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A propósito da "ordem" como atributo da "maneira" em Montaigne

Resumos

Montaigne, no "De l'art de conferer", discute critérios que permitem distinguir os homens segundo suas capacidades (suffisances). A "maneira" de discursar ocupa o centro desta questão e entre suas qualidades se destaca a "ordem", que nos é apresentada, sobretudo, a partir dos desvios da "tolice" (sottise) e "obstinação" (opiniastreté), símbolos do dogmatismo e de uma errônea lide com os saberes que se apoiam na memória. Procura-se mostrar que a ordem se funda na assimilação e penetração do julgamento nas matérias que garantem o nexo necessário para o desenvolvimento adequado da conversação (conference).

arte da conversação; suffisance; maneira; ordem; à propos


Montaigne, in "De l'art de conferer", discusses the criteria to distinguish men according to their capabilities (suffisances). The "manner" of discussing is central to this issue and among its qualities "order" distinguishes itself. The "order" is presented to us by the exposition of its deviations: foolishness ("sottise") and obstinacy ("opiniastreté"). These inadequacies represent both dogmatism and an erroneous way of using knowledge based on memory. We intend to show how order is founded on a kind of judgment which assimilates and penetrates matters and subjects - being it the only way to assure the necessary connection to adequately develop the conversation ("conference").

art of conversation; "suffisance"; "manner"; order; "à propos"


ARTIGOS

A propósito da "ordem" como atributo da "maneira" em Montaigne

Edson Querubini

Doutorando, FFLCH-USP, E-mail: equerubini@usp.br

RESUMO

Montaigne, no "De l'art de conferer", discute critérios que permitem distinguir os homens segundo suas capacidades (suffisances). A "maneira" de discursar ocupa o centro desta questão e entre suas qualidades se destaca a "ordem", que nos é apresentada, sobretudo, a partir dos desvios da "tolice" (sottise) e "obstinação" (opiniastreté), símbolos do dogmatismo e de uma errônea lide com os saberes que se apoiam na memória. Procura-se mostrar que a ordem se funda na assimilação e penetração do julgamento nas matérias que garantem o nexo necessário para o desenvolvimento adequado da conversação (conference).

Palavras-chave: arte da conversação, suffisance, maneira, ordem, à propos

ABSTRACT

Montaigne, in "De l'art de conferer", discusses the criteria to distinguish men according to their capabilities (suffisances). The "manner" of discussing is central to this issue and among its qualities "order" distinguishes itself. The "order" is presented to us by the exposition of its deviations: foolishness ("sottise") and obstinacy ("opiniastreté"). These inadequacies represent both dogmatism and an erroneous way of using knowledge based on memory. We intend to show how order is founded on a kind of judgment which assimilates and penetrates matters and subjects – being it the only way to assure the necessary connection to adequately develop the conversation ("conference").

Keywords: art of conversation, "suffisance", "manner", order, "à propos"

Na nota que apõe ao "De l'art de conferer" (III, 8), Pierre Villey já nos fazia notar que, neste capítulo, Montaigne quisera "juntar o exemplo ao preceito", e por isso, "nunca talvez o seu estilo tenha tido a cor e o movimento do estilo da conversação familiar" quanto tem aí.1 1 Montaigne. Les Essais. Edição de Pierre Villey e V.-L. Saulnier. Paris: PUF/Quadrige, 1999. Nas referências aos capítulos dos Ensaios, os numerais romanos indicam o livro e os numerais arábicos indicam em sequência o capítulo e a página. Salvo menção em contrário, as citações diretas dos Ensaios, neste texto, são todas referentes ao "De l'art de conferer". Nas citações, optei, para economia de espaço e comodidade do leitor, por manter apenas as traduções, que são de minha responsabilidade e tiveram como preocupação exclusiva a fidelidade ao texto. De fato, a intenção do ensaísta de produzir um efeito de causerie familière, no capítulo que trata expressamente da conversação, afeta – esta a impressão no leitor – tanto o estilo propriamente dito, a léxis montaigniana, quanto o andamento e o desenvolvimento do arrazoado, a "disposição" de suas partes, ou sua táxis.2 2 Tomo os termos tais como são definidos dentro da tradição dos tratados retóricos desde os antigos. Para uma definição das partes da arte ou das tarefas que deve cumprir o orador para produzir seu discurso, veja-se, por exemplo, Cícero, De inventione I, 9. (Cf. também Rhet. ad Herennium I ii, 2.) Ou seja, sua "maneira" de escrever. A impressão é de uma grande liberdade com o desenvolvimento da "matéria", o que, aliás, é próprio da experiência de leitura de qualquer ensaio montaigniano, mormente os mais desenvoltos do terceiro livro. Temas subsidiários emergem, depois somem, e mais adiante ressurgem. O texto frequentemente escapa para longas digressões. E só com algumas boas leituras, "diligentíssimas", o conjunto dos elementos que estão dispersos e aparentemente deslocados ganham coesão e começam a revelar para o leitor sua "unidade". Como neste texto, em grande parte, trata-se explicitamente do problema da "forma", suas questões, de algum modo, parecem se projetar na prática do escritor, e o esclarecimento da manière que aí se propõe ajuda a lançar alguma luz sobre a significação do ensaio como forma a um só tempo de pensamento e de escrita. Gostaria, assim, de retomar brevemente aqui dois pontos de um estudo anterior3 3 Cf. Querubini, Edson. Montaigne e a Arte da Conversação: a conversão para a "maneira". Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo: 2009. sobre a estruturação interna deste capítulo: o primeiro deles é o que chamei de uma "conversão para a maneira"; o outro, tributário daquele, é uma discussão sobre a noção de "ordem" que ali se expõe. Para tanto, teremos de retomar alguns passos da primeira parte da argumentação.

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Podemos seguramente apontar a manière como o conceito mais fundamental a que se consagra a totalidade do "De l'art de conferer". O essencial de que se cuida diz mais respeito ao modo como se emprega o discurso do que as possíveis verdades ou falsidades veiculadas por ele. Que seja assim, o próprio ensaísta nos avisa expressamente a certa altura do arrazoado: "Pois estamos na maneira, não na matéria do dizer" (III, 8, 928). A operação que está, efetivamente, em questão é a de "deixar o assunto para ver os meios de tratá-lo" (III, 8, 926).4 4 O que parece alinhar os esclarecimentos do exercício da conversação expostos no capítulo ao estudo de "uma forma de falar" e a apresentação de regras "para a direção do espírito", tal como já indicava a leitura de J. Y. Pouilloux em seu Lire les "Essais" de Montaigne. No entanto, o privilégio que se dá à crítica epistemológica nesta leitura, ao "colocar a questão da desordem, de suas razões e de suas funções" (cf. idem, ibid., p.45 et passim), bem como a desqualificação radical de toda interpretação que busca uma ordem oculta e um conteúdo de saber nos Ensaios, transformando-os num procedimento de acúmulo de enunciados ideológicos como "matéria do discurso crítico", nos parecem, de algum modo, incompatíveis com a concepção de "ordem" que se exprime de modo tão enfático neste mesmo capítulo e afeta o modo de se pensar a manière, vinculando-se antes ao projeto de constituição do sujeito e de sua estabilização moral, através do projeto de auto-retrato, do que a uma função de crítica cética das ideologias. Obviamente, é pelo viés e perspectiva da aptidão para a "conversação" que este tema é tratado. Entretanto, a mudança de interesse que se opera ao longo do arrazoado montaigniano – passa-se do cuidado com as "matérias" para um cuidado com a "maneira" que será preciso caracterizar – claramente franqueia, segundo penso, os limites mais estreitos da disciplina que pertence ao domínio dos tratados de cortesia e que regula a manière du dire em uma prática bem específica. Minha hipótese é a de que flagramos aí uma espécie de conversão para o âmbito da maneira aplicável ao conjunto da obra, fiando-me, por ora, na advertência montaigniana de que "fala ao papel como ao primeiro que encontra" (III, 1, "Do útil e do honesto", 790). Acredito que um passo na compreensão do sentido desta "conversão" é dado quando se estabelece, num primeiro momento deste capítulo, a relação que se deve ter com as diversas opiniões com que se defronta quem entra em conversação. Montaigne nos fala, em primeira pessoa, de sua própria atitude. É bem o início de seu tratamento do tema da conversação, já que se deixou para trás nesta altura somente um prólogo5 5 Em que se estabelece o estatuto do discurso que iremos ler. Montaigne avisa seu leitor de que trata o tema a partir da acusação de um vício em que incorre quando conversa com um tolo ( sot), constituindo assim uma posição ao mesmo tempo humilde e irônica, pois seu erro ocorre precisamente quando encontra alguém que não sabe conversar. :

