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O problema do suicídio em Montaigne

Resumos

Nos Ensaios de Montaigne, encontramos um dos mais célebres textos filosóficos sobre a morte voluntária, o capítulo 3 do livro II. Muitos comentadores qualificam o posicionamento de Montaigne como sendo o mesmo de Sêneca e de alguns autores antigos, qual seja, uma defesa da moralidade do ato de se matar. Outros estudiosos detectam no ensaio uma oscilação inconclusa do autor francês sobre o tema. Procuro, em contrapartida, apresentar argumentos que evidenciam que a opinião final de Montaigne é irrestritamente contrária ao suicídio. Para tanto, é feito um mapeamento das várias ocorrências do problema do suicídio no livro que vão além do citado capítulo. Além disso, é ressaltada a distinção entre as camadas de escrita do texto em suas várias edições, contrapondo as inovações de Montaigne aos modelos argumentativos de suas influências clássicas.

liberdade; pertença; suicídio; Montaigne


In Montaigne's Essays, we find one of the most famous philosophical texts on voluntary death, the third chapter of Book II. Many commentators assess Montaigne's position as similar to Seneca's and to some other ancient authors', that is, a defense of the morality of killing oneself. Other scholars detect an unsolved oscillation of the French author on the subject. However, I try to present arguments showing that Montaigne's final opinion is against suicide. Therefore, it is undertaken a mapping of the multiple occurrences of the issue in the book, which go beyond the said chapter. Moreover, the distinction between the writing layers of the Essais in its various editions is stressed, putting in contrast the novelty of Montaigne's argumentative models to his classical influences.

freedom; belonging; suicide; Montaigne


ARTIGOS

O problema do suicídio em Montaigne

Lúcio Vaz

Doutorando em filosofia pela UFMG, E-mail: lcvaz@hotmail.com

RESUMO

Nos Ensaios de Montaigne, encontramos um dos mais célebres textos filosóficos sobre a morte voluntária, o capítulo 3 do livro II. Muitos comentadores qualificam o posicionamento de Montaigne como sendo o mesmo de Sêneca e de alguns autores antigos, qual seja, uma defesa da moralidade do ato de se matar. Outros estudiosos detectam no ensaio uma oscilação inconclusa do autor francês sobre o tema. Procuro, em contrapartida, apresentar argumentos que evidenciam que a opinião final de Montaigne é irrestritamente contrária ao suicídio. Para tanto, é feito um mapeamento das várias ocorrências do problema do suicídio no livro que vão além do citado capítulo. Além disso, é ressaltada a distinção entre as camadas de escrita do texto em suas várias edições, contrapondo as inovações de Montaigne aos modelos argumentativos de suas influências clássicas.

Palavras-chave liberdade, pertença, suicídio, Montaigne.

ABSTRACT In Montaigne's Essays, we find one of the most famous philosophical texts on voluntary death, the third chapter of Book II. Many commentators assess Montaigne's position as similar to Seneca's and to some other ancient authors', that is, a defense of the morality of killing oneself. Other scholars detect an unsolved oscillation of the French author on the subject. However, I try to present arguments showing that Montaigne's final opinion is against suicide. Therefore, it is undertaken a mapping of the multiple occurrences of the issue in the book, which go beyond the said chapter. Moreover, the distinction between the writing layers of the Essais in its various editions is stressed, putting in contrast the novelty of Montaigne's argumentative models to his classical influences.

Keywords freedom, belonging, suicide, Montaigne.

I.

O rastreamento das ocorrências do tema da morte voluntária nos Ensaios depende, antes de tudo, da percepção de peculiaridades terminológicas. O termo 'suicídio' obviamente não é de modo algum usado, uma vez que só passou a ser difundido, décadas mais tarde, com o intuito de uma associação pejorativa com 'homicídio'[1] 1 ANDRÉS, 1998, p. 185. A palavra fora criada em 1180, mas permaneceu sem registros até o século XVII. . A expressão mais usada por Montaigne é 'mort volontaire', seguindo a tradicional expressão latina 'mors voluntaria'. Ao longo do artigo que segue, usarei o termo 'suicídio' sem que necessariamente um valor negativo deva ser anexado a ele.

Embora o "Costume da Ilha de Quíos" seja indubitavelmente o lugar em que o tema é trabalhado mais detidamente, encontramos sua discussão também nos capítulos I, 33 ("Sobre fugir das volúpias ao preço da vida"); I, 37 ("Do jovem Catão"); I, 57 ("Da idade"); II, 35 ("Sobre três boas mulheres"). Ademais, os exemplos de morte voluntária, colhidos sobretudo na literatura antiga, pululam nos Ensaios, mas nem sempre Montaigne realça neles a questão da escolha do morrer[2] 2 Trechos nos quais há algum comentário de Montaigne aos exemplos são: I, 14, p. 51, 53, 67; II, 12, p. 496; II, 29, p. 706-7 (motivações passionais e alegria, no caso dos indígenas); II, 32, p. 724A e C; II, 37, p. 759-760. . Uma compreensão satisfatória do tratamento montaniano da questão ora analisada exige, portanto, o cotejamento desses diversos endereços com o já célebre terceiro capítulo do segundo livro.

Na resposta do autor às questões relativas à morte involuntária, nota-se uma oscilação entre a passividade e a vontade, entre o deixar-se levar e o escolher, que se referem precipuamente ao papel da preparação mental para a morte. Em outra ocasião[3] 3 VAZ, Lúcio, 2011. , procurei mostrar que, embora o pensamento de Montaigne a respeito das atitudes frente à morte tenha mudado ao longo dos anos de escrita do livro, a proposta de não a temer e não a tomar como mal é comum em toda a obra. Nisso, o autor renascentista faz coro com a maioria dos filósofos antigos. Alguma tolerância ou espaço para a morte voluntária aparenta ser a sequência razoável de algumas dessas filosofias, que afirmaram a necessidade de aceitação e destemor da morte involuntária. Esse tipo de abordagem vicejou na Antiguidade, especialmente, no período helenístico e na Roma imperial. A opinião de que a morte não é por si um mal, defendida, por exemplo, por estoicos e epicuristas, acarretou a defesa de que, em algum momento da vida, em algum contexto, seria desejável, racional ou aceitável livrar-se dela[4] 4 O sábio (figura frequente entre os antigos), diferentemente do insensato, saberia decidir quando a vida já não deve ser prolongada. Por exemplo: CÍCERO. De Finibus..., livro III, XVII, 60-61, embora em Tusculanas Cícero repita a irrestrita condenação platônica ao suicídio. Como exemplo epicurista, leia-se: LUCRÉCIO, III, 971, 1085-1086. .

