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Estratificação de Risco para Prevenção Primária de Morte Súbita Cardíaca em Cardiomiopatia Hipertrófica

Cardiomiopatia Hipertrófica; Morte Súbita Cardíaca; Desfibriladores Implantáveis; Prevenção e Controle; Síncope

Lemos com grande interesse o artigo de Mattos et al. 11. Mattos BP, Scolari FL, Garbin HI. Discrepancy between international guidelines on the criteria for primary prevention of sudden cardiac death in hypertrophic cardiomyopathy. Arq Bras Cardiol. 2020;115(2):197-204. sobre estratificação de risco na cardiomiopatia hipertrófica (CMH). 11. Mattos BP, Scolari FL, Garbin HI. Discrepancy between international guidelines on the criteria for primary prevention of sudden cardiac death in hypertrophic cardiomyopathy. Arq Bras Cardiol. 2020;115(2):197-204. Os autores compararam as diretrizes de 2011 da American College of Cardiology Foundation/American Heart Association (ACCF/AHA) com as diretrizes de 2014 da European Society of Cardiology (ESC) em pacientes brasileiros com CMH e encontrou baixa concordância entre os dois sistemas. No total, 90 pacientes com CMH foram incluídos e 15 (17%) deles receberam um cardioversor desfibrilador implantável (CDI). Dois (2%) pacientes apresentaram choque apropriado, 6 (7%) morte súbita cardíaca (MSC) e 6 (7%) morte não cardíaca. De acordo com os critérios da ACCF/AHA de 2011, 43 (48%) pacientes receberam recomendação de Classe IIa para CDI, 3 (3%) receberam recomendação de Classe IIb e 44 (49%), Classe III. Se o escore de risco de MSC por MCH da ESC tivesse sido aplicado, 12 (14%) pacientes teriam recebido recomendação de Classe IIa para CDI (alto risco, ≥6%), 11 (12%) teriam recebido recomendação de Classe IIb (risco intermediário, ≥4% -<6%) e 67 (74%), Classe III (baixo risco, <4%). O coeficiente kappa calculado (0,355, p=0,0001) confirmou a baixa concordância entre as duas diretrizes. Especificamente falando, o modelo da ESC deixou desprotegidos todos os pacientes que apresentaram MSC ou abortaram MSC com apenas 2 deles (25%) sendo classificados como IIb. Os critérios da ACCF/AHA de 2011 recomendaram CDI (Classe IIa) para metade desses pacientes, com CDI sendo recomendado em muito mais pacientes do que os que realmente necessitavam. Os resultados deste estudo destacam a inadequação de estratégias precisas de estratificação de risco e contestam a tomada de decisão atual.

Esta não é a primeira vez que a precisão da predição de MSC na CMH provou ser insuficiente. 22. Wang J, Zhang Z, Li Y, Xu Y, Wan K, Chen Y. Variable and limited predictive value of the European Society of Cardiology hypertrophic cardiomyopathy sudden-death risk model: a meta-analysis. Can J Cardiol. 2019;35(2):1791-9.

3. Liu J, Wu G, Zhang C, Ruan J, Wang D, Zhang M et al. Improvement in sudden cardiac death risk prediction by the enhanced ACC/AHA strategy in Chinese patients with hypertrophic cardiomyopathy. Heart Rhythm 2020;17(10):1658-63.
- 44. Gatzoulis KA, Georgopoulos S, Antoniou CK, Anastasakis A, Dilaveris P, Arsenos P et al. Programmed ventricular stimulation predicts arrhythmic events and survival in hypertrophic cardiomyopathy. Int. J Cardiol. 2018;254:175-181. A CMH é a causa mais comum de MSC em jovens e a carga dessa perda devido à estratificação de risco não invasiva equivocada, por um lado, e a inserção desnecessária de um dispositivo, por outro, nos obrigam a melhorar esse quadro.

Nosso grupo propôs a contribuição adicional da estimulação ventricular programada (EVP) durante um estudo abrangente de eletrofisiologia (EFS) nas estratégias de estratificação de risco atuais, a fim de abordar seu baixo desempenho 44. Gatzoulis KA, Georgopoulos S, Antoniou CK, Anastasakis A, Dilaveris P, Arsenos P et al. Programmed ventricular stimulation predicts arrhythmic events and survival in hypertrophic cardiomyopathy. Int. J Cardiol. 2018;254:175-181. . A população do estudo incluiu 203 pacientes com CMH, e como no estudo de Mattos et al., 11. Mattos BP, Scolari FL, Garbin HI. Discrepancy between international guidelines on the criteria for primary prevention of sudden cardiac death in hypertrophic cardiomyopathy. Arq Bras Cardiol. 2020;115(2):197-204. a maioria foi avaliada como risco baixo a intermediário para MSC (60% apresentava um único fator de risco). Implantou-se CDI em 92 (45,3%) pacientes, com ocorrência de desfecho primário (MSC e/ou terapias apropriadas com CDI) em 20 pacientes (9,9%). O achado importante do estudo foi que a EVP foi indutível em todos, exceto um paciente que apresentou o desfecho primário, ao passo que as diretrizes da AACF/AHA de 2011 e da ESC de 2014 classificaram erroneamente 3 e 9 pacientes, respectivamente. Em nossa população, as diretrizes de 2011 da ACCF/AHA teriam levado à implantação de 171 CDIs, enquanto as diretrizes da ESC teriam levado à implantação de 53, e, somente a EVP, em 79 pacientes. A combinação de cada uma dessas diretrizes com o protocolo EVP aumentaria esses números para 187 e 110 pacientes, respectivamente, sem perder nenhum desfecho primário. Principalmente em conjunto com as diretrizes da ESC, a sensibilidade e a especificidade ideais foram alcançadas da maneira mais econômica. Outra vantagem importante da EFS acabou sendo a caracterização adequada do mecanismo da síncope.