Entro em conversação [conference] e em disputa com grande liberdade e facilidade, porquanto a opinião encontra em mim terreno impróprio para aí penetrar e aí fincar profundas raízes. Nenhuma proposição me espanta, nenhuma crença me fere, por contrária que seja a minha. Não há tão frívola e tão extravagante fantasia que não me pareça bem possível de sair da produção do espírito humano. Nós outros, que privamos nosso julgamento do direito de fazer arrestos, olhamos molemente as opiniões diversas; e, se não lhes emprestamos o julgamento, emprestamos-lhes facilmente o ouvido. Onde um prato está vazio por completo na balança, deixo oscilar o outro, sob os sonhos de uma velha. (III, 8, 923)

Embora longa, a citação nos é útil, pois condensa o essencial da postura intelectual que habilita ao bom desempenho do homem de conversação. A "liberdade e facilidade" na conference, vemos, assentam no desenraizamento das opiniões operado neste passo, claramente, por uma vinculação ao Ceticismo. Tanto a imagem da "balança" como a afirmação de que "priva o julgamento do direito de dar sentenças" nos parecem indícios suficientes disso. Aqui importa, todavia, discutir o que esta vinculação ao Ceticismo – se autenticamente pirrônico ou não, deixemos de julgar por agora, pois ele mesmo diz deixar oscilar os pratos da balança ao invés de estabilizá-la, e o homem de conversação pode possuir opiniões e crenças, desde que não se obstine em assumi-las e sustentá-las de modo dogmático – produz em termos do exercício da conversação (e, daí, em termos da manière que se estende à confecção do próprio livro). Dois pontos são de destacar. A "ignorância" que se instaura a partir da crítica cética, primeiro, habilita a ouvir as mais diversas, contrárias, e mesmo disparatadas "opiniões", de maneira calma (molemente), sem "espanto" e sem "ofensa". Não há "frívola e extravagante fantasia" que o homem de conversação não considere como produção possível do espírito e a que não possa "emprestar o ouvido", ele que não lhe "empresta o julgamento", ou seja, ele que não decide sobre sua verdade ou falsidade. Além disso, a mesma "ignorância" permite que ele reconheça nestas "opiniões", ainda que pouco, algum peso: "Por mim, superam somente a inanidade, mas a superam" (III, 8, 923). Elas fazem oscilar o prato da balança e a crítica, longe de barrar a curiosidade de Montaigne, mantém-no aberto e atento às possíveis produções do espírito humano, e às correções que podem proporcionar. E assim, posiciona-se ele como que entre dois extremos viciosos, pois muitos que tentam evitar a "superstição", afirmando peremptoriamente a inverdade de tais "insanidades" (ravasseries), acabam presunçosamente incorrendo no vício oposto da "obstinação" (opiniastreté): portam-se como possuidores seguros de uma verdade incontestável.

Logo, o que esta postura "cética" favorece é a abertura para o exercício de uma conversa em que haja "contradição dos julgamentos": "As contradições, pois, dos julgamentos não me ofendem nem me alteram; despertam-me somente e exercitam-me" (III, 8, 924). Contradição que Montaigne calmamente encara como instrução capaz de corrigi-lo, pois, segundo nos descreve, as repreensões rudes e ásperas que recebe "despertam sua atenção, não sua cólera" (III, 8, 924).6 6 Cícero, na breve nota que dedica à conversação em Dos deveres, prescrevia para a conversação que se evitassem excessos da alma que não se curvassem à razão – banindo a cólera, a cupidez, a preguiça etc. –, mesmo quando se emprega um tom mais firme nas repreensões; sobretudo a cólera é de evitar, pois, como justifica o orador, "sob o império dela nada se faz com justiça e razão" (cf. Cic. De off. I xxxvii, 136-7). Além disso, no passo ora comentado, podemos colher um segundo efeito de seu desapego em relação às próprias opiniões e crenças, já que o fato de não incorrer no páthos colérico permite manter "a verdade como a causa comum" dos que conversam e disputam.7 7 Que não nos engane esta referência tão enfática à verdade. Ela não invalida a "profissão de fé" no ceticismo. O homem continuará, como se diz páginas adiante, encerrado em uma "escole d'inquisition", e todo discurso que se tece não abandona esse regime, por assim dizer, problemático, se pensado da perspectiva da verdade visada, já que os múltiplos "exercícios do juízo", de fato, jamais alcançam possuí-la. Ora, certamente não há para Montaigne enunciado acerca das matérias exploradas, no curso de uma conversa ou no livro, que não possa ser revisto. Isso, no mais, define a própria dýnamis antithetiké dos aptos para a conference, e acaba por reduzir todo discurso ao domínio da opinião. Em outras palavras, é porque, de saída, Montaigne não assume sua posição pessoal num debate como a portadora da razão e da verdade, ou seja, não se obstina como o faz um opiniastre, que pode aceitar ser contradito em nome de uma "verdade impessoal" que se investiga e busca.

Isto é tudo o que Montaigne não encontra – continuando – nos "homens do seu tempo", com os quais coteja sua própria atitude: por não terem a "coragem de sofrer a correção", eles não têm igualmente a "coragem de corrigir" e "falam sempre com dissimulação em presença uns dos outros" (III, 8, 924). Dissimulação que Montaigne, em princípio, exclui do regime de sua conference:

Gosto, entre os gentis-homens, de que se exprimam corajosamente, de que as palavras cheguem aonde vai o pensamento. É-nos preciso fortalecer o ouvido e o endurecer contra a ternura do som cerimonioso das palavras. (III, 8, 924)

Vemos, então, que a conversa que aqui se elogia abertamente se desdobra e perfaz de preferência numa querela entre amigos que vigorosa e generosamente se corrigem em suas opiniões e condutas, deixando, como nos diz o ensaísta, "suas palavras [irem] aonde [vão seus] pensamentos". Neste regime de conversação, como afirma André Tournon, "as complacências mútuas das conversas de salão não são admitidas",8 8 Tournon, André. Montaigne, p. 167. No entanto, se este é um regime, por assim dizer, "ideal" da conversação, visto que nele há o encontro de interlocutores aptos, este não é o exclusivo regime em que pensa Montaigne, estando sempre aberta, para os que "vive[m] entre os vivos", a possibilidade de um encontro menos "vigoroso e generoso". O início mesmo do texto distingue duas possibilidades de encontros (cf. III, 8, 923, em que fala da "comunicação com os espíritos vigorosos e regrados", distinguindo-a do "comércio e frequentação com os espíritos baixos e doentios"). nenhum descompasso entre o que se pensa e o que se diz, entre o lógos e a léxis, tem lugar. Não há espaço nenhum para a mentira, a adulação e a dissimulação: "Ela [=a conference] não é assaz vigorosa e generosa, se não for querelante, se for civilizada e artificiosa, se temer o choque e tiver seus passos constrangidos" (III, 8, 924).

Esta postura destacada em relação à verdade das próprias opiniões e que, portanto, aceita "pacificamente" pô-las à prova, fica ainda mais evidente no desapego de Montaigne para com a "vitória" na disputa. Isso mostra que não só a adulação e dissimulação9 9 É preciso distinguir uma crítica da adulação, que perpassa todo "De l'art de conferer", e os Ensaios, da crítica contra os "artifícios" que regulam a produção discursiva. A primeira tem como alvo a dissimulação e a mentira que promovem o descompasso entre o que se diz e o que, de fato, se pensa. Atitude perniciosa para o loyaliste Montaigne, como atesta enfaticamente um capítulo como o "Do desmentir" (II, 18). Já a segunda pertence a uma crítica da "má afetação", aplicação inadequada das regras e preceitos, que entrava o exercício do pensamento e do julgamento, sobretudo porque são típicas dos "esprits foiblement fondez", dos pedantes que não têm a compreensão das questões de que se arriscam a falar. – o "uníssono" que era desqualificado como tedioso desde o início do capítulo – são recusadas, mas também uma postura que buscasse a qualquer custo a vantagem e a vitória no debate:

Nossas disputas deveriam ser proibidas e punidas como outros crimes verbais. [...] Aprendemos a disputar só para contradizer, e, cada um contradizendo e sendo contradito, leva-nos à conclusão de que o fruto da disputa é perder e aniquilar a verdade. (III, 8, 926)

As condições em que o diálogo, em suma, deve-se dar são definidas entre estes extremos ou desvios: da "disputa pela contradição" sem ter em vista a "verdade" – pura negação do outro que se vale de quaisquer meios –, e da "dissimulação", que evita contradizer por temor de ser contradito – puro endosso interessado da opinião de outrem. Entre ambos, a querela franca, igual e livre entre os oponentes.