O ambiente cultural de onde e para onde Montaigne se faz ouvir é deveras diverso do de suas fontes. Reina o cristianismo e, com ele, sua doutrina irrestritamente contrária ao suicídio. Uma das expressões mais completas e coerentes dela encontra-se na Cidade de Deus de Santo Agostinho. Parte da argumentação de Agostinho reside naquilo que podemos denominar argumento da pertença. Esse argumento, provavelmente o mais frequente no senso comum, toma por ponto de partida a afirmação do pertencimento de um indivíduo seja a Deus (ou aos deuses)[5] 5 Já usado, por exemplo, no Fédon, 62b-c. , seja aos outros homens na terra e conclui em favor da atribuição de uma dívida do indivíduo para com a família, a sociedade, a espécie ou alguma entidade sobrenatural. O efeito retórico projetado é despertar frente àquele que está para se matar esse sentimento de débito genético, social ou religioso.

Devemos aí operar uma subclassificação entre pertença transcendente e social. De acordo com o argumento da pertença transcendente, somos propriedade de Deus (ou dos deuses), ele nos deu a vida e, com isso, apenas ele pode tirá-la. As situações de adversidade por que passamos são provações através das quais estamos sendo testados por Deus e cuja melhor saída, a ser ulteriormente recompensada[6] 6 AGOSTINHO. De Civitate Dei, V, 18. , é sempre a valorização da vida[7] 7 AGOSTINHO. De Civitate Dei, I, 20 e, notadamente, I, 22, 26: dos preceitos bíblicos "Não matar o próximo" e "Tratar o próximo como a ti mesmo" decorre que o suicídio é também um homicídio. . O argumento da pertença social consiste em afirmar que não vivemos apenas para nós[8] 8 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 1198a5-15. MONTAIGNE. II, 3, p. 352 A e C. , mas também e, sobretudo, para os outros, pelo fato de vivermos por causa dos outros. Há uma breve ocorrência nos Ensaios desse argumento colocado nos lábios insuspeitos de Sêneca, o qual teria declarado preferir a certa altura de sua vida não partir dessa vida em consideração ao sofrimento de sua esposa[9] 9 II, 35, p. 750A. .

Decerto em atenção a esse ambiente cristão, Montaigne começa seu ensaio sobre a morte voluntária com um tom por assim dizer diplomático, reconhecendo a autoridade eclesiástica. Segundo alguns comentadores, entre os quais Schaefer ocupa um extremo, haveria um escamoteamento da real posição do autor nesse início e no título que alude apenas de maneira vaga ao tema do suicídio[10] 10 Como observa Schaefer (1990, p. 44). Também: HENRY, 1987. . Devemos ponderar, no entanto, que nem sempre os títulos não abrangentes do conteúdo do ensaio encerram opiniões heterodoxas e contrárias às doutrinas oficiais da Igreja[11] 11 Henry (1987, p. 39) o admite. . Por outro lado, é razoável crer que o título do capítulo em questão pode ter evitado que o censor romano, durante a viagem de Montaigne e de seu livro à Itália, o examinasse detidamente e nele pudesse descobrir algo a ser reprimido[12] 12 HENRY, 1987, p. 14. . Isentando-me dos riscos interpretativos de apostar num mascaramento de posições, entendo como diplomático o mero reconhecimento de ordem certamente mais jurídica e política do que religiosa da autoridade da Igreja sobre o problema. De acordo com o ensaísta, a nós caberia, como filósofos, ter dúvidas e levantar problemas, mas à "autoridade da vontade divina" competiria resolvê-los[13] 13 II, 3, p. 350A. Interessa notar que, nas edições de 1580 (p. 19) e 1588 (p. 143), Montaigne dizia "Mon cathedrant, c'est l'authorité Sacro Sainte de la volonté divine (...)". Como decréscimo posterior, ele corta 'Sacro Sainte'. . Por vezes posicionando-se cautelosamente nessa esfera da dúvida, ele repete muitos dos bordões estoicos concernentes ao assunto. Em outras, reexpõe o argumento da pertença e parece admitir que a escolha da morte restringe-se a Deus e não ao homem[14] 14 II, 3, p. 352A (com acréscimos C). ; inclusive, curiosamente diz, em certo trecho, que Deus nos dá a oportunidade (congé), quando configura estados em que viver é pior do que morrer, comentário que não é, vale lembrar, contrário à doutrina agostiniana[15] 15 II, 3, p. 351A. Agostinho ( De Civitate Dei, I, 26) considera possível que o suicídio seja uma determinação divina, assim como o assassinato de um filho pode ser uma determinação de Deus, mas tal ordem não pode ser conhecida por outros seres humanos. .

II.

Montaigne, em outra passagem do mesmo capítulo, parece justificar o suicídio, depois de se perguntar qual seria a idade certa para morrer. Sua resposta é que normalmente é rara a morte natural, isto é, por velhice. Sujeito a todo tipo de males, é natural – comum e razoável – que alguém queira se matar e que não esperemos a velhice para tal decisão[16] 16 I, 57, p. 326A. . Nesse mesmo ponto do texto, há uma desvalorização da velhice entendida como uma decadência do corpo e da alma, uma espécie de idade da ferrugem que não vale a pena se a juventude, idade de ouro, não valeu.

Aqui se tem a afirmação da liberdade de escolha da idade de morrer, a escolha de viver até quando devemos, quer dizer, até quando acreditamos dever[17] 17 Ver também II, 3, p. 350A: "C'est ce qu'on dit, que le sage vit tant qu'il doit, non pas tant qu'il peut (...)", decalcado de Sêneca. Epistulae..., LXX: "Itaque sapiens vivet, quantum debet, non quantum potest." . É precisamente sobre esse que podemos denominar argumento da liberdade que se assenta a defesa de Sêneca e outros do suicídio. A repetição de fórmulas senecanas, reafirmando essa liberdade, é muito freqüente nos Ensaios[18] 18 Mais exemplos: SÊNECA. Epistulae..., XII, 10: "Malum est in necessitate vivere, sed in necessitate vivere necessitas nulla est." XXVI, 10. Montaigne. I, 14, p. 67A e C: "Nul n'est mal si long temps qu'à sa faute." II, 3, p. 351 A: "La plus volontaire mort, c'est la plus belle." Para um rastreamento mais completo das apropriações montanianas de Sêneca, ver VILLEY, 1976, tomo II, p. 51. . Mas nunca Montaigne presta seu assentimento a elas em primeira pessoa[19] 19 I, 14, pp. 51-52A. Esses exemplos e as constatações gerais que deles decorrem são citados sem que Montaigne opine a respeito. Quanto aos exemplos em II, 3, p. 360C, ele os fornece com desaprovação, embora nem sempre explicitamente. Cf. também II, 13, p. 607 A. . Henry interpreta a ausência de um assentimento em primeira pessoa como "uma rede de dispositivos retóricos (...) para defender o suicídio"[20] 20 Cf. HENRY, 1987, p. 49. . Restringindo-me ao que o texto efetivamente nos oferece, acredito que devemos antes falar em imparcialidade e não assentimento do que escamoteamento. Um trecho que evidencia sua imparcialidade, senão seu distanciamento, encontra-se no livro I, onde diz:

Bem vi concordar a maior parte das antigas opiniões nisto: que é hora de morrer quando há mais mal que bem em viver; e que conservar nossa vida para nosso tormento e infortúnio é quebrar as próprias leis da natureza...[21] 21 I, 33, p. 218A, itálicos adicionados.

