismo como também vamos morrer simplesmente de fome, tendo trigo ao lado. O que ê que se pode construir sem rede ferroviária?" (p. 121; OCt. 27, p. 321).

Durante esses primeiros anos, o problema da rede ferroviária permanece vital: a guerra (contra a Alemanha), depois a fome, depois novamente a guerra. Dirá Lenin: "Não se pode fazer guerra sem estradas de ferro" (p. 121).

Algumas páginas adiante, na edição francesa de suas Obras completas, lê-se que "(...) a rede ferroviária é uma coisa capital, uma das manifestações mais brilhantes da ligação entre a cidade e o campo, entre a agricultura e a indústria, ligação sobre a qual repousa integralmente o socialismo" (p. 122; OC. t. 27, p. 322).

Os três primeiros anos da Revolução russa vêem, a cada primavera, reaparecer, de forma acentuada, a questão da rede ferroviária. "É um verdadeiro ciclo que faz com que, periodicamente, se iniciem novas tentativas em matéria de organização do trabalho, a partir desse setor." Senão, vejamos:

- 26 de março de 1918: decreto da rede ferroviária ("poderes ditatoriais" do Comissariado dos Transportes e primeira aplicação da "direção individual");

- 12 de abril - 10 de maio de 1919: primeiros "sábados comunistas", na linha Moscou-Kazan;

- 20 de maio de 1920: "ordem 1.042" - plano de reparação do material ferroviário (p. 125-6).

Linhart, a partir daí, coloca que essa periodicidade correspondente às estações não é obra do acaso, pois ela mostra até que ponto o problema da organização do trabalho está, no calor deste período, ligado, antes de mais nada, aos mais elementares problemas da sobrevivência, isto é, o encaminhamento de víveres e também dos combustíveis. "A primavera é a época da 'preparação', o período em que se prepara a safra e sua colheita, o início de uma nova campanha de requisições, É, portanto, naturalmente, um momento de forte tensão no setor dos transportes. De certo modo, os ferroviários, assim como os camponeses, são os sacrificados, no encarniçamento da 'cruzada do trigo' " (p. 126; grifos do original).

A rede ferroviária presta-se, além disso, de modo excepcionalmente favorável, "à normalização do material e das tarefas: os tipos de material são muito limitados (essencialmente, locomotivas e, depois, vagões e vias férreas) e os reparos e trabalhos de manutenção, de modo essencial, são os mesmos, de um extremo ao outro do país. Horários precisos, regularidade, manobras, coordenação... Trabalho em contínuo, repetição dos mesmos trajetos e das mesmas paradas.. É exatamente is-so, o 'mecanismo de relojoaria' a que Lenin se refere, em as Tarefas imediatas do poder dos sovietes." (p. 127). A essas características técnicas, vêm-se juntar as especificações políticas e sociais da batalha da rede ferroviária russa. "Ponto ao mesmo tempo vital e sensível, condição de sobrevivência para a população inteira, ela é também o feudo de correntes sindicalistas e políticas anti-bolcheviques. Fica evidente que organizar a rede ferroviária é também quebrara resistência sistemática de uma parte de seu pessoal. Aí, como nos campos, a extrema penúria da primavera de 1918 determina a concretização de métodos administrativos e expeditivos" (p. 127; grifos do original).

Nas quatro ou cinco páginas finais do capítulo, Linhart concentra-se em mostrar que já no final de 1920 a eletricidade vai-se sobrepor à rede ferroviária no sentido de condensara ideologia produtiva do regime que procurava se consolidar. Ha-via pontos comuns evidentes, tais como os fluxos regulares através de todo o país, a possibilidade de normalização e de simultaneidade dos impulsos, etc. "Além disso, num e noutro caso, não há produção direta de objetos, mas um serviço permanente que deve ser fornecido a todas as formas de produção" (p. 133).