Ainda quanto à possível esperança de vitória no debate, respondendo a uma objeção que se poderia fazer à sua postura calma e corajosa tanto em corrigir como em sofrer a correção, como se se tratasse de segurança por acreditar-se dotado de força – a força e sabedoria de um Sócrates – para triunfar gloriosamente das contradições a cada vez que elas se apresentam, o ensaísta, reiterando sua preferência pela frequentação dos que o maltratam a dos que o temem, constrói para si a posição humilde de quem aceita a contradição corretora. Alega que qualquer "opinião de preeminência e desdém pelo adversário" torna o "sentimento assaz delicado" diante da contradição, o que impede exatamente de aceitar "as oposições que o retificam e recompõem". Não se supõe aqui, portanto, nenhuma superioridade de "força" que triunfaria a cada nova objeção, o que já é indício de que as opiniões defendidas importam menos do que o próprio exercício de pensamento e a correção que a conference pode ensejar.

O movimento mesmo desta argumentação se encerra com uma consideração da vitória que se poderia obter diante de um ou outro oponente, importando mais a vitória sobre si mesmo, por ocasião de uma possível derrota para alguém mais forte, do que a vitória sobre um adversário fraco:

Sinto-me bem mais confiante na vitória que conquisto sobre mim quando, no ardor mesmo do combate, eu me faço dobrar sob a força da razão de meu adversário, do que me sinto agraciado pela vitória que conquisto sobre ele por sua fraqueza. (III, 8, 925)

A conference, assim, define-se como um exercício em que, de saída, todas as proposições se veem igualadas e reduzidas ao domínio opinativo, instaurando as condições de um livre exame a dois, de uma busca desinteressada e sem termo da verdade, em que não importa tanto a vitória que se obtém na matéria, mas a conduta que se tem durante o seu transcorrer. Todo seu jogo se joga no campo da "forma", ou da bela manière dos "conferencistas". É nesse campo que se avalia a sua vis, a sua "força", ou, em termos montaignianos, a sua suffisance10 10 A suffisance é tratada por Montaigne em toda segunda metade de nosso texto, onde se ensina a reconhecer duas de suas "contrafações": as suffisances d'apparences, aspectos de que se reveste todo aquele que é, sem verdadeiro mérito, alçado pela fortuna a posições eminentes; as suffisances estrangeres, alegações de peso que são avançadas no curso de uma conversa, mas de que se desconhece o verdadeiro alcance e as implicações. :

Que maior vitória esperais que ensinar ao seu inimigo que ele não vos pode combater? Quando ganhais a vantagem de vossa proposição, é a verdade que ganha; quando ganhais a vantagem da ordem e da conduta, sois vós que ganhais. (III, 8, 927)

Como se vê, a maior vitória não é referente ao "objeto" tomado para disputar, não se dá no plano das "matérias", porque ela pode ocorrer mesmo quando se perde a vantagem da proposição, mesmo quando a tese que se sustenta é refutada. A lição que se mostra ao adversário é de "ordem e conduta" no tratamento das matérias, qualidades que aderem – diferentemente da verdade, atributo das proposições – aos "sujeitos". Pois em grande medida o que a conversa deve produzir é a correção da "impertinência" dos homens, tal como Montaigne entende a tarefa assumida por Sócrates em Xenofonte e Platão:

Sou de parecer que [...] Sócrates disputa mais em favor dos que disputam do que em favor da disputa; e para instruir Eutidemo e Protágoras acerca do conhecimento de sua impertinência mais do que da impertinência de sua arte. Ele empunha a primeira matéria como quem tem um fim mais útil do que esclarecê-la, a saber, esclarecer os espíritos que ele toma para manejar e exercitar. (III, 8, 927-8)

Este Sócrates já não ensina o erro de opinião sobre as matérias, realizando o parto que traz à luz aquele que irá engajar-se no estudo das realidades verdadeiras, mas o que imporá ao espírito a exigência interna de ordenação. Ao alegar que Sócrates disputa "mais em favor dos que disputam do que em favor da disputa", e para instruir sobre a impertinência deles e não de sua arte, o texto já demonstra o desvio de atenção das "matérias" para a "maneira". Já não se trata de ensinar que a tese sustentada por qualquer um dos interlocutores não responde ao problema que se pôs de início. Ou seja, não se trata de acusar uma impertinência no que se diz sobre a matéria e de reconhecer um erro no plano do juízo formulado sobre ela, o que seria apontar simplesmente uma "impertinência da arte" e uma precipitação pontual em julgar, coisa de pouca monta para Montaigne. O que se ensina a conhecer é a impertinência dos "esprits", sua tolice e desordem; é o reconhecimento de um erro que assenta no sujeito mesmo, em sua forma de condução do pensamento, e não no juízo que formula sobre as coisas. A suma de toda esta discussão nos é oferecida um pouco adiante:

A agitação e a caça é propriamente de nossa competência: não somos escusáveis por conduzi-la mal e impertinentemente; falhar quanto à presa é outra coisa. Pois nascemos para buscar a verdade; pertence a uma maior potência possuí-la. [...] O mundo não é senão uma escola de inquisição. Ele não é de quem acerta o alvo, mas de quem faz as mais belas corridas. (III, 8, 928)

Poucos textos assinalam com tanta precisão que a tarefa conferida ao homem é a da busca, que seu horizonte é o da zétesis. Mas o fato de que se trata de uma busca bem conduzida, com pertinência e beleza – o que a menção às "belles courses" parece, metaforicamente, confirmar –, mostra, ainda uma vez, que os cuidados e o zelo com o discurso se deslocaram da adequação dogmática, suposta entre ele e as próprias coisas, para o domínio da manière du dire. O que importa passa a ser não mais a "captura da presa", mas a bela "condução da caça". Desloca-se, deste modo, o télos da conversa, que não mais tem por alvo a "obtenção da presa", e sim, o próprio desempenho hábil de seu exercício. Ainda que, entre as condições para o bom exercício da conversa, mantenha-se, como dissemos acima, "a verdade como causa comum", não se trata mais, exatamente, de querer obtê-la, mas de instalar-se tranquilamente no domínio da busca e exercê-la com ordem.11 11 Passa-se de um exercício que tentava confiantemente avançar na conquista da verdade, para um que só dá por garantias a mestria e beleza na execução de seus passos, sem mais, e o prazer e utilidade que daí decorre, para si e para os outros (sobre a conversação como "exercício das almas, sem outro fruto", cf. III, 3, "Des trois commerces", 824).

Tanto é assim que Montaigne está apto para dissociar o "verdadeiro" da "ordem e pertinência", o "falso" de seus contrários: "Tanto pode agir tolamente quem diz o verdadeiro, como quem diz o falso: pois estamos na maneira, não na matéria do dizer" (III, 8, 928). Note-se, de passagem, que a explicação, expressa de forma intencionalmente ambígua, pode não só se aplicar à conversação, como também referir-se obliquamente ao conjunto dos Ensaios, que efetivamente não abordam as matérias, tentando estabelecer um saber seguro e certo sobre elas, mas somente as abordam e tratam no intuito de exibir e ostentar a "maneira" de o nosso ensaísta manejá-las e desenvolvê-las em seus exercícios do juízo, como tão bem nos instrui o início desenvolto do capítulo "Dos livros", em que fala de sua falta de competência para tratar as matérias em que ensaia suas "faculdades naturais", e de que eu lembraria aqui apenas o arremate final: "Que não se preste atenção às matérias, mas à maneira (façon) que lhes dou" (II, 10, 408). Atitude de leitura que Montaigne, mais do que espera, prescreve, e que se aproxima inteiramente da maneira como ele mesmo lê autores e entretém-se com espíritos famosos, segundo nos diz o mesmo "De l'art de conferer":

E todos os dias me divirto em ler nos autores, sem preocupação com sua ciência, aí buscando sua maneira, não seu assunto. Da mesma forma que procuro a comunicação de algum espírito famoso, não para que ele me ensine, mas para que eu o conheça. (III, 8, 928, grifo meu)

Tendo assim deixado para trás a preocupação com a verdade das matérias, toda atenção se converte para os "verdadeiros" traços distintivos do espírito, que são os "modos" que distinguem o mero dizer, conquanto ocasionalmente verdadeiro, do dizer bem e com pertinência: "Todo homem pode dizer verdade; mas dizer de modo ordenado, prudente e suficiente [ordonéement, prudemment et suffisamment], poucos homens o podem] (III, 8, 928, grifo meu).