Em verdade, dizer que a escolha pela vida ou morte pertence ao próprio indivíduo não implica que ele deva escolher a morte, ou seja, não acarreta que o suicídio seja a melhor escolha. Ao sentimento de dívida que forma a base da argumentação em torno da pertença, pode-se contrapor a noção de que o indivíduo pertence a si mesmo, tão cara à modernidade[22] 22 Starobinsky (1982, p. 93) carrega excessivamente as tintas do ato e crê que a " vérité intérieure" se realiza plenamente no morrer voluntário, que assume completo domínio sobre si. . De certo modo, o já citado argumento da liberdade, partindo dessa noção inovadora, refere-se não tanto à liberdade num plano ontológico (em relação à natureza ou a todo o universo), mas sim em relação às obrigações morais de retribuição com a própria vida, o que, como já visto, não assegura caráter moral nem prudencial a tão grave decisão, apenas anula o argumento da pertença.

Cabe referir adicionalmente que o argumento da liberdade abre espaço para uma eventual aceitabilidade jurídica da decisão individual de se matar; o que parece, salvo engano, ser estabelecido por Montaigne ao observar que, assim como não é furto pegar meus próprios pertences, nem crime cortar minha própria bolsa, também não configura assassinato me matar. Essa observação não acarreta que Montaigne esteja aí aprovando moralmente o suicídio, mas tão-somente que ele defenda que o ato não fere outrem e não comporta crime[23] 23 II, 3, p. 351C. Castañeda (2010, p. 224) também conclui dessa passagem que Montaigne acredita que não há "uma verdade última" sobre o suicídio. . Talvez como sintoma de tal restrição da liberdade ao âmbito jurídico, há um decréscimo digno de atenção na camada C: Na edição de 1580, Montaigne reproduz um comentário de Plínio de que há três doenças legitimadoras do "costume" de escolher a morte. Após 1588, Montaigne risca a segunda e a terceira doenças da lista bem como a palavra 'costume' e em seu lugar escreve 'direito'[24] 24 II, 3, p. 355; Exemplar de Bordéus, p. 146. . Destarte, o suicídio não se encontra, no pensamento montaniano, no mesmo plano do homicídio[25] 25 Ao contrário do que diz Comparot (1983, p. 141), baseando-se exclusivamente no uso do argumento da pertença. . Garavini interpreta apropriadamente essa alteração como um deslocamento da esfera do costume para a instância da justificação das ações, porém exagera em pensar que a questão da legalidade do suicídio é a única que interessa a Montaigne no ensaio, supostamente no intuito de alcançar permissão para que ele mesmo se livrasse com a morte da doença dos rins, a única a permanecer entre as três inicialmente listadas[26] 26 GARAVINI, 1989, p. 145-6. . A meu ver, Montaigne, ao supor que o suicídio não deve ser considerado um crime, está precisamente fazendo o contrário do que afirma Garavini, a saber, retirando a solução do problema da instância jurídica e lhe conferindo uma esfera estritamente individual de decisão[27] 27 Também o diz Georgia Noon (NOON, 1978, p. 377). . Tal deslocamento de enfoque sobre o "homicídio de si", como se o nomeará mais tarde, choca-se frontalmente (e não sub-reptícia ou retoricamente) com o reconhecimento da autoridade eclesiástica, ao qual me referi linhas atrás. Em boa lógica, poder-se-ia inferir que nem ao Estado nem à Igreja concerniria legislar sobre as escolhas individuais pelo próprio fim.

Para fornecer apoio a sua tese, Garavini chega a ver num dos exemplos finais do capítulo, exemplo do qual o título é extraído, uma teatralização e um espetáculo da morte, visados pelo próprio ensaísta na qualidade de modelos de morte premeditada[28] 28 GARAVINI, 1989, p. 147-149. . Na história, uma senhora de Quíos, por ensejo da visita de Sexto Pompeu à ilha, solicita sua presença no momento da morte voluntária que a nativa da ilha acreditava justificada[29] 29 MONTAIGNE, II, 3, p. 362A. . Para Garavini, também o autor estaria objetivando a "sacralização" de seu suicídio em ato espetacular e teatral[30] 30 Cf. ZWEIG, Montaigne, p. 72. Também crendo que Montaigne pensava em se matar, Zweig afirma que ele só foi dissuadido do ato por ter sido eleito prefeito de Bordéus; não oferecendo citação que confirme tal interpretação. . A leitura de Garavini incorre em dois deslizes e visivelmente vai além das bordas do texto. O primeiro consiste em não atentar para o fato de que Sexto Pompeu não aquiesce com a decisão da habitante da ilha em se matar. O segundo deslize reside na ideia de que Montaigne esteja prestando seu assentimento ou avaliando positivamente o caso que narra, o que simplesmente não ocorre.

Em outro endereço, Montaigne exprime de modo mais genérico (embora em contexto diverso) a noção moderna da autopertença individual: "A coisa mais importante do mundo é saber pertencer a si mesmo."[31] 31 I, 39, p. 242A: "La plus grande chose du monde, c'est de sçavoir estre à soy." Ver: SCHAEFER, 1990, p. 318-9: "[...] the principle of self-ownership that Montaigne enunciates is the ground of the liberal natural rights [...]". Uma das consequências ou suposições da autopertença individual é a consideração de que o Estado e as leis foram criados, antes de tudo, para proteção dos indivíduos e não que os indivíduos devam ser servos incondicionais do Estado, da família ou sociedade. Em um trecho do ensaio "Da Vanidade", Montaigne exprime como julgamento e disposição pessoal essa mesma consideração: ao contrário do que fez Sócrates, jamais optaria pela obediência às leis em detrimento da própria vida[32] 32 III, 9, p. 973C. .