No VIII Congresso dos Sovietes (dezembro de 1920), Lenin afirmava que era necessário que "cada estação elétrica que tenhamos construído sirva, efetivamente, de base para a instrução/ que ela se ocupe, por assim dizer, da instrução elétrica das massas" (p. 134-5;' OC, t. 31, p. 538-9). Lenin, com "a instrução elétrica das massas", queria dizer se colocava à disposição do proletariado, das grandes massas, um saber técnico "moderno", e que era necessário quebrar o mistério que envolve a técnica, aos olhos das massas. A técnica deveria aparecer como algo "natural", fazendo com que o ideal último fosse atingido, qual seja, "uma imensa máquina produtiva, unificada, cujo domínio o povo possa igualmente conseguir, dispondo do poder de Estado e por seus próprios conhecimentos" (p. 135), Daí a célebre fórmula preconizada por Lenin: "O comunismo é o poder dos sovietes mais a eletrificação de todo o país" (p. 135; OC. t. 31, p. 435).

A eletrificação e sua difusão provocaria hábitos novos - para Lenin, fundamental para a conscientização dos agentes do processo de trabalho (p. 137).

No penúltimo capítulo, Os sábados comunistas, Linhart explora o surgimento na URSS, pela primeira vez em junho de 1919, de formas de trabalho "comunista" (p. 138). Em seu texto A grande iniciativa (28 de junho de 1919), Lenin reproduz descrições concretas de "trabalho comunista" publicadas na imprensa soviética. No correr do ano de 1919 e no início de 1920, ele aponta os "sábados comunistas" como germe do trabalho comunista, na sociedade em transição. "Mas, no correr do ano de 1920, um outro tema é mais acentuado: o trabalho obrigatório e a disciplina coercitiva" (p. 138-9).

Na primavera de 1919, os "sábados comunistas" aparecem em uma Rússia com território relativamente reduzido e onde o peso numérico do proletariado é, portanto, mais importante - apesar de sua dispersão em numerosas atividades militares e estatais ser um obstáculo local (p. 140). Por outro lado, na primavera de 1920, "o trabalho obrigatório e uma versão mais coercitiva da disciplina produtiva passam para o primeiro plano: o problema é que o territroio soviético se estendeu consideravelmente e que sua composição social se encontra, por isso, modificada, em detrimento dos operários e antigos operários..." (p. 140). Em 7 de abril de 1920, no III Congresso dos Sindicatos, Lenin afirma; "É mais difícil, para nós, administrar o país devido a nossas vitórias (...). Quando falamos em ditadura, não é por um capricho de centralizadores. As regiões que retomamos estenderam consideravelmente o território da Rússia Soviética. Vencemos a Sibéria, o Don, o Kuvan. O proletariado, lá, apresenta apenas uma percentagem íntima da população, menor que entre nós. Nosso dever é ir, direto, ao operário e dizer-lhe, francamente, que a situação se complicou. É preciso que aumente a disciplina, a direção pessoal e a ditadura (...). A anexação de territórios povoados de camponeses e de kulaks impõe uma nova tensão das forças do proletariado" (p. 140-1; OC. t. 30, p. 527-8).

Linhart explora as transformações do pensamento de Lenin, entre í 919 e 1920 (entre A grande iniciativa e A doença infantil do comunismo), sendo que no último texto se nota que ele rejeita veementemente qualquer tentação utópica em matéria de organização do trabalho (p. 141). Combatendo aqueles que pretendem resolver o problema da transição do capitalismo para o socialismo usando lugares-comuns sobre a liberdade, a igualdade e a democracia em geral, Lenin afirma que "(...) a solução justa desse problema só pode ser encontrada no estudo concreto das relações específicas entre a classe que conquistou o poder, a saber, o proletariado, e a massa não-proletária, assim como a semi-proletária, da população laboriosa; essas relações não podem ser formadas, em condições imaginárias, harmoniosas, ideais..." (p. 143; OC. t. 29, p. 426). Essas "relações específicas", transformadas pela situação militar, farão com que o tom entre um texto e outro sofra alterações. Em 1919, essa "relação específica" se distingue como mais favorável, enquanto que em 1920, ao contrário, sente-se que se prega uma nova ofensiva ideológica em favor de uma organização mais autoritária do trabalho. "E, especialmente, esta idéia: o que resta da força proletária deve ser utilizada para fiscalizar, minuciosamente, a estrutura produtiva e política de uma formação social heterogênea" (p. 143; grifos do original). Esta visão do proletariado afogado na massa camponesa, submerso na decomposição de uma sociedade ferida profundamente pela guerra, pela forme e pela miséria, será claramente demonstrada nos textos de 1920 (p. 143-4).

