Acessibilidade / Reportar erro

Trajetórias da Saúde Cardiovascular: Epidemiologia do Curso da Vida no Brasil

Doenças cardiovasculares / epidemiologia; Acontecimentos que mudam a vida; Fatores de risco; Publicações periódicas como assunto

A epidemiologia cardiovascular avançou enormemente no estudo de fatores de risco para aterosclerose11. Schmidt MI, Duncan BB, Azevedo e Silva G, Menezes AM, Monteiro CA, Barreto SM, et al. Chronic non-communicable diseases in Brazil: burden and current challenges. Lancet. 2011;377(9781):1949-61., como demonstram as publicações nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia (ABC) nos últimos anos22. Fuchs SC , Biolo A , Polanczyk CA . Cardiovascular epidemiology: the legacy of sound national and international studies. Arq Bras Cardiol. 2013;101(2):98-100.

3. Evora PR, Nather JC, Rodrigues AJ. Prevalência das doenças cardíacas ilustrada em 60 anos dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia. Arq Bras Cardiol. 2014;102(1):3-9.
- 44. Moreira LF. Os Arquivos Brasileiros de Cardiologia e a divulgação da pesquisa em ciências cardiovasculares no Brasil. Arq Bras Cardiol. 2014;102(1):1-2..

A partir desse conhecimento, é possível explorar novas hipóteses e, portanto, novas fronteiras para a prevenção. Entre as diferentes perspectivas para o estudo desses fatores de risco está a epidemiologia do curso da vida. Essa perspectiva considera que o início da doença pode ocorrer muito antes do estabelecimento dos fatores de risco tradicionais na vida adulta. Assim, a saúde e as doenças podem ser consideradas como resultados de efeitos, em longo prazo, de exposição a diferentes fatores presentes durante as diversas fases da vida, incluindo a vida intrauterina, a infância, a adolescência e a idade adulta55. Ben-Schlomo Y, Kuh D. A life course approach to chronic disease epidemiology: conceptual models, empirical challenges and interdisciplinary perspectives. Int J Epidemiol. 2002;31(2):285-93..

Isso eleva significativamente a complexidade da análise66. Davey-Smith G, Hart C. Life-course socioeconomic and behavioral influences on cardiovascular mortality: the collaborative study. Am J Public Health. 2002;92(8):1295-8., mas também acrescenta dimensões antes pouco exploradas à epidemiologia e à prevenção cardiovascular. Um conceito básico dentro dessa linha de interpretação epidemiológica é a dos períodos críticos ou sensíveis, ou seja, a ideia de que um estímulo, agindo durante determinado período crítico do desenvolvimento, possa trazer consequências duradouras na estrutura ou função dos órgãos. Por exemplo, o período intrauterino, no qual tecidos e órgãos estão em formação, é crítico para o estabelecimento de um perfil de risco para o resto do curso da vida. Adaptações metabólicas do feto ocorridas nesse período poderiam persistir para o resto da vida, aumentando o risco de doenças crônicas, como a doença arterial coronariana, o diabetes e a obesidade durante a vida adulta. Esse processo tem sido denominado programação intrauterina das doenças crônicas77. Barker DJ. The origins of the developmental origins theory. J Intern Med. 2007;261(5):412-7..

Os ABC vêm publicando artigos interessantes sobre esse tópico, alimentando a discussão que já vem ocorrendo no cenário internacional88. Desai M , Beall M, Ross MG. Developmental origins of obesity: programmed adipogenesis. Curr Diab Rep. 2013;13(1):27-33.

9. Hallal PC , Dumith SC , Ekelund U , Reichert FF , Menezes AM , Victora CG , et al. Infancy and childhood growth and physical activity in adolescence: prospective birth cohort study from Brazil. Int J Behav Nutr Phys Act. 2012;9:82.
- 1010. Schilithz AO , da Silva CM , Costa AJ , Kale PL . Ecological analysis of the relationship between infant mortality and cardiovascular disease mortality at ages 45-69 in the Brazilian 1935 birth cohort. Prev Med. 2011;52(6):445-7..

Em um estudo realizado em Goiânia1111. Salgado CM, Jardim PC, Teles FB, Nunes MC. Baixo peso ao nascer como marcador de alterações na monitorização ambulatorial da pressão arterial. Arq Bras Cardiol. 2009;92(2):107-21., os autores compararam as pressões, medidas através da MAPA, de um grupo de crianças com baixo peso ao nascer com aquelas com peso adequado ao nascimento, observando que as de baixo peso apresentavam pressão arterial mais elevada e alteração do ritmo circadiano da pressão arterial, com atenuação do descenso noturno.