Em contrapartida, deve-se também levar em conta que a aceitação estoica ou, mais amplamente, helenística do suicídio não implica uma permissão ilimitada à escolha pela morte. Independentemente de ser favorável ou não às ideias dos antigos sobre a morte voluntária, Montaigne, já na primeira edição do livro, chega a condenar algumas motivações ao suicídio, tais como: a mera curiosidade[33] 33 MONTAIGNE. II, 6, p. 371 A. , as esperanças na vida póstuma[34] 34 Entre elas, cita a que poderia ser conduzida pela frase de Paulo 'Cupio dissolvi' e as inspiradas no Fédon, de Platão. Por outro lado, Catão é exemplo de suicida-leitor do Fédon e não leitor-suicida, pois já estava determinado a se matar, segundo Montaigne. Esse nos oferece exemplos de leitores-suicidas em II, 3, p. 360 A e II, 12, p. 445 A. A citada inspiração, vale dizer, é proibida pelo próprio texto platônico. , a irresolução que busca uma morte rápida como forma de evitar a vacilação sobre a própria decisão[35] 35 II, 13, p. 607-608A. Interessante como aqui Montaigne parece condenar a tentativa de supressão da capacidade de julgamento do agente, mas em seguida elogia a morte lenta e premeditada de Marcelino e a ultravirtuosa de Catão (a admiração quase estética por ele perpassa o livro até em III, 12, p. 1037-1038B). , a covardia tanto do que foge da volúpia[36] 36 I, 33, p. 218A, atitude já condenada por Aristóteles como covardia, Ética a Nicômaco, III, 1116a10-15 e Plutarco ( On Stoic Self-contradictions, 1039e-1040a). Por outro lado, o suicida Catão não é julgado covarde, mas, ao contrário, como um virtuoso (I, 37, p. 231A) muito acima dos homens comuns entre os quais Montaigne desejava se incluir. Ver também: III, 2, p. 813B; III, 9, 991B: "La vertu de Caton estoit vigoreuse outre la mesure de son siecle; et à un homme qui se mesloit de gouverner les autres, destiné au service commun, il se pourroit dire que c'estoit une justice, sinon injuste, au moins vaine et hors de saison." quanto do que se esquiva da dor[37] 37 II, 3, pp. 352-353 A. E em II, 13, p. 607 A, condena os suicídios rápidos e menos dolorosos como fuga a mortes lentas e violentas. . Nesses dois últimos trechos, parece que apenas a reputação de covarde por antecipação é capaz de infundir vergonha, assim como a consideração da glória póstuma é capaz de estimular um ato de coragem que ponha a vida em risco. Devemos aceitar o que somos[38] 38 Montaigne. II, 3, p. 353 C e A. , não devemos fugir de nós mesmos.

Acredito que, com a exceção do suicídio por mera curiosidade ou com a pura esperança na vida pós-morte, pode-se dizer que todo suicídio deseja outro eu empírico e (ou) outro mundo[39] 39 No dizer de Montaigne: "(...) C'est de pareille vanité que nous desirons estre autre chose que ce que nous sommes." II, 3, p. 353A. e, crendo-se impotente para mudar qualquer um dos dois, decide abandonar esse último. Essa rejeição do suicida resulta de um ideal irrealizável e de uma incapacidade ou aparente inabilidade de satisfazê-lo. E, destarte, há alguma esperança ou ambição no que aparenta ser completo desespero[40] 40 II, 3, p. 360C. . O poder motivador da ambição no suicídio surge nas entrelinhas da descrição que o ensaísta faz das calúnias e moléstias a que foi submetido na ocasião das guerras civis entre católicos e protestantes. O nobre de Montaigne afirma que diante de tantas humilhações "(...) um ambicioso ter-se-ia pendurado, assim também o teria feito um avarento."[41] 41 III, 12, p. 1045 B: "(...) un ambitieux s'en fut pandu, si eust faict un avaritieux." Não preso à ambição, nem aos seus pertences, Montaigne não se desfez de sua própria vida.

III.

Uma guinada no tratamento do tema se processa, principalmente, no capítulo II, 3, "Costume da Ilha de Quíos". Montaigne passa a reprovar a morte voluntária a partir do meio desse capítulo, depois de ter vagado na descrição da opinião de vários filósofos a respeito[42] 42 Além do citado capítulo, há uma interessante passagem em II, 12, p. 496 A, onde Montaigne até a edição de 1588 escrevia que "toda filosofia" aconselha o suicídio. Depois desse ano reformula, escrevendo "em geral a filosofia". Também em I, 14, p. 51C diz que "A maioria dos filósofos apressam sua morte". .

Há um retorno ao problema da saída razoável (eulogon exagogé), porém, dessa vez, Montaigne reprova como arbitrária qualquer escolha de um momento pretensamente oportuno. Entre os defensores do suicídio que se deram tempo de escrever algo a respeito, muito se debateu sobre qual o momento exato – o ponto ótimo, nem antes nem depois, na linha da vida – para praticá-lo e em que situações. Parece-me que há uma imprecisão intrínseca às tentativas de solução desse problema por meio de uma ética da medida e do comedimento, o que acarreta uma inescapável arbitrariedade no ato de escolha da morte[43] 43 Como procurei mostrar refletindo, mais especificamente, sobre Demócrito: Cf. VAZ, L. 2006/2007. .

No exemplo de Cleômenes, usado no ensaio, sua justificação para não se matar em uma dada situação foi de que, havendo ainda esperança, é melhor não fazer uso desse instrumento[44] 44 Cleômenes diz : "Il ne faut servir tant qu'il y a un doigt d'esperance de reste (...)", II, 3, p. 354 A. . Atenção ao fato de ele não ter dito que sempre há esperança, deixando assim um espaço de possibilidade. Daí, ter-se matado em outra ocasião, por assim dizer, mais oportuna[45] 45 "(...) mais ce fut apres avoir essayé le dernier point de la fortune.", defende-o Montaigne, idem. . Então, Montaigne generaliza (sem embasamento suficiente no exemplo citado) que nenhum sofrimento é suficiente para justificar o suicídio, que há sempre a possibilidade de que mudem as "coisas humanas" e que não se deve apostar num determinado ponto da vida como sendo suficientemente ruim[46] 46 II, 3, p. 356A: "Et puis, y ayant tant de soudains changemens aux choses humaines, il est malaisé à juger à quel point nous sommes justement au bout de nostre esperance". Ao contrário do que propugna Tournon (1983, p. 360), não há um retorno em defesa de Sêneca após a narração sobre o caso de Cleômenes, mas uma citação à qual Montaigne contrapõe exemplos contra o suicídio. .

No relato do caso de Cleômenes, Montaigne, assim como em vários outros empréstimos tomados de tantos autores antigos, resume o texto de Plutarco e ao mesmo tempo vai além dele. O que há no texto de Plutarco e está ausente no de Montaigne pode ser expresso em quatro itens: primeiro, na primeira fala de Cleômenes a Treicião, aquele realça o aspecto da honra e que a morte voluntária não deve ser empregada em toda e qualquer ocasião por amor de si. A própria morte para ser acolhida deve ser um ato nobre. Segundo, a esperança que Cleômenes não quer abandonar é de servir à própria cidade, Esparta, não de sobrevivência pessoal a qualquer custo. Terceiro, quando todas as esperanças terminarem, será fácil (aisé) morrer. Quarto, depois de lamentar a lassidão de seu povo, Cleômenes incita todos a escolher a morte "magnanimamente". Em contrapartida, o que está presente no texto de Montaigne, mas não no de Plutarco, compreende dois pontos: primeiro, o motivo da morte não possui declaradamente qualquer feição pública[47] 47 Montaigne simplesmente diz: "pour le mauvais estat de ses affaires" (II, 3, p. 354A). ; segundo, a frase conclusiva "Nenhum inconveniente vale o desejo de morrer para evitá-lo"[48] 48 Id.Ibid.: "Tous les inconvenients ne valent pas qu'on veuille mourir pour les eviter." A mesma ideia é repetida após a reflexão pessoal em II, 37, p. 759A: "Tant les hommes sont acoquinez à leur estre miserable, qu'il n'est si rude condition qu'ils n'acceptent pour s'y conserver!". A comparação acima entre Montaigne e Plutarco baseia-se no texto Agis et Cleômenes, LXIV, p. 650-651, na tradução de Amyot usada pelo próprio Montaigne. Ver a respeito KONSTANTINOVIC (1989, p. 263). .