Os operários: acabam se constituindo num dos dilemas cruciais da Revolução soviética. Sabendo que há poucos operários, em termos numéricos - e, sobretudo, poucos operários "conscientes", politizados, aguerridos -, de que modo dispô-los? Se permanecerem nas fábricas, as funções estatais ficarão abandonadas à burguesia; se forem dispersos pelo exército, na administração, nas tarefas do abastecimento, serão substituídos nas fábrica-se no sistema produtivò urbano por pessoas vindas de outras classes sociais (e a produção ficará, em boa parte, entregue em mãos menos confiáveis). No auge da guerra civil, os operários "verdadeiros" são excessivamente raros e preciosos para que o Estado possa mantê-los na produção. De tanto colocar operários por toda parte, constituí-los em destacamentos do abastecimento, grupos de propaganda, quadros do Exército Vermelho, unidades combatentes de choque, dirigentes de sovietes ou de administrações de Estado, chega-se à situação seguinte: eles são cada vez menos encontrados nas fábricas. Seja como for, a produção industrial, saqueada pela guerra, as destruições, os bloqueios, acaba desmoronando. Nessas condições, os "sábados comunistas" passam a ter também como função a de manter o antigo proletariado (agòra no exército e na administração) em contato com o trabalho produtivo (p. 144-5). Nesse sentido, os "sábados comunistas" vão aparecer como externos ao funcionamento "normal", ordinário, do sistema produtivo, pois acabam sendo - ou tomando a feição de trabalho diretamente organizado e concretizado pelo Partido (p. 145).

As principais características internas dos "sábados comunistas" acabam não diferindo em nada da organização tradicional do trabalho, ou seja, "respeito pelas funções hierárquicas, função do enquadramento do trabalho, distribuição das tarefas entre 'manuais' e 'administrativas' " (p. 146). Lenin reproduz um artigo do Pravda (17 de maio de 1919), onde se lê que os ferroviários de Kazan se aprsentaram para o trabalho num sábado, às 6 horas da tarde, "se alinharam e, sem atropelo, os contramestres lhes designaram seus postos" (p. 146; OC. t. 29, p. 416). Prossegue, afirmando que "o pessoal administrativo, que ficava para dirigir os trabalhos, tinha o tempo justo de preparar novas tarefas..." (ibid. p. 418). Ou seja, este modo de proceder está de acordo com os princípios do taylorismo: estrita separação entre a preparação e a concepção das tarefas, de um lado (de que se incumbem os quadros) e, de outro, as funções de execução (de que se incumbe o pessoal operário) (p. 146-7).

0 trabalho "comunista", organizado em estilo tradicional apresentava, segundo o artigo do Pravda, um estilo revolucionário. De acordo com o jornal esse estilo "revolucionário" residia, justamente, nos seguintes itens: produtividade (rendimento muito maior que o desenvolvido pelos operários comuns); atmosfera ideológica e motivação (comenta o sentido de companheirismo existente e que, após as extenuantes horas de trabalho, todos cantavam juntos a Internacional); composição da mão-de-obra voluntária: comunistas e simpatizantes, todas as profissões reunidas... (p. 147).