No entanto, tal "conversão" não significa para Montaigne absolutamente que se dê relevo a um cuidado com a instrução puramente "formal" e autônoma de uma capacidade de arrazoar e discursar. Este é um ponto crucial, e ao mesmo tempo difícil, para a compreensão do "De l'art de conferer", pois no momento mesmo em que acreditamos trocar a ordem de preocupações, passando do âmbito da adequação dogmática do discurso às coisas, para o de sua suposta ordenação interna por procedimentos que poderiam ser codificados por uma arte, já que se trata agora da "maneira" – ou seja, trata-se, pensaríamos, segundo o modo de equacionar a questão que fora herdado dos antigos, da instrução do exercício de uma "faculdade" por meio de uma "arte"12 12 Pensamos, obviamente, na velha articulação entre "engenho" ( ingenium ou natura), como dom ou capacidade natural, e "doutrina" ( artificium, doctrina, disciplina ou ars), como conjunto de ensinamentos que instruem e aperfeiçoam o mesmo dom, a que se deve acrescentar a exercitatio ou studium. Cf. Quint. Inst. orat. XII 11, 11-12; Cic. De inv. 5; De or. I, 113-117; II, 11; III, 16 etc. É de notar que em Montaigne, ainda que o acento recaia na "natureza" e na "exercitação", na medida em que move uma crítica aos artifícios das disciplinas que pretendem instruir a condução do pensamento e a produção do discurso, não se trata de uma desqualificação tout court dessas disciplinas. Além da inverossimilhança histórica de tal leitura, em se tratando de um autor do século XVI, poderíamos alegar que o que se tem em vista é impedir a sua autonomização e a perpetuação, indecorosa, de seu estudo e prática. Quando Montaigne repassa com ironia as diversas figuras dos maus interlocutores, todos eles demasiadamente ocupados com as "palavras" e muito pouco com as "coisas", ele pretende reinstaurar um decoro que determina que este cuidado tenha tempo e lugar, diverso da ocasião da conference, que deve se passar entre as " testes bien faictes", cujos julgamentos assimilaram as matérias disputadas e penetraram em sua dificuldades. Trata-se de um restabelecimento das prioridades, não de uma negação das regras; de seu domínio, não de uma subserviência aos preceitos codificados nos tratados. Basta notar como Montaigne insiste num exercício "regrado" do espírito, embora ditado por "meios naturais", não rompendo de todo com a exigência de regramento. De resto, quando Montaigne nos fala de como se deve ler um autor e da dificuldade de fazê-lo, são as mesmas categorias da elocução e da invenção das "artes" que ele pede para julgar: "Mas empreender segui-lo [um autor como Vergílio, no caso] ponto por ponto, e com julgamento expresso e preciso querer apontar por onde um autor se sobressai, por onde se realça, pesando as palavras, as frases, as invenções uma após outra, eximi-vos de fazê-lo" (III, 8, 937, grifo meu). –, o texto montaigniano parece nos remeter novamente para o só âmbito das "matérias", das coisas tratadas, das concepções e ideias expostas, uma vez que, ao que parece, bastaria a concepção segura das matérias que só uma educação cuidadosa dá, para impor a ordenação aos espíritos. Educação, lembremos, que tem como cerne a formação do julgamento e parece desprezar o cuidado com os artifícios dialéticos e retóricos. Voltaríamos, portanto, ao velho adágio que afirma julgar e falar bem quem é conhecedor daquilo de que trata. Mas veremos como a "ordem" é, ainda assim, construída a parte subjecti, e revela a capacidade do espírito de manejar as diversas matérias, sem, contudo, apoiar-se em um saber (sçavoir) dogmático sobre elas.

Com isso, tocamos, então, no segundo ponto anunciado no início: a questão da "ordem" (ordre) que articula o discurso na conversa, e, por que não, no livro, agora avisados de que esta ordem não se concebe como um espelhamento da ordem das coisas mesmas no discurso, mas se dá toda no plano das articulações das fantasies, das "representações" do espírito, sem garantias objetivas. Ainda assim, é a penetração nas concepções das "coisas" que assegura e constitui uma ordem. Como isso se dá, é o que tentaremos mostrar no que segue.

Há duas perguntas acerca da "ordem" de que podemos esperar resposta do texto montaigniano. Como se tece um discurso ordenado? Quem é capaz de tecê-lo?13 13 Montaigne trata o problema da "ordem" pelo viés dos "sujeitos" capazes de articulá-la. Ele fala dos "conferencistas" como quem trata de artifice, não de arte ou de opere, para retomar a articulação comum aos tratados de arte retórica. A ambas o texto responde mais pelo avesso, através das figuras do opiniastre e do "tolo", do que positivamente, segundo o tratamento par contrarieté que mais apraz ao ensaísta. Comecemos, contudo, por alguns traços positivos.

A "ordem" é um dos termos que integram as qualidades da manière montaigniana, ao lado da "prudência" e da "suficiência", de que, no nosso ver, aquela depende. Há outros elementos, como a força, a graça ou a sutileza dos argumentos, mas que são relegados a um segundo plano. A "ordem" é o predicado privilegiado pelo ensaísta na conversação, condição necessária e suficiente de seu desempenho: "Um dia inteiro eu contestarei pacificamente, se a conduta do debate se seguir com ordem" (III, 8, 925). Na sequência imediata desta citação, Montaigne, como de hábito, nos oferece não uma definição abstrata do que ela possa ser, mas uma imagem viva de onde ela se perfaz. Vale citar:

A ordem que se vê todos os dias nas altercações dos pastores e meninos de oficina, jamais entre nós. Se eles se atrapalham, é por incivilidade; também nós o fazemos. Mas seu tumulto e impaciência não os desviam de seu tema: o propósito deles segue seu curso. Se eles se atropelam um ao outro, se não se esperam, ao menos eles se entendem. Responde-se sempre muito bem para mim, se se responde a propósito. (III, 8, 925)

Notamos aqui como à "civilidade" que observa regras de boas maneiras no trato mútuo entre os homens não pertence o que é essencial para a produção da ordem. E ao lado disso, o que a "incivilidade" dos "pastores e meninos de oficina", em seu "tumulto e impaciência", não exclui por sua vez: o prosseguimento do curso da conversa garantido pelo simples fato de que não se desviam do tema proposto, atendo-se a este nexo mínimo e suficiente que engendra a consecução no discurso: o nexo nomeado sucinta e modestamente pela expressão à propos.14 14 A resposta à propos, de que o português conhece tradução literal e bastante usual – o nosso "a propósito" –, lembra-nos tão modestamente de que a resposta deve convir ao assunto de que se vinha falando, deve se acomodar à pergunta que se tinha feito, pela razão simples de pertencer ao mesmo assunto. O que, de resto, garante também que haja entendimento entre os interlocutores.

Ora, é de notar que, se o discurso para o ensaísta não pode ter garantias de não se desgarrar, tomadas a uma verdade objetiva sobre as coisas, não se renuncia por isso à garantia da pertinência das falas que são trocadas ao longo da conversa.15 15 Esta pertinência se constrói quando as trocas verbais "referem-se pertinentemente à questão" (Tournon, ibid., p.167). Que a "ordem" que se demanda tem que ver com a "pertinência" e se constrói a partir dela, a própria insistência no emprego do termo contrário o atesta (cf. III, 8, 927: "... de leur impertinence..."; ibid.: "... de l'impertinence de leur art"; ibid., 928: "... conduire mal et impertinemment"; ibid., 932: "... parler impertinemment"). Assim, com os "espíritos vigorosos e regrados" de que nos fala, a "ordem e pertinência" abrem o campo do entendimento mútuo, favorecendo uma quase fusão das "imaginações" dos interlocutores desdobradas no diálogo:

(...) quando debato contra um homem vigoroso, apraz-me antecipar suas conclusões, poupo-lhe o esforço de se interpretar, experimento antecipar sua imaginação imperfeita ainda e nascente (a ordem e a pertinência de seu entendimento me advertem e ameaçam de longe) (...). (III, 8, 936)

Eles efetivamente pensam juntos e há tal congruência entre as falas que se sucedem, que um possa antecipar, interpretar ou prever o que o outro dirá. Dos tolos, ao contrário, Montaigne diz que "não entendem nem o que se diz nem porque, e respondem assim mesmo" (III, 8, 928). Desgarram-se uns dos outros, ao desviarem-se do tema proposto.

Logo, exploremos um pouco mais o que pode significar esse "desvio", na tentativa de esclarecer, agora par contrariété, as lições acerca da "ordem". Tendo afirmado a certa altura que não se porta de modo pacífico e paciente diante da falta de "forma" de certos golpes assestados contra ele, Montaigne pede licença para desviar-se do assunto e cuidar do "meio de tratá-lo". Curiosamente, oferece-nos, então, um variado e irônico quadro dos supostos mestres da disputa e da eloquência, verdadeiro espetáculo da "tolice", em que vemos vários traços de seu comportamento desviante.16 16 Cf. em III, 8, 928, o rol de comportamentos daqueles que não têm "nem passo nem porte que valham" e com os quais Montaigne se pergunta por que se por "em via de investigar o que é".