O suicídio, para Montaigne, não constitui uma solução razoável ante uma situação de extremo sofrimento, pois a alma, tão estreitamente afetada pelo corpo que é, não está em condições de deliberar[49] 49 II, 12, p. 551A, seguindo a análise de Schaefer (1990, p. 109). . Apostar num ponto da vida como digno de suicídio é julgar não apenas esse ponto como tal, mas também a linha de tempo imaginária que vai dele até outra morte possível. Além de o exemplo de Cleômenes não ser suficiente para as conclusões do autor francês, a consideração de que o espartano o fez "(...) após ter experimentado o último ponto da fortuna" é contraditada pela afirmação montaniana de que sempre há uma esperança[50] 50 "Tous les inconvenients ne valent pas qu'on veuille mourir pour les eviter." (loc. cit.). .

Distanciando-se, a um tempo, de Sêneca e Agostinho, Montaigne acrescenta que o reconhecimento da própria ignorância a respeito do curso possível dos acontecimentos futuros é, pode-se dizer, decisivo para a rejeição ao suicídio. "Minha ignorância me propicia tanto a esperança quanto o medo (...)"[51] 51 II, 12, p. 491A: "Mon ignorance me preste autant d'occasion d'esperance que de crainte (...)". Não se deve, então, fiar-se na tese de Sclafert (1951, p. 282) de que o estoicismo suicida do autor é curado pelo cristianismo nem na de Villey (1976, II, p. 390) que a crença católica de Montaigne o preveniu de pensar em suicídio. . Embora seja também o suicídio "uma confissão da própria impotência"[52] 52 II, 12, p. 496A: "qu'est-ce autre chose qu'une confession de son impuissance et un renvoy non seulement à l'ignorance, pour y estre à couvert, mais à la stupidité mesme, au non sentir et au non estre?". , a esperança (de suspensão da dor, alívio, sobrevivência...) ganha do suicídio, dada a pretensão cognitiva desse último acerca do que sobrevém ao derradeiro ato e a respeito do que sobreviria caso o ato não fosse realizado; então, Montaigne prefere o caminho mais certo e sólido[53] 53 II, 17, p. p. 644B; capítulo que não por acaso entitula-se "Da presunção". , a saber, permanecer vivo. "O horror da queda dá-me mais febre que o golpe"[54] 54 II, 17, p. 644B: "L'horreur de la chute me donne plus de fievre que le coup." . Se há algo (e o quê) depois da morte é conhecimento (se conhecimento for) que só a fé viva fornece e ela é dada pela graça divina, sempre[55] 55 II, 12, p. 500A. .

IV.

(Cabe referir parenteticamente um trecho lacunar em seu jogo de palavras. Depois de reproduzir os conselhos que muitos filósofos dão em favor do suicídio, em contraposição à recomendação de resistência no Eclesiastes, Montaigne cita o convite evocado à mesa entre os gregos: Aut bibat aut abeat (Que beba ou que parta). Então o prefeito de Bordéus acrescenta o comentário: "o que soa mais convenientemente na língua de um gascão, que espontaneamente transforma o B em V, do que na de Cícero (...)". O resultado na língua do gascão Montaigne seria: Aut vivat aut aveat (Que viva ou que esteja ávido). Há algo de enigmático nessa transformação: sendo 'avere' transitivo, de que estaria ávido aquele que escolhe não viver? Talvez Montaigne quisesse que a troca de consoantes ocorresse apenas na palavra 'bibat'[56] 56 Sugestão já feita por Peter Coste, em nota à sua tradução de Montaigne no século XVIII (p. 221). . E assim, a frase seria Aut vivat aut abeat (Que viva ou que parta), o que não parece adicionar muito à oposição entre o Eclesiastes e os filósofos gregos.)

Na sequência do ensaio II, 3, Montaigne ainda faz um comentário digno de atenção: "(...) [B] A dor [C] insuportável [B] e uma morte pior me parecem as incitações mais desculpáveis."[57] 57 "(...) [B] La douleur [C] insupportable [B] et une pire mort me semble les plus excusables incitations." Diferentemente de Garavini, que vê nessa frase a admissão de "motivos válidos" para a prática da morte de si próprio[58] 58 GARAVINI, 1989, p. 145. e uma implícita aquiescência do autor com eles[59] 59 GARAVINI, 1993, p. 227. Também Henry (1987, p. 72). , acredito que é preciso interpretá-la como o reconhecimento de que o suicídio é, nesses casos, compreensível, desculpável e não punível do ponto de vista alheio (em terceira pessoa), mas não necessariamente justificado em primeira pessoa. De qualquer modo, ainda que Montaigne estivesse defendendo que uma dor insuportável justificasse a opção pela morte, isso não acarreta que Montaigne cresse que possa haver dores realmente insuportáveis[60] 60 A negação da insuportabilidade da dor e do sofrimento está clara nas citações da nota 48. . Ademais, mesmo com sua condenação do suicídio ainda mais explícita nas camadas finais de escrita do livro, Montaigne manifesta uma admiração por sua beleza[61] 61 Villey (1976, II, p. 390) chega a dizer que essa admiração é só um " enthousiasme littéraire". E, com imperdoável exagero, Friedrich (1949, p. 337) crê que o interesse de Montaigne pelo tema é meramente descritivo e não ético. .

Também nas adições finais ao capítulo "Que o gosto dos bens e males depende em grande parte da opinião que deles temos" (I, 14), Montaigne continua reafirmando a liberdade de comando que o ser humano tem sobre a própria vida e morte, ainda fazendo uso de passagens decalcadas de Sêneca. Entretanto, esse reconhecimento da liberdade não é acompanhado por uma legitimação do suicídio frente a situações de dor e indigência. Em outros ensaios, há, pelo contrário e muito além do embate entre pertença e liberdade, uma afirmação entusiástica de que a vida tem valor maior do que a ausência de qualquer mal[62] 62 II, 37, p. 759C, trata-se de uma longa reflexão pessoal (p. 759-60) sobre o sofrimento causado pela doença e já a primeira edição testemunha uma condenação explícita ao desespero que sucumbe à dor. . Não podemos desprezar nossa própria existência, mesmo que outro ser a despreze. Embora o ser humano seja o único animal que pode ter ódio de si mesmo e vergonha de si perante outros membros de sua própria espécie[63] 63 II, 12, p. 484A: "(...) nous sommes le seul animal duquel le defaut offence nos propres compaignons, et seuls qui avons à nous desrober, en nos actions naturelles, de nostre espece." II, 3, p. 353A: "c'est contre nature que nous nous mesprisons et mettons nous mesmes à nonchaloir; c'est une maladie particuliere, et qui ne se voit en aucune autre creature, de se hayr et desdeigner." , devemos repudiar esse ódio e abraçar plenamente nosso corpo e nossa existência terrena: "E a opinião que desdenha nossa vida é ridícula; pois enfim é nosso ser, é nosso todo."[64] 64 II, 3, p. 353A: "Et l'opinion qui desdaigne nostre vie, elle est ridicule. Car en fin c'est nostre estre, c'est nostre tout."