Por outro lado, Souza e cols.1212. Sousa MA, Guimarães IC, Daltro C, Guimarães AC. Associação entre peso de nascimento e fatores de risco cardiovascular em adolescentes. Arq Bras Cardiol. 2013;101(1):9-17. estudaram a associação entre peso de nascimento e fatores de risco cardiovascular em adolescentes de Salvador, e observaram prevalência duas vezes e meia maior de obesidade e três vezes maior de elevação da pressão arterial no grupo com alto peso ao nascimento em relação ao grupo com peso normal.

Esses achados, aparentemente conflitantes, podem na verdade representar uma curva em U, na qual tanto o baixo peso quanto o alto peso representariam risco em relação ao peso adequado ao nascimento. Em estudos observacionais, recém-nascidos com peso de nascimento inferior a 2.500 g apresentaram maior incidência de doença cardiovascular -hipertensão arterial sistêmica e aterosclerose - e intolerância à glicose - diabetes tipo II ou síndrome metabólica na vida adulta. Bebês com peso ao nascer superior a 4 kg, independentemente de idade gestacional ou sexo, apresentam alterações no metabolismo dos carboidratos e lipídeos associadas ao desenvolvimento tardio de obesidade, diabetes e dislipidemia1313. Victora CG, Adair L, Fall C, Hallal PC, Martorell R, Richter L, et al. Maternal and Child Undernutrition Study Group. Maternal and child undernutrition: consequences for adult health and human capital. Lancet. 2008;371(9609):340-57. Erratum in Lancet. 2008;371(9609):302.

14. Schilithz AO, Silva CM, Costa AJ, Kale PL. Ecological analysis of the relationship between infant mortality and cardiovascular disease mortality at ages 45-69 in the Brazilian 1935 birth cohort. Prev Med. 2011;52(6):445-7.
- 1515. Pereira JA, Rondo PH, Lemos JO, Pacheco de Souza JM, Dias RS. The influence of birthweight on arterial blood pressure of children. Clin Nutr. 2010;29(3):337-40..

Além da associação não linear, há muitos caminhos pelos quais os fatores intrauterinos podem influenciar no padrão de doença em fases posteriores. Esses efeitos podem interagir com outros estímulos que ocorrem em outros períodos, sofrendo modificações ao longo da vida. Assim, por exemplo, o peso de nascimento considerado de forma isolada não seria suficiente para explicar a DAC, sendo necessário considerar a relação entre esse marcador e os acontecimentos que se sucedem ao momento do nascimento, como a recuperação rápida do crescimento na primeira infância, que pode potencializar o aumento de risco1616. Dulloo AG. Thrifty energy metabolism in catch-up growth trajectories to insulin and leptin resistance. Best Pract Res Clin Endocrinol Metab. 2008;22(1):155-71. , 1717. Berends LM, Fernandez-Twinn DS, Martin-Gronert MS, Cripps RL, Ozanne SE. Catch-up growth following intra-uterine growth-restriction programmes an insulin-resistant phenotype in adipose tissue. Int J Obes (Lond). 2013;37(8):1051-7..

Portanto, o modelo de curso de vida permite que sejam estudadas não somente as exposições iniciais, mas sua possível interação com outros fatores intermediários. O conhecimento dessa sequência de acontecimentos e da ideia de períodos críticos tem repercussões importantes para a adoção de estratégias preventivas, pois ajuda a identificar períodos de maior necessidade de intervenção e também a considerar as desigualdades sociais na saúde como fatores que atuam ao longo de todo o ciclo da vida e atravessam gerações em seus efeitos55. Ben-Schlomo Y, Kuh D. A life course approach to chronic disease epidemiology: conceptual models, empirical challenges and interdisciplinary perspectives. Int J Epidemiol. 2002;31(2):285-93..