O alcance revolucionário dos "sábados comunistas" não deve ser subestimado, uma vez que colocam dois problemas importantes que conservam, até hoje, uma atualidade reavidada: a questão dos estímulos do trabalho e a questão da mistura dos trabalhadores manuais e intelectuais (p. 149). Entretanto, se bem que haja um esforço no sentido de aproximar os trabalhadores manuais dos intelectuais, o trabalho dos "sábados comunistas" não envolve uma tentativa direta para resolver o problema da separação entre estes dois trabalhos; ao contrário, ele a radicaliza, em sua busca de eficiência imediata. E, nessa busca, procura-se, em primeiro lugar, obter, por meios ideológicos, um crescimento (em proporções decisivas) da produtividade do trabalho humano (p. 149).

Linhart conclui o capítulo afirmando que de certa forma atinge-se, com os "sábados comunistas", "o ponto extremo da versão democrática do 'taylorismo soviético'. Mas aquém de uma fronteira que nunca é ultrapassada" (p. 150; grifos do original).

O último capítulo do texto de Linhart se chama O proletariado inencontrável, e nele o autor mostra que "à medida que a guerra civil devora as forças operárias e esvazia as fábricas de seu antigo pessoal - e paralisa a maior parte da produção industrial, principalmente devido à 'fome de combustível' -, Lenin se recusa a caracterizar como 'proletariado' a população empregada no que resta de produção industrial e urbana. A definição que ele dá ao 'proletariado' se torna cada vez mais rigorosa e restrita" (p. 151), O "desaparecimento do proletariado" que Lenin imagina encontrar no início da NEP tem, evidentemente, conseqüências marcantes no terreno da organização do trabalho: "provisoriamente, acabaram-se as tendências à auto-organização das massas no processo de trabalho. E as condições ideológicas estão, novamente, reunidas para que a disciplina do trabalho e o 'taylorismo soviético' funcionem em sua versão autoritária" (p. 151).

Organizar o trabalho significa, antes de mais nada, organizar os homens que trabalham. "A apreciação de classe (econômica, política, ideológica) que Lenin formula sobre a população produtiva industrial e urbana desempenha, por conseguinte, um papel essencial nas políticas sucessivas que ele preconiza, em matéria de organização e de disciplina do trabalho e isso, desde 1918. Ora, vê-se que essa apreciação se trans-forma gradualmente, de ano para ano, sob a pressão das circunstâncias, até o momento em que - a quantidade se transformando em qualidade - ela se desequilibra, em 1921" (p. 152). Até o final do capítulo, Linhart realiza um exame detalhado dessa progressão.

Desde os primeiros meses da revolução de outubro, Lenin previne contra toda a idealização da classe operária russa, acentuando inúmeras vezes que a ideologia do czarismo a tinha marcado de maneira profunda. Entretanto, ele insiste, nessa época, na formação de uma nova ideologia no seio da classe, ligada às responsabilidades de que ela se tinha apoderado. Numa conferência de sindicatos e de comitês de fábricas, ocorrida em Moscou (27 de junho de 1918), afirmou: "É evidente que as grandes massas de trabalhadores abrangem um grande número de pessoas que (...) não são, e não podem ser, socialistas esclarecidos, uma vez que são obrigados a trabalhar como forçados, na fábrica, e não têm nem tempo nem possibilidade de se tornarem socialistas" (p. 152). A partir daí, dois aspectos da ideologia de Lenin: 1. concebe-se que essas pessoas olhem com simpatia o fato de que as máquinas, as fábricas, as usinas, a técnica mais aperfeiçoada sirvam não para explorar, mas sim para melhorar a vida da imensa maioria (p. 153; OC. t. 27, p. 496); 2. entretanto, reconhece Lenin, "seria ridículo e absurdo pensar que a sociedade capitalista, baseada na exploração, possa gerar, imediatamente, uma perfeita consciência da necessidade do socialismo e sua compreensão" (ibid.). Assim, chega até a ser natural que as "camadas laboriosas", atazanadas pela fome, cercada de todos os lados, "experimentem o desejo de largar tudo de mão" (ibid., p.497). O aspecto principal da contradição no seio do proletariado é, nesse momento, para Lenin, a fração consciente do proletariado e a ideologia nova que ela deve propagar (p. 153). E o esforço principal desse proletariado consciente deve ser dirigido, conforme já se viu, não à produção industrial, mas ao Estado e aos interesses da sociedade inteira (p. 154). No entender de Linhart, a interpretação adequada do pensamento de Lenin, no momento, seria mais ou menos o seguinte: "saiam das fábricas para fazer a Revolução!" (p. 154; grifos do original).