É inapropriada, à luz dessas considerações, a afirmação de Friedrich de que a desaprovação do suicídio por Montaigne não passa pelo reconhecimento do valor da vida, mas que se deve à "docilidade" do autor e à sua rejeição cética de julgamento sobre o fatual[65] 65 Friedrich (1949, p. 337) refere em apoio passagens do II, 3 que dizem o contrário do que pretende provar. . Bernard Sève, em contrapartida, chega a dizer que o valor da vida é o mais importante do pensamento moral do filósofo gascão[66] 66 SÈVE, 2007, p. 284. . Embora de fato à vida seja indiscutivelmente conferido um grande valor em vários ensaios, entre eles o "Costume da Ilha de Quíos" e o "Da Experiência", a assertiva de Sève extrapola temerariamente a letra do texto, em consideração a muitas passagens nas quais Montaigne não toma a vida como valor mais alto, que pode pertencer, por exemplo, à honra[67] 67 III, 9, p. 966B: "Combien de galans hommes ont mieux aimé perdre la vie que la devoir ... Je ne trouve rien si cher que ce qui m'est donné et ce pourquoy ma volonté demeure hypothequée par tiltre de gratitude". , ou nas quais há uma repetição de ideias epicuristas[68] 68 I, 20, p. 93A: "La vie n'est de soy ny bien ny mal: c'est la place du bien et du mal selon que vous la leur faictes." .

O argumento defendido acima com base no valor da própria existência, o qual versa não estritamente sobre a correção moral do suicídio – no sentido das posteriores éticas do dever –, mas sobre seu préstimo e sentido prudencial, prenuncia o de Sartre ao dizer: é contraditório que a vida se elimine e o resultado final não nos será proveitoso: "O fruto de tal desejo não nos toca"[69] 69 II, 3, p. 353. Montaigne ilustra seu posicionamento sobre essa última justificação com duas metáforas: "Pour neant evite la guerre celuy qui ne peut jouyr de la paix (...)", II, 3, p. 354 A; "(...) et pour neant fuit la peine, qui n'a dequoy savourer le repos." Id. Ideia semelhante já se encontra em Agostinho. De Civitate Dei, XIX, 25. . É interessante salientar que esse argumento, diferentemente do referido argumento pelo desconhecido, parte de uma noção epicurista ou, em todo caso, não cristã sobre o estado de morte, entendendo-o como uma completa ausência de sensibilidade e vida e não mais como um território absolutamente opaco e ignorado[70] 70 Henry (1987, p. 57) defende que, nesse ponto, Montaigne usa a noção epicurista de phronesis, mas não me parece que algo mais de Epicuro seja necessário ao argumento do que uma associação entre morte e insensibilidade. .

Cumpre dizer, no entanto, que o posicionamento contrário ao que hoje chamamos suicídio não traz consigo, no entender de Montaigne, uma rejeição incondicional da morte. Além do já citado elogio aos sacrifícios corajosos, Montaigne tranquilamente abriria mão de uma extensão maior de vida em favor de vivências mais intensas ou mais aprazíveis. Dito de outro modo, embora se recuse a buscar a morte como um fim, o ensaísta francês aceitá-la-ia como consequência de algum objetivo[71] 71 Referindo-se à morte, diz Montaigne: " Ce n'est qu'un instant; mais il est de tel pois que je donneroy volontiers plusieurs jours de ma vie pour le passer à ma mode." (III, 9, p. 984B). .

V.

As leituras ao longo da história sobre o tema do suicídio em Montaigne variam entre a aproximação com o cristianismo, a aposta numa plena aquiescência com o posicionamento estoico[72] 72 Da qual é exemplo a lacônica repulsa de Pascal a "ses sentiments sur l'homicide volontaire..." Pensées, fr. 63. Também, segundo Bakewell (2011, p. 219), a interpretação de Stefan Zweig (1995) redundaria em uma estoicização do pensamento de Montaigne. e a afirmação de uma oscilação inteiramente inconclusa entre o sim e o não. Da última tendência, destaca-se Tournon, acreditando que os exemplos e argumentos pró e contra o suicídio no II, 3 exibem apenas um "entrechoque incessante de opiniões contrárias, sem término previsível"[73] 73 TOURNON, 1983, p. 83-84. . Paul Mathias vê no tratamento montaniano do suicídio uma instanciação do "indeterminismo ético"[74] 74 Bem compreendido, um indeterminismo entre a "indisponibilité de la vie" e a estoica afirmação do momento oportuno. MATHIAS, P. 2006, p. 169. Também defendendo uma oscilação de posicionamentos, leia-se Garavini (1989, p. 144). do prefeito de Bordeaux. Garavini também aposta em uma indecisão no plano moral e vê no ensaio, como expus acima, um deslocamento da questão ao campo jurídico e político[75] 75 GARAVINI, 1993, p. 224. . Ao contrário dessas tendências de interpretação, posso concluir, em vista das investigações aqui apresentadas, que já na edição de 1580, e tanto mais nas adições posteriores, Montaigne de modo claro o rejeita incondicionalmente. Poderia parecer exceção a isso o trecho em que o autor, rejeitando o sexo por mera caridade, diz: "Se elas [as mulheres] só nos podem fazer bem por piedade, prefiro não viver absolutamente a viver de esmola."[76] 76 III, 5, p. 894B: "Si elles ne nous peuvent faire du bien que par pitié, j'ayme bien plus cher ne vivre point, que de vivre d'ausmone." Isso não é uma aceitação da morte voluntária, porém nada mais que um exagero estilístico do nosso desbocado e devasso Montaigne.