O uso da EVP na estratificação de risco de prevenção primária para MSC na CMH é a Classe III nas diretrizes europeias de 2014 e nas diretrizes da ACCF/AHA de 2011, com o principal argumento sendo os riscos de tal procedimento invasivo e seu custo, com base no nível não suportado de evidência C. No entanto, nosso método foi viável e seguro em todos os casos, enquanto a classificação incorreta ou a implantação inadequada de CDIs são muito mais desoladoras e caras. O baixo desempenho das diretrizes da ESC e da ACCF/AHA pode ser devido a sua incapacidade de expressar o mecanismo exato de arritmogênese nesta doença. A ressonância magnética cardíaca (RMC) tem sido uma importante ferramenta na avaliação da CMH, uma vez que a presença de fibrose de realce tardio com gadolínio é considerada um forte preditor independente para arritmias ventriculares malignas. 55. Kariki O, Antoniou CK, Mavrogeni S, Gatzoulis KA. Updating the risk stratification for sudden cardiac death in cardiomyopathies: the evolving role of cardiac magnetic resonance imaging. An approach for the electrophysiologist. Diagnostics. 2020;10(8):541. O uso de achados da RMC na estratificação de risco foi considerado nas diretrizes de 2020 da ACC/AHA.

Em conclusão, a identificação adequada de pacientes com maior risco de morte súbita indicados para a terapia com CDI, que salva vidas, com controle de tratamento excessivo, continua sendo o Santo Graal da CMH. Mattos et al., 11. Mattos BP, Scolari FL, Garbin HI. Discrepancy between international guidelines on the criteria for primary prevention of sudden cardiac death in hypertrophic cardiomyopathy. Arq Bras Cardiol. 2020;115(2):197-204. apresentam evidências adicionais na literatura atual sobre as inadequações dos escores de risco e destacam a necessidade de introdução de critérios mais sensíveis e específicos. A estimulação ventricular programada pode ser uma nova ferramenta salvadora ao nosso arsenal contra a morte cardíaca súbita.

Carta-resposta

A morte súbita cardíaca (MSC) é considerada a complicação mais dramática da cardiomiopatia hipertrófica (CMH), com uma incidência anual estimada de 0,5–1%. 11. Mattos BP, Scolari FL, Garbin HI. Discrepancy between international guidelines on the criteria for primary prevention of sudden cardiac death in hypertrophic cardiomyopathy. Arq Bras Cardiol. 2020;115(2):197-204. Ao longo dos anos, ACC/AHA e ESC publicaram diretrizes de consenso que apresentam diferentes abordagens para a estratificação de risco de MSC com base em preditores clínicos independentes. Apesar da acurácia relativamente baixa desses marcadores, as estratégias atuais teriam razoável poder discriminatório para o reconhecimento de pacientes de alto risco. No entanto, a avaliação prognóstica é um desafio na CMH, principalmente em pacientes de risco baixo a moderado. A MSC pode surgir na ausência de fatores de risco conhecidos e algumas abordagens mostram resultados conflitantes em diferentes populações. 22. Wang J, Zhang Z, Li Y, Xu Y, Wan K, Chen Y. Variable and limited predictive value of the European Society of Cardiology hypertrophic cardiomyopathy sudden-death risk model: a meta-analysis. Can J Cardiol. 2019;35(2):1791-9. Além disso, as discrepâncias metodológicas entre as diretrizes norte-americanas e europeias podem determinar níveis discordantes de recomendação em relação ao cardioversor desfibrilador implantável (CDI) na prevenção primária. 33. Liu J, Wu G, Zhang C, Ruan J, Wang D, Zhang M et al. Improvement in sudden cardiac death risk prediction by the enhanced ACC/AHA strategy in Chinese patients with hypertrophic cardiomyopathy. Heart Rhythm 2020;17(10):1658-63. Portanto, a estratificação de risco ainda é imprecisa e requer maior investigação.