Assim, a partir de junho de 1918, a opção está feita sem ambigüidade, no sentido de se distribuir a parte combativa e comunista da classe operária, pelas funções-chaves fora da produção. Isso ocasiona uma deterioração das características políticas e ideológicas da população produtiva, mas, sem dúvida alguma, foi a esse preço que o primeiro Estado proletário dó mundo sobreviveu (p. 154). À questão de Marx (qual poderá ser a forma concreta da tomada do poder pelo proletariado?), Lenin responde, praticamente, de forma radical: será a transformação física do proletariado revolucionário em aparelhos de poder do Estado - exército, administração, política, propaganda (p. 154-5; grifos do original).

O "verdadeiro proletariado" foi arrancado da produção em benefício das tarefas da luta armada e da política; os trabalhadores ativos, ainda empregados, não são mais, no que toca ao essencial o proletariado legítimo; enfim, não existe mais proletariado no sentido pleno do termo; esse foi o saldo (ou o custo) da formação do Estado soviético revolucionário (p. 155).

Em 1919, com os "sábados comunistas", Lenin espera que o "trabalho comunista" contribua para forjar a vanguarda operária, chegando inclusive a contar com tais sábados como instrumento de seleção para o recrutamento do Partido Comunista: "É preciso continuar a depuração, concretizando a iniciativa dos 'sábados comunistas':' Não admitir no Partido, senão, digamos, depois de seis meses de 'noviciado' ou de 'estágio', que consistirá em executar um 'trabalho pelo modo revolucionário' " (p. 157; OC. t. 29, p. 437).

Os "sábados" se apresentam como a última etapa da ofensiva comunista na produção e, até certo ponto, no aparelho de Estado, concentrando numerosos traços do conteúdo de princpio do "comunismo de guerra" (p. 157). Os "sábados" refletem, igualmente, a apreciação mais ou menos otimista, do momento, sobre a relação de forças sociais, no interior da URSS, conforme juízo de Lenin, que afirmava: "Os 'sábados comunistas' projetaram, entre outras coisas, urna viva luz sobre o caráter de classe do aparelho de Estado, sob a ditadura do proletariado..." (p. 158; OC. t. 29, p. 437).

Em 1920, a apreciação da relação de forças social se transforma e, por isso, o desempenho e a possibilidade de extensão do "trabalho comunista" se restringe (p. 158). Nota-se um endurecimento muito nítido quanto ao comportamento e controle que se deveria manter sobre o operariado: "...nós sabemos que o capitalismo nos deixou, como herança, trabalhadores totalmente ignorantes e embrutecidos que não compreendem que se possa trabalhar, de outro modo, que não sob o bastão do capital: sob a direção do operário organizado. Mas eles podem chegara compreendê-lo, se nós lho demonstrarmos na prática" (p. 158-9; OC. t. 31, p. 179). Lenin afirmava também que, "para restabelecer a economia, a disciplina é indispensável (...). Devem ser banidos qualquer sentimentalismo e qualquer tagarelice sobre democracia" (p. 159; OC. t. 31, p. 179).