Artigo recebido em 30/05/2012 e aceito em 31/08/2012

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  • ZWEIG, Stefan. Montaigne Frankfurt a. M.: Fischer, 1995.
  • 1
    ANDRÉS, 1998, p. 185. A palavra fora criada em 1180, mas permaneceu sem registros até o século XVII.
  • 2
    Trechos nos quais há algum comentário de Montaigne aos exemplos são: I, 14, p. 51, 53, 67; II, 12, p. 496; II, 29, p. 706-7 (motivações passionais e alegria, no caso dos indígenas); II, 32, p. 724A e C; II, 37, p. 759-760.
  • 3
    VAZ, Lúcio, 2011.
  • 4
    O sábio (figura frequente entre os antigos), diferentemente do insensato, saberia decidir quando a vida já não deve ser prolongada. Por exemplo: CÍCERO.
    De Finibus..., livro III, XVII, 60-61, embora em
    Tusculanas Cícero repita a irrestrita condenação platônica ao suicídio. Como exemplo epicurista, leia-se: LUCRÉCIO, III, 971, 1085-1086.
  • 5
    Já usado, por exemplo, no
    Fédon, 62b-c.
  • 6
    AGOSTINHO.
    De Civitate Dei, V, 18.
  • 7
    AGOSTINHO.
    De Civitate Dei, I, 20 e, notadamente, I, 22, 26: dos preceitos bíblicos "Não matar o próximo" e "Tratar o próximo como a ti mesmo" decorre que o suicídio é também um homicídio.
  • 8
    ARISTÓTELES.
    Ética a Nicômaco, V, 1198a5-15. MONTAIGNE. II, 3, p. 352 A e C.
  • 9
    II, 35, p. 750A.
  • 10
    Como observa Schaefer (1990, p. 44). Também: HENRY, 1987.
  • 11
    Henry (1987, p. 39) o admite.
  • 12
    HENRY, 1987, p. 14.
  • 13
    II, 3, p. 350A. Interessa notar que, nas edições de 1580 (p. 19) e 1588 (p. 143), Montaigne dizia "Mon cathedrant, c'est l'authorité Sacro Sainte de la volonté divine (...)". Como decréscimo posterior, ele corta 'Sacro Sainte'.
  • 14
    II, 3, p. 352A (com acréscimos C).
  • 15
    II, 3, p. 351A. Agostinho (
    De Civitate Dei, I, 26) considera possível que o suicídio seja uma determinação divina, assim como o assassinato de um filho pode ser uma determinação de Deus, mas tal ordem não pode ser conhecida por outros seres humanos.
  • 16
    I, 57, p. 326A.
  • 17
    Ver também II, 3, p. 350A: "C'est ce qu'on dit, que le sage vit tant qu'il doit, non pas tant qu'il peut (...)", decalcado de Sêneca.
    Epistulae..., LXX: "Itaque sapiens vivet, quantum debet, non quantum potest."
  • 18
    Mais exemplos: SÊNECA.
    Epistulae..., XII, 10: "Malum est in necessitate vivere, sed in necessitate vivere necessitas nulla est." XXVI, 10. Montaigne. I, 14, p. 67A e C: "Nul n'est mal si long temps qu'à sa faute." II, 3, p. 351 A: "La plus volontaire mort, c'est la plus belle." Para um rastreamento mais completo das apropriações montanianas de Sêneca, ver VILLEY, 1976, tomo II, p. 51.
  • 19
    I, 14, pp. 51-52A. Esses exemplos e as constatações gerais que deles decorrem são citados sem que Montaigne opine a respeito. Quanto aos exemplos em II, 3, p. 360C, ele os fornece com desaprovação, embora nem sempre explicitamente. Cf. também II, 13, p. 607 A.
  • 20
    Cf. HENRY, 1987, p. 49.
  • 21
    I, 33, p. 218A, itálicos adicionados.
  • 22
    Starobinsky (1982, p. 93) carrega excessivamente as tintas do ato e crê que a "
    vérité intérieure" se realiza plenamente no morrer voluntário, que assume completo domínio sobre si.
  • 23
    II, 3, p. 351C. Castañeda (2010, p. 224) também conclui dessa passagem que Montaigne acredita que não há "uma verdade última" sobre o suicídio.
  • 24
    II, 3, p. 355;
    Exemplar de Bordéus, p. 146.
  • 25
    Ao contrário do que diz Comparot (1983, p. 141), baseando-se exclusivamente no uso do argumento da pertença.
  • 26
    GARAVINI, 1989, p. 145-6.
  • 27
    Também o diz Georgia Noon (NOON, 1978, p. 377).
  • 28
    GARAVINI, 1989, p. 147-149.
  • 29
    MONTAIGNE, II, 3, p. 362A.
  • 30
    Cf. ZWEIG,
    Montaigne, p. 72. Também crendo que Montaigne pensava em se matar, Zweig afirma que ele só foi dissuadido do ato por ter sido eleito prefeito de Bordéus; não oferecendo citação que confirme tal interpretação.
  • 31
    I, 39, p. 242A: "La plus grande chose du monde, c'est de sçavoir estre à soy." Ver: SCHAEFER, 1990, p. 318-9: "[...] the principle of self-ownership that Montaigne enunciates is the ground of the liberal natural rights [...]".
  • 32
    III, 9, p. 973C.
  • 33
    MONTAIGNE. II, 6, p. 371 A.
  • 34
    Entre elas, cita a que poderia ser conduzida pela frase de Paulo 'Cupio dissolvi' e as inspiradas no
    Fédon, de Platão. Por outro lado, Catão é exemplo de suicida-leitor do
    Fédon e não leitor-suicida, pois já estava determinado a se matar, segundo Montaigne. Esse nos oferece exemplos de leitores-suicidas em II, 3, p. 360 A e II, 12, p. 445 A. A citada inspiração, vale dizer, é proibida pelo próprio texto platônico.
  • 35
    II, 13, p. 607-608A. Interessante como aqui Montaigne parece condenar a tentativa de supressão da capacidade de julgamento do agente, mas em seguida elogia a morte lenta e premeditada de Marcelino e a ultravirtuosa de Catão (a admiração quase estética por ele perpassa o livro até em III, 12, p. 1037-1038B).
  • 36
    I, 33, p. 218A, atitude já condenada por Aristóteles como covardia,
    Ética a Nicômaco, III, 1116a10-15 e Plutarco (
    On Stoic Self-contradictions, 1039e-1040a). Por outro lado, o suicida Catão não é julgado covarde, mas, ao contrário, como um virtuoso (I, 37, p. 231A) muito acima dos homens comuns entre os quais Montaigne desejava se incluir. Ver também: III, 2, p. 813B; III, 9, 991B: "La vertu de Caton estoit vigoreuse outre la mesure de son siecle; et à un homme qui se mesloit de gouverner les autres, destiné au service commun, il se pourroit dire que c'estoit une justice, sinon injuste, au moins vaine et hors de saison."
  • 37
    II, 3, pp. 352-353 A. E em II, 13, p. 607 A, condena os suicídios rápidos e menos dolorosos como fuga a mortes lentas e violentas.
  • 38
    Montaigne. II, 3, p. 353 C e A.
  • 39
    No dizer de Montaigne: "(...) C'est de pareille vanité que nous desirons estre autre chose que ce que nous sommes." II, 3, p. 353A.
  • 40
    II, 3, p. 360C.
  • 41
    III, 12, p. 1045 B: "(...) un ambitieux s'en fut pandu, si eust faict un avaritieux."