O artigo de 2018 de Gatzoulis et al., 44. Gatzoulis KA, Georgopoulos S, Antoniou CK, Anastasakis A, Dilaveris P, Arsenos P et al. Programmed ventricular stimulation predicts arrhythmic events and survival in hypertrophic cardiomyopathy. Int. J Cardiol. 2018;254:175-181. reavalia o papel do estudo eletrofisiológico para a avaliação prognóstica em uma coorte unicêntrica de CMH de risco baixo a intermediário, estratificada de acordo com as diretrizes atuais. Os autores concluem que a estimulação ventricular programada (EVP) combinada com os modelos atuais acrescenta sensibilidade e valor preditivo negativo à estratificação de risco. 44. Gatzoulis KA, Georgopoulos S, Antoniou CK, Anastasakis A, Dilaveris P, Arsenos P et al. Programmed ventricular stimulation predicts arrhythmic events and survival in hypertrophic cardiomyopathy. Int. J Cardiol. 2018;254:175-181. Os resultados são interessantes, mas precisam ser confirmados em estudos prospectivos maiores. A EVP foi reduzida à classe III nas diretrizes atuais devido à baixa sensibilidade e aos possíveis riscos. Da mesma forma, o fracionamento dos eletrogramas do ventrículo direito tem sido relacionado à MSC, mas não foi assimilado devido à natureza invasiva do procedimento, o que pode afetar sua realização em alguns casos. 55. Kariki O, Antoniou CK, Mavrogeni S, Gatzoulis KA. Updating the risk stratification for sudden cardiac death in cardiomyopathies: the evolving role of cardiac magnetic resonance imaging. An approach for the electrophysiologist. Diagnostics. 2020;10(8):541. A instabilidade elétrica é transitória na CMH e deve ser avaliada periodicamente assim como outros preditores com características dinâmicas. 22. Wang J, Zhang Z, Li Y, Xu Y, Wan K, Chen Y. Variable and limited predictive value of the European Society of Cardiology hypertrophic cardiomyopathy sudden-death risk model: a meta-analysis. Can J Cardiol. 2019;35(2):1791-9. , 55. Kariki O, Antoniou CK, Mavrogeni S, Gatzoulis KA. Updating the risk stratification for sudden cardiac death in cardiomyopathies: the evolving role of cardiac magnetic resonance imaging. An approach for the electrophysiologist. Diagnostics. 2020;10(8):541. Deste modo, as diretrizes recomendam a reavaliação do risco de MSC durante o seguimento. Avaliação clínica não invasiva e de fácil aquisição favorece a abordagem de rotina do paciente.

Na última diretriz da ACC/AHA de 2020, foi introduzida um algoritmo com três novos preditores não invasivos: fibrose na forma de realce tardio através de ressonância magnética cardíaca com gadolínio, aneurisma apical do ventrículo esquerdo e fração de ejeção reduzida. 11. Mattos BP, Scolari FL, Garbin HI. Discrepancy between international guidelines on the criteria for primary prevention of sudden cardiac death in hypertrophic cardiomyopathy. Arq Bras Cardiol. 2020;115(2):197-204. Todos estes estão direta ou indiretamente relacionados a alterações na arquitetura miocárdica, principalmente a fibrose de substituição. Há uma tendência para a assimilação de novas e mais precisas tecnologias não invasivas para a avaliação prognóstica de rotina na CMH projetada para um futuro próximo. Talvez os protocolos invasivos entrem em desuso com base em avaliações de custo-efetividade. No entanto, a EVP pode ser aplicada em casos com estratificação de risco discordante entre as diretrizes em relação à recomendação de CDI, podendo contribuir em casos com síncope cardíaca inexplicada.

Por fim, a avaliação do desarranjo celular com tensor de difusão por ressonância magnética cardíaca, genotipagem, perfil de microRNAs e outros biomarcadores promissores, bem como a avaliação não invasiva de isquemia miocárdica, poderão assegurar uma avaliação mais rigorosa do substrato anatômico e elétrico da doença. 22. Wang J, Zhang Z, Li Y, Xu Y, Wan K, Chen Y. Variable and limited predictive value of the European Society of Cardiology hypertrophic cardiomyopathy sudden-death risk model: a meta-analysis. Can J Cardiol. 2019;35(2):1791-9. , 61. Ommen SR, Mital S, Burke MA, Day SM, Deswal A, Elliott P, et al. 2020 AHA/ACC guideline for the diagnosis and treatment of patients with hypertrophic cardiomyopathy. Circulation 2020;142(25):e533–57. https://doi.org/10.1161/CIR.0000000000000937.
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Porém, sua assimilação à prática clínica diária deve levar em consideração os recursos disponíveis localmente e representará um grande desafio. A busca por novos paradigmas na CMH está em curso e uma avaliação eletrofisiológica mais precisa dos mecanismos da MSC é necessária, podendo complementar ou mesmo suplantar a estratificação de risco de atual.

Beatriz Piva e Mattos

Fernando Luís Scolari

Henrique Ianhke Garbin

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jul 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2020
  • Revisado
    03 Fev 2021
  • Aceito
    03 Fev 2021
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