O que, afinal, faz da disputa com o tolo uma conversa "tumultuada e desregrada" (trouble et des-reglée)? Montaigne alude a um movimento tempestuoso em direções contrárias que se desgarra do que trata e perde o que buscava: "Um vai para o oriente, outro para o ocidente; eles perdem o principal, e descartam-no na multidão dos incidentes. Ao fim de uma hora de tempestade, não sabem o que buscam" (III, 8, 926).

O problema maior do tolo está – e aqui teremos necessariamente de desprezar matizes e nuances desta caracterização – em sua incapacidade de manter a atenção no núcleo do assunto tratado, dispersando-se para o que é incidental, quer isto represente uma passagem para outro assunto; quer uma recusa, por fraqueza, de disputar; quer ainda um cuidado com prefácios e digressões que não contribuem para fazer o assunto avançar; quer, por fim, um emprego de artifícios na discussão que nada acrescentam ao esclarecimento racional da matéria. Os "incidentes" de que os tolos se ocupam, destaquemos, são múltiplos (há uma "multidão" deles), enquanto o principal é um só. Além disso, são exteriores ao cerne do assunto discutido, o que faz deles meros acréscimos desnecessários ao prosseguimento da conversa. A exigência, que vimos formulada inicialmente, da "contradição dos julgamentos", obrigava a falar da mesma coisa, mas não a dizer a mesma coisa dela, e que, no limite, dissessem coisas contraditórias para que a conversa fosse proveitosa. Os tolos, segundo a acusação montaigniana, se desgarram uns dos outros e perdem, pelo desvio para o incidental, a coesão da interlocução, mantida, ao contrário, quando se avança nas falas, sustentando o foco na mesma coisa e no que é "principal" nela, quando a atenção se volta para o "assunto" (subject) tratado – não para a "forma" – e quando ele é um só, sem variação que o comprometa. Numa palavra, a "ordem" é ditada pela unidade da própria "matéria".17 17 Poderíamos ter, neste ponto, a impressão de termos voltado ao mesmo lugar de que partíramos. Pois, feita a crítica da relação dogmática com as matérias, fomos remetidos ao âmbito da maneira, que, vemos agora, se ordena pelas mesmas articulações da matéria, não se moldando nem pelos movimentos arbitrários de uma fantasia, nem por regras externas de condução do pensamento. No entanto, a impressão é falsa, pois o discurso continua carecendo do fundamento nas coisas mesmas, sem deixar de ter seus esteios numa profunda cultura da alma, capaz de investigar com propriedade as mais diversas matérias, exercitada na inspeção e sondagem de suas articulações, hábil em sobre elas sustentar opiniões contrárias, mesmo sem ter delas um "conhecimento" na acepção dogmática da palavra. De tal investigação os Ensaios são exemplos cabais. É esta "unidade" que o nexo do à propos, ou seja, que a pertinência das respostas pode positivamente garantir a cada passo, na medida em que cada um é apto ou conveniente àquilo que o precede e eles não se sucedem ao acaso.18 18 Com isso ele não rompe, nem inverte a precedência já estabelecida pelos clássicos das coisas ( res) sobre as palavras ( verba), do cuidado com as concepções e ideias, ou seja, da invenção, sobre o cuidado com a disposição e, sobretudo, a elocução do discurso. Tal precedência se codifica e fixa, por exemplo, em Horácio, na "Epístola aos Pisões", a conhecida Arte Poética, tendo sua expressão condensada na fórmula: Verba provisam rem non invita sequentur ["As palavras espontaneamente seguirão as ideias bem concebidas"] (Hor. Ars Poetica, 311); esta tópica perpassa vários tratados de retórica da antiguidade, que estabelecem o primado do trabalho da "invenção" sobre o da "disposição" e "elocução" dos discursos, subordinando estas tarefas àquela. (Sobre a distinção entre as tarefas cumpridas pelos oradores, cf. Cic. Part. 1, 3; id. De inv. I 7, 9; Rhet. Her. I 3.) Não se pode passar em silêncio que a "ordem" propugnada aqui está bem distante da imagem da oscilação e variação que normalmente se associa ao discurso montaigniano, na medida em que o andamento, ainda que siga um curso sinuoso, é regrado pelo vínculo oportuno de cada alegação, se pudermos, mais uma vez, projetar na feitura da obra e no modo como o pensamento nela se desenvolve esta discussão sobre uma exigência da conversa. Se for lícita tal projeção, fica a tarefa de reinterpretar a afirmação do prólogo do capítulo "Do arrependimento" (III, 2) de que suas fantasias são governadas pela sorte, enquanto as da música pela arte.

Até aqui nós não fizemos senão repor os termos montaignianos da questão e delinear o que ele entende por "ordem". A explicação efetiva da unidade garantida pela pertinência, ou seja, a explicitação das condições de articulação de um discurso ordenado – e isto já nos encaminha para a resposta sobre quem é capaz de tecê-lo, apontada acima –, Montaigne no-la oferece, indiretamente, pelo diagnóstico das causas dos desvios da tolice.

Um fato preliminar a notar é que a discussão traz à tona uma questão central para os vários projetos intelectuais da Renascença – central, por conseguinte, para Montaigne –, qual seja, a do "pedantismo". Em nosso autor, o alvo real da invectiva contra os pedantes é um pouco mais difuso do que em outros humanistas. Petrarca,19 19 Cf. De rerum familiarium I, 7: contra senes dyalecticos. Aliás, nisso ele é tanto quanto Montaigne herdeiro de Sêneca em suas Epístolas morais à Lucílio, que amiúde se volta contra as preocupações com "lógica", que desviam dos problemas morais mais urgentes (cf. Sen. Epistulae ad Lucilium, lix). por exemplo, quando invectiva os velhos dialéticos, em suas Cartas das coisas familiares, parece endereçar suas críticas contra a Escolástica e o método da disputatio. Já Montaigne reúne sob a rubrica do pedantismo, ao que parece, mestres da disputa e retores do Humanismo. O tolo que ele satiriza20 20 Mas tal desqualificação deve ser pensada na chave de uma valorização da "formação do entendimento e julgamento", contra a cultura da "memória", que se atém a produzir discursos que costuram citações alheias, sem apreender sua significação mais profunda, sem se apropriar verdadeiramente da força destes discursos. Montaigne fala de um "uso" que se faz das "ciências" por parte dos sçavants, não desqualificando o "saber" enquanto tal, que conhece um "verdadeiro uso" (III, 8, 927). longamente no "De l'art de conferer", em seus múltiplos aspectos e formas tipicamente construídos, não é senão um legítimo representante daquela incorreta relação com o saber e as letras, presente tanto em uns como em outros e ameaçadora do fim preciso da imitação rival (aemulatio) dos antigos.21 21 Fim, como se sabe, que fora reproposto com os Studia humanitatis e que habita o núcleo dos projetos intelectuais do Humanismo renascentista. Ele opera como uma espécie de figura reguladora interna de uma cultura que cuida para não desgarrar de seus propósitos mais elevados, persuadindo, a contrario sensu, de sua impropriedade, já que é o negativo de que se extrai a instrução par disconvenance ou par contrariété. Dito isso, voltemos ao texto, exatamente no passo em que, num "excurso" breve, dirige-se uma invectiva acerba contra um "uso que se faz das ciências e das letras",22 22 Retomando densa e enfaticamente temas de que havia cuidado em seu primeiro livro, nos capítulos "Do pedantismo" (I, 25) e "Da educação das crianças" (I, 26). uso pedante e servil, que tem por causa certa "indigestão" intelectual, onde a inépcia do tolo tem origem.