O estudo do Rio de Janeiro1818. Campana EM, Brandão AA, Pozzan R, Magalhães ME, Fonseca FL, Pizzi OL, et al. Pressão arterial na adolescência, adipocinas e inflamação no adulto jovem. Estudo do Rio de Janeiro. Arq Bras Cardiol. 2014;102(1):60-9. avaliou a pressão arterial de adolescentes e, novamente, dos mesmos indivíduos 18 anos depois. Os adolescentes com pressão arterial anormal na primeira medida apresentaram maiores médias de peso, insulina, leptina, apolipoproteína B100 e A1, maiores prevalências de sobrepeso, obesidade, CA aumentada e hipertensão arterial em relação ao grupo com pressão arterial normal na adolescência. A adolescência é uma fase que merece especial atenção. Uma boa nutrição nessa fase repercute de forma definitiva na vida do indivíduo, pois é nela que 25% da estatura final e 50% da massa corporal são adquiridos, sendo uma fase importante para o controle de peso e a aquisição de bons hábitos alimentares.

Outro interessante estudo publicado nos ABC 1919. Oliveira RM , Franceschini Sdo C, Rosado GP, Priore SE. Influence of prior nutritional status on the development of the metabolic syndrome in adults. Arq Bras Cardiol. 2009 Feb;92(2):101-12. avaliou indivíduos em três momentos distintos da vida. Os adultos diagnosticados com síndrome metabólica já tinham, na adolescência, valores significativamente superiores de peso, circunferência da cintura e índice de massa corporal. Esse fato tem importantes implicações para a prevenção, já que a detecção precoce desses fatores de risco pode significar benefício significativo no futuro2020. Reilly J J Kelly J. Long-term impact of overweight and obesity in childhood and adolescence on morbidity and premature mortality in adulthood: systematic review. International Journal of Obesity 35, 891-898 , 2121. Giuliano ICB, Caramelli B, Pellanda L, Duncan B, Mattos S, Fonseca FAH et al.. I Diretriz de Prevenção da Aterosclerose na Infância e na Adolescência. Arq. Bras. Cardiol. 2005, 85(6): 3-36..

A adoção de um modelo de curso da vida tem, portanto, o potencial de alterar significativamente o paradigma de prevenção das doenças cardiovasculares, da atual ênfase no controle de fatores de risco na vida adulta para uma abordagem mais ampla de prevenção dos fatores de risco propriamente ditos durante todo o curso da vida, incluindo a infância e a adolescência. Novos estudos brasileiros, incluindo possíveis mecanismos, como a expressão gênica2222. Lima-Leopoldo Ana Paula, Leopoldo André Soares, Silva Danielle Cristina Tomaz, Nascimento André Ferreira do, Campos Dijon Henrique Salomé de, Luvizotto Renata de Azevedo Melo et al . Influência de prolongados períodos de obesidade sobre a expressão gênica miocárdica. Arq. Bras. Cardiol 2013; 100 (3): 229-237., e as interações entre as fases da vida, a composição corporal e o meio ambiente2323. Bertaso Angela Gallina, Bertol Daniela, Duncan Bruce Bartholow, Foppa Murilo. Epicardial fat: definition, measurements and systematic review of main outcomes. Arq. Bras. Cardiol2013; 101(1): e18-e28., poderão acrescentar evidências a esse conjunto, abrindo novas possibilidades de intervenção no nosso meio.