A guerra civil acabou traçando uma linha de demarcação, pois a parte do proletariado que permaneceu na retaguarda e não se engajou ê qualificada de "inconsciente" (p. 159). No final da guerra torna-se cada vez mais difícil saber quem é operário. "O antigo metalúrgico, que se tornou guarda vermelho, em seguida membro de um destacamento de abastecimento, em seguida do quadro do Exército Vermelho (...) e que, agora, é empregado no aparelho administrativo de um comissariado do Povo? Mas ele só participa da produção, durante os 'sábados comunistas' (...) Ou será mais adequado qualificar de 'operário' o comericante de Petrogrado, próspero antes da Revolução e que, arruinando, conseguiu.encontrar um emprego de servente, em uma fábrica, desertada pelos operários engajados no Exército Vermelho? Mas ele conseguiu contrato, para escapar à mobilização do trabalho; antes da Revolução, tudo o separava dos operários, cuja causa ele nunca abraçou e, agora, ele odeia o regime soviético, por cuja culpa perdeu sua fortuna" (p. 159-60).

Logo no início de 1921 uma explosão de descontentamento estoura em inúmeras fábricas de Petrogrado e de outros centros, fazendo com que a posição de Lenin se radicalize. "Se o proletariado é, justamente (segundo definição de Lenin) essa elite operária que aceita todos os sacrifícios para fundar um Estado novo, a multidão reivindicante, descontente, desmoralizada pelo frio e pela fome, que abandona a produção e se espalha, em greves, em fevereiro de 1921, não pode ser qualificada de proletariado..." (p. 160).

Em 17 de outubro de 1921, em um relatório sobre a NEP que apresenta ao Congresso dos Serviços de Educação Política, afirma que "o proletariado industrial entre nós, por motivo de guerra, de ruína e das terríveis destruições, está desclassado, isto é, desviado de seu caminho de classe, e cessou de existir, como proletariado. Chama-se proletariado a classe ocupada em produzir os bens materiais da grande indústria capitalista. Considerando que a grande indústria capitalista está minada e as fábricas imobilizadas, o proletariado desapareceu. Por vezes, ele foi apresentado como se existisse, de modo formal, mas não tinha raízes econômicas" (p. 161; OC. t. 33, p. 59). Assim estão excluídos desta definição: transportes, rede ferroviária, correios e outros seviços que não se incluem na 'produção de bens materiais'; Os operários das pequenas empresas; os assalariados dos artesãos; e evidentemente, os trabalhadores agrícolas (p, 161).

As 10 páginas finais do livro de Linhart dedicam-se a 1922, um ano após a implementação da NEP. Em 27 de março de 1922, expondo seu relatório ao XI Congresso, Lenin (secretário político do Partido Comunista) afirmava que era necessário que se tratasse com operários."... Quando se diz 'operários', pensa-se que isso significa proletariado das fábricas. Nada disso. Entre nós, depois da guerra, pessoas que não tinham nada de proletário, vieram para as fábricas e as usinas; vieram para se emboscar (...) Muito freqüentemente, aqueles que vêm à fábrica não são proletários mas toda espécie de elementos de ocasião" (p. 162; OC. t. 33, p. 305). Ou seja, "ser operário na produção industrial russa de 1922 não é uma garantia de pertencer ao proletariado... mas, torna-se mesmo, uma profissão suspeita." (p. 163).

Lenin volta a martelar na tecla de que era necessário "lançar na batalha do aparelho de Estado novas forças operárias" (p. 163). No seu entender, deveria se concentrar o esforço principal de reconstrução e de edificação econômica sobre as funções de direção da produção, e não sobre as tarefas produtivas de base. A mesma coisa pode ser dita quando se trata do primado das tarefas políticas no aparelho de Estado, pois é por meio de uma acumulação progressiva de forças proletárias (e com experiência ná administração) que Lenin espera, nesse 1922, reduziras deformações burocráticas e promovera melhoria do aparelho soviético - ao que Linhart enfatiza, grifando as seguintes palavras: método explicitamente reformista (p. 164).