  • 42
    Além do citado capítulo, há uma interessante passagem em II, 12, p. 496 A, onde Montaigne até a edição de 1588 escrevia que "toda filosofia" aconselha o suicídio. Depois desse ano reformula, escrevendo "em geral a filosofia". Também em I, 14, p. 51C diz que "A maioria dos filósofos apressam sua morte".
  • 43
    Como procurei mostrar refletindo, mais especificamente, sobre Demócrito: Cf. VAZ, L. 2006/2007.
  • 44
    Cleômenes diz : "Il ne faut servir tant qu'il y a un doigt d'esperance de reste (...)", II, 3, p. 354 A.
  • 45
    "(...) mais ce fut apres avoir essayé le dernier point de la fortune.", defende-o Montaigne, idem.
  • 46
    II, 3, p. 356A: "Et puis, y ayant tant de soudains changemens aux choses humaines, il est malaisé à juger à quel point nous sommes justement au bout de nostre esperance". Ao contrário do que propugna Tournon (1983, p. 360), não há um retorno em defesa de Sêneca após a narração sobre o caso de Cleômenes, mas uma citação à qual Montaigne contrapõe exemplos contra o suicídio.
  • 47
    Montaigne simplesmente diz: "pour le mauvais estat de ses affaires" (II, 3, p. 354A).
  • 48
    Id.Ibid.: "Tous les inconvenients ne valent pas qu'on veuille mourir pour les eviter." A mesma ideia é repetida após a reflexão pessoal em II, 37, p. 759A: "Tant les hommes sont acoquinez à leur estre miserable, qu'il n'est si rude condition qu'ils n'acceptent pour s'y conserver!". A comparação acima entre Montaigne e Plutarco baseia-se no texto
    Agis et Cleômenes, LXIV, p. 650-651, na tradução de Amyot usada pelo próprio Montaigne. Ver a respeito KONSTANTINOVIC (1989, p. 263).
  • 49
    II, 12, p. 551A, seguindo a análise de Schaefer (1990, p. 109).
  • 50
    "Tous les inconvenients ne valent pas qu'on veuille mourir pour les eviter." (loc. cit.).
  • 51
    II, 12, p. 491A: "Mon ignorance me preste autant d'occasion d'esperance que de crainte (...)". Não se deve, então, fiar-se na tese de Sclafert (1951, p. 282) de que o estoicismo suicida do autor é curado pelo cristianismo nem na de Villey (1976, II, p. 390) que a crença católica de Montaigne o preveniu de pensar em suicídio.
  • 52
    II, 12, p. 496A: "qu'est-ce autre chose qu'une confession de son impuissance et un renvoy non seulement à l'ignorance, pour y estre à couvert, mais à la stupidité mesme, au non sentir et au non estre?".
  • 53
    II, 17, p. p. 644B; capítulo que não por acaso entitula-se "Da presunção".
  • 54
    II, 17, p. 644B: "L'horreur de la chute me donne plus de fievre que le coup."
  • 55
    II, 12, p. 500A.
  • 56
    Sugestão já feita por Peter Coste, em nota à sua tradução de Montaigne no século XVIII (p. 221).
  • 57
    "(...) [B] La douleur [C] insupportable [B] et une pire mort me semble les plus excusables incitations."
  • 58
    GARAVINI, 1989, p. 145.
  • 59
    GARAVINI, 1993, p. 227. Também Henry (1987, p. 72).
  • 60
    A negação da insuportabilidade da dor e do sofrimento está clara nas citações da nota 48.
  • 61
    Villey (1976, II, p. 390) chega a dizer que essa admiração é só um "
    enthousiasme littéraire". E, com imperdoável exagero, Friedrich (1949, p. 337) crê que o interesse de Montaigne pelo tema é meramente descritivo e não ético.
  • 62
    II, 37, p. 759C, trata-se de uma longa reflexão pessoal (p. 759-60) sobre o sofrimento causado pela doença e já a primeira edição testemunha uma condenação explícita ao desespero que sucumbe à dor.
  • 63
    II, 12, p. 484A: "(...) nous sommes le seul animal duquel le defaut offence nos propres compaignons, et seuls qui avons à nous desrober, en nos actions naturelles, de nostre espece." II, 3, p. 353A: "c'est contre nature que nous nous mesprisons et mettons nous mesmes à nonchaloir; c'est une maladie particuliere, et qui ne se voit en aucune autre creature, de se hayr et desdeigner."
  • 64
    II, 3, p. 353A: "Et l'opinion qui desdaigne nostre vie, elle est ridicule. Car en fin c'est nostre estre, c'est nostre tout."
  • 65
    Friedrich (1949, p. 337) refere em apoio passagens do II, 3 que dizem o contrário do que pretende provar.
  • 66
    SÈVE, 2007, p. 284.
  • 67
    III, 9, p. 966B: "Combien de galans hommes ont mieux aimé perdre la vie que la devoir ... Je ne trouve rien si cher que ce qui m'est donné et ce pourquoy ma volonté demeure hypothequée par tiltre de gratitude".
  • 68
    I, 20, p. 93A: "La vie n'est de soy ny bien ny mal: c'est la place du bien et du mal selon que vous la leur faictes."
  • 69
    II, 3, p. 353. Montaigne ilustra seu posicionamento sobre essa última justificação com duas metáforas: "Pour neant evite la guerre celuy qui ne peut jouyr de la paix (...)", II, 3, p. 354 A; "(...) et pour neant fuit la peine, qui n'a dequoy savourer le repos." Id. Ideia semelhante já se encontra em Agostinho.
    De Civitate Dei, XIX, 25.
  • 70
    Henry (1987, p. 57) defende que, nesse ponto, Montaigne usa a noção epicurista de
    phronesis, mas não me parece que algo mais de Epicuro seja necessário ao argumento do que uma associação entre morte e insensibilidade.
  • 71
    Referindo-se à morte, diz Montaigne: " Ce n'est qu'un instant; mais il est de tel pois que je donneroy volontiers plusieurs jours de ma vie pour le passer à ma mode." (III, 9, p. 984B).
  • 72
    Da qual é exemplo a lacônica repulsa de Pascal a "ses sentiments sur l'homicide volontaire..."
    Pensées, fr. 63. Também, segundo Bakewell (2011, p. 219), a interpretação de Stefan Zweig (1995) redundaria em uma estoicização do pensamento de Montaigne.
  • 73
    TOURNON, 1983, p. 83-84.
  • 74
    Bem compreendido, um indeterminismo entre a "indisponibilité de la vie" e a estoica afirmação do momento oportuno. MATHIAS, P. 2006, p. 169. Também defendendo uma oscilação de posicionamentos, leia-se Garavini (1989, p. 144).
  • 75
    GARAVINI, 1993, p. 224.
  • 76
    III, 5, p. 894B: "Si elles ne nous peuvent faire du bien que par pitié, j'ayme bien plus cher ne vivre point, que de vivre d'ausmone."
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      30 Maio 2012
    • Aceito
      31 Ago 2012
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