Montaigne começa enunciando sua desconfiança quanto ao proveito para a vida que se poderia tirar das "ciências", em especial das que prometem ensinar a melhor pensar e discorrer:

Ora, quem não entra a desconfiar das ciências, e não fica em dúvida se delas se pode tirar algum sólido fruto para a necessidade da vida, ao considerar o uso que delas fazemos: nihil sanantibus litteris [dessas letras que nada curam]? Quem obteve o entendimento com a lógica? onde estão suas belas promessas? Nec ad melius vivendum nec ad commodius disserendum [Não há nada [nelas] nem para viver melhor, nem para discorrer mais comodamente]. (III, 8, 926; citações latinas, respectivamente, de Sen. Ep. lix e Cic. De fin. I xix)

A expressão da desconfiança e do desprezo pelos sçavants e suas disciplinas23 23 Esta crítica faz eco, em larga medida, aos modos dos autores humanistas invectivarem disciplinas como a dialética, assimilada no tempo à disputatio escolástica, e mesmo à própria retórica. Não se trata de uma negação tout court do valor das disciplinas do trivium, mas do restabelecimento de seu lugar, como meio, e não fim de toda instrução. – preferindo "as tavernas" às escholes de la parlerie para o filho aprender a falar – reforçada, na sequência de nosso texto, pelo exemplo do maistre ès arts – desafiado a despir seu "latim" e "não martelar Aristóteles inteiramente puro e inteiramente cru em nossos ouvidos" – testemunha verossimilmente a aversão de Montaigne contra uma lide dogmática com o saber ou venal com as Musas – que "emenda as bolsas, mas não as almas" –, incompatível com as aspirações de um fidalgo bem-nascido que não quer confundir-se com os faiseurs de livres, ou com os que fazem das Letras profissão, meio de vida. Sua crítica, em suma, volta-se claramente contra aqueles que assentam sua suffisance et valeur na "ciência" (sçavoir), que "submetem seu entendimento à memória", e não sabem nada senão o que tomam de empréstimo dos livros:

Mas àqueles (e há um número infinito deste gênero) que estabelecem sua fundamental suficiência e valor, que apoiam seu entendimento em sua memória [C] sub aliena umbra latentes [escondendo-se sob sombra alheia], [B] e não podem nada senão por livro, eu os odeio, se o ouso dizer, um pouco mais do que [odeio] a bestialidade. (III, 8, 927; citação latina de Sen. Ep. xxxiii)

Tais homens calcam o seu saber na memória e no empréstimo e imitação servil das autoridades, bem como na sujeição aos preceitos das artes.24 24 O que de modo nenhum indica uma desconsideração de preceitos e de modelos a imitar. Seria anacrônico afirmar tal independência. Quer isto dizer, ao contrário, que nosso autor propugna por um domínio hábil das regras da arte e sabe a ocasião oportuna de desprezá-las, bem como imita rivalizando com seus modelos, e, portanto, reclama o status de "autor". Mesmo afirmando ampla liberdade e independência no que diz, é inegável que a maior parte do tempo nosso autor trilha caminhos antes trilhados ou apontados por outros. É inegável igualmente, desde o admirável recenseamento de fontes feito por Villey, que o texto de Montaigne se constrói num diálogo cerrado com os autores que compulsa e lê. Em suma, está em jogo aqui, segundo penso, não a afirmação de uma autonomia para o discurso que se produz, mas algo que havia sido recentemente reproposto pelos italianos e que responde pelo nome de Sprezzatura e que recolhe as lições de uma antiga tradição, entre os latinos, e em Cícero em particular, relativa à tópica da "negligência diligente". É preciso não perder de vista a crítica ao artifício, movida pelo ensaísta ao longo dos três livros dos Ensaios, com o intuito de criar um éthos favorável por meio de seu discurso; todavia, sem esquecer, igualmente, que esta mesma crítica é preceituada e compõe um repertório de tópicas que tornam o discurso montaigniano verossímil, ou seja, dá-lhe uma eficácia persuasiva, pelo simples fato de se apoiar numa premissa reputada no tempo em que escreve. Portanto, não se trata de um simples desprezo pelas regras de arte, mas de uma obediência ao preceito maior de "naturalizar a própria arte". Isto não implica em anular a crítica da mentira e da dissimulação, mas em dar-lhe seu correto acento, que não exclui um uso da dissimulação dentro do que a tratadística do séc. XVII chamará de "dissimulação honesta". Tantos traços de uma "indigestão" intelectual e de uma sujeição ao "alheio" em detrimento do "próprio" que nosso autor insistentemente rechaça e que aponta como causa da desordem na conduta dos debates com os esprits bas et maladifs.25 25 A oposição entre o alheio e o próprio é fundamental em Montaigne, no entanto, deve ser bem compreendida. Não se trata de uma afirmação pura e simples das produções naturais do próprio espírito, nem de uma autonomia que se construa sem os contributos das grandes almas do passado com quem dialoga, mas de um processo de "assimilação" que torna próprio o que era saber ou lição alheia, e que se constrói, sobretudo durante a institution. É de lembrar que boa parte da educação se faz pelo comércio com os livros, segundo o "Da educação das crianças". O que Montaigne critica é a imitação servil dos faiseurs de livres e a reprodução de memória das lições dos clássicos, em prol de uma relação que chegue a forjar entendimento e julgamento seguros sobre o que aqueles discutem, não parando na mera repetição verbal, mas chegando aos atos, incluindo aí os que dão vida a uma nova obra. E, ao contrário, é à "força" das concepções dos esprits rigoureux et reglé que o arrazoado montaigniano nos remete, quando fala de "ordem", resultado de um zelo e cuidado com a institution conforme à "nova maneira" que o "De l'institution des enfans" já propugnava (I, 26, 150). E, portanto, em termos montaignianos, conforme à "suficiência" (suffisance) de uma teste bien faicte, que garante por si só a unidade e a pertinência da discussão, pois é forjada numa lide com o saber que se põe, por fim, a serviço da formação do jugement.

Afloramos aqui um tópos recorrente dos Ensaios, nesta oposição entre um "saber" de empréstimo, que é puramente de memória, e um "saber" que resulta de uma verdadeira "assimilação" das lições aprendidas não só nos livros, como também tomadas das muitas lições que porta a experiência. O sentido deste "saber", contudo, é esclarecido se nos lembrarmos de um passo do "Da experiência" em que aparece o significado preciso da "ignorância" que se reserva, segundo o ensaísta, a toda uma tradição venerável da filosofia,26 26 Na Apologia Montaigne estende amplamente o alcance desta tradição (II, 12, 511: "Não me persuado facilmente que Epicuro, Platão e Pitágoras tenham dado por moeda corrente seus Átomos, suas Ideias e seus Números. Eles eram demasiado sábios para estabelecer seus artigos de fé em coisa tão incerta e tão discutível"). incluindo evidentemente os céticos:

As dificuldades e a obscuridade não são percebidas em cada ciência senão por aqueles que nelas penetraram. Pois, ainda é preciso algum grau de inteligência para poder observar que se ignora, e é preciso empurrar uma porta para saber que ela para nós está fechada. (III, 13, 1075)

Esta percepção de que se ignora, por parte daqueles que penetraram com inteligência nas ciências, ou seja, por aqueles que fizeram o esforço de "empurrar uma porta" para descobrir que ela está fechada, não é à-toa que a encontramos associada a uma "ignorância" que em nada se aproxima da "indigestão" de que são acusados os sçavants, e que radica profundamente numa cultura da alma forjada pela "experiência" da variação e oscilação que observa em si e nas coisas exteriores, sem renunciar a penetrá-las com inteligência e ordenada e racionalmente investigá-las. Ela é da mesma ordem que a "experiência" no sentido mais elevado que aflora em outro momento no "De l'art de conferer", em que o ensaísta contrasta duas "experiências": uma que é mero relato de ocorrências ou vivências particulares; e outra que nasce do exercício do entendimento e do julgamento sobre elas:

Eu lhe diria de bom grado que o fruto da experiência de um cirurgião não é a história de suas práticas, e se recordar de que curou quatro empestados e três gotosos, se ele não souber tirar deste exercício o de que formar seu julgamento, e não nos souber fazer perceber que se tornou mais sábio com o exercício de sua arte. [...] Se as viagens e os cargos os têm emendado, é à produção de seu entendimento [que cabe] fazê-lo transparecer. Não basta contar as experiências, é preciso pesá-las e confrontá-las; e é preciso tê-las digerido e destilado, para extrair-lhes as razões e conclusões que portam. (III, 8, 931)

A experiência no sentido mais elevado a que aludimos acima se constitui, como vemos, a partir do trabalho ativo e inteligente do sujeito da experiência sobre cada uma de suas "experiências", trabalho que "pesa e compara", "digere e destila" as lições – de livros, da vida – que cada situação faz confrontar. As produções do entendimento mudam e fazem transparecer uma melhora e emenda, por meio deste trabalho de formação do discernimento e julgamento que leva em conta razões e conclusões de cada caso vivenciado. Vemos como este processo, ainda que não chegue a constituir ciência num sentido pleno para Montaigne, pois, dada a ingerência da diferença em todos os assuntos, não avança no sentido de uma generalização abstrata que retém o semelhante de cada caso particular27 27 Para a discussão da impossibilidade de se constituir ciência a partir da experiência das coisas exteriores, ver o início do "Da experiência" (III, 13, 1065-72). , não pode, igualmente, se deter na simples recordação (souvenir). Este é, de fato, o principal defeito dos sçavants que se valem somente de um saber que não é deles, pois não foi devidamente assimilado, apropriado e modificado, uma vez que só reproduzem e devolvem o que retiveram na memória.