Depois de uma série de considerações, Linhart pondera que a fragmentação da legitimidade proletária, nos anos 1921-22, "já trazia em germe, ao mesmo tempo, o nascimento de uma aristrocacia nova que vinha do ex-proletariado e a possibilidade de práticas repressivas, em relação às massas operárias. Lenin fazia notar que a NEP, ao mesmo tempo que autorizava um certo renascimento do capitalismo, permitia, sobretudo, que se reconstituísse o proletariado. Mas a morte interrompeu a obra de Lenin, antes que esse novo proletariado tomasse forma e entrasse na história. Qual teria sido a política de Lenin, em relação a essas forças operárias novas? De que instrumentos teóricos teria ela lançado mão para analisar, concretamente, esse fenômeno radicalmente inédito: a produção de uma classe operária nova, nas condições específicas de uma forma de ditadura do proletariado?" (p. 168-9). Lenin já afirmava no VIII Congresso dos Sovietes, em dezembro de 1920, polemizando com Trotsky e Bukharin, que "Trotsky pretende que, num Estado operário, o papel dos sindicatos não é defender os interesses materiais e morais da classe operária. É um erro. O camarada Trotsky fala de um 'Estado operário'. Mas é uma abstração! (...) Na realidade, nosso Estado não é um Estado operário, mas operário-camponês, essa é uma primeira questão" (p. 169). Segundo Linhart, no Pravda de 21 de janeiro de 1921, Lenin corrigirá em parte essa formulação, aceitando, sobre esta questão de definição, uma crítica de Bukharin: "Eu deveria lhe ter dito: um Estado operário é uma abstração. Na realidade, nós temos um Estado operário, primeiramente, com esta particularidade que é a população camponesa, e não operária, que domina o país; e, em segundo lugar, é um Estado operário com uma deformação burocrática" (p. 169; OC. t. 32, p. 41).

Mas, para Lenin, o Estado soviético é um Estado operário apresentando uma deformação burocrática (sublinhado por Lenin). E, então, em um Estado que se formou nessas condições concretas, os sindicatos não têm nada a defender? Podemos passar sem eles, para defender os interesses materiais e morais do proletariado inteiramente organizado? É um raciocínio inteiramente falso, do ponto de vista teórico. E complementa: "...Nosso Estado existe de tal modo hoje que o proletariado, totalmente organizado, deve-se defender, e nós devemos utilizar essas organizações operárias para defender os operários contra seu Estado. Essas duas defesas se operam por meio de uma combinação original..." (p. 169-70; OC. t. 32, p. 16-7.)

A morte de Lenin (janeiro de 1924) onera, pesadamente, a organização do trabalho que se realizava então. Sua morte intervém "no momento em que sua concepção 'taylorista' do processo de trabalho industrial (redução em elementos simples e separação entre concepção e execução), que poderia, segundo seu ponto de vista, se combinar com importantes transformações democráticas, e mesmo favorecê-las, acaba de ser sobre determinada pela desagregação da classe operária, recém-saída da guerra civil, e a extensão da ditadura do proletariado a importantes setores da população produtiva industrial e urbana, considerada como não-proletária. Os limites próprios do pensamento bolchevique e da formação social russa, e depois soviética, se desdobram, assim, em um novo aspecto autoritário, ligado às conseqüências da guerra" (p. 171).

Linhart conclui o livro ponderando que Lenin buscou no taylorismo a simplificação do trabalho manual e, ao mesmo tempo, a liberação da classe operária, bem como a extensão (em um futuro mais ou menos longínqüo) das tarefas produtivas ao conjunto da sociedade. Ou seja, "Lenin se esforçava para colocar, a serviço da primeira revolução proletária durável, tudo o que sua época lhe parecia ter produzido de utilizável para esse fim" (p. 171). Entretanto, "o taylorismo - ou qualquer forma de organização do trabalho, baseada em princípios similares - trazia, também em si, a burocratização do processo de trabalho e a exacerbação da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. Ele perpetuava, ou acentuava, profundas contradições, no próprio cerne do sistema social: no aparelho produtivo" (p. 171-2).

O leitor me desculpe pela extensão desta resenha. Acontece que os bons trabalhos, procurando explorar as dimensões sociológica, política, histórica e administrativa do conhecimento, são cada vez mais raros - e o estudo de Linhart faz isso, sem alarde e com rara competência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1986
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