Referências

  • 1
    Schmidt MI, Duncan BB, Azevedo e Silva G, Menezes AM, Monteiro CA, Barreto SM, et al. Chronic non-communicable diseases in Brazil: burden and current challenges. Lancet. 2011;377(9781):1949-61.
  • 2
    Fuchs SC , Biolo A , Polanczyk CA . Cardiovascular epidemiology: the legacy of sound national and international studies. Arq Bras Cardiol. 2013;101(2):98-100.
  • 3
    Evora PR, Nather JC, Rodrigues AJ. Prevalência das doenças cardíacas ilustrada em 60 anos dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia. Arq Bras Cardiol. 2014;102(1):3-9.
  • 4
    Moreira LF. Os Arquivos Brasileiros de Cardiologia e a divulgação da pesquisa em ciências cardiovasculares no Brasil. Arq Bras Cardiol. 2014;102(1):1-2.
  • 5
    Ben-Schlomo Y, Kuh D. A life course approach to chronic disease epidemiology: conceptual models, empirical challenges and interdisciplinary perspectives. Int J Epidemiol. 2002;31(2):285-93.
  • 6
    Davey-Smith G, Hart C. Life-course socioeconomic and behavioral influences on cardiovascular mortality: the collaborative study. Am J Public Health. 2002;92(8):1295-8.
  • 7
    Barker DJ. The origins of the developmental origins theory. J Intern Med. 2007;261(5):412-7.
  • 8
    Desai M , Beall M, Ross MG. Developmental origins of obesity: programmed adipogenesis. Curr Diab Rep. 2013;13(1):27-33.
  • 9
    Hallal PC , Dumith SC , Ekelund U , Reichert FF , Menezes AM , Victora CG , et al. Infancy and childhood growth and physical activity in adolescence: prospective birth cohort study from Brazil. Int J Behav Nutr Phys Act. 2012;9:82.
  • 10
    Schilithz AO , da Silva CM , Costa AJ , Kale PL . Ecological analysis of the relationship between infant mortality and cardiovascular disease mortality at ages 45-69 in the Brazilian 1935 birth cohort. Prev Med. 2011;52(6):445-7.
  • 11
    Salgado CM, Jardim PC, Teles FB, Nunes MC. Baixo peso ao nascer como marcador de alterações na monitorização ambulatorial da pressão arterial. Arq Bras Cardiol. 2009;92(2):107-21.
  • 12
    Sousa MA, Guimarães IC, Daltro C, Guimarães AC. Associação entre peso de nascimento e fatores de risco cardiovascular em adolescentes. Arq Bras Cardiol. 2013;101(1):9-17.
  • 13
    Victora CG, Adair L, Fall C, Hallal PC, Martorell R, Richter L, et al. Maternal and Child Undernutrition Study Group. Maternal and child undernutrition: consequences for adult health and human capital. Lancet. 2008;371(9609):340-57. Erratum in Lancet. 2008;371(9609):302.
  • 14
    Schilithz AO, Silva CM, Costa AJ, Kale PL. Ecological analysis of the relationship between infant mortality and cardiovascular disease mortality at ages 45-69 in the Brazilian 1935 birth cohort. Prev Med. 2011;52(6):445-7.
  • 15
    Pereira JA, Rondo PH, Lemos JO, Pacheco de Souza JM, Dias RS. The influence of birthweight on arterial blood pressure of children. Clin Nutr. 2010;29(3):337-40.
  • 16
    Dulloo AG. Thrifty energy metabolism in catch-up growth trajectories to insulin and leptin resistance. Best Pract Res Clin Endocrinol Metab. 2008;22(1):155-71.
  • 17
    Berends LM, Fernandez-Twinn DS, Martin-Gronert MS, Cripps RL, Ozanne SE. Catch-up growth following intra-uterine growth-restriction programmes an insulin-resistant phenotype in adipose tissue. Int J Obes (Lond). 2013;37(8):1051-7.
  • 18
    Campana EM, Brandão AA, Pozzan R, Magalhães ME, Fonseca FL, Pizzi OL, et al. Pressão arterial na adolescência, adipocinas e inflamação no adulto jovem. Estudo do Rio de Janeiro. Arq Bras Cardiol. 2014;102(1):60-9.
  • 19
    Oliveira RM , Franceschini Sdo C, Rosado GP, Priore SE. Influence of prior nutritional status on the development of the metabolic syndrome in adults. Arq Bras Cardiol. 2009 Feb;92(2):101-12.
  • 20
    Reilly J J Kelly J. Long-term impact of overweight and obesity in childhood and adolescence on morbidity and premature mortality in adulthood: systematic review. International Journal of Obesity 35, 891-898
  • 21
    Giuliano ICB, Caramelli B, Pellanda L, Duncan B, Mattos S, Fonseca FAH et al.. I Diretriz de Prevenção da Aterosclerose na Infância e na Adolescência. Arq. Bras. Cardiol. 2005, 85(6): 3-36.
  • 22
    Lima-Leopoldo Ana Paula, Leopoldo André Soares, Silva Danielle Cristina Tomaz, Nascimento André Ferreira do, Campos Dijon Henrique Salomé de, Luvizotto Renata de Azevedo Melo et al . Influência de prolongados períodos de obesidade sobre a expressão gênica miocárdica. Arq. Bras. Cardiol 2013; 100 (3): 229-237.
  • 23
    Bertaso Angela Gallina, Bertol Daniela, Duncan Bruce Bartholow, Foppa Murilo. Epicardial fat: definition, measurements and systematic review of main outcomes. Arq. Bras. Cardiol2013; 101(1): e18-e28.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 2014
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br