Em seu "De l'institution des enfans", Montaigne mobilizava já a famosa metáfora das abelhas, tomada por ele certamente de Sêneca, para sinalizar o fim a que se propõe toda instrução de seu enfant de maison: que ele não devolva tal como recebeu a matéria que lhe deram, mas que saiba tirar dela o de que formar seu julgamento, passando "tudo pelo crivo e não alojando nada em sua cabeça por simples autoridade e crédito" (I, 26, 151).28 28 Cf. também Sen. Ep. XXXIII, 10. Assim, a atividade que forma o juízo e o entendimento, acentua e aguça a penetração inteligente nas articulações de um "saber" que permanece, por assim dizer, problemático, mas por meio do qual se produz uma modificação profunda no homem, que se torna capaz não só de pensar e discursar, como de agir com prudência e "suficiência", triando suas próprias vias no âmbito do saber, pois mostra ter-se tornado "mais sábio", ou, em termos estritamente montaignianos, homme suffisant, mesme à ignorer.

Artigo recebido em 28/06/2012 e aprovado em 28/08/2012.

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  • ________ Rhetorica Recognovit brevique adnotatione critica instruxit A. S. Wilkins. 3 ed. Oxford: Oxford University Press, 1988.
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  • TOURNON, André. Montaigne Tradução de Edson Querubini. São Paulo: Discurso Editorial, 2004.
  • 1
    Montaigne.
    Les Essais. Edição de Pierre Villey e V.-L. Saulnier. Paris: PUF/Quadrige, 1999. Nas referências aos capítulos dos
    Ensaios, os numerais romanos indicam o livro e os numerais arábicos indicam em sequência o capítulo e a página. Salvo menção em contrário, as citações diretas dos
    Ensaios, neste texto, são todas referentes ao "De l'art de conferer". Nas citações, optei, para economia de espaço e comodidade do leitor, por manter apenas as traduções, que são de minha responsabilidade e tiveram como preocupação exclusiva a fidelidade ao texto.
  • 2
    Tomo os termos tais como são definidos dentro da tradição dos tratados retóricos desde os antigos. Para uma definição das partes da arte ou das tarefas que deve cumprir o orador para produzir seu discurso, veja-se, por exemplo,
    Cícero,
    De inventione I, 9. (Cf. também
    Rhet. ad Herennium I ii, 2.)
  • 3
    Cf. Querubini, Edson.
    Montaigne e a Arte da Conversação: a conversão para a "maneira". Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo: 2009.
  • 4
    O que parece alinhar os esclarecimentos do exercício da conversação expostos no capítulo ao estudo de "uma forma de falar" e a apresentação de regras "para a direção do espírito", tal como já indicava a leitura de J. Y. Pouilloux em seu
    Lire les "Essais" de Montaigne. No entanto, o privilégio que se dá à crítica epistemológica nesta leitura, ao "colocar a questão da desordem, de suas razões e de suas funções" (cf.
    idem,
    ibid., p.45
    et passim), bem como a desqualificação radical de toda interpretação que busca uma ordem oculta e um conteúdo de saber nos
    Ensaios, transformando-os num procedimento de acúmulo de enunciados ideológicos como "matéria do discurso crítico", nos parecem, de algum modo, incompatíveis com a concepção de "ordem" que se exprime de modo tão enfático neste mesmo capítulo e afeta o modo de se pensar a
    manière, vinculando-se antes ao projeto de constituição do sujeito e de sua estabilização moral, através do projeto de auto-retrato, do que a uma função de crítica cética das ideologias.
  • 5
    Em que se estabelece o estatuto do discurso que iremos ler. Montaigne avisa seu leitor de que trata o tema a partir da acusação de um vício em que incorre quando conversa com um tolo (
    sot), constituindo assim uma posição ao mesmo tempo humilde e irônica, pois seu erro ocorre precisamente quando encontra alguém que não sabe conversar.
  • 6
    Cícero, na breve nota que dedica à conversação em
    Dos deveres, prescrevia para a conversação que se evitassem excessos da alma que não se curvassem à razão – banindo a cólera, a cupidez, a preguiça etc. –,
    mesmo quando se emprega um tom mais firme nas repreensões; sobretudo a cólera é de evitar, pois, como justifica o orador, "sob o império dela nada se faz com justiça e razão" (cf. Cic.
    De off. I xxxvii, 136-7).
  • 7
    Que não nos engane esta referência tão enfática à verdade. Ela não invalida a "profissão de fé" no ceticismo. O homem continuará, como se diz páginas adiante, encerrado em uma "escole d'inquisition", e todo discurso que se tece não abandona esse regime, por assim dizer,
    problemático, se pensado da perspectiva da verdade visada, já que os múltiplos "exercícios do juízo", de fato, jamais alcançam possuí-la. Ora, certamente não há para Montaigne enunciado acerca das matérias exploradas, no curso de uma conversa ou no livro, que não possa ser revisto. Isso, no mais, define a própria
    dýnamis antithetiké dos aptos para a
    conference, e acaba por reduzir todo discurso ao domínio da opinião.
  • 8
    Tournon, André.
    Montaigne, p. 167. No entanto, se este é um regime, por assim dizer, "ideal" da conversação, visto que nele há o encontro de interlocutores aptos, este não é o exclusivo regime em que pensa Montaigne, estando sempre aberta, para os que "vive[m] entre os vivos", a possibilidade de um encontro menos "vigoroso e generoso". O início mesmo do texto distingue duas possibilidades de encontros (cf. III, 8, 923, em que fala da "comunicação com os espíritos vigorosos e regrados", distinguindo-a do "comércio e frequentação com os espíritos baixos e doentios").
  • 9
    É preciso distinguir uma crítica da adulação, que perpassa todo "De l'art de conferer", e os
    Ensaios, da crítica contra os "artifícios" que regulam a produção discursiva. A primeira tem como alvo a dissimulação e a mentira que promovem o descompasso entre o que se diz e o que, de fato, se pensa. Atitude perniciosa para o
    loyaliste Montaigne, como atesta enfaticamente um capítulo como o "Do desmentir" (II, 18). Já a segunda pertence a uma crítica da "má afetação", aplicação inadequada das regras e preceitos, que entrava o exercício do pensamento e do julgamento, sobretudo porque são típicas dos "esprits foiblement fondez", dos pedantes que não têm a compreensão das questões de que se arriscam a falar.
  • 10
    A
    suffisance é tratada por Montaigne em toda segunda metade de nosso texto, onde se ensina a reconhecer duas de suas "contrafações": as
    suffisances d'apparences, aspectos de que se reveste todo aquele que é, sem verdadeiro mérito, alçado pela fortuna a posições eminentes; as
    suffisances estrangeres, alegações de peso que são avançadas no curso de uma conversa, mas de que se desconhece o verdadeiro alcance e as implicações.
  • 11
    Passa-se de um exercício que tentava confiantemente avançar na conquista da verdade, para um que só dá por garantias a mestria e beleza na execução de seus passos, sem mais, e o prazer e utilidade que daí decorre, para si e para os outros (sobre a conversação como "exercício das almas, sem outro fruto", cf. III, 3, "Des trois commerces", 824).
  • 12
    Pensamos, obviamente, na velha articulação entre "engenho" (
    ingenium ou
    natura), como dom ou capacidade natural, e "doutrina" (
    artificium,
    doctrina,
    disciplina ou
    ars), como conjunto de ensinamentos que instruem e aperfeiçoam o mesmo dom, a que se deve acrescentar a
    exercitatio ou
    studium. Cf. Quint.
    Inst. orat. XII 11, 11-12; Cic.
    De inv. 5;
    De or. I, 113-117; II, 11; III, 16 etc. É de notar que em Montaigne, ainda que o acento recaia na "natureza" e na "exercitação", na medida em que move uma crítica aos artifícios das disciplinas que pretendem instruir a condução do pensamento e a produção do discurso, não se trata de uma desqualificação
    tout court dessas disciplinas. Além da inverossimilhança histórica de tal leitura, em se tratando de um autor do século XVI, poderíamos alegar que o que se tem em vista é impedir a sua autonomização e a perpetuação,
    indecorosa, de seu estudo e prática. Quando Montaigne repassa com ironia as diversas figuras dos maus interlocutores, todos eles demasiadamente ocupados com as "palavras" e muito pouco com as "coisas", ele pretende reinstaurar um
    decoro que determina que este cuidado tenha tempo e lugar, diverso da ocasião da
    conference, que deve se passar entre as "
    testes bien faictes", cujos julgamentos assimilaram as matérias disputadas e penetraram em sua dificuldades. Trata-se de um restabelecimento das prioridades, não de uma negação das regras; de seu domínio, não de uma subserviência aos preceitos codificados nos tratados. Basta notar como Montaigne insiste num exercício "regrado" do espírito, embora ditado por "meios naturais", não rompendo de todo com a exigência de regramento. De resto, quando Montaigne nos fala de como se deve ler um autor e da dificuldade de fazê-lo, são as mesmas categorias da elocução e da invenção das "artes" que ele pede para julgar: "Mas empreender segui-lo [um autor como Vergílio, no caso] ponto por ponto, e com julgamento expresso e preciso querer apontar por onde um autor se sobressai, por onde se realça,
    pesando as palavras, as frases, as invenções uma após outra, eximi-vos de fazê-lo" (III, 8, 937, grifo meu).
  • 13
    Montaigne trata o problema da "ordem" pelo viés dos "sujeitos" capazes de articulá-la. Ele fala dos "conferencistas" como quem trata
    de artifice, não
    de arte ou
    de opere, para retomar a articulação comum aos tratados de arte retórica.
  • 14
    A resposta
    à propos, de que o português conhece tradução literal e bastante usual – o nosso "a propósito" –, lembra-nos tão modestamente de que a resposta
    deve convir ao assunto de que se vinha falando,
    deve se acomodar à pergunta que se tinha feito, pela razão simples de pertencer ao mesmo assunto.
  • 15
    Esta pertinência se constrói quando as trocas verbais "referem-se pertinentemente à questão" (Tournon,
    ibid., p.167). Que a "ordem" que se demanda tem que ver com a "pertinência" e se constrói a partir dela, a própria insistência no emprego do termo contrário o atesta (cf. III, 8, 927: "... de leur impertinence...";
    ibid.: "... de l'impertinence de leur art";
    ibid., 928: "... conduire mal et impertinemment";
    ibid., 932: "... parler impertinemment").
  • 16
    Cf. em III, 8, 928, o rol de comportamentos daqueles que não têm "nem passo nem porte que valham" e com os quais Montaigne se pergunta por que se por "em via de investigar o que é".
  • 17
    Poderíamos ter, neste ponto, a impressão de termos voltado ao mesmo lugar de que partíramos. Pois, feita a crítica da relação dogmática com as matérias, fomos remetidos ao âmbito da maneira, que, vemos agora, se ordena pelas mesmas articulações da matéria, não se moldando nem pelos movimentos arbitrários de uma fantasia, nem por regras externas de condução do pensamento. No entanto, a impressão é falsa, pois o discurso continua carecendo do fundamento nas coisas mesmas, sem deixar de ter seus esteios numa profunda cultura da alma, capaz de investigar com propriedade as mais diversas matérias, exercitada na inspeção e sondagem de suas articulações, hábil em sobre elas sustentar opiniões contrárias, mesmo sem ter delas um "conhecimento" na acepção dogmática da palavra. De tal investigação os
    Ensaios são exemplos cabais.
  • 18
    Com isso ele não rompe, nem inverte a precedência já estabelecida pelos clássicos das coisas (
    res) sobre as palavras (
    verba), do cuidado com as concepções e ideias, ou seja, da
    invenção, sobre o cuidado com a
    disposição e, sobretudo, a
    elocução do discurso. Tal precedência se codifica e fixa, por exemplo, em Horácio, na "Epístola aos Pisões", a conhecida
    Arte Poética, tendo sua expressão condensada na fórmula:
    Verba provisam rem non invita sequentur ["As palavras espontaneamente seguirão as ideias bem concebidas"]
    (Hor.
    Ars Poetica, 311); esta tópica perpassa vários tratados de retórica da antiguidade, que estabelecem o primado do trabalho da "invenção" sobre o da "disposição" e "elocução" dos discursos, subordinando estas tarefas àquela. (Sobre a distinção entre as tarefas cumpridas pelos oradores, cf. Cic.
    Part. 1, 3;
    id. De inv. I 7, 9;
    Rhet. Her. I 3.)
  • 19
    Cf.
    De rerum familiarium I, 7:
    contra senes dyalecticos. Aliás, nisso ele é tanto quanto Montaigne herdeiro de Sêneca em suas
    Epístolas morais à Lucílio, que amiúde se volta contra as preocupações com "lógica", que desviam dos problemas morais mais urgentes (cf. Sen.
    Epistulae ad Lucilium, lix).
  • 20
    Mas tal desqualificação deve ser pensada na chave de uma valorização da "formação do entendimento e julgamento", contra a cultura da "memória", que se atém a produzir discursos que costuram citações alheias, sem apreender sua significação mais profunda, sem se apropriar verdadeiramente da força destes discursos. Montaigne fala de um "uso" que se faz das "ciências" por parte dos
    sçavants, não desqualificando o "saber" enquanto tal, que conhece um "verdadeiro uso" (III, 8, 927).
  • 21
    Fim, como se sabe, que fora reproposto com os
    Studia humanitatis e que habita o núcleo dos projetos intelectuais do Humanismo renascentista.
  • 22
    Retomando densa e enfaticamente temas de que havia cuidado em seu primeiro livro, nos capítulos "Do pedantismo" (I, 25) e "Da educação das crianças" (I, 26).
  • 23
    Esta crítica faz eco, em larga medida, aos modos dos autores humanistas invectivarem disciplinas como a
    dialética, assimilada no tempo à
    disputatio escolástica, e mesmo à própria
    retórica. Não se trata de uma negação
    tout court do valor das disciplinas do
    trivium, mas do restabelecimento de seu lugar, como meio, e não fim de toda instrução.
  • 24
    O que de modo nenhum indica uma desconsideração de preceitos e de modelos a imitar. Seria anacrônico afirmar tal independência. Quer isto dizer, ao contrário, que nosso autor propugna por um domínio hábil das regras da arte e sabe a ocasião oportuna de desprezá-las, bem como imita rivalizando com seus modelos, e, portanto, reclama o
    status de "autor". Mesmo afirmando ampla liberdade e independência no que diz, é inegável que a maior parte do tempo nosso autor trilha caminhos antes trilhados ou apontados por outros. É inegável igualmente, desde o admirável recenseamento de fontes feito por Villey, que o texto de Montaigne se constrói num diálogo cerrado com os autores que compulsa e lê. Em suma, está em jogo aqui, segundo penso, não a afirmação de uma autonomia para o discurso que se produz, mas algo que havia sido recentemente reproposto pelos italianos e que responde pelo nome de
    Sprezzatura e que recolhe as lições de uma antiga tradição, entre os latinos, e em Cícero em particular, relativa à
    tópica da "negligência diligente". É preciso não perder de vista a crítica ao artifício, movida pelo ensaísta ao longo dos três livros dos
    Ensaios, com o intuito de criar um
    éthos favorável por meio de seu discurso; todavia, sem esquecer, igualmente, que esta mesma crítica é preceituada e compõe um repertório de
    tópicas que tornam o discurso montaigniano verossímil, ou seja, dá-lhe uma eficácia persuasiva, pelo simples fato de se apoiar numa premissa reputada no tempo em que escreve. Portanto, não se trata de um simples desprezo pelas regras de arte, mas de uma obediência ao preceito maior de "naturalizar a própria arte". Isto não implica em anular a crítica da mentira e da dissimulação, mas em dar-lhe seu correto acento, que não exclui um uso da dissimulação dentro do que a tratadística do séc. XVII chamará de "dissimulação honesta".
  • 25
    A oposição entre o
    alheio e o
    próprio é fundamental em Montaigne, no entanto, deve ser bem compreendida. Não se trata de uma afirmação pura e simples das produções naturais do próprio espírito, nem de uma autonomia que se construa sem os contributos das grandes almas do passado com quem dialoga, mas de um processo de "assimilação" que torna próprio o que era saber ou lição alheia, e que se constrói, sobretudo durante a
    institution. É de lembrar que boa parte da educação se faz pelo comércio com os livros, segundo o "Da educação das crianças". O que Montaigne critica é a imitação servil dos
    faiseurs de livres e a reprodução de memória das lições dos clássicos, em prol de uma relação que chegue a forjar entendimento e julgamento seguros sobre o que aqueles discutem, não parando na mera repetição verbal, mas chegando aos atos, incluindo aí os que dão vida a uma nova obra.
  • 26
    Na
    Apologia Montaigne estende amplamente o alcance desta tradição (II, 12, 511: "Não me persuado facilmente que Epicuro, Platão e Pitágoras tenham dado por moeda corrente seus Átomos, suas Ideias e seus Números. Eles eram demasiado sábios para estabelecer seus artigos de fé em coisa tão incerta e tão discutível").
  • 27
    Para a discussão da impossibilidade de se constituir ciência a partir da experiência das coisas exteriores, ver o início do "Da experiência" (III, 13, 1065-72).
  • 28
    Cf. também Sen.
    Ep. XXXIII, 10.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      28 Jun 2012
    • Aceito
      28 Ago 